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eat A policads nostalgia um ead dat formas do pasado / Mas = Sho Paulo» Nankn, 2006 05.10.06 016446 WNANKIN EDITORIAL ua Taatingera, 140, 8 andar, j.803 - Centro ~ $40 Paulo EP 01020-000 1880 85-86972-05-1 > 2006 Limpresso no Bri Printed in Brazil MARCOS PIASON NATALI a /- A POLITICA DA Um estudo das formas do passado INTRODUCAO Am da andlise da nostalgia, este estudo examina 9 pro- alizacao de uma maneita namento com os titui-s doenga da meméria na Europa gundo capiculo, re em leituras de alguns textos de M, com base prin- larx, busca mos- {rar como a nostalgia a0s poucos se tornou utra natureza, com o afeto um problema de elo passado sendo acusado de ser pode ser condenado como uma aberracio culo irracional. Partindo dessa visio de mundo, criariam fSrmulas para definir a reasio adequ Outro, com linguagens diferentes freqiientern do uma mesma estructura, A segunda busca, visrios discursos ada & marte do ene reproduzin- Parte do estudo — os trés capftulos seguintes — através da leitura de alguns textos narratives da literatura hispano-americana da segunda metade do século XX, identifi- 4 [MARCOS PIASON NATAL! car algumas maneiras de entender o lugar da nostalgia e do luto na modernidade. As andlises de trés romances latino-ame- ricanos conduzem a uma discussio do problema da representa- so da morte moderna e & exploragio das conseqii © pensamento, para a literatura, para a politica e para a é de diferentes formas de se pensar a relacio entre o presente ¢ 6 passado € entre 0s vivos e os mottos. O terceiro capitulo, sobre o romance Pedro Péramo do es critor mexicano Juan Rulfo, aborda um dos momentos mais vigorosos da critica & nostalgia na narrativa hispano-american do século XX. Se a leitura apresentada aqui estiver correta, 110 encanto, essa critica antifetichista, apesar de toda sua energia desmistificadora, no final ainda deixa algo de pé. No quarto capitulo, sobre 0 romance Paradiso do cubano José Lezama Lima, procura-se entender a complexidade da reflexio sobre 0 Juto em um pensador que era qualquer coisa menos desencanta- do. Sea forma assumida pelo passado nao for aquela vislumbra- da nas eriticas & nostalgia, — se, por exemplo, o contexto em que o passado se configurar no incluir a crenca na morte como fim e nao separar irreparavelmente passado ¢ presente —, 0 ter- ‘mo nostalgia, quando utilizado, parece ser 0 resultado de um mal-entendido. O capfculo final, uma leitura da narrativa pés- ditatorial En estado de memoria da argentina Tununa Mercado, encontra em Emmanuel Lévinas uma linguagem para descre- ver como a primazia da ética provoca uma crise no modelo econémico do luto freudiano. O estudo foi imaginado, desde sua concepgo, como um todo orginico, com 0 interesse comum ps como um problema tipico da modernidade, enlagando as dis- cusses sobre contextos ¢ perfodos diferentes. Parece-me, entre- tanto, que as partes do livro sio suficientemente auténomas Para que a leitura isolada delas no seja impraticdvel. Cariruto 1 UMA GENEALOGIA DA NOSTALGIA” ‘0 dia 25 de fevereiro de 1913, um médico discorreria no Nijuu’ (Club de Chicago a respeito de sua experiéncia clinica durante a Guerra Civil americana. Suas recordacées le- varam-no a descrever “um transtorno que raramente vemos hoje em dia” e que no entanto havia sido comum na década de 1860, quando chegou a ser, 20 lado de feridas e doengas, uma das principais causas de baixas entre soldados. Quando acome- tidos por esta condicéo, explicaria o doutor Weir Mitchell, os soldados tornavam-se histéricos e indisciplinados e muitos fi- nalmente precisavam ser exonerados do servico militar e man- dados de volta As suas casas. O doutot Mitchell lamentou ainda que, no obstante a importincia do transtorno, “nao tenha lo desenvolvido sequer um estudo cuidadoso desta que é, em alguns aspectos, uma enfermidade psiquica interessante”. En- fim, continuou ele, “hoje, apoiados em perplexidades alemis, farfamos 121 perguntas vitima ¢ consultarfamos sua mente subconsciente e seus sonhos para descobrir porque ela desejava voltar para casa, e nao farfamos nada além de descarté-la como irrecuperivel”.|_ Neste ¢ nos demais capitulos, as traduges sio minhas a no ser que um tradutor seja identificado, George Rosen, “Nosta Medica, 10:1 1975, p. 29, A ‘Forgotten’ Psychological Disorder", Clio 16 (MARCOS PLASON NATALL i. Patologia que o doutor Mitchell descrevera com um cert e10 € cuja desaparicio, apds uma vida ttl de mais de duzen- tos anos, ele parecia lamentar no comego do século XX era a nostalgia. Em suas diferentes manifestacbes ¢ expressdes, a sat. dade certamente nfo acabara com o século dezenove, e0 pré. Prio depoimento do médico naquele dia em 1913 é prova dis- 10, Com seu lamento pela transformagio da medicina em uma atividade mais rigorosa porém mais fria. © que o doutor Mitchell identficara, e neste sentido sua opiniao coincidia com a de diversos médicos ¢ pesquisadores da época, fora o fim da nostalgia em uma de suas encarnagées, isto é, a extingio da nostalgia como categoria clinica. Se a histéria da nostalgia como doenga come do século XIX, a década de 1860 nos Estados Unidos representaria para ela uma espécie de canto do E 6, neste sentido, como a palavra “fetche", como se vé Piece, Fetishisa as Culural Discourse, Ithaca, Corel 1993. ‘A POLITICA DA NOSTALGIA: Um etd ds formas do pasado irreversivel de uma temporalidade progressiva ¢ linear; 0 passa do ¢ o presente precisavam ser vistos como esferas distintas; um valor positivo devia ser associado 4 mol de.6 $6 em um contexto como esse podia surgir uma categoria como 2 nostalgia, criada para descrever a fixacao excessiva 20 passado e 0 afeto por um objeto ausente como doentios. Ao dar a esta condigo um novo nome, Hofer buscava pen- sara saudade ¢ 0 anseio através de um novo vocabulério, uma linguagem qualitativamente diferente daquela encontrada na Odisséia, nos Salmos ¢ em outras narrativas que entio circula- vam pela Europa. Embora tanto esses textos quanto o tratado de 1688 descrevessem uma dor produzida pela distancia da terra natal, a diferenga de Hofer € que ele aspirava a inserir 0 sentimento na linguagem cientifica. Desta forma, como qual- quer outra doenga, a nostalgia passou a ter uma etiologia e uma sintomatologia prdprias, enquanto se buscava um tratamento cficaz para combaté-la. Para Hofer ¢ os pesquisadores do século XVIII que continuaram suas pesquisas pioneiras sobre a nostal- ‘gla, as causas provaveis do transtorno variavam da desnutrigao — causada pela falta repentina da alimentagio costumeira — a problemas “neurolégicos”. Estes eram mais importantes para Hofer, que explicava ainda que a fixagio patoldgica nas lem- brangas da terra natal era 0 resultado da “vibragao continua de esp{titos animais pelas fibras do centro do cérebro a que ainda se agarravam rastros impressos pela idéia da Patria”.’ Com a recordagio reiterada da terra natal, os “esplritos vitais” que cor- respondiam aos pensamentos ligados & pétria vibravam com mais viyo ¢ freqiiéncia, alargando os caminhos percorridos por essas forsas no cérebro. Como conseqiiéncia, os espiritos se acostuimavam a certas passagens no cérebro ligadas & lembranga “. 20 [MARCOS PIASON NATALL da terra natal ¢ passavam a se movimentar por conta pr sem a necessidade da ativacao por estimulos exteriores.® Essa concentragao excessiva afetaria até 0 funcionamento de fungées vitais como o apetite, diminuindo a forca do individuo ¢ cau- sando fraqueza generalizada, ma circulacdo ¢ exaustio fisica: Pesquisadores do século XVIII explicariam o fenémeno através de diferentes teorias fisiolégicas, que inclufam a excitagio cencefalitica, a irritago do cérebro e a mé circulagio cerebral. J4 no século XIX, passariam a ser mais comuns as explicagdes protopsicolégicas, como as que definiam a nos espécie de psicastenia, uma neurose, uma forma sanidade ou, ainda, uma doenga mental “estética”, segundo a descrigo enigmética de um observador.!