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ALBERT O. HIRSCHMAN O PENSAMENTO CONSERVADOR PERVERSIDADE, FUTILIDADE E RIScO Tradugio de RUI MIGUEL BRANCO Titulo original: The Bieri of Reaction sident and Fellows : Caeae desta obra em lingua portuguesa, excepto Brasil, Todos os direitos de publicaso reservados por: mp) DIFEL.. Denominagéo Social — DIFEL 82 — Difusao Editorial, S.A. Sede Social — Avenida das Tilipas, n.° 40-C — Miraflores — 1495 Algés — Portugal — Telefs.: 4120848 - 4120849 — Fax: 4120850 Capital Social — 60 000 000$00 (sessenta milhées de escudos) Contribuinte n.° = — 501 378 537 Matricula n.° 8680 Conservatéria do Registo Comercial de Ociras Capa: Emilio Vilar Revisio Tipogréfica: Manuel Luz Evangelista Composigio: Estidios Difel Impresséo e acabamento: Tipografia Guerra Viseu, 1997 Depésito Legal n.° 117461/97 ISBN 972-29-0386-1 / Novembro 1997 Proibida a reproduszo total ou parcial sem a prévia autorizacéo do Editor PREFACIO “Como é que alguém se tornou assim?” Esta questio é insis- tentemente colocada, num conto de Jamaica Kincaid publicado no New Yorker (26 de Junho de 1989, pp. 32-38), por uma jovem das Caraibas acerca da sua patroa, Mariah — uma mie norte-ameri- cana de quatro filhos, demasiado efusiva, excessivamente familiar ¢ algo desagradavel. No contexto, as diferencas de estatuto social e racial fornecem grande parte da resposta. No entanto, ao ler a historia, apercebi-me que a questio de Kincaid — uma preocupa- go com a alteridade sufocante, insistente ¢ exasperante dos outros — esta no amago desta obra. A inquietante experiéncia da exclusao, nao apenas das opi- nides, mas de toda uma experiéncia de vida, por parte de grande nimero dos nossos contemporineos é, de facto, tipica das socie- dades democraticas modernas. Nestes dias de celebracao universal do modelo democratico, pode parecer despropositado ¢ algo grosseiro insistir na exploracéo das deficiéncias de funcionamento das Democtacias Ocidentais. Mas é exactamente o desmoronar, espectacular e excitante, de certos muros que chama a aten¢io. para aqueles outros que.se mantém intactos ou para fissuras que se abrem no tecido social. Entre estas, existe uma que pode ser observada com frequéncia nas democracias mais desenvolvidas: a sistematica falta de comunicagio entre grupos de cidadaos, tais_ como liberais e conservadores, progtessistas € reaccionarios. O con- sequente distanciamento destes grupos entre si parece-me ser mais preocupante do que o isolamento de individuos anémicos na “sociedade de massas”, isolamento esse que sé constituiu como um dos objectos de reflexdo por exceléncia dos socidlogos. 10 PROLOGO E curioso verificar que a propria estab: idade e correcto fun- cionamento de uma sociedade democriatica bem ordenada depende da distribuicao dos seus cidadaos por alguns grupos Ptincipais cla. ramente definidos (idealmente, dois) que defendam opinices dife. rentes sobre assuntos politicos de caracter fundamental. E bem possivel, nessa altura, que esses grupos se isolem, se excluam mu- tuamente — neste sentido a democtracia gera de forma continua 0s seus préprios muros. A medida que © processo se alimenta a si proprio, existira um momento em que cada grupo Perguntara acerca do outro, demonstrando a mais absoluta incompreensio e, com frequéncia, repulsa: “Como é que eles se tornaram assim?” Quando este estudo foi iniciado, em meados dos anos oitenta, essa era decerto a forma como muitos liberais nos Estados Unidos, incluindo eu préprio, olhavam para o movimento conservado, € neoconservador ascendente e triunfan te. Uma das reaccGes a este estado de coisas foi investi; gar a mentalidade e personalidade conservadoras. Este tipo de ataque frontal e supostamente em prto- fundidade pareceu-me, contudo, pouco promissor: nao sé alarga- tia a fissura, como daria azo a um fascinio excessivo por um adver- satio diabolizado. Daf a minha Opsao por um exame “frio” de fend- menos de superficie: discursos, argumentos, retérica, considerados analitica e historicamente. Com o decorrer do Processo, emergiria a ideia de que esse discurso moldado, nao tanto Por tracos essen- ciais da personalidade conservadora, mas, simplesmente, pelos impe- rativos de argumentacdo, de forma quase independente dos dese- jos, anilise da “retérica reaccionaria” € com alguma surpresa minha, liberal