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* lade Histria das eas IRENE MARIA VAQUINHAS eta de Hist Hi O CONCEITO DE “DECADENCIA FISIOLOGICA DA RACA” EO DESENVOLVIMENTO DO DESPORTO EM PORTUGAL (Finais do século XIX/Principios do século XX) “A educacdo physica da raga é uma questo de vida ou de morte para um paiz” Condeyras Introdugéo Em 1905 a disciplina de Educacao Fisica entrou nos curricula escolares dos estudantes liceais. Por carta de lei de 29 de Agosto era reformado o ensino secundario ¢ inclufa-se, nos programas de estudo, o ensino da Educacio Fisica ('), dando-se particular destaque a pratica da gindstica sueca, nome pelo qual ficou conhecido 0 método de cultura fisica concebido e fundado por Ling, autor de nacionalidade sueca @). * Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra () Na reforma da instrugao primaria de 16 de Agosto de 1870, da responsabilidade de D. Anténio da Costa, inclufa-se a Educagao Fisica (ginéstica e higiene), no programa de estudos. Questées politicas impediram a concretizacao desta reforma que foi suspensa dois meses apés a sua promulgagio, Rémulo de Carvalho, Histéria do ensino em Portugal — Desde a fundagdo da ‘nacionalidade até o fim do regime de Salazar - Caetano, Lisboa, Fundagao Calouste Gulbenkian, 1986, pp. 604-605. ©. Art. 4° da carta de lei de 29 de Agosto de 1905, José Maximo de Castro Neto Leite e Vasconcellos, Collecgao Official da Legislacdo Portuguesa, anno de 1905, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906, p. 385. 365 Descobrimentes, Expansio, idenidade Nacional Dificuldades de diversa natureza — caréncia de instalacdes adequadas a pratica desportiva; falta de formacio especializada de professores e preconceitos relativos a gindstica que era considerada por muitos como uma actividade propria de arlequins e acrobatas de circo (@) — impediram a aplicacao daquela carta de lei, inviabilizando © exercicio desta disciplina na maior parte dos liceus do nosso pats. Anos mais tarde, em Fevereiro de 1910, 0 governo encarava a hipdtese de estender a educacio fisica ao ensino primario (), projecto que veio a ser aprovado durante a vigéncia do I Governo Republicano. A este nivel da escolaridade os obstaculos foram, ainda maiores, de tal modo que 0 exercicio da gindstica s6 em poucos estabeleci- mentos de ensino era praticado. Uma excepcao neste quadro geral era representada pela Casa Pia de Lisboa onde, desde 1838, a ginastica se tornara disciplina obrigatoria ). Um caso A parte no panorama do desporto escolar de Oitocentos merecendo, por isso, os mais rasgados elogios de médicos e pedagogos e sendo citado como uma “instituigio modelo da educagio fisica” em Portugal (*). Nao obstante as dificuldades apontadas e o cardcter tardio da legislacao portuguesa relativamente a outros pafses europeus — na Alemanha setentrional, Suica, Holanda, Dinamarca, Suécia e sobretudo ©) Um articulista nao identificado do jornal Os sports de 2 de Maio de 1907, em artigo intitulado “A tuberculose e a escola”, refere-se a esta carta de lei nos seguintes termos: “Quanto 4 educagao physica pode dizer-se que continua em completo abandono. Houve uma louvavel iniciativa de estabelecer a gymnastica nos lyceus, mas por falta de locaes apropriados, por né organisagio ou ainda por outras causas, é certo que a frequencia ea disciplina n’esses exercicios deixam muito a desejar’, esclarecendo mais adiante: “Tenho presenceado o empenho que muitos paes de alumnos poem em livrar os seus filhos dos exercicios de gymnastica, pelo tempo que Ihes rouba”. Contudo, os preconceitos relativos a gindstica sto de longa data. Em 1879, Augusto Filippe Simoes afirmava que “A maior parte da gente repugnam os exercicios. A uns parecem prejudiciaes, porque desconhecem os seus salutares effeitos; a outros ridiculos, porque as pessoas sérias nao s occupam de similhantes cousas; a muitos, enfim, proprios néo de mogos bem educados, mas de arlequins ¢ acrobatas”, Educagdo Physica, Lisboa, Livraria Ferreira, 1879, p. 349. () “Educagio physica”, Sport Nacional, n® 2, de 23 de Fevereiro de 1910. © Anténio Aurélio da Costa Ferreira, Gindstica — Escola de moral ¢ civismo, separata da Revista de Educagio Geral e Técnica, Lisboa, 1917, p. 3 (_ Augusto Filipe Simoes, ob. cit., pp. 349-361, e Anténio Aurélio da Costa Ferreira, ob. cit. 365 O conceite da “decadénciafsiolégia da raga na Prussia, a gindstica estava associada as primeiras letras desde cerca de 1840 (’) — a introducao da disciplina de educagio fisica nos programas escolares oficiais é, nao apenas reveladora de uma certa abertura aos modelos educativos que vigoravam nos paises europeus, econémica e tecnicamente mais desenvolvidos, e que se baseavam numa preparacéo simultaneamente intelectual, fisica e moral da crianca — a chamada educacao integral —, como também um indi- cador do desenvolvimento tomados pelo desporto e pela cultura fisica, em Portugal, nos finais do século XIX. Durante os tiltimos trinta anos deste século e até a [ Guerra Mundial seré atribufda a actividade desportiva uma importante misséo politico-social que justifica, em parte, a atengao que os poderes publicos Ihe prestam: a de regeneracao moral e fisica da populacao portuguesa. Reconstituir algumas das causas desta verdadeira campanha pelo “rejuvenescimento da raga”, como entao se escrevia, e que esti- mulard quer a pratica desportiva, quer 0 militarismo e o nacionalismo, 60 meu objectivo nesta comunicagao. Do conceito de “degeneracio” ao de “decadéncia fisiolégica da raca” Numa conferéncia proferida na Sociedade de Geografia de Lisboa, em 1908, o Dr. Ardisson Ferreira enunciava os “quatro grandes flagelos” que, em sua opiniéo, estavam abastardando a raca portu- guesa e ameacavam aniquilar a espécie humana: as doencas venéreas, em particular a sifilis; 0 alcoolismo; a tuberculose e a mortalidade infantil, causada sobretudo pela gastro-enterite (°). Segundo este mé- dico, s6 estas duas tiltimas doencas (a tuberculose e a gastro-enterite) teriam sido responsaveis, em 1903, pelo falecimento de 16% da popu- lacao (°). Fazendo coro com esta — e outras vozes — que procuravam consciencializar os érgaos dirigentes para a capacidade degeneradora da raca que era atribuida a estas doencas, 0 jornal O Século inicia, em 1908, uma intensa propaganda subordinada ao sugestivo lema Regeneremos a raca. Com uma regularidade diéria sao transcritos neste © Augusto Filippe Simées, ob. cit., p. 347. ©) Os quatro grandes flagellos do seculo XX — Tuberculose, avarigenese, alcoolismo, mortalidade