° Sea etiologia da nostalgia era extensa, sua sintomatologia noo era menos variada. Mesmo assim, em seu tratado de 1688, Hofer insistia que um observador atento seria capaz de diag- nosticar 0 transtorno se notasse a presenga de seus sintomas mais comuns: febre, ins6nia, suspiros freqiientes, palpita coragio e declinio notavel de forsa € apetite."' Apés a formula ao pioneira de Hofer, a lista seria ampliada e chegaria a inchuir um niimero extraordindrio de sintomas fisiol6gi interrupgao da men: distirbios de secrecao e digestao, vémito, di- arréia ¢ convulsdes. Os sintomas “psicolégicos” nia, alucinagées, dificuldade de concentragio em qualquer coi- sa além da lembranga em si e perda generalizada de interesse pelo mundo ¢ pela vida.!? H, McCann, “Nostalgia: A Review of the Liter Pychological Bulletin, vol 38, n.3,feverciro de 1941, pp. 176-177, "" Hofer, op. cit., pp. 386-387. ‘ APOUITICA DA NOSTALGIA Um est as formas o pasado an Caso 0 diagnéstico nao fosse tardio, Hofer recomendava como primeira medida a purgagio do do necessirio, da “abertura das veias braquiais maiores essas providéncias nao surtissem efeito, Hofer propunha algo gue reapareceria em varias propostas de tratamento: devia-se dizer 20 paciente que ele logo voltaria para casa, instilando nele a esperanca de um regresso em breve. No caso de alguns solda- dos nostélgicos, ver documentos falsos garantindo sua préxima exoneragio jd era suficiente para produzir a cura.’ Se essas medidas fracassassem, 0 consenso era que a solucao sé podia ser uma: a volta imediata ao lar. Para Hofer, se os sonhos de voltar para casa nao se abrandarem, 0 pa- ciente, mesmo quando fraco e frdgil, deve ser levado embora sem demora, por meios como uma carruagem de quatro rodas ou uma liteira, ou entao de qualquer outra maneira. Pois seguramente na atualidade jé foi comprovado através de varios exemplos que todos aqueles que foram conduzidos dessa forma convalesceram jé na prépria viagem ou entio imediatamente apés o regresso & terra nat ‘mente, muitos daqueles que careciam de meios para voltar & terra natal, paulatinamente, com o espirito exausto, expira- 0 ar de suas vidas, enquanto outros inclusive sucumbiam ao delitio e, finalmente, & mania. que, inversa- A negago do tratamento adequado podia levar, nos casos mais graves, & morte do paciente nostélgico, embora a doenga fosse perigosa no apenas pelos danos possiveis a0 paciente. Acreditava-se também que aqueles que sofriam de nostalgia eram capazes de atos de extraordindsia violéncia em sua busca da volta 5 Hofer, op. cit., pp. 389-390. 22 ‘Mancos PASON NATAL ao lar. A literatura médica sobre o assunto nos séculos XVIII XIK estd saturada de exemplos de pessoas nostilgicas dispostas a ‘matar, a si mesmas ou aos outros, para tentar aliviar seu sofri- mento. Um relato representativo é reconstruldo ficcionalmente por Andrei Tarkévski no filme Nostalgia, em que uma criada in- ccendeia a casa dos patrdes na esperanca de obter permissio para voltar a seu vilarejo ¢ sua familia." Intimeros incidentes seme- Ihantes foram registrados na Franga, Alemanha, Sulca e Itdlia, do século XVIII & primeira metade do século XIX. Uma parcela sig- nificativa desses relatos descrevia meninas adolescentes que traba- Ihavam no servigo doméstico em cidades distantes de seu hugar de origem e eram dominadas pela nostalgia, chegando a cometer assassinatos, causar incéndios ou se suicidar.'” O lugar da nostalgia Muitos dos primeiros observadores consideraram a nostalgia uma enfermidade endémica aos suigos. Embora em 1688 Hofer jé se opusesse a esta opinigo, que se tornava popular, ee concedia que a maioria dos casos de fato envolvia soldados su- tantes de suas terras de origem por um periodo ext s0.!8 A idéia da especial suscetibilidade do povo sufgo 8 nos gia prevaleceria por quase setenta anos, de tal forma que a con- digo era comumente conhecida como “Schweizerkrankheit"”. Em 1755, a Onomatologia medica ainda a defi uma doenga muito especifica que, segundo toda a expe- rigncia acumulada, é comum sobretudo entre os sufgos, i Tarkovsky, Nostalghia, Londres, Artificial Eye, 1983. 7 McCann, op. ci 7. 1 Hofer, op. cit. pp. 383-384. © McCann, op. cits p- 169, # i |APOLITICADA NOSTALGIA: Um estuo ds formas d pasado ‘e surgindo principalmente de um anelo apaixonado pel ter ra natal, que se desenvolve lentamente, sem ser notado. ( Enquanto esse impulso agudo e esse descjo niio sio sac dos, todos os medicamentos ¢ argumentos sao imtteis. De fato, existem casos que inclusive resultaram em morte, quando nao foi possivel satisfazer 0 desejo abrasador.” A nostalgia era portanto uma doenga perigosa, por vezes ‘mas de alcance limitado, restrita a um grupo nacional particular. : Em meados do século XVIII, uma tiltima tentativa de man- tera especificidade regional da doenca levou alguns médicos a relacionar a nostalgia a povos de qualquer regio montanhosa, alegando que ela seria uma resposta & elevacio da pressio at- mosférica, que por sua vez diminula a circulagio do sangue ¢ reduzia o volume de sangue recebido pelo coragio.2! No en- tanto, a expansio do conceito jd estava em movimento e seria evetsivel. Logo em seguida a condicio seria descrita como tipica de migrantes rurais de qualquer procedéncia, podendo surgir sempre que houvesse dificuldade de adaptagio a. um novo ambiente, principalmente quando esse novo espaco fosse urbano. Em 1754, o principal médico militar francés publicou tum tratado descrevendo um surto de nostalgia entre soldados franceses de diversas origens 2 e pouco depois seriam registra- dos casos entre soldados escoceses, alguns dos quais nio teriam conseguido se recuperar, falecendo em seguida.2? a partir do comeso do século XIX a palavra “nostalgia” ea enfermidade por ela designada haviam se generalizado, indi- ® Onomatologia medica completa, Frankfurt, 1775, citado em Rosen, op. p. 34 2 Rosen, op. cits p. 3. 24 |MAROOS PIASON NATAL cando um transtorno psicolégico e fisico capaz de afetar indivi- duos de qualquer profissio e qualquer grupo étnico, geogrifico ou nacional. A partir desse momento, foram registrados casos em varios paises europeus ¢ tratados sobre a doenga foram redi- sidos na Alemanha, na Suica , com freqiiéncia crescente, na Franga. Nesse contexto, nao deixa de ser ilustrativo, tanto da forma em que ainda se pensava a nostalgia como da crenca em ‘um certo exclusivismo inglés, que Thomas Arnold em 1782 re- conhecesse a existéncia de uma “insanidade nostdlgica” para em seguida assegurar que os ingleses estavam, felizmente, livres da condicao: “Seja qual for a nossa preferéncia por nossa terra natal de abundancia, opulén erdade, desconhecemos o apego apaixonado que leva a esse tipo de insanidade” 2° Apesar da confianga de Arnold, também entre os ingleses seriam registrados casos de nostalgia, embora nunca se tenha chegado na Inglaterra ao grau de preocupacao que se veria na Franga, A apreensio transparece em uma colecio de textos publi- cada por Dominique Jean Larrey, chefe de cirurgia militar do exército francés, em 1821.2 Em relatos sobre sua experiéncia clinica, destacam-se as descrigdes dos pacientes que softiam de nostalgia. Para evitar novos surtos da doenga no exército, Lartey recomenda que as atividades dos soldados sejam variadas, que 0 direito a descanso adequado seja garantido ¢ que os soldados se- a re 0s médicos que publicaram textos sobre nostalgia no petiodo en- ‘contram-se J. Verhovite (1703), Jean ), Jourdan Le Cointe (1790), 17) ¢ August Haspel (1873). CE ‘McCann, op. cit. ¢Ann C. Colley, Nosapia and Recollection in Victorian Galeure, Nova York, StMa 5, 1998, p. 2 % Thomas Arnold, Observations on the nature kinds, causes, and prevention of insanity, lunacy or madnes, vol. 1, Londres, 1806, p. 209. 