ou progressista, Se reorienta, j4 no final do livro, de forma a englobar a variedade CapituLo I DUZENTOS ANOS DE RETORICA REACCIONARIA Em 1985, pouco depois da reeleicio de Ronald Reagan, a Fundacio Ford langou um projecto ambicioso. Motivada, sem davida, por uma preocupacdo com as crescentes criticas neocon- servadoras A seguranga social e a outros programas de assisténcia social, a Fundagio decidiu reunir um grupo de cidadios que, apés cuidadosa discussdo e aturada andlise das melhores investigaces disponiveis, aprovaria uma resolugio formal autorizada acerca dos assuntos que eram entio discutidos, vulgarmente, sob 0 rétu- lo de “A Crise do Estado-Providéncia””. Ralf Dahrendorf (membro, tal como eu, do grupo que tinha sido reunido), numa magistral exposicao de abertura, colocou o tema que vitia a ser objecto das nossas discusses no seu contexto histérico, relembrando uma conferéncia famosa, proferida em 1949 pelo socidlogo inglés T. H. Marshall, sobre “o desenvolvi- mento da cidadania” no Ocidente®. Marshall tinha entao distin- guido entre as dimensées civil, politica ¢ social da cidadania e pro- cedido, em seguida, 4 explicacao, bem dentro do espirito Whig de interpretacdo da histéria, de como as sociedades humanas mais ilustradas tinham enfrentado com sucesso cada uma dessas dimen- sdes, uma apéds outra. De acordo com o esquema interpretativo de Marshall, que, por conveniéncia, concedia cerca de um século a cada uma das trés tarefas, 0 século XVII presenciou as mais im- portantes batalhas pela instituicéo de uma idadania civil — da liberdade de expressio, pensamento € religiao 20 direito a uma justica imparcial e a outros aspectos das liberdades individuais ou, “Direitos do Homem”, tal como de forma algo imprecisa, aos aparecem na doutrina do direito natural e nas Revolugdes Ameri- 12 CAPITULO I cana ¢ Francesa. No decurso do século xix, foi 0 aspecto politico da cidadania, isto é, o direito dos cidadaos a participarem no exer- cicio do poder politico, que realizou maiores avancos, a medida que o direito de voto se ia alargando a grupos cada vez mais vas- tos. Finalmente, ja no século xx, a emergéncia do Estado-Provi- déncia alargou 0 conceito de cidadania as esferas social e econémica, através do reconhecimento de que condigdes minimas de educacio, satide, bem-estar econémico e seguranca so basicas para a vida de um ser civilizado e indispensaveis a um exercicio sétio dos atribu- tos civis e politicos da cidadania. Quando Marshall desenhou este magnificente e confiante ce- nario de progresso, a terceira batalha pela instauracao dos direi- tos de cidadania — aquela travada no campo social e econdémico —, parecia bem encaminhada para ser ganha, particularmente na Inglaterra do apés-guerra, entao governada pelo Partido Trabalhista, cuja orientacao politica se revelava bastante ciente da importincia crucial da seguranga social. Trinta e cinco anos volvidos, Dahrendorf péde apontar o excessivo optimismo de Marshall a esse respeito e constatar que a nocao de uma dimensao socioeconémica da cida- dania, enquanto complemento natural e desejavel das dimensGes ‘civil e politica, tinha encontrado. grande oposic’o ¢ inimeras difi- culdades, necessitando urgentemente de um substancial trabalho de reconceptualizacao. "A interpretacio tripartida e trissecular de Marshall conferia 4 tarefa do grupo uma perspectiva histérica e solene, para além de fornecer um excelente ponto de partida para as suas deliberacées. Apés reflexdo, contudo, pareceu-me que Dahrendorf nao tinha ido suficientemente longe na sua critica. Nao sera verdade que cada um dos trés impetos ou impulsos progressistas referidos por Marshall, e nao apenas o ultimo, foram seguidos por movimentos de reac¢ao ideolégica de uma forga extraordinaria? E nao estive- tam estes movimentos de reaccao na origem de lutas sociais € po- liticas convulsivas, que deram lugar, com frequéncia, a reveses em Programas que se pretendiam progressistas, bem como a muito sofrimento e miséria humanas? O movimento alargado de des- contentamento de que o Estado-Providéncia tem vindo a ser alvo DUZENTOS ANOS DE RETORICA REACCIONARIA 13 pode, com efeito, parecer bastante suave quando comparado com os intensos ataques € conflitos anteriormente gerados pela defesa das liberdades individuais, no século xvi, ou pelo alargamento