infantil, Lisboa, Typographia Universal, 1908. ©) Dr. Ardisson Ferreira, ob. cit., p. 3 367 Descobrimentos, Expanséo, Identidade Nacional jornal depoimentos de médicos, relatérios, inquéritos escolares, descricao de casos clinicos e de visitas a hospitais ¢ a instituicdes de assisténcia social que procuravam demonstrar os sinais de degenerescéncia da populacéo portuguesa e da urgéncia da criagao de mecanismos de prevengao médica e social como forma de “acudir ao definhamento pavoroso da raca” ("). Poder-se-iam reproduzir muitos outros testemunhos similares. Porém, o que convém reter deste tipo de discurso 6 a mensagem de angiistia face a satide da populacao e, indirectamente, ao futuro da Patria que este transmite e que era sombriamente designada pela expresso “decadéncia fisiolégica da raca portuguesa”. As origens deste discurso remontam aos finais do século XVIII, quando médicos e moralistas se manifestaram contra a chamada “de- generacao da espécie” e teceram criticas veementes ao estilo de vida aristocratico que responsabilizaram pela degradagao dos costumes e deficiéncias organicas ("). O enfraquecimento dos tecidos, 0 raqui- tismo dos membros, a indoléncia e a prostraco eram os sinais da corrupgao dos corpos. A critica dirigia-se, ainda, contra 0 jogo, a luxtiria e as condicdes de vida que nao estimulavam a regeneragio fisica. As novas necessidades criadas pela sociedade burguesa nao se coadunavam com os comportamentos indolentes da aristocracia. Nesta linha, a exigéncia de um corpo forte e saudAvel, enrijado no contacto com a natureza e complementado com uma educagio moral rigida e austera, indispensAvel eficacia da vida pratica, eram a garantia do cumprimento das responsabilidades criadas por uma vida de intensa participacao nos niveis econémico, politico e social. Os novos tempos exigiam uma “vivacidade dinamica” e, de modo algum, posturas languidas e indolentes (®). Ao longo da segunda metade do século XIX este discurso sera reactivado, embora com ligeiras modificagdes de contetido e de forma. Com efeito, passa-se de uma critica da degenerescéncia assente em valores morais e dirigida fundamentalmente contra a nobreza, para uma contestagao A decadéncia fisica da maior parte da populacao (°) O Século de 9 de Janeiro de 1908. (*) Sobre este assunto veja-se Jorge Crespo, A Histéria do Corpo, Lisboa, Difel, 1990. (°) Alain Corbin, “Os bastidores”, in Histéria da vida privada, vol. IV, Da revolugio a Grande Guerra, sob a direcgao de Philippe Ariés e de Georges Duby, Lisboa, Circulo de Leitores, 1990, p. 608. 368 O concaite de “decadénela fsioligia da raga” fundamentada em razdes de ordem patolégica: o linfatismo, o raquitismo e, sobretudo, 0 desenvolvimento tomado pelas novas “pestes contemporaneas”, qualificagéo que geralmente era dada & triade constituida pela sffilis, tuberculose e alcoolismo. Em simultaneo, a terminologia altera-se e 0 termo “degeneracao da espécie” é substituido pelo de “decadéncia” que se torna, aliés, um dos temas favoritos da literatura e da especulagao politica do fim do século ("). Diversas circunstancias ajudam a explicar a evolugio que a terminologia reflecte. E 0 caso, entre outras, de modificagdes na geopolitica internacional decorrentes da derrota da Franga no conflito que a opés A Prissia em 1870. Esta derrota foi atribuida a “inferioridade ffsica do povo francés”, enquanto que a vitéria da Priissia ter-se-ia ficado, essencialmente, a dever a boa preparagao dos soldados possibilitada pela “instrucao gymnastica (...) primeiro na escola depois no regimento” ("). Sem diivida alguma que a pratica da gindstica nao explica, 86 por si, a capitulacao de Paris e a perda da Alsacia e da Lorena. O aumento populacional, 0 desenvolvimento industrial, a riqueza do sub-solo e uma forca militar poderosa foram factores bem mais decisivos na vit6ria prussiana ('*). Porém, esta derrota que ocorreu precisamente no pais que era considerado, na época, 0 mais poderoso do continente europeu, teve grande impacto na opiniao ptblica e, exarcebando 0 amor-préprio francés, conduziu ao nacionalismo, ao militarismo e a um inevitavel questionamento sobre “as causas da decadéncia dos povos”. A hegemonia politica decorrente deste conflito sera encarada em termos dicot6micos, fazendo-se opor a decadéncia dos povos meridionais a superioridade dos povos do norte europeu. De entre as teses explicativas para este declinio é a medicina que oferece a interpretacao cientifica mais consistente, ao filiar a decadéncia nas causas biol6gicas jé referidas ("*). (°)_A “alegria de viver” da belle époque tem precisamente uma das suas justificagdes nesta ansiedade relativamente A satide presente numa sociedade que parecia caminhar para o seu termo, Robert A. Nye, Crime, madness and politics in modern France — The medical concept of national decline, Princeton, Princeton University Press, 1984, pp. 132-170. (*) Augusto Filippe Simdes, ob. cit., p. 348. (%) Pierre Milza, Les relations internationales de 1871 4 1914, Paris, Armand Colin, 1968, pp. 11-15. (*) Robert A. Nye, 0b. cit. Pn 369 Descobrimentes, Expansdo, dentdade Nacional Esta tese tem o mérito de nao s6 fornecer uma explicagao para a origem da inferioridade fisica dos povos, mas também a de apresentar solugGes para o seu engrandecimento, como seja a pratica da gindstica, servindo, ainda, de justificagao as medidas intervencionistas de profilaxia higieno-social defendidas pelos principios higienistas. Tendo alcancado grande éxito, o sucesso desta tese nao pode, porém, ser desligado do desenvolvimento da medicina e da valorizagéo da ciéncia médica num contexto de progressiya laicizacao da sociedade. O proprio higienismo contribuiu para reforcar © poder da instituigéo médica na sociedade, quer pelas suas técnicas e saberes, quer pela capacidade de atraccao de fundos ptblicos e privados para as suas campanhas ("”). Contudo, s6 nos finais do século XIX — principios do século XX serdo criadas, em Portugal, as condigdes para que este discurso vago e generalizante ganhe consisténcia tedrica e eficdcia social. Num contexto de crise nacional e politica despoletada pelo Ultimatum britanico, em 1890, a tese da “decadéncia fisiolégica da raca portuguesa” assume uma dimensao quase tragica e converte-se numa “arma ideol6gica” que se esgrime contra a situacao politica vigente. No preciso momento em que a patria parecia sogobrar perante o imperialismo briténico e se impunha uma nacao econdémica e politicamente forte, a fim de poder rebater a forte concorréncia internacional, inimeros autores, principalmente médicos — Samuel Maia, Alfredo da Costa, Ricardo Jorge, entre muitos outros — denunciavam a inferioridade fisica da populacao portuguesa. Esta parecia acompanhar a decadéncia moral da nacéo a que tinham conduzido os inconvenientes de uma monarquia corrupta. Para todos estes autores, a ameaca de despovoamento provocado pela emigragao para o Brasil; a grande percentagem de “ineapazes, alienados, alcodlicos e portadores de doengas venéreas nas fileiras do exército”; 0 desenvolvimento de “um alfobre de tuberculosos que ha-de comprometer n’um breve futuro a economia nacional” ("*), na expresso de Samuel Maia, eram os sintomas que auguravam um futuro sombrio para Portugal. E, por conseguinte, em termos demograficos, militares e () Jacques Léonard, La vie quotidienne du médecin de Province au XIX* sidele, Paris, Hachette, 1977, pp. 217-226. (*) “A parada da miséria”, O Século de 9 de Janeiro de 1908. 