2 Rosen, op. cit, p. 41. |AOLIICA DA NOSTALGIA: Un estudo das formas Go passado 25 jam expostos a miisica militar, para a elevagio do espitito. idas, Larrey escreve com orgulho, tive a felicidade de proteger da nostalgia, e de qualquer outra queixa grave, a tripulagao de nossa fragata na viagem enfadonha que fizemos pelo Mar do Norte em 1787 € 1788; dessa companhia nao perdemos mais do que um homem, como conseqiiéncia de um naufrdgio. E uma das ides paternais do chefe de unidade, orientado pelo cirurgido-chefe, executar as medidas indicadas acima, a fim de impedir a ocorréncia da nostalgia, uma doenga to perigosa quanto traigoeira.”” ‘Se mesmo com as precaugées recomendadas um soldado fosse acometido pela doenga, ¢ se entio o tratamento indicado nio surtisse efeito, Larrey sugeria 0 imesmo que Hofer em seu tratado de 1688: 0 soldado nostilgico devia ser dispensado imediatamente para poder regressar & casa. O Ministro da Guerra da Franga concordou, tanto que, quando as exonera- ‘ses por convalescenga foram suspensas em 1793, abriu-se uma excegao para pacientes nostalgicos.”* E nao foi toa, pois logo ocorreriam epidemias de nostalgia entre recrutas franceses, primeiro no exército do Reno, em 1793, ¢ depois no exército dos Alpes, em 1799.?° Outro surto ocorreu entre 1820 ¢ 1826, levando 97 soldados franceses a serem diagnosticados oficial- mente como portadores da doenga.> © medo da nostalgia na Franga chegou a ser tio agudo que, segundo Jean Starobinski, ¥ Dominique Jean Lartey, Surgical Eusays, tradusgo de John Revere, N. G. Maxw “Nostalgia: A Swiss rnovembro de sease”, American Journal of Pzychiatry,v. 1994, p. 1715. 26 [MARCOS PIASON NATAL algumas pessoas, temerosas de que a doenca’os atingisse, evita- vam viagens mais longas.>" Até a aparente incompeténcia da colonizagao ultramarina francesa chegou a ser explicada pelo apego excessivo dos colonizadores & terra natal, em raciocinio que ilustra bem 0 ambiente intelectual do perfodo.52 Para todos esses observadores, a nostalgia se referia a0 anseio Por um lugar distante, o sentido literal do neologismo criado por Hofer. A doenca nascera em um contexto em que a mobi- lidade espacial era uma anomalia, quando o mais comum era ue as pessoas vivessem € morressem no lugar em que haviam nascido, quando 40 era causada por eventos extraordi- ndtios, como guerras ou escassez.*® © que os tratados médicos tentavam definir era portanto a reagio adequada & circunstin- cia excepcional de se encontrar distante do solo natal, ou seja, © grau apropriado de apego ao lar, as origens ¢ & familia. Nessa primeira encarnacio da nostalgia, entio, a sensasio de ruptura — condigéo imprescindivel para o desencadeamento da enfer- midade — era fornecida pela distancia fisica da terra querida. Nao era possivel contrair a doenga sem estar longe de casa, 0 que explicava que as vitimas preferenciais do mal fossem ho- mens; as mulheres néo apenas tinham menos mobilidade que ‘0s homens, mas o espago habitado por elas se tornava, com sia presenga, um lar, como sugere Michael Roth. A excegio repre- sentada pelas empregadas domésticas confirma a regra, pois eram mulheres que moravam no lar de outra mulher.4 “The Idea of Nostalgia”, Diagenes, 54, 1966, p. 86. » Alice Bullard, Primitivims, The Paris Commune of 1871 and the Making of Nineteenth-Century French National Identity, Tese de doutoramento, University of California, Berkeley, 1994, p. 98. 2c [A POLITICA DA NOSTALGIA: Un esto das formas do passato . ‘Aos poucos, no entanto, estar afastado de um ser quetid — eno de um lugar — passaria a ser visto como outra po: vel causa de nostalgia, mudanga que aparece nos relatos médi- cos. Um caso registrado por um psiquiatra inglés demonstra a ampliagio do conceito. Uma crianga sofre de uma doenga que em todos os aspectos se assemelha & nostalgia, embora falte a seu quadro a separagio fisica do lar. Apés analisar 0 caso com ais atencio, 0 psiquiatra descobre que os pais da menina ha- viam passado uma temporada longe de casa, deixando a filha aos cuidados de terceiros, e conclui que a auséncia dos seres amados forz motivo suficiente para estimu doenga.3> Em varios niveis, € esta a transform: Jar seja transformado de forma radical. Essa mutagio do sentimento € capturada literariamente por Jean-Jacques Rousseau em 1759, nos trechos de seu romance epistolar Julie em que Saint-Preux e Julie d’Etange estéo separa- dos. “Cada passo que me afastava de vés", escreve Saint-Preux a Juli, “separava meu corpo de minha alma e dava-me um senti- mento antecipado da morte”. Chegando a Paris, Saint-Preux e: Cheguei ontem & noite a Paris e aquele que nao podia vi- ver separado de ti por duas ruas o esté agora por mais de cem Jéguas.... © diivida! 6 suplicio! Meu coragio inquieto procu- ratte e nada encontra. O sol nasce ¢ niio mais me devolve a cesperanga de ver-te; ele declina e eu nio te vis meus dias vazios de prazer e de alegria escoam-se numa longa noite.” 3 McCann, op. cit. p. 179. % Jean Jacques Rouen, iia on «noes Helo cats de dois amantes ‘babitantes de uma cidadesinhs ao pé do: Alpes, taducio de Fulvia ML. Campinas, Ed. da Unicamp, 1994, p.75. 5 Ihid., p. 207-8. on? ont ry a Wy 28 pcos rasounxras ao destaque aqui é para a separacio do ser querido, como ncontro imaginado como a tinica forma de acabar com 0 sofrimento, Enquanto isto nao acontecer, qualquer outra atra- $40 torna-se um estorvo, uma distracao inadmissvel da vinica atividade legitima, a rememoracio: Mesmo se te tivesse visto apenas nesse primeiro instan- te, tudo estaria feito, seria tarde demais para poder esque- cer-te algum dia. E iria esquecer-te agora? Agora que, inebriado com minha felicidade passada, apenas sua lem- branga basta para ma devolver ainda? Agora que, oprimido ) , jPele peso de teus encantos, sé neles respiro? ... Ah! que at gortodas as belezas do universo tentem seduzir-me!* A préxima transformagio do conceito tragaria uma nova ci- so, fazendo da nostalgia nao apenas o sofrimento causado por uma separagio fisica, seja da terra natal ou de ui ente querido, ‘mas também uma dor provocada pela distancia tempor pela passagem do tempo. Assim, o transtorno poia set pelo falecimento de um ser querido ou pela cransformagao irre- ppardvel de um lugar conhecido, e desta forma jé no era necessi- rio viajar ou imigrar para ser acometido pela doenga; a transfor- ‘magio de sua vida cotidiana jé era suficiente para provocar nos- talgia até naqueles que jamais haviam deixado sua terra natal. O que o sujeito lamentava, nesses casos, era a transformasao do resente em passado, em meio a um periodo de crescente indus- ializagio ¢ urbanizagao. Com essa alterasio, tornou-se mais dificil sugerir um tratamento para a nostalgia, pois nio era pos- sivel recomendar a volta a um tempo passado como antes se prescrevera a volta a um lugar distante, Jé.com esse significado duplo — o anseio por algo distante / ‘no espago ou no tempo —, a palavra “nostalgia” seria aceita 5 Thid, p. 209, [A POLINCA OA NOSTALGIA: Um estado farms. passa 29 pela Academia Francesa em 1830, quase 150 anos apés sua ctiagdo, e a doenga prosperaria na Franca da primeira metade do século XIX. Longe de ser um caso isolado, sua delimitago (0 ocorreram ao mesmo tempo em que a jover cién- cia da psiquiatria tentava mapear distuirbios mentais de diversos tipos, fazendo do periodo terreno particularmente fértil para a geragio de novos transtornos. Apés tentativas de situar a ori- gem de distiirbios mentais no formaro, tamanho