da participagao politica, no século xix. Quando pensamos calmamente sobre este vaivém entre accio € reaccio, lento e repleto de petigos, podemos apreciar, mais do que nunca, a profunda sabedoria contida na conhecida obser- vagio de Whitehead: “Os principais progressos na civilizagio sio processos que quase destrocam as sociedades em que ocorrem.”” B certamente esta asser¢ao, e nao qualquer descricao em termos de progresso continuo, calmo e inexoravel, que capta a profunda ambivaléncia da esséncia da hist6ria intitulada, tao suavemente, “desenvolvimento da cidadania”. Hoje em dia perguntamo-nos, de facto, se Whitehead, escrevendo de forma tao sombria nos anos vinte, teria sido, talvez, ainda demasiado optimista: para algumas sociedades, que nao a minoria, a sua frase estaria mais correcta se — é possivel argumentar — 0 qualificativo “quase” fosse omitido. Trés reacgdes e trés teses reaccionarias Existem boas razdes, por conseguinte, para centrar a atengao nas reaccGes aos sucessivos impetos progressistas. Para ja, come- gatei por enunciar o que entendo por “trés reaccdes” ou ondas de reacgio, especialmente porque elas podem ser bem mais diversas e difusas do que aquilo que a triade relativamente simples de Marshall deixava supor. A primeira reaccio é co! que se segue (e se opde) 4 reivindicacao € dos direitos civicos de uma forma geral ivic da cidadania a que aludia Marshall. Existe uma dificuldade princi- pal para isolar este movimento: € que 4 afirmacao mais notavel destes direitos ocorreu nas fases iniciais, ¢ ¢™m resultado, da Revolu- Gio Francesa, de tal forma que a reacgio coeva contra eles se entre- cou com a oposi¢ao 4 propria Revolugio e a todas as suas mani- nstituida pelo movimento de ideias de igualdade perante a lei, — a componente civica 14 CAPITULO I festagdes. Parece ser claro que qualquer oposi¢ao 4 Declaracio dos Direitos do Homem e do Cidadao foi mais motivada pelos acontecimentos que levaram ao surgimento da Declaracao do que pelo texto em si mesmo. Contudo, o discurso contra-revolucio- nario radical que rapidamente emergiu recusava distinguir entre os aspectos positivos € negativos da Revolucao Francesa — ou conceder, sequer, que existia nela qualquer aspecto positivo. Os adversarios iniciais da Revolugdo consideravam-na como um todo coeso, antecipando aquele que viria a ser, mais tarde, um dos slogans emblematicos da Esquerda (La Révolution est un bloc). Sig- nificativamente, o livro de Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France (1790) — a primeira formalizacao de uma acusagao genérica contra a Revolugéo —, come¢ava com uma longa polémica contra a Declaracao dos Direitos do Homem. O discurso contra-revolucionario, por tomar a sério a ideologia da Revolu- Gao, supunha a rejeigéo do texto de que os revolucionarios mais se orgulhavam. Foi desta forma, entao, que o discurso contra-revo- lucionario se tornou uma corrente intelectual fundamental, esta- belecendo as traves mestras de boa parte da moderna postura con- servadora. A segunda vaga de reaccao — a que se opunha ao sufragio universal — foi muito menos conscientemente contra-revolucio- naria ou, nessa conjuntura, contra-reformista, do que a primeira. Durante o curso do século xIx, poucos autores proclamaram espe- cificamente 0 objectivo de reverter os avancos ao nivel da partic pac4o politica, conseguidos através do alargamento do direito de voto (e do aumento do poder das cémaras “baixas” do parlamento). Em muitos paises, 0 avango na direccio do sufragio universal (exclusivamente masculino até ao século xx) foi um processo gradual, de forma que se tornou dificil aos seus criticos assumi- tem uma posi¢ao de conjunto uniforme. Para além disso, a partir do momento em que as distingdes tradicionais entre nobreza, clero € povo foram desaparecendo, deixava de existir um obstaculo ébvio para a marcha em direccao 4 democracia politica. Podemos, con- tudo, construir um contramovimento ideoldgico a partir de varias correntes de pensamento influentes que emergiram na altura em DUZENTOS ANOS DE RETORICA REACCIONARIA 15 ue foram conseguidos os sucessos mais importantes na luta pelo ‘ento do direito de voto. Desde o ultimo tergo do ae a Primeira Guerra Mundial, e ainda mais tarde, uma lite- ratura vasta € difusa — abrangendo filosofia, psicologia, politica ¢ belas-letras — acumulou um acervo de todo e qualquer nc, concebivel para denegrir ou ridicularizar as “massas”, a regra par-— Jamentar da maioria e 0 governo democratico. Muita desta litera- ura, apesar de fazer poucas propostas de instituigGes alternativas, alertava, implicita ou explicitamente, para os terriveis perigos que ameagavam sociedade em resultado da tendéncia para a democratizacao. EB facil, em retrospectiva, atribuir a tais escritos uma parte da responsabilidade pela destruigao, no periodo que medeia entre as duas Grandes Guerras, da democracia na Alemanha ena Italia. Pode também atribuir-se-lhes a responsabilidade pela viragem antidemocratica feita pela Revolucao Russa — tal como argumentarei no final do Capitulo V. A segunda vaga de reaccao é, portanto, merecedora de algum crédito — se for esta a expres- sio adequada para descrever algo que produziu a versio histérica mais impressionante € desastrosa da profecia auto-realizada. Curio- samente, aquela reaccao que menos pretendia, de forma consciente, inverter o sentido das tendéncias ov das reformas em curso tor- is acusada de ter tido — nou-se naquela que teve — ou que foi depois o impacto mais destrutivo. Estamos agora a chegar 4 terceira onda de reaccao: a critica” contemporanea do Estado-Providéncia € as ‘tentativas para con- trariar ou “reformar” algumas das suas disposigdes. Estes temas nio necessitam, porém, de set analisados com profundidade neste momento. Como observadores directos, quotidianos, deste movi- ipo de entendimento de senso comum do. Por outro Jado, se bem que uma ‘a tenha criticado todo € alargam' yx até Mento, possuimos um certo ti em relacio ao que esta envolvi quantidade impressionante de literatur: . qualquer aspecto do Estado-Providéncia dos pontos de vista eco- némico e politico, e apesat dos ataques jncisivos a programas e instituigdes de assisténcia lancados por i a ee forcas politicas, é ainda demasiado ce! eee desta nova onda de reaccao. 16 CAPITULO | Como sera perceptivel a partir desta breve exposi¢ao, a enverga- dura do tema que me proponho estudar é enorme; na tentativa de © abarcar tenho de ser altamente selectivo. E, portanto, util apontar desde ja aquilo que ndo pretendo fazer neste estudo. Em primeiro lugar, nao pretendi escrever mais um livro sobre a natureza e raizes historicas do pensamento conservador. O meu objectivo é, antes, © de delinear tipos formais de argumentos ou retorica, e 0 meu énfase sera colocado, por isso, nos posicionamentos politicos e nas mano- bras polémicas mais relevantes e com maiores probabilidades de virem a ser adoptadas por todos aqueles que pretendam desvirtuar ou derrubar as politicas ¢ movimentos de ideias de tipo Progressista. Em segundo lugar, nao vou enveredar por uma revisitacio histérica ampla e pormenorizada das sucessivas reformas € contra-reformas, teses e antiteses, desde a Revolugio Francesa. Em vez disso, centra- rei a minha atencio num pequeno nuimero de argumentos recorren- tes ou tipicos que sio quase sempre mobilizados por cada um dos trés movimentos reaccionarios acima referidos. Estes argumentos constituirio as subdivisdes basicas do meu texto. E em articulagio com cada argumento que as “ttés reaccdes” serio alinhadas de forma a aferir qual a configuracio especifica que tal ou tal atgumento assu- miu nos varios contextos histéricos. Quais e quantos sio os argumentos? Devo ter uma propen- séo inata para a simetria. Ao examinar os principais modos de criticar, atacar e ridiculizar os trés impulsos “progressistas” suces- sivos de que fala Marshall, acabei por encontrar uma nova triade: isto é, trés teses reactivas-reaccionarias Ptincipais, que denominei tese da perversidade ou tese do efeito perverso; tese da futilidade, € tese do risco. De acordo com a tese da perversidade, qualquer acgao deliberada para melhorar alguma caracteristica essencial da otdem politica, social, ou econémica Serve apenas para agravar 0 €xacto aspecto que se deseja atenuar. A tese da futilidade sustenta que as tentativas de transformacao social sio inuteis, que nunca conseguirio “fazer a diferenca’’. A tese do risco defende que o custo da mudanga ou reforma Proposta ¢ demasiado alto para ser pago — eventuais melhorias nio compensam o risco de fazer perigar Preclosas conquistas anteriores.

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