370 O conceito do “decadéncia lsioligica da raga” econémicos que se analisam as consequéncias da decadéncia da raca, partindo-se do pressuposto de que uma populagéo abundante e sadia era condigéo necessaria e suficiente para preservar a capacidade econémica e militar do pafs. Neste aspecto sao bastante esclarecedoras as anéllises feitas sobre os custos financeiros que representavam para 0 pais os doentes tuberculosos. Dadas as caracteristicas da tuberculose que incidia maioritariamente no operariado e com frequéncia maxima entre os 15 e 0s 35 anos, idade produtiva por exceléncia, num pais onde a esperanca de vida nao ultrapassava os 32 anos, o operario tuberculoso era encarado como uma maquina que urgia “reparar” de modo a que pudesse de novo “funcionar”. Com efeito, esta tomada de consciéncia das deficiéncias do estado fisiolégico da populacdo portuguesa € insepardvel do nacionalismo decorrente do Ultimatum britanico. Nao ser4 por conseguinte de estranhar que este discurso, embora nao esteja adscrito a qualquer corrente ideolégica seja, sobretudo, utilizado e reinvidicado por republicans ou simpatizantes da causa republicana. A transformacio politica que se desejava para 0 pais passava também pela alteracéo das condigées fisiolégicas da populagio. Embora seja pessimista na sua formulagao, esta consciéncia apocaliptica das ameacas que pesavam sobre a satide do povo portugués associa a conviccao catastréfica do futuro a certeza de que a sobrevivéncia 6 possfvel para os individuos fisica e moralmente capazes. Nesta medida, 0 conceito de decadéncia articula-se com 0 de regeneracao, assumindo esta palavra quase uma dimensao religiosa —a de salvagio nacional. Da “decadéncia fisiolégica da raca portuguesa” ao seu “rejuvenescimento”: causas e solucées Duas ordens de factores fundamentavam esta tese: por um lado, a “verdade dos ntémeros”, como tantas vezes era referida, entendendo-se por ntimeros, os resultados das estatisticas obitudrias € 08 de inquéritos efectuados por médicos junto de populacées escolares, de recrutas ou em qualquer outra circunstancia da sua actividade profissional; por outro, os principios defendidos pela teoria higienista quanto a forma de transmissio das “pestes contemporaneas” (sifilis, tuberculose e alcoolismo) e que se baseava no principio da hereditariedade. A primeira ordem de factores é relativamente s6lida. A andlise 371 Descabrimentos, Expanséo, Idenidade Nacional da “causa mortis” extrafda das Tabelas do movimento fisiolégico da populacao de Portugal — Decénio de 1901-1910 (") poe em evidéncia a mortalidade atribufda a tuberculose e aos distirbios gastro-intestinais (diarreia e enterite), em criangas até aos dois anos de idade, mas que nao pode ser considerada excessiva quando confrontada com outros paises (). Assim, enquanto a tuberculose, nas suas formas pulmonar, menjngica, intestinal e 6ssea foi responsdvel pela mortalidade de 58% da populacao portuguesa no periodo de 1902-1910, os distirbios gastro-intestinais estiveram na origem do falecimento de 84% de criangas até aos dois anos, percentagem que subird aos 11,7% se se alargar a pesquisa a todas as criancas falecidas com este diagnéstico, independentemente da idade (Quadro 1). O quadro obituério nao 6, por conseguinte, tio negro quanto 0 pintavam. Alias, uma das tinicas vozes dissonantes no coro das “carpideiras nacionais” que se recusava a “ver o futuro com lugubres cores”, a do médico J. Evaristo de Moraes Sarmento, cirurgiao dos hospitais e professor da Escola de Farmacia de Lisboa, chamava, em 1908, a atengo para o crescimento demogréfico da populagao e punha em causa as generalizagdes apressadas, alertando para a impossibilidade de aplicar 4 maioria da populac4o portuguesa conclusdes que sao, sobretudo, validas para os dois principais centros urbanos: Lisboa e Porto @). () Lisboa, 1916. E provavel, porém, que os valores indicados nesta fonte estejam subestimados, visto que a alta percentagem atribufda as “doencas ignoradas ou mal definidas” —36,1% — vicia os célculos, retirando fiabilidade a esta estatistica. ) A mortalidade infantil em Portugal era inferior A dos restantes pafses latinos, 0 que se deve atribuir, segundo Sobral Cid, 4 “prépondérance numérique des populations rurales”, Mortalité infantile en Portugal — Quelques documents statistiques, Combra, Imprimerie Franca Amado, p. 2. Este mesmo médico num artigo publicado no jornal O Século de 25 de Fevereiro de 1908 considera a diarreia como “uma das mais terriveis enfermidades da primeira infancia”. () Inquérito efectuado pelo jornal O Século de 1 de Julho de 1908 e subordinado ao titulo “O que dizem os medicos”. Opinido idéntica é formulada por Bento Carqueja que afirma “sob 0 aspecto demographico, nao ha motivo para sobresalto”, O povo portuguez — Aspectos sociaes e economicos, Porto, 1916, p. 418. 