ou peso do crinio e do cérebro e apés a procura de uma base biolégica para a meméria, procedimentos vistos com crescente descon- fianga no século, a busca se deslocou para a investigacio de leis Jégicas que regessem as doencas mentais. / Ho easo das doengas da meméria — as maladies de la mé- wire —, buscava-se, como no famoso estudo de Théodule descrever as doengas relacionadas 4 meméria, decerminar Jescobrir suas causas e propor tratamentos.»” Desta for- ma, 0 perfodo viu a definigio de formas patolégicas de recorda- ia inexata, insuficiente ou excessiva, sob no- mes como paramnésia, amnésia ou hipermnésia, respectivamen- Parentes préximos da nostalgia, esses transtornos tiveram sua logia, sintomatologia ¢ tratamento definidos nesta época. A_ nostalgia seria parte dese mapeamento da meméria, comple- mentando os outros termos ao definir como doentio 0 apego excessivo & lembranga de um objeto perdido. No debate sobre 0 lugar adequado da meméria e do passado na modernidade, as patologias da meméria forneciam categorias normativas que re- tiravam legitimidade de formas heterogéneas de estar com 0 pas- sado, Como a meméria na época jd era vista como parte essen- cial de uma vida saudavel e jé era considerada necesséria para a io de identidades individuais ¢ coletivas, a prescrigao 3 Thdodule Rib wadugio de Company, 1893, p. 192. ivases of Memory: An Exay in the Positive Prychology, Huntington Smith, Nova York, D. Applecon and 30 MARCOS PINSON NATAL rio tinha como ser simplesmente o esquecimento, fosse do pas- sado ou de um ser querido. Nos debates sobre as diversas doen. sas da meméria, a operagao delicada consistia em identificar 0 quilfbtio ideal entre meméria e esquecimento, medindo ainda © nivel sadio de apego afetivo 20 passado,® A modernidade e 0 novo — esse neologismo do final do século XVII — gradualmente seria adotada por especialista ¢ leigos para descrever uma doenga caracterizada pelo apego excessive a tum lugar ou uma pessoa distantes no espago ou no tempo, sugerindo que a relac30 com o'passado havia se tomado ui problema para o pensamento moderno. Para ser compreendi- do, o incdmodo gerado pelo’afeto intenso duradouro pelo passado precisa ser situado em um contexto em que a celebra- Go do novo buscava tornar-se dominante. Embora seja verda- de que os séculos XVIII e XIX geraram intimeras criticas & busca febril pela novidade e que a critica 4 modernidade é con- tempordnea ao inicio da modernizagio, esse desconforto nao foi sancionado cientificamente como 2 nostalgia o se quanto a avaliagao critica da nostalgia se reproduzia em disci- plinas poderosas como a psicologia e a histéria ¢ termo era incorporado por diversas linguas européias, nao havia, como nfo hd, no vocabulério europeu um termo como nostofebic, uma palavra que descrevesse um desejo irefredvel de deixar a terra natal, un medo patolégico do passado ou uma devogio excessiva ao futuro. - cientificas de mapear o comportamento humano coi mentavam os mapas do globo tracados por geégrafos aproximadamente ‘no mesmo periodo: tragavam-se linhas, definiam-se front ciam-se o centro e as margens, determinavam-se os espagos da so e da barbitie, da normalidade e da aberracio. AAPOLITCA DA NOSTALGIA Um etd i fomas do pasato n Além da representagio positiva do futuro do novo, era ecessdrio, para que a nostalgia fosse considerada nociva e fosse que houvesse i . vista como um desejo impossivel de se satisfazer, uma separacio clara entre 0 sujeito ¢ 0 objeto anelado. Se no caso das primeiros pacientes nostélgicos essa sensacao de rup- ura era fornecida pela distancia geogréfica, para aqueles que suspiravam por um momento do passado era 0 tempo 0 res- ponsdvel pela separacio. Esse corte, quando visto como defi tivo, estabelece uma linha diviséria entre o que ée o que foi entre uma vida que se 1c pela imperfeigao e a falta ¢ outta caracterizada pela plenitude, criando aquilo que Ross Chambers descreveu como o sentimento de ter sobrevivido & propria morte.‘ Em muitos relatos do século XVII, a Revolugso Francesa aparece como o agente de uma ruptura dramatica desse tipo, repartindo a histéria em duas fatias incomensurdveis. Via-se a Revolugao como um acontecimento diferente dos eventos que o precederam, uma novidade que abria as portas para um futu- ro inimagindvel antes de 1789, com a sensagio de novidade ressaltada pela introdugio de novos rituais sociais, novas formas de se vestir e um novo calendério. Em nome da justica, a Revo- lusio buscou romper definitivamente com um passado que, cada vez mais, como se verd, seria representado como injusto € indesejéve Para descrever a insergéo desse corte radical na temporalida- dle histérica, outra palavra teve que ser inventada, atribuindo & palavra revolugo — que, ao contririo de nostalgia, jexistia— um novo significado. Se inicialmente o termo se referia a um movimento circular — re-volutio —, descrevendo a volta a um estado anterior e sugerindo a possibilidade da repetigao da his- TW Ross Chambers, The Writing of Melancholy: Médes of Opposition in Early French Modernism, tradusSo de Mary Seidman Trouille, Chicago, The University of Chicago Press, 1993, p. 31. "MARCOS PUASON NATAL antigas formas de ser, bem assumiriam algo da natureza da ne- Era portanto cocrente que o desapego pelo passado se 0 perfil de algumas das p da modernidade, Weber, 0 “estrangeiro” de simmel, o “dandi” de Baudelaire, 9 “flaneur” de Benjamin. Concentremo-nos, por um instante, na dima dessas figuras — 0 fléneur, através do olhar de Baudelaite—, para tentar con. Preender melhor o ambiente que transformou a nostalgia cay tum problema. Para Baudelaire, 0 encontro com o novo é uma faceta datexperiéncia urbana, ¢ é apenas na cidade que se pode tomas, na frase de Le Spleen de Paris, “um banho de multidao”, experiéncia que se tomara possivel gracas is mudangas estruturais ocorridas na cidade de Paris, com o alargamento das avenidas, pensado inicialmente como um antidoto as barricadas, permitin. do a congregasio de multidées e convidando ao passcio. Embo- 3 para Baudelaire o encontro com 0 novo na esfera publica te- ‘ha sido aparentemente uma fonte incerta ¢ ambivalence de pra- es, ele construiria a partir do pintor Constantin Guys uma re- Presentagao celebratéria da condi¢go moderna. O dela vontade 'arameshwar Gaonkar, “Qn Al sure, vol. 2, n. 27, 1999, p. 3. ~ mento tecnolégico e, ‘A POLITICA DA NOSTALGIA: Un esa ds arms do sata 33 xar sua casa como para voltar a ela, com viagens constantes de- sestabilizando inclusive a idéia de um lar fixo: Estar fora de casa, ¢ contudo sentir-se em casa onde quer Que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo ¢ Permanecer oculto ao mundo, eis alguns dos pequenos pra- eres desses espirtos independentes, apaixonados, imparci- ais, que a linguagem nao pode definir seno toscamente.!? Um flaneur como Guys se nutre da novidade, trocando de juas como troca de roupas, recusando inclusive a devosao ma native. Ao invés de adorar familia, péttia, beleza ou ouro, ama as “nuvens flutuantes”, Baudelaire diz enxergar algo da postura e do caminhar do Hlancur em missionzrios, exilados, colonizadores e soldados, sendo que estes também aparecem freqiientemente nos retratos feitos por Guys junto a dandis, dancarinos ¢ imigrantes, Se 20 ‘mesmo tempo era comum, como vimos, que fossem diagnos- ticados como portadores de nostalgia, © portanto enfermos, justamente individuos cujas vidas se caracterizavam pela mobi. ade, talvez o pesar € 0 entusiasmo fossem complementos, com o nostilgico ¢ o flaneur representando respostas opostas 4 uma mesma experiéncia nova. Essa dual ado, a cele- cao de pos- € 0 desenvol outro, o lamento por aquilo que se de com as transformages. Enquanto o enérgico ¢ aventu- reito soldado-flneur de Baudelaire apreciava a oportunidade .éo da liberdade pol ® Charles Baudelaire, “O pintor da vida moderns", in Teixeira Coelho tradugio de Suely Cassa, Rio de 34 MARCOS PIASOM NATAL de encontrar 0 novo € 0 inesperado a éada dia, com 0 imprevis- to vivido como uma oportunidade para expandir 0 conheci- mente;-0-soldada nostilgico era consumido pelo desejo de GWoltar a0 conhecidd % origent € eiergava no nove uma ameaga Aguile que ele almejava preservar, Enquanto 0 nostélgico, segundo a caracterizagio comum, mantinha-se preso ao passado ¢ & meméria, consumido por uma paralisi ar qualquer novidade que pudesse distraf-lo da devocio a0 objeto de seu afeto ¢ a se refu- jamais permanecesse atado a um tinico objeto. Seu interesse era justamente pelo efémero, por aquelas nuvens & deriva que estio sempre em movimento e assumem uma nova forma assim que o olhar cré aprisiond-las. Nada mais distante da postura nostél- gica, no imagindrio do perfodo como na descricao de Philippe Pinel no comego do século XIX: Os principais sintomas sao a aparéncia triste ¢ melaneé- lica, o olhar perplexo, os olhos por vezes abatidos, 0 sem- blante as vezes sem vida, um desgosto generalizado, a ferenca em relagio a tudo; o pulso é lento € fraco, ¢ dep: répido porém quase imperceptivel, numa espécie de sono- lencia constante; quando dorme, enuncia frases entre pran- tos ¢ lagrimas; hé uma quase total incapacidade de sair da cama, um siléncio tenaz, a rejeigio de comida e bebida; emagrecimento, marasmo e morte.“4 Enquanto 0 sujeito nostilgico esmorece na cama, o Guys de Baudelaire acorda de manhi jé ansioso, imaginando que possa ter ocorrido algo de estimulante durante scu sono." spe Pinel, “Nostalgic”, em Encyclopédie Méthodique, apud Staro- 97. 4 “0 pintor da vida modems", ed p. 171. [APOLITICADA NOSTALGIA: Um esto ds formas do possafo 7 Se Baudelaire se tornaria conhecido por suas celebrasées do nomadismo, cosmopolitismo e desenraizamento do fléneur, que segundo ele possula 0 olhar ¢ o gesto da modernidade® — em- bora, é certo, sua obra como um todo pinte uma imagem mais complexa, e a propria representagio de Guys jé deixe transpare- cer'a anguistia da busca da preservagio do fugidio e efémero —, um relato sobre o escritor narrado por um de seus contempora- neos esboga uma imagem ambivalente. Em uma viagem aos mares do sul em 1841, 0 capitio do navio em que Baudelaire se encontrava se preocupou com seu estado de espitito pesaroso e, citando.a natureza potencialmente mortal da nostalgia, sugeriu que o escrtitor voltasse para sta casa na Franga.*7 Erupg6es momentaneas de nostalgia como esta terao seu lugar mesmo em historias triunfalistas da modernizaco — embora 20 ostilgico, por razbes que serio destrinchadas no préximo capitu- Jo, nao tenha sido reservado um papel herdico nessas narrativas. Na prépria obra de Baudelaire hé um movimento entre as duas posigles, do lamento pela perda ao entusiasmo pela novidade. Se hd textos como a celebragio de Guys por sua modernidade, em tum poema como “Le Gygne” a voz. poética reivindica o direito & afirmando que a novidade trazida pela transformacio sociedade nfo supera sua tristeza: “Paris muda! mas nada em minha nostalgia [mélancolie] / Mudou!” Minhas lembrangas, 0 poema continua, “pesam mais que rochedos”.§ A cidade — sua suas ruas, seus bairros — pode ser transformada, mas a meméria do sujeito alega ser mais resistente que as pedras e no se desintegra com a reacomodagao material da cidade, Morta a velha Pati, o parisiense descobre-se exilado em sua prépria cidade, atormentado por recordagdes do que jé nao , sem sequer ter dei- © Searobinski, op. * Charles Baudelaite, “O cisne”, em As flores do mal, eraducio de Ivan Junqueira, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985, pp. 325-329. 36 MARCOS PASON NATAL xado seu lar. Esse autor “no & um flanew”, asseg a0 comentar outro texto de Baudelaire. Se os versos de Baudelaire dao expressio & interiotidade de tum sujeito ambiguamente nostalgico, 0 movimento da prosa de tum romance de Flaubert daré forma & produtividade discursiva da nostalgia coletiva.® No final de A educacto sentimental, os amigos de infancia Frédéric Moreau e Charles Deslauriers se re- éencontram, casio que propicia a comparagiio entre seus sonhos lo em que haviam se transformado em vidas adultas. A justapasigio é claramente desfavordvel 8 maturi dade, que em comparagio parece malsucedida ¢ malograda, 0 lugar da frustragio de paixoes pessoais e sonhos de éxito profis- sional. O que aproxima os dois amigos, portanto, neste epllogo do romance, é justamente a percepcio, compartilhada por eles, do presente como uma falta, em contraste com a plenitude do passado, mesmo que a plenitude de uma promessa. ‘Nas paginas finais do romance, a narrativa demonstra como a lembranga de um passado comum eo afeto por ele pode ser constitutivo de uma amizade, As memérias vio sendo evocadas , com perguntas de parte a parte —“Ainda te inda te lembras?”— e apoic miiruo.>! A evocagio 3 Benjamin se referia a “Perda da Awsols", em “Sobre algun se, 1989, p. 144, 5° Para Lukics, a temporalidade do romance permite “uma récordaocri- ativa, que capta e subverte o (CEA teoria do romance: Um en- aia histricefilosfico sobre as formas da grande épica, eaduio de Jost ‘Marcos Mariani de Macedo, Sio Paul 134.) Na discussio de Be sugere que aquilo que ‘odo declinio da burgues: Excolbidas I, Sio Paulo, Brasi 1 Gustave Flaubert, A educapio sentimental, wadusio de Adolfo Casais Monteito, Sio Paulo, Difusio Européia do Livro, 1959, p. 241 i | [A POLITIC DA NOSTALGIA Um estudo 6s formas do paces 37 de nomes de antigos amigos, amantes e conhecidos suscita ex- clamages de reconhecimento e suspiros saudosos, O reconhe- cimento imediato de pessoas ¢ lugares que lhes eram familiares, bem como 0 afeto compartilhado por eles, sustentard o senti- mento de cumplicidade entre os dois amigos e consteuird uma imagem comum do passado. Em diltima andlise, as duas vozes constréem uma narrativa sobre a perda ¢ 0 efeito destruidor do tempo, lembrando 0 argumento de Jean-Luc Nancy de que para'a construgio de uma narrativa histérica € menos impor- tanre a narragio de unia seqiiéncia de eventos do que a forma” lo de uma comunidade:>? - ‘A rememoragao carinhosa de Moreau e Deslauriers nfo é, note-se, exatamente de faganhas da juventude, Sua nostalgia & para ser preciso, pelo firturo que um dia existira em seu passa- do, € seu anseio é visivelmente por aquilo que eles, quando i 8, por aquele aturo que seria preenchido escrevendo romances ¢ es: losofia. E a perda de um horizonte de po: ora, a perda da comocéc'que brotara do sentimento a haviam sido arrombadas eo previ- o quese de que as portas da hi amente inimaginavel poderia, enfim, se materializar. Neste . ‘so, como em tantos outros relatos literérios ¢ histotiogréfi © olhar desconsolado se volta a0 passado quando o futuro nao cumpre aquilo que prometera. Nio é algo parecido o que narra Benjamin? O crftico rees- creve uma cena de Em busca do tempo perdido ¢ descreve como certa vex esperava na fila para comprar ingressos para uma pega de teatro a que desejava muito assistis. Anos mais tarde, ele se Jembra com nitidez da emogio e expectativa que sentira na fila, 5 Jean-Luc Nancy, “Finite History”, The Birth to Presence, uradugio de Brian Holmes, Stanford, Stanford University Press, 1993, p. 156. ° Em “A Berlin Chronicle”, Reflections, traducio de Edmund Jephcott, ‘New York, Schoken Books, 1978, pp. 6-32. 