372 O conceite de “decadlénca fsiokigica da raga Quadro I Principais causas de morte de 1902 a 1910 boengon Numero de casos Lisboa | Porto |Continente} 9% Febre tide m | 3 | ait] 08 Tio exantomatio 4 4 465] 005 Febre intermitente e caquexia palustre 15 6 3851 0,38 Variola tora | 185 | tan] 14 ‘Sarampo 672 1090 11202 i Escatatina 14 2 me | 007 Tosse convulsa ao | 30 | mua] 07 Diterae garotiho ao | 46 | 4509 | 046 Giipa 10a | 953 | 13708 | 194 Colera asiatica 0 0 0 0 Céleranostas* 0 0 a} 0 Outas dongs epidémicas aes | 2m | ame | og Tuberclose dos pues tog | se? | age | 48 Tuberculse das meninges go | a | 316 | oat Outas tuberculoses tig | 10 | 6609 | 065 Canero e outros tumores malignos 2833 4020 | 11643 114 Meningie simples ig | 1722 | 9700 | 095 Meningie cérebro-espnhal epimica wo | 18 | 1920 | 0,19 Congest, hamoragia @ amoleciment cerebral aeat- | 1025 | 45052 | 444 Lesées orgnicas do cragéo re | zoe | 45736 | 448 Bronquite agua goss | 2060 | 30061 | 294 373 Descobrimentos, Expansio,Idenidade Nacional QuadroI Principais causas de morte de 1902 a 1910 (continuagio) a Nimero de casos ___| Lisboa | Porto |coninene| 9 Bronqut erica su} 3B | ome | og Pneumonia ams | ton | 4203 | 4.19 Cutras doengas do apaelo respira agi | geet | ters | 164 Doengas do estémago (encepto canco) Fs ee ec) Diana e enter (até 2 anos) ree | 7595 | s59e7 | gat Diateae enter (além dos 2 anos) vet | 2498 | wort | 398 Hériaso obstugies intestiais an | 2 | 3e60 | 086 Cinose do fgedo ma | M7 | 552 | 083 elite © mal de Bight tio | 65 | 9609 | 0.4 “Tumor nl cancer. ¢ outta doongas dos rg. genit da mulher | 178 | 11 985 | 009 Splcénia puerperal (bre, pertonte,fbite puerperis so | 1 | sad | oat Outros acidentes puerperas da gravidere do pto zo | 17 | 2 | 026 Debidade congénta e vicos de onformagéo gor | ze | atdae | 406 Debiidade seni ge | ror | asso | 485 Motes vilenias (except suictos) as | 765 | ta9a9 | a7 Suilios 2 | 1 | om] om Outas doengas 11058 | 5232 | 50051 | 5.86 Doengasignorades ou mal defies a | sso7 | seeer4 | 61 | TOTAL e4oa7 | 49750 | i021sig | 100 Fonte: Tabelas de movimento fisioigico da populacdo de Portugal...) 374 O conceito de “secadénciafsioligica da raga" Com efeito, é nestas cidades que a mortalidade causada pelas patologias atrés indicadas evidencia indices preocupantes. No periodo de 1902-1910, a tuberculose esteve na origem de 15,9% e 15% dos Sbitos aqui ocorridos, enquanto os distirbios gastro-intestinais foram responsaveis pelo falecimento de 11,2% e 20,3% das criancas, respectivamente em Lisboa e no Porto (Quadro I). Quadro Mortalidade causada pela tuberculose e problemas gastro-intestinais de 1902 a 1910. (Nuimero de casos) Lisboa} % | Porto} % | Cont. | % Tuberculose (pulmonar, meningicae outras) | 19943 | 1587 | 7416 | 1491 | 58805 | 5,76 Dianeiae entrte infantis 9453 | 11,24 | 10093 | 20,29 /1199%8 | 11,7 Fonte: Tabelas do movimento fisiolSgico da populagao de Portugal ...) As taxas de mortalidade por mil habitantes confirmam a incidéncia destas doengas nestas duas cidades (Quadro III) ). Quadro Ii Taxa de mortalidade por mil habitantes (1902 a 1910) Lisboa Porto Continents | Tubereuose (pulmonar, meningica e otras) a8 23 12 Diana ener infantis ar at 25 Fonte: Tebelas do movimento iligic dapopulaedo de Portugal.) (2) Estas taxas foram calculadas, dividindo-se o ntimero médio anual de individuos mortos com estas doengas pelo ntimero médio da “populagdo de facto” do continente e das cidades de Lisboa e do Porto entre 1900 1911 (valores obtidos a partir dos Recenseamentos da populacéo de 1900 e 1911). 975 Descobrimontos, Expansdo, dentidade Nacional A miséria, a promiscuidade e as deficientes condicdes higiénicas explicariam a morbilidade da tuberculose que grassava, sobretudo, na classe operdria. A pratica do aleitamento mercenario, por amas, nas classes superiores; a alimentagao s6lida prematuramente ministrada a criancas; a difusio do trabalho industrial entre as mulheres e 0 abandono a que eram votadas as criancas durante grande parte do dia por mes que trabalhavam fora de casa eram, por seu turno, as razdes apontadas por alguns médicos para os altos indices da mortalidade infantil @). A tese da decadéncia fisiolégica da raca portuguesa fun- damenta-se, ainda, na teoria higienista que responsabiliza a falta de higiene do meio ambiente pela maior parte das doencas. De acordo com os princfpios defendidos por esta teoria, as doengas sao provocadas pelo meio social, estando a satide de uma populacio directamente relacionada com as suas condig6es de vida (*). Face & dominancia destes pontos de vista, a grande preocupagio dos meios académicos centrava-se na hereditariedade e formas de aquisicao das doengas. Assim, muito antes de Robert Koch ter isolado o bacilo causador da tuberculose (1882) e ter estabelecido a sua forma de propagacao através do contagioa tuberculose — a tisica na terminologia do tempo — era considerada uma enfermidade hereditaria, embora pu- desse permanecer latente por um tempo, mais ou menos prolongado, até que determinadas circunstancias ambientais — 0 clima, a ali- mentacio deficiente, o ar viciado, etc. — a pudessem despoletar (*). Hereditario era também considerado 0 alcoolismo, atribuindo- -se-lhe, ainda, 0 facto de ser progressive. Samuel Maia numa conferéncia proferida no Club das Amoreiras, agremiagio operéria, equacionava assim esta tese: “Tu bebes? Pois teu filho beberd mais do que tu, teu neto ainda mais e assim cada vez mais até a geracdo se extinguir” @), ©) Sobral Cid, ob. cit., p.5. (4) C. Herzlich, “Medecine moderne et quéte de sens: la maladie signifiant social”, e J. Pierret, ” Les significations sociales de la santé: Paris, I Essone, L’ Hérault”, in Le sens du mal — Anthropologie, histoire, sociologie de la maladie, sous la direction de Marc Augé et Claudine Herzlich, Paris, Editions des Archives Contemporains, 1986, pp. 189-191 218-221. @) Jorge Molero Mesa, Estudios medicosociales sobre a tuberculosis en la Espaiia de la Restauracion, Madrid, 1987, pp. 9-36. @) O Século de 27 de Janeiro de 1908, 376 CO conceito de “decadéneiafsioligica da raga” Com verdadeira forga medidtica, 0 alcool era acusado de transformar 0 homem numa besta feroz, embrutecendo-o e predispondo-o para o crime num contexto geral de depravacao de sentimentos. “O heredo-alcoolico de segunda geragio é um ser perigoso” escrevia Jodo Serras Silva numa dissertacao de licenciatura apresentada A Faculdade de Medicina de Coimbra, nos finais da década de 90, adiantando: “Nestes filhos e netos de alcodlicos os maos instintos aparecem cedo” (”). De acordo com os pontos de vista médicos, os genes da sub- versao transmitiam-se e, através do alcoolismo, o perigo estendia-se a toda a sociedade, aspecto tanto mais grave quanto 0 alcoolismo era associado as classes trabalhadoras. Naturalmente que 0 alcoolismo das classes superiores — 0 alcoolismo da genebra, do cognac, do brandy... — nao provocava comentarios. Alis, os primeiros estudos estatisticos sobre a criminalidade tendem a correlacionar positivamente os dois fenémenos, conclusées que andllises posteriores vieram matizar. Com efeito, as doutrinas positivistas naturalistas e sociolégicas do século passado e do inicio do actual, na tentativa de encontrarem uma explicagao mecanico-causal da conduta social do homem, converteram 0 alcoolismo em