38 ‘MARCOS PASO NATAL imaginando como seria a peca; da apresentago em si, contudo, ele recordava muito pouco. A expectativa, a espera ¢ 0 son Benjamin escreve, foram uma expe mais poderosa do que a pega em si, como no caso de Moreau ¢ Deslautiers. Para Lunkics, neses casos 0 valor ¢ aribuide retrospectivamente: Em aurioso ¢ melancélico paradoxo, 0 fracasso & portan- to 0 momento do valor; 0 pensamento e a vivéncia daq que a vida recusou é a fonte da qual parece jorrara plenitude da vida. Configura-se a absoluta auséncia de toda a satisfa- fo do sentido, mas a configuracio alca-se &realizagio rica e integrada de uma verdadeira totalidade de vida 55 Esse fracasso seria o momento de verdade da obra, revelan- do a natureza iluséria porém produtiva da nostalgia. Se para Lukécs isto faz de A educagéo sentimental um exem- plo privilegiado da temporalidade da forma romanesca, a for- mula talvez descreva a experiéncia temporal e histérica de muitos membros da geracio de Flaubert, pessoas que sonha- ram com uma transformacio politica radical ¢ testemunharam © poder transformador do tempo, uma geragio que, como Michelet e de Tocqueville, recordava as promessas utépicas de 1789 ¢ sentia o presente como uma decepgao.56 Em mais de Sbid. 55 Luks, op. cit, p. 133. ' % Esta era também uma geracio em que ainda eram comuns os lagos com © campo, como é 0 caso dos personagens Moreau e Deslaurers. E certa- ificativo que 2 adolescéncia que eles recordavaim com sortsos fa também o perfodo anterior 4 mudanga a Paris. Pessoas {que vivenciavam a cidade e seu modo de vida peculiar nio estavam tio distantes,floséfica e geograficamente, do campo. Até em familias pari- siemses sem ligagées diretas com o campo, era uma pritica comum man- dar criangas recém-nascidas para uma temporada no campo com uma ama-seca. Alguns médicas mais cautelosos advertiam que a volta & cida- /APOLITICA DA NOSTALGIA: Um esto das formas do pasado uma maneira, entio, 6 tempo € o personagein do romance ¢., “lapso de tempo” ¢ “algo efetivamente existente, um continuum concreto ¢ orginico”.*” Apenas apés ele ter passado ¢ feito seu trabalho, afirmaria Lukdcs, a verdade da vida pode aparecer, Moreau sugere que nenhuma fase de suas vidas foi melhor do que a juventude que eles, nas tiltimas paginas, recordavam. Deslauriers concorda: “Foi o que tivemos de melhor!”*® O ro- mance pode, enfim, terminar. O fim da nostalgia? Na segunda metade do século XIX, europeus de virias proce- dencia jé se gabavam da etradicagao da doenga da nostalgia em seus paises. O transtorno aparecia cada vez menos na literatura médica e poucas dissertagdes ainda tentavam descrevé-lo e suge- rir um tratamento eficaz. O interesse que a enfermidade havia despertado entre médicos ¢ estudiosos durante quase dois séculos minguou e, apés um surto tardio do outro lado do Atlantico, durante a Guerra Civil norte-americana, a doenga parecia desa Parecer. Jem 1855, quando um psiquiatra alemio publicou um estudlo descrevendo as alucinagées nostdlgicas de cinco emprega- das domésticas em Berlim, 0 diagnéstico fora colocado em duivi- da pelo editor da Allgemeine Zeitschrift fir Pychiatrie, em uma resenha em que ¢ visivel também o ceticismo em relagio a outros «casos diagnosticados em palses europeus. Era cada vez mais comum se afirmar que o desenvolvimento dos meios de comunicagao e de transporte na Europa tomara a dea separagio daquilo que havia sido o primeiro lar da crianea podia causar surtos de nostalgia que se repetiriam durante a vida adulea do individuo. 2 Lukes, op. cit, 5 Flaubert, op. cit, p. 243. 40 MARCOS PION NATAL nostalgia um fendmeno do passado, Assim, muitos textos sobre © assunto publicados no final do século, principalmente na Ale- manha ¢ na Franga, sugeriam que, como os europeus estavam se tomando mais independentes ¢ auto-suficientes, seriam menos suscetiveis& fixacdo doentia a lugares ou pessoas especificos.”” A superagio da nostalgia teria sido, em outras palavras, uma con- guista da civilizagdo moderna (e ngo a ocultagéo de um proble- ‘ma nfo resolvido). Segundo Rousseau, por exemplo, os su(gos — aqueles nostélgicos paradigméticos do século XVII — torna- ram-se mais resistentes aos efeitos de sua musica natal ao deixa- rem de ser tao “simples”. Nao é surpreendente que a nostalgia entio passasse a ser vista como tipica de populagGes imper ratura médica do século XVIII a associar o transtomo a popula- Ges de regives especificas. © subdesenvolvimento social € icional manteria uma vulnerabilidade jé superada por su- jeitos modernizados ¢ amadurecidos. No final do século XIX o transtorno deixaria de ser diag- nosticado inclusive entre populagées marginais, tanto que 0 médico que falara em Chicago em 1913 jé podia lamentar 0 desaparecimento da “enfermidade psiquica interessante”. Mas exatamente de que forma a nostalgia deixara de existir? Na v dade sua vida havia chegado ao fim apenas como um caso cl nico, com a combinagao de sintomas antes associados & nostal- gia — perda de interesse pelo mundo, queda de energia, etc. —absorvida por categorias diagnésticas como a melancolia e, 5 Rosen, op. cit, p. 45. potencial da msica para ativar 2 nostalgia era do, € Rousseau havia do passado anelado. Quando o sujeito “acordava" ao final da melodia, 0 cardter inalcangével do passado era revelado, produaindo tristeza amar- ga. Cf. Jean-Jacques Rousseau, Dictionary of Music, tadusio de W. ‘Waring ¢ J. Freach, Londres, 1778, p. 267. | POLITICA DA NOSTALGIA: Um esto ds formas do pasta a mais tarde, a depressio. A palavra inventada por Johannes Hofer em 1688 continuaria a ser utilizada, mas, livre de pre- tensbes cientificistas ¢ despida agora de sua autoridade médica, cla podia migear a outras esferas e outros discursos, onde cla continuaria a servir de rétulo para formas heterogéneas de se relacionar com o passado ¢ continuaria «'condensar problemas icamente modernos. A essa altura, no entanto, a nostals gia tinha de fato se tornado outta coisa, ¢ € essa nova encarnagio da nostalgia o assunto do préximo capitulo. Carirero 2 A NOSTALGIA COMO PROBLEMA POLITICO E HISTORIOGRAFICO 'm agosto de 1996, militantes pollticos ¢ intelectuais de di- earn etrenes brett no exado mexicano de Chiapas para um encontro organizado pelo Exército Zapa- tista de Libertagdo Nacional. Dois anos apés seu inicio, o le- vantamento liderado pelos zapatistas encontrara apoio em boa parte da esquerda latino-americana, situagao talvex. apenas compardvel ao entusiasmo provocado pela Revolucéo Cubana nos anos 60. Durante uma apresentagéo no encontro em Chiapas, 0 cantor uruguaio Daniel Viglietti descreveu com comogio a saudade que um movimento atmado nos anos 90 provocava nele. © historiador Eduardo Galeano, compatriota ida e enfaticamente deixou claro seu reptidio & afirmagao do cantor; se algo era responsdvel por sua presenga em Chiapas, declarou Galeano, certamente nfo era a nostalgia. A confissio de Viglietti e a rea¢io imediata de Galeano de- monstram que a palavra “nostalgia” chegou ao final do século XX sem deixar de ser um problema. A necessidade sentida por Galeano de se distanciar dramaticamente de qualquer associa fo com 0 sentimento sugere que a palavra continua sua vida turbulenta e continua a despertar desconfianga. Este capftulo pretende demonstrar que, embora Galeano se referisse a uma entidade muito diferente da antiga doenga da meméria, apés 0 século XIX 0 termo nostalgia continuou a servir como descri- 50 de um sentimento suspeito, do qual convinha se afastar. w ne cos Pason nara O curso da histéri Com o fim da vida clinica da nostalgia, o termo passaria a ser utilizado em outros discursos, para desereves problemas de outzo tipo, ligndos especficamente& politica e aye A fungio da palavra, na verdade, passaria da des, relasio dominance com 0 passado. Com a mudanga no significado, que, como se vé, nto ¢ dg ‘odo diferente do anterior, a forga da eneigia acusadora do ‘mo viria nfo do discurso cientifico, mas de i tal como estas foram elaboradas em a € em teorias politica e psicanaltt Para esbogar os contornos desse novo significado, er necessé- ‘Marx ea alguns de seus escritos que lidam de forma ‘mais explicita com a historia — como 0 Grundrise, O 18 Brumd. rio de Luts Bonaparte, Ideologia alemd 0 Manifesto comunisia, algumas das formulagdes mais claras do lugar i na cartografia politica moderna, 3° Ekes poder ser lidos como a versio condensada de una das ver tentes dessa tradicio, a0 mesmo tempo em que foram fundamen- tais para a edificagdo de sua estrutura intelectual, O que se busca- #4, em suma, seré acompanhar a transformagio da nostalgia em lum termo empregado para denunciar 0 apego ao passado e 0 afeto por cle como politicamente condendveise empiricamente insustentiveis. Ambas acusag6es dependem de uma maneira par- ticular de se entender a relagio com o pasado: é apenas apés a ra ser vista como necessariamente emancipadora, progres- siva ¢ racionalmente compreensivel que o afeto pelo passado pode ser condenado como um obstéculo irracional. Antes de chegarmos a Marx, entio, teemos que passar brevemente por alguns textos de Kant e Hegel sobre a filosofia da histéri /APOLTICA DA NOSTALG: Un etd as oma passa 45 Em uma série de ensaios escritos entre 1783 ¢ 1798 e ocu- pados principalmente com a histéria¢ seu sentido, Kant defi- niu o Huminismo como um acréscimo de conhecimento pos- sibilitado pela coragem de recusar a tutela dos outros ¢ final- ‘mente usar livremente a razSo.! Kant reconhecia que esse novo mundo em que imperaria a razio traria perigos e dificuldades — para ee, isto ocorria sempre que se passava da servidio a li- berdade: a passagem a maioridade € “dificil e além do mais Perigosa"* —e antecipava que a inevitdvel tensio psicoldgica aque acompanharia a transgéo se manifestaria como anseio por uma época anterior mais simples e inocente.> No entanto, nao ;pago no pensamento de Kant, nos ensaios desta fase, para 1 diivida quanto a desejabilidade da transformagio moderna do mundo. Embora em um nivel individual a racionalizagio ¢ 0 progresso pudessem de fato trazer sofriment, eles se justifica- vam coletivamente gragas a sua funcao de guiar a humanidade um estdgio superior. Assim, Um homem sem divida pode, no que respeita & sua pessoa, € mesmo assim s6 por algum tempo, na parte que Ihe incumbe, adiar o esclarecimento [ nunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendéncia, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade.4 nel Kant, "Resposta & pergunta: Que & ‘Escareciment Immanuel Kant: Textos seletos lugio de Floriano de Sousa Fernandes, Petropolis, Vones, 2005, 63. erill Company, 1963, “Kans, “Resposta& pergunta: Que é“Esclarecimento?", ed. cit, p. 69. uminern 46 'ManCos PASON NADL Em tiltima andlise, 0 “anseio vazio” pela singeleza, um sen- timento abastecido inch por relatos de viajantes europeus derreteria assim que os beneficios da razio se tornassem vistveis a todos. Embora nio lhe faltassem criticos elogiientes ¢ enérgicos, a idgia da histéria como 0 movimento progressivo em diregio a uum estégio melhor se tornaria cada vez mais dominante. Quan- do Kant escreveu seus ensaios, contudo, essa forma de entender 0 desenrolar histérico era uma entre muitas filosofias da histori em circulagao. Assim, a0 descrever sua visio do curso da histria, Kant, como Hegel depois dele, sentiu a necessidade de defender avalidez do progresso © argumentar contra algumas formas fun- damentalmente diferentes de entender a estrutura narrativa da histéria, Uma delas — a idéia de que a historia seria arbitrétia, determinada pelo acaso — seria descrita por Hegel em suas pa- lestras sobre a filosofia da histéria como nada menos que “mons- truosa”, A esta arbitrariedade se opunha uma histéria estruturada pela razo, com leis que era o dever da filosofia destrinchar.® Tanto Kant quanto Hegel se opuseram ainda a outra forma de entender a hist6ria: a histéria como queda ou declinio. Para Hegel, os seres humanos inicialmente eram dominados por impulsos naturais violentos ¢ tirinicos, muitos inclusive in- al. Aos poucos, esses instintos foram domesticados pela consciéncia, um fato que a ica comprovava. A pesquisa da histéria de povos antigos revelaria ainda a falsidade da nogéo de que o conheci- mento cientifico, bem como a idéia de Deus, existira no in{cio do desenvolvimento humano. Essas suposicées, algumas das quais levariam a idéia de um desenvolvimento degener: nao haviam sido confirmadas historicamente, e nem pod 5 Kant, “Conjectural Beginning of Human History”, ed. ci. p. 67. © Georg Wilhelm Friedrich Hegel, The Philosophy of History, traducio de J. Sibtee, ions, 1956, p. 36. A POLITICA DA NOSTALGIA: Ur std das formas o pasado " sélo, pois contradiziam a verdadecira concepgio da histéria? © estudo cientifico de sociedades antigas ¢ nao-européias — nes. se trecho as duas so equivalentes — revelaria que nenhuma sociedade histérica havia retrocedido de uma época de ouro & ia. Se desenvolvidos com rigor, os estudos revelariam generalizada de lugares diferentes do presente euro- peu, finalmente rebaixando os préprios objetos de sua pesqui- sa, que prestariam “testemunhos contra si mesmos”. ., Kant estava convencido de que a evolu- ao do estudo historiogréfico demonstraria que a humanidade cestava claramente progredindo, Ele atribufa a percepgao da his- téria como uma queda de um idiflio a um estado imperfeito & dificuldade de se identificar, desde uma perspectiva limitada, as leis do desenvolvimento humano.* Essas leis ainda nao estavam de todo claras sequer para Kant; na verdade, admite ele, nada parecia constante a no ser a prépria inconstancia.’ Isto, po- rém, provava nio a falta de sentido da histéria, mas o fracasso da filosofia, incapaz de reconhecer os sinais que indicavam as leis do desenvolvimento histérico. Em todo caso, a tendéncia geral da natureza humana em direcéo 20 melhoramento podia ser detectada, acreditava Kant, cera necessério ressalté-la. A exposicao dessas tendéncias era i ‘ofo,'° e, mais do ou recente, era que qualquer outro episédio da histéria a Revolugao Francesa de 1789 a prova maior da capacidade humana de aprimoramento, uma fonte constante de esperanga para Kant. Em 1789, os instintos mais nobres da humanidade tetiam se manifestado e prevalecido, embora ainda adotassem uma forma imperfeita. Gragas & Revolucéo Francesa e a0 entu- T Thid., pp. 58-59. ® Kant, “An Old Question Raised Again: Is the Human Race Constantly Progressing”, On History, ed. cit, pp. 141-142. 48 ‘wascos Pusou naTaLs shaine popular gerado por ela, Kant se sentia capaa de enxergar além da aparente inconstincia ¢ declarar que, de fato, a huma- nidade sempre progride em direcéo a0 mel Para Hegel, essa tendéncia seria ova chamaria de “impulso de perfecti ‘um prinefpio que segundo ele jamais seria visto favoravelmente Por aqueles que professavam a atemporalidade e a estabilidade duradoura de seus regimes. A idéia de progresso também en- contrava oposigdo entre a religio tradicional, ¢a ela Hegel re- pondia que a comprovagao da mutabilidade das coisas munda- nas legara 2 religido a necessidade de escolher entre duas posi- Ges: afirmar que a religiio ocupa outra esfera, externa a este mundo, ou atribuir as mudangas giosa judaico-cristé como uma forma de sua secularizacao. A temporalidade sagrada do tempo-como-antecipacao daria lugar a uma temporalidade secularizada porém ainda ori futuro, com a fé na salvacao substicufda pela confianga na raza0 € 2 espera pela liberdade futura.!4 A melhora que se esperava que adviesse do acréscimo em conhecimento seria cumulativa, progredindo em diresao a realiaacao final da liberdade em su: forma universal ¢ o fim da alienagao. Desta maneira, a histria idade ecerna por outros objetivos, deixando intacta a estrucura narrativa dla teleologia iginal mas substicuindo a espera escatolégica pelo fim do mundo pela promessa de liberdade. 