factor fundamental da criminalidade, realcando os efeitos maléficos do dlcool, quer no organismo do individuo, quer nas relagdes sociais, quer na hereditariedade. As investigagdes que neste domjnio eram feitas procuravam demonstrar a responsabilidade do alcool na génese do crime, chegando Joao Bacelar a imputar ao alcoolismo a maior parte dos crimes contra pessoas (**). S6 a partir de meados deste século estas teses comecaram a ser postas em causa. A medida que crescia a sociedade de consumo e com ela 0 alcoolismo impés-se a necessidade de desmistificar as relagdes entre o Alcool e o crime, analisando-as a luz de principios cientificos mais objectivos baseados, sobretudo, na observagéo dos efeitos do alcool no organismo e no estudo criterioso das estatisticas comparadas. Naturalmente se chegou a conclusao que os resultados anteriormente obtidos eram exagerados e careciam de fundamento. Partia-se de uma intuicao que se procurava demonstrar na pratica e as estatisticas eram apenas o suporte de teorias. @) “O alcoolismo, suas manifestagdes diversas e seu grao de influencia sobre a responsabilidade moral dos alcoolicos delinquentes”, Coimbra Medica, Coimbra, 17% anno, Imprensa da Universidade, 1897, p. 251 €) Alguns casos criminais, Lisboa, 1922. 377 Descabrimentas, Expansio, Identidade Nacional OAilcool era, pois, de acordo com os pontos de vista dominantes na segunda metade do século passado, um instrumento de mediacio na medida em que permitia transformar um homem sao num criminoso, num contexto geral de depravagao dos sentimentos. Da desordem fisica passava-se, a desordem moral ). De facto, 0 alcoolismo era um fendmeno em expansio, sobretudo depois de 1870, acompanhando 0 desenvolvimento da viticultura (*). Varios indicios 0 confirmam. E 0 caso, entre outros indicadores, do aumento do ntimero de delitos cometidos em estado de embriaguez e da disseminagio das tabernas e das vendas de vinho, Tecenseando-se no inicio deste século para todo o continente, segundo Anselmo de Andrade, “29035 (...) correspondendo a uma taberna por 190 habitantes” (*). A expansao social do alcoolismo nao é uma invencao, mas a gravidade que Ihe era atribuida nao pode ser desligada do contexto politico-social do periodo que antecede a implantagao da Republica @). A semelhanca do alcoolismo, também se considerava que a perversao se filiava biologicamente na sifilis — a avarigenese na designacao do tempo — sendo os descendentes de doentes sifiliticos tidos como “creaturas preversas ¢ inconscientes com uma espantosa tendéncia para o crime” (*), Todas estas afirmacées, um pouco exageradas e nem sempre correctas & luz da moderna epidemiologia, tracam a tendéncia dominante do discurso médico Oitocentista sobre as chamadas “pestes contemporaneas”, sendo estas consideradas como causa ou conse- quéncia de factores de ordem socioeconémica ou moral: a miséria ou a dissolugao dos costumes. Tem-se a conviccao que estas patologias nao s6 se interrelacionam mutuamente mas que, ao inverso das epi- demias dos tempos recuados, além do corpo afectam também a alma. A desordem do corpo é acompanhada pela desordem moral e da @) Yves Lequin, “Au péril de la race”, in Les malheurs des temps — Histoire des fléaux et des calamités en France. Sous la direction de Jean Delumeau et Yves Léquin, Paris, Larousse, 1987, pp. 435-439, @) Irene Maria Vaquinhas, Violéncia, justiga e sociedade rural — Os campos de Coimbra, Montemor-o-Velho e Penacoun de 1858 a 1918, Coimbra, Faculdade de Letras, 1990, pp. 412-418. ) Portugal economico — theorias ¢ factos, nova edicéo em dois tomos, Coimbra, F. Franga Amado Editores, 1918, p. 130. (*) Irene Maria Vaquinhas, ob. cit., pp. 410-412. @) O Século de 27 de Janeiro de 1908. 378 © conceite de “decadéncia eioligica da raga perversao do corpo passa-se, imperceptivelmente, a perversao das almas (*). Impotente para curar e lutar eficazmente contra os “flagelos sociais”, cuja etiologia era ainda desconhecida, uma parte do sector médico apoiado financeiramente por elementos da burguesia, da nobreza, certos sectores catélicos e pelos préprios monarcas, lanca-se numa verdadeira batalha pela higiene e “revigoramento da raca”, desenvolvendo acces filantrépicas de diversa indole. No iiltimo quartel do século XIX, as descobertas de Pasteur, ao estabelecerem a base da teoria da etiologia especifica, isto é, cada doenca 6 devida a accao especifica de um gérmen, iriam fornecer uma explicacao para a maior parte das doencas e relegar para segundo plano as causas sociais. O higienismo nao desaparece mas torna-se cientificamente secundério. Com efeito, a nocio de etiologia especifica e a causalidade atribufda aos gérmens na maior parte das doencas vai permitir a orgahizagao de accées profilacticas eficazes. Gracas ao contributo da bacteriologia e da fisiologia desenvolve-se uma medicina curativa capaz de lutar eficazmente contra a acco dos agentes patogénicos. Assim, ¢ a titulo meramente exemplificativo, a esterilizacao do leite a partir de 1890 vai permitir o controlo progressivo da diarreia infantil, “el verdadero Herodes de los nifios”, como a qualificava um médico espanhol (*); a introducao da assépsia nos servicos hospitala- res contribuira para reduzir a mortalidade pés-cirtirgica, enquanto a organizacao das redes de saneamento urbano e de abastecimento da Agua potavel iré possibilitar o controle da febre tifoide. Paralelamente tem lugar a criacdo de uma verdadeira infra-estrutura médica na qual se destacam as obras tendentes & protecco sanitéria da infancia. Dispensérios, sanatérios, lactarios, creches, postos médicos, colénias de férias, apoio domiciliério a maes sao algumas das instituicdes de proteccao social e médicas entao criadas. Apenas alguns () No fundo, é a questéo da hereditariedade — e tudo o que a pressupde, em particular, o antecedente patolégico — que preocupa a burguesia. Receosa com a integridade do patrimGnio genético, que mitifica, considerando-o como a esséncia que conferia a aristocracia, de geracéo em geracio, o carécter distintivo, teme os efeitos do “mau sangue” na descendéncia, evitando-o a todo o custo, através de uma escolha matrimonial criteriosa e de uma conduta “honesta”. Caso contrario, os filhos pagariam as faltas cometidas pelos pais. ) O Século de 25 de Fevereiro de 1908. 379 Descobrimentas, Expanséo, Identidade Nacional casos significativos. Assim, em 1876, era fundada, em Lisboa, a Associacao das Creches, sob o patrocinio da rainha D. Maria Pia (*); em 1893, em Alcantara, o Dispensario da Rainha D. Amélia, destinado a prestar assisténcia médica, cirirgica e alimentar, bem como rudimentos de higiene infantil as criangas pobres (”). A rainha D. Amélia tem, ainda, o seu nome ligado a fundacao, em 1899, da Liga Nacional contra a Tuberculose, promotora de iniciativas de indole diversa, desde a criagao de sanatérios de serra e de mar, a accdes de propaganda e vulgarizacao higiénica (*). Em 1901 era criado pela Associacao Protectora da Primeira Infancia, em Lisboa, préximo ao bairro de Alfama, o primeiro lactrio destinado a “fornecer leite e seus sucedaneos (...) 4s creancas de peito que nao possam ser amamentadas pelas mées” (*) e, em 1907, pela Misericérdia de Lisboa, 0 Posto de Socorros, Pesagem e Consulta Didria de Criancas (“). A estratégia de combate as doencas inclufa, também, outras formas de profilaxia. E 0 caso da propaganda, oral e escrita, em favor da higiene infantil, sobretudo da alimentacao lactea ("), chegando al- guns médicos a promover, como forma de divulgacao deste tipo de ©) O Século de 18 de Fevereiro de 1908. () O Século de 26 de Janeiro de 1908, e F. da Silva Correia, Portugal sanitdrio (Substdios para o seu estudo), Lisboa, 1938, p. 457. ) Em 1902 foi inaugurado o Sanatério Maritimo de Carcavelos; em 1907, 0 da Guarda destinado ao tratamento da tuberculose pulmonar; em 1909, o de Portalegre também para a tuberculose pulmonar e, em 1912, 0 do Lumiar igualmente para este tipo de tuberculose, F. da Silva Correia, ob. cit., pp. 437-438 e 457-458; Bento Carqueja, O povo portuguez, aspectos sociaes economicos, Porto, Livraria Chardron, de Lello e Irmao, Editores, 1916, pp. 312-313. @) “Lactario de Lisboa”, A Illustragio Portuguesa, 16 de Dezembro de 1907, p. 783. () O Século de 18 de Janeiro de 1908. ©) Entre outros depoimentos, veja-se os que se encontram transcritos no jornal O Século de 6, 10, 11, 13, 14 19 de Janeiro de 1908. Apds a descoberta dos micrébios por Pasteur inicia-se a campanha em favor da esterilizacao do leite. Até essa altura estava bastante difundida a ideia de que o leite nunca deveria ser fervido, pois que “a ebulligao desassociando os seus elementos, modificando a sua homogeneidade, affasta-o do natural e constitue portanto um uso vicioso”, devendo ser ministrado “tal qual sahe do ubre do animal na occasifio em que se ordenha e ainda quente”, Aurelio Teixeira de Castro, Breves consideragées acerca da educagio da primeira e segunda infancia, Lisboa, Typographia Nova Minerva, 1878, p. 21 380 O conceited “decadneia sioligia da raga” alimentacio, a organizacao de exposicdes e concursos das criancas mais robustas pois, como afirmava 0 médico Samuel Maia, “se nés temos crysanthemos com mais de uma centena de folhas; se temos cravos do tamanho de repolhos, porque nao havemos de ter criancas de 10 Kg coma pele da cor dos cravos cor-de-rosa(...)?” (#). Dirigido as classes trabalhadoras, este movimento humanitario nao é ideologicamente isento. Sob a capa da filantropia e da luta contra os flagelos sociais esconde-se a vontade de enquadramento social das classes trabalhadores e da sua moralizagao, tentando-se inculcar os valores burgueses da higiene, da sobriedade, da moderacao. Da caca aos gérmens passa-se, imperceptivelmente, a caca aos portadores de gérmens. Nesta medida, 0 conceito de decadéncia fisiolégica da raga portuguesa torna-se o pretexto para um intervencionismo politico e controlo social, impondo-se uma série de prescrigdes sobre 0 modo de vida em geral: comportamentos familiares, sexuais, alimentares, etc. Nesta campanha de “moralizagao pela higiene” da classe trabalhadora, a medicina nao esté, por conseguinte, ausente. A puericultura, os cuidados com a primeira infancia, a escola obrigatéria ea higiene tornam-se um dos pilares da moral laica e sao, igualmente, um dos meios de que a medicina se serve para fazer impor 0s seus pontos de vista sobre a gestao do corpo e da satide. Ora, de entre os meios preventivos propostos pelo higienismo para conjurar os riscos de “destruicaéo da sociedade” que poderia decorrer do enfraquecimento fisico e moral da populacao, destaca-se a pratica do desporto, sobretudo da gindstica (#). Esta importante (®) O Século de 6 de Janeiro de 1908. (®) Sao particularmente referidas as vantagens da gindstica na profilaxia da tuberculose, desenvolvendo nao s6 a caixa toraxica mas também a sua “mobilidade, circulacao, nutrigao e vitalidade”, “Memorial dirigido ao governo pelos professores de gymnastica da capital’, Tiro ¢ Sport, 31 de Agosto de 1907. Sobre este assunto veja-se, ainda, Antonio Gaspar de Souza Araujo e Menezes, Da gymnastica medica como meio hygicnico e therapeutico, Lisboa, Typographia Nova Minerva, 1878, pp. 58-60 e Augusto Filipe Simoes, A civilisagao, a educagio ea phthisica, Lisboa, Livraria Ferreira, 1879, pp. 43-47. Qualidades semethantes na profilaxia das doengas pulmonares se reconhecia na disciplina de canto coral. Nao sao raros, também, os criminalistas que vém no desenvolvimento das associagdes desportivas um meio eficaz de lutar contra a delinquéncia. Na sua opiniao, estes agrupamentos canalizam a violéncia, sul familia e cimentam a sociedade. Descobrimantos, Expansdo, Identidade Nacional missao resultava do papel que se atribufa ao exercicio fisico na conservagio da satide e da beleza corporal, bem como no papel que se Ihe reconhecia na moralizagao das condutas e formacio da personalidade, permitindo, como se escrevia num artigo publicado na revista Tiro e Sport de 15 de Agosto de 1911, “Reagir contra os desejos intensissimos e paixdes arrebatadas que, em geral, nos dominam nos melhores anos de existéncia”. A associacéo do vigor fisico com os aspectos morais do comportamento humano, permitindo a concretizacao do ideal classico de “mens sana in corpore sano”, é um traco comum aos autores que se debrucam sobre esta matéria, pondo-se em confronto a “energia viril” dos homens que fizeram as descobertas com a inaccao fisica dos contemporaneos (#), devido a “preferéncia dada ao trabalho intellectual e 4s profissdes sedentarias” (*). Verdadeira pedagogia moralizadora da correccao e da decéncia, reconhecia-sé na educacio fisica nao s6 a capacidade para assegurar a satide da populacao, fundamental para o trabalho e para a guerra, como era também considerada um meio que facilitava a interiorizagao das normas e dos valores dominantes. “Disciplina, atencao, vontade, método, ordem”, qualidades fundamentais de um bom cidadao e de um bom soldado, numa Europa onde pairava j4 a ameaca latente de guerra eram, em suma, as aptidées que, na opiniao de Anténio Aurélio da Costa Ferreira, director da Casa Pia de Lisboa, no inicio deste século, se adquiriam e desenvolviam com o exercicio da gindstica (*). A associacao entre os exercicios militares e os exercicios gindsticos est4 presente na criacao dos batalhées escolares. E 0 caso do batalhao fundado em Cacia, em 1908, pelo professor primério local, onde a par da educacao fisica se instrufa o aluno na “escola do soldado” ("?). Finalmente, a convicgao de que o desporto era uma condicao (*) Adriano Xavier Lopes Vieira, “A importancia da gymnastica em medicina”, O Instituto, vol. XXVIII, Segunda serie, Julho 1880 - Junho 1881, Coimbra, p. 322. Este autor salienta como principais factores da vida sedentéria, a utilizagéo do vapor na industria, bem como o desenvolvimento tomado pela arte da guerra, sobretudo a artilharia que tormaram desnecesséria a robustez fisica. (*) “Como se lucta. Tratado pratico de lucta franceza”, A Ilustragio Portugueza, 28 série, 2° semestre, 6 de Agosto de 1906, p. 5 () Art.cit,, p.5 (*) © Século de 31 de Janeiro de 1908. 382 O conceito de “decadénciafisiligica da raga” sine qua non da regeneracio fisica e moral da populagao animaré muitos dos grupos é sociedades desportivas criados por todo o pats. Durante os tiltimos 30 anos do século XIX e até aproximadamente a I Guerra Mundial, a actividade desportiva atingiré um nivel de significado politico até essa data nunca alcangado, conferindo-se-lhe 0 caracter de um dever nacional. Do desporto como atributo de uma minoria social ao nacionalismo desportivo Durante séculos apandgio da nobreza, o desporto era, no século XVII, um divertimento elegante e, sobretudo, uma forma de vincar, pela maneira de viver, o estatuto social. A esgrima, a equitacao ea danga eram as actividades fisicas desenvolvidas, constituindo aspectos imprescindiveis do verdadeiro nobre, como salienta Manuela Hasse no estudo feito sobre A educacao fisica no Real Collegio dos Nobres de Lisboa (1761-1837) (*). O objectivo a atingir nao era o de um determinado apuramento fisico e moral, como no periodo medieval, mas 0 de vincar um estatuto de destaque e supremacia social, “uma vez que os meninos do Colégio dos Nobres sé pelo facto de disporem destas actividades se distinguiam do resto da populacao portuguesa que a elas (...) nao tinha absolutamente acesso”. Apesar destes exercfcios, habitos de sedentariedade caracterizavam a vida escolar do jovem fidalgo. Desde finais do século XVIIL, este tipo de instrugéo tende a ser cada vez mais contestado, perdendo o cardcter distintivo, numa sociedade que comecava a apresentar novas exigéncias. E, paralelamente a dentincia dos perigos decorrentes de uma vida sedentaria e ociosa, elogiam-se as actividades praticadas ao ar livre, os banhos frios, 0 mar, as termas e, naturalmente, também a gindstica. As obras de Francisco de Mello Franco e Francisco José de Almeida, sugestivamente com o mesmo titulo Tractado da educacao fy- sica dos meninos para uso da Nagio Portuguesa, editados respectivamen- te em 1790 e 1791 pela Academia Real das Ciéncias, so dois exemplos significativos desta fase de contestacao dos velhos sistemas pedagé- gicos e nas quais os seus autores expdem as vantagens fisiolégicas dos exercicios fisicos (*). (*) Ludens, vol. 5, n® 4, Julho-Setembro 1981, pp. 23-27. (*) Dr. Raul G. da Silva Viana, “Esboco da educagio fisica em Portugal”, 383 Descobrimentos, Expansio Idantidads Nacional Em 1828 é criado no Instituto Industrial e Comercial, de Lisboa, © primeiro gindsio escolar (*), Trata-se, porém, de um caso sem exemplo e ser preciso esperar pela vaga nacionalista do tltimo quartel do século XIX para se divulgar uma intensa campanha em favor do desporto, criando-se, em simultaneo, associacSes desportivas por todo o pais (*). O caracter patridtico destas sociedades que incluem sempre nos seus programas “a regeneragao da raga” nao deve, contudo, dissimular a sua fungao Itidica. Acompanhando a vaga de associativismo do final do século, Portugal cobre-se de uma série de sociedades gindsticas, clubes des- portivos ¢ salas de armas. Desta forma, em 18 de Marco de 1875 é fundado o Real Gynasio Club Portugués, a primeira instituigao que en- saiou 0 método da gindstica racional preconizado por Ling (*); 0 Velo Club, em 1891 (*); 0 Grupo Académico Football de Lisboa, em 1897 (); a Unio Velocipédica Portuguesa, em 14 de Dezembro de 1899 (*); 0 Cen- tro Nacional de Esgrimna, em 1901 (®); 0 Sporting Club de Lisboa, em 1 de Julho de 1906 (); 0 Sport Lisboa e Benfica em 13 de Setembro de 1908 (*). Poder-se-ia enumerar muitos outros casos. Naturalmente que esta vaga de associativismo desportivo nao se fez de uma forma uniforme. Na impossibilidade de fazer a inventariacao exaustiva de todas Arquivo de Anatomia e Antropologia, Vol. VIII, 1923, Lisboa, 1923, 1924, pp. 316- 321. () Dr. Raul G. da Silva Viana, art. cit., p. 321 (*) Situagao semelhante se verificou em Franca logo apés 0 conflito franco-prussiano, Benoit Lecoq, “Les sociétés de gymnastique et de tir dans la France républicaine (1870-1914)”, Revue Historique, n® 559, Juillet- Septembre 1989, pp. 157-166. Sobre as vantagens destas associagdes em Portugal veja-se, ainda, Henrique das Neves, “A excurséo dos Atiradores Civis Estrela e as sociedades para exercicios ffsicos em Portugal”, Branco ¢ Negro, Tomo I, n® 2, 1® anno, 12 de Abril de 1896. (*) Tiro e Sport, 31 de Marco de 1909. (®) Branco ¢ Negro, 13 de Junho de 1897, (*) Branco e Negro, 13 de Junho de 1897. (*) Data indicada na capa do Boletim Official desta associagio. (*) Tiro e Sport, 15 de Novembro de 1907. (*) “Sporting Club de Portugal”, in Verbo, Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vol. 172, Lisboa, Editorial Verbo, pp. 632-633. (*) “Benfica, Sport Lisboa e”, in Verbo, Enciclopédia Luso-Brasileira ..., vol. 38, pp. 1073-1974, Este clube resultou da fusio do Sport Club de Benfica e o Sport Lisboa, fundado em 28 de Fevereiro de 1904 por 24 sécios. 384 O conceita de “decadléncia fsioligioa da rapa” as associagdes entao criadas, bem como a sua distribuicao a nivel do continente, a andlise da repartigao geografica dos sécios da Unido Velocipédica Portuguesa, associacéo promotora de um dos desportos que maior desenvolvimento assume durante este periodo — 0 ciclismo —, pode dar uma ideia da implantagao regional desta forma de sociabilidade. Assim, no periodo de Setembro de 1905 a Setembro de 1906, para um total de 722 sécios, 412, ou seja 57%, sao oriundos do distrito de Lisboa (Mapa). Esta cidade, com um total de 343 sécios afirma-se como a capital de um “patriotismo desportivo e associativo”. Os restantes sécios distribuem-se um pouco por todo o pais, embora nao de um modo uniforme. Os distritos de Leiria (6,4%), Santarém (6,6%) e Beja (6,1%) acusam as percentagens mais elevadas, da ordem dos 6% cada, enquanto os restantes distritos atingem valores inferiores, com excepcao de Vila Real e Braganga que nao tém qualquer sécio. As regides do interior parecem resistir melhor as inovacGes do século. As condiges orograficas adversas, a permanéncia dos jogos tradicionais, entre outros factores, sao razées a ter em conta para a fraca implantacao do “desporto da moda” nestas regides. Dificilmente as conclusGes deste esboco da implantacéo do ciclismo a escala nacional se podem generalizar para as restantes modalidades desportivas. S6 um estudo em profundidade sobre esta matéria permitiria estabelecer a “carta geografica” definitiva deste nacionalismo desportivo. Porém o que convém, ainda, salientar é 0 poder reinvindicativo adquirido por alguns clubes, geralmente associados em Ligas e Federagoes, tornando-se interlocutores validos perante as autoridades. Assim, os Professores de Gindstica da capital, unidos na Sociedade Promotora de Educagao Fisica, apresentaram ao governo, em 1907, um. longo Memorial em que reclamavam, entre outras medidas, a “assistencia medica diaria nos lyceus” e a “necessidade de se fundar uma escola normal de Gymnastica para a preparacdo dos professores” (°°). De modo semelhante, a Uniao Velocipédica Portuguesa, em 1909, em representacao dirigida 4 Camara Municipal de Lisboa, exigia a diminuicao dos “custos da licenca para o transito de bycicleta”, pois, como escreviam os autores do texto, “No momento actual, quando a sciencia se debate pelo salvamento das ragas por meio da educacao physica, tem a velocipedia obtido 0 conceito () Tiro e Sport, 31 de Agosto de 1907. Fy 385 Descobrimentos, Expanséo, Identidade Nacional favoravel de verdadeiras notabilidades que a consideram como um dos meios prophylacticos da degenerescencia das mocidades(...) pelo que a Unido Velocipedica Portugueza tem comsummido uma grande somma de trabalho na propaganda. Quasi baldados, porém, teem sido os seus esforcos, porque os resultados obtidos nao teem sido proporcionaes a essa despeza de labor pela falta de auxilio das entidades officiaes” (*). Em conclusao: Durante a segunda metade do século XIX assiste-se, por toda a Europa, a uma preocupagao crescente com as estatisticas criminais, as manifestac6es de insanidade, as aberragdes sexuais como formas de degenerescéncia fisica ou psicol6gica. Esta preocupacao, demasiado exagerada, reflecte sobretudo a moral da burguesia que fundamenta © seu sistema ético na auto-disciplina, sobriedade e moderacio, encarando com suspeita todos os comportamentos sociais que nao se enquadravam nestes parametros. A partir de finais da década de 70, 0 imperialismo, 0 desenvolvimento industrial e a nova conjuntura politica caracterizada pela preponderdncia alema no continente europeu, exacerbou esta ansiedade, vulgarizando-se 0 conceito médico de decadéncia fisioldgica, enquanto se disseminam novas patologias. Num contexto geral de crescente antagonismo entre nacOes, atribui-se uma importancia desmesurada as novas pestes contemporaneas — o alcoolismo, a sifilis e a tuberculose — que sao responsabilizadas pela degradacao fisica da populacao. O cardcter hereditario e progressivo que se Ihes atribui e a sua interrelacéo miitua, geraram a convicgio de que uma catastrofe biol6gica teria lugar, caso nao fossem criados os mecanismos preventivos capazes de conter a situacéo. O desenvolvimento das ciéncias médicas, sobretudo da bacteriologia, aps as descobertas de Pasteur vém por em causa estas teses desdramatizar a sua influéncia degenerativa na espécie humana. Este discurso que nasceu em Franca, onde serviu de justificagao (*) Boletin Official da Unido Velocipedica Portugueza, n® 43, Janeiro a Margo de 1909. J& em 1905 0 mesmo pedido tinha sido formulado, sem grandes resultados, Boletim Official da Unido Velocipedica Portugueza, n® 12, 2° anno, Margo de 1906. 386 O conceited “decadéneia fisioégica da rapa’ para a derrota frente ao exército prussiano, alargou-se posteriormente a outros paises. Em Portugal, sera preciso esperar pela década de 90 do século passado para que este tema extravase as teses de medicina e ganhe toda a sociedade civil. Numa atmosfera de nacionalismo exacerbado, de receios e de temores que se seguiram ao Ultimatum britanico, multiplicam-se as obras e toda uma série de escritos, redigidos fundamentalmente por médicos e higienistas que, alertando para os sintomas de “abastardamento da raca portuguesa”, propunham medidas concretas capazes de constituirem solug6es validas na aquisigao dos meios de defesa contra o “inglés, nosso inimigo”, como se escrevia numa tese de Higiene. Nesta batalha patridtica, a questo da educacéo das novas geracGes assume particular transcendéncia. Nao se trata, apenas, de ministrar informacGes basicas de higiene e de se fundarem centros de apoio a primeira infancia mas, sobretudo, de preparar fisicamente as geracdes do futuro, mediante a pratica de actividades gimno- desportivas, concebidas expressamente como a base da educagio fisica necess4ria a toda a populacao e, em particular, aos futuros soldados. O desenvolvimento do desporto em Portugal é, pois, e em grande parte, uma consequéncia do nacionalismo pés-Ultimatum, sendo encarado como uma panaceia capaz de restituir aos portugueses as qualidades antropol6gicas e morais dos velhos “lusitanos”. Porém, entre a teoria e a pratica, entre a grandeza patridtica desta missao ea realidade da educacao fisica, 0 acordo nao foi possivel. O caracter elitista de muitas das actividades desportivas; a escassez de professores diplomados, de instalabes e campos adequados a pratica desportiva; a falta de frequéncia escolar nas aulas de educagao fisica ea propria resist@ncia dos defensores dos velhos sistemas educativos que encaravam com maus olhos 0 novo culto do corpo, foram factores que limitaram na prtica a extensao social deste nacionalismo desportivo. Porém, a andlise deste fenémeno é outra hist6éria que deixarei para uma nova oportunidade... 387 11 -20-E23) 21-40-ER 41 -60-EB > 400 -aa Descobrimentos, Expansdo, Identidads Nacional DISTRIBUIGAO GEOGRAFICA DOS SOCIOS DA UNIAO VELOCIPEDICA PORTUGUESA (SETEMBRO DE 1905 A SETEMBRO DE 1906) Viona ed Castelo Braga! Fase eso Oia da Unido Velie Pugs.)

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