1p. 144-147, ‘The Philosophy of History, ed. cit, p. 54. 3 Ibid, p. 94 4 Como demonstrou, entre outros, Johannes Fabian, em Time and the Other: How Anthropology Makes Its Object, Nova York, Columbia Ui versity Press, 1983. /A POLITICA OA NOSTALGIA: Um etic ds ors to pasado 49 Com o giro peculiar que Marx daria 2o prinefpio de perfec- tibilidade de Hegel, o anseio pelo passado, descartado com vi- éncia por Kant, Hegel ¢ Marx, deixaria de ser sobretudo ‘ectual para se tornar um problema especi- 10 é, um obstéculo & justiga social. Para Marx, caminhava-se nao apenas em dirego a um mundo com erdade individual ¢ desenvolvimento cientifico mas, fundamentalmente, em diregio a um mundo mais justo. Esta convicgio o levaria a vociferar, em 1852, que devemos “deixar que os mortos enterrem seus mortos",? renovando o significa- do de conhecida passagem do Evangelho, em frase que por~ muito tempo assombraria varias correntes do pensamento de esquerda, A mensagem que ela carrega — que aqueles que se Preocupam com a promogio da justica-sociahnaa deviam se uma ¢s- ico, fazendo com™que-esqtierdistas bem- intencionados de Varios matizes fugissem até da aparéncia de ‘qualquer ligagdo com a nostalgia, como se viu com Eduardo Galeano em Chiapas em 1996. A prépria palavra usada em Portugués e em varias Inguas européias para se referir& esquer- ‘da — alguma variagio de “progressista” — jé enfatiza o com- promisso com o futuro, enquanto as palavras que descrevem os adversirios da esquerda — termos como “conservador” ow “re- acionério” — sugerem devogao a6 pasado.” Como muitos, 5° “O 18 Brumério de Luls Bonaparte”, © 18 Brumdrio ¢ Cartas 4 Kugelmann, eradusio de Leandro Konder ¢ Renato Guimaraes, $0 Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 20. "© A palavra “radical”, como lembrou Frangoise Melzer, é um exemplo dissonante neste conjunto. Enquanto suas origens se referem a rates (¢ Portanto 20 passado), em algumas inguas, como o inglés, ela costuma descrever atividade politica de extrema esquerda. Em algumas linguas latinas, kd se eefere a politica extrema de qualquer orientagio, 50 [MARCOS PUSON NATL dentro e fora da Europa, em algum momento aprendemos com Marx, aquilo que cra codificado como o passado era ‘mente 0 que precisava ser superado, tornando suspe quer afeto por ele. com a apcesentacio feita pelos editores de um da revista History Workshop nos anos 1980 dedicado precisa- ‘mente & nostalgia, onde so mencionados, como exemplos de situagées capazes de gerar nostalgia, a queda de um impétio ou a perda de status de uma classe privilegiada."® Em casos como este, a propria dificuldade em imaginar que a vida de classes 1” Nio fatam, € claro, exemplos histéricos em que a nostalgia foi de fato ida por agendas sinistras, como a nostalgia imperial dos antigos poderes coloniais, os fascismos europeus dos anos 30 ¢ 40 ¢ 0 onservadorismo contemporineo nos Estados Essas encarna- 8es da nostalgia, e outras similares a elas, jé foram discutidas ampla- ‘mente ¢ formam a base davis -omum da relagio entie a nostal- gia €a politica. A questo Jevantada aqui é se esta a uniea forma ado- tada pelo apego x0 passado. 8 Malcolm Chase e Christopher Shaw, “The dimensions of nostl The Imagined Past: History and Nostalgia, Manchester, Manchester University Press, 1989, p. 15. Segundo o relato dos préprior autores, isto levou & hostilidade automitica que sentiam pela nostalgia organizavam um congresso sobre o tema em Leeds, na Ingl: 1985: “De todos os modos em que a histéria € utlizada, a nostalgia & 0 ‘mais geral, o que parece mais inocente,e tlvez o mais petigoso”, Chase advertiu o congresso. Em retrospecto, os autores ad ‘compreensio da nostalgia era combativa, ‘ar um fen6meno cultural que nos falava do py sificagdo do passado”. Esse impuls ‘quando eles estudatam diferentes m [A POLITICA DA NOSTALGIA: Um estado ds formas do passado subalternas também possa piorar com a transformacio de w\ mundo j€ ui sinal do dominio da ideologia do progreso. Para Marx, por exemplo, no € apenas a nostalgia pesarosa da atistocracia, com seus ébvios interesses, que deve ser combati- da, mas tainbém a de qualquer setor da sociedade que rejeite 0 desenvolvimento. ‘As classes médias inferiores, os pequenos industriais, os pequenos fabricantes, os artesios, os camponeses, todos Jutam contra a burguesia, para garantir sua existéncia como parte da classe média. Portanto, nio sio revoluciond- as, mas conservadoras e, mais ainda reaciondrias, pois procuram fazer retroceder a roda da Histé ‘A forma em que Marx compreendia 0 desenvolvimento his- t6rico permitiu que ele transformasse 0 conflito entre, por um + lado, camponeses, artes ea pequena classe média e, por outro, a burguesia, em uma disputa entre o passado ¢ 0 presente. Em- bora a metéfora que conclui & trecho citado se refira a0 desejo de “fazer retroceder a toda da Histéria’, note-se que a frase anterior descrevia como os elementos “teaciondrios” da sociedade defen- diam nao 0 passado, mas sua propria existéncia, o que é, por definigéo, parte do presente. A forma de vida de pequenos fabri- cantes e comerciantes, da classe média-baixa, de artesios e cam- Poneses, precisava primeiro ser projetada ao passado; transforma- da em algo arcaico, isto é, em algo que no presente existitia ape- podia entio ser contrastada com uma bur- via sido projetada ao futuro, O chamado de Marx contra 0 apego ao passado certamente detiva da convicgao de que ele contraria o movimento da his- Aria ¢ subverte suas leis, mas a autoridade politica da convoca- Marx e Friedrich Engels, Manifesto comunista, io Paulo, Nova 1990, p. 153. 82 ‘Mancos Paso NATAL ‘ria vém sobretudo da sugestao de que aqueles que se pren- dem ao arcaico desejam um mundo menos justo, Peso prometidas com © passado — ou melhor, embora exista no presente, que, E epresentado como pertencente 20 : antes de qualquer coisa, de natureza politica, baseada em sua preocupagio com a justiga social, € € 0 impulso fundamental desta critica 0 que receberd formas diversas no pensamento critico moderno. ‘Vejamos como exemplo a seguinte pergunta formulada por David Harvey em Justice, Nasure and she Geography of Difference: As identidades politicas e sociais forjadas sob uma or- dem industrial opressiva de um determinado tipo, existin- do em um determinado lugar, podem sobreviver ao colap- 50 ou A transformacao radical dessa ordem?2! A “tesposta imediata” de Harvey € que a sobrevivéncia nio & possivel, Particularmente revelador para a presente discussio é a analogia feita em seguida: movimentos operitios que buscam perpetuar suas identidades sociais sio como “mulheres que ad- Quiriram seu sentido de si mesmas em situagdes de violéncia ‘masculina” e “voltam uma e outra vez a viver com homens Jentos”. E gragas & estrurura narrativa que permite um racic rio como o de Harvey que o critico mais profundo do capitalis- ‘mo que temos pode dar o passo surpreendente de celebrar 0 * CE. Katl Marx, “The German Ideology”, ei Robert C. Tucker (ed.), The Marx: Engels Reader, Nova York, W. W. Norton & Company, 1978, pp. 151-155. 7! David Harvey, Justice, Nasure and the Geography of Difference, Malden, Blackwell Publishers, 1996, p. 40. 2 ‘A POLITICA DA NOSTALGIA: Um xu das ms passed 53 triunfo do capital, Leitores incautos que se aproximam de Marx esperando encontrar um critico raivoso do capitalismo e da bur- guesia podem se surpreender a0 encontrar um pensador que fes- tejaa vit6ria da burguesia de forma inequivoca; com el, forgas produtivas foram liberadas, a rap0 derrotou a superstigio, a na- tureza foi dominada pelo homem — e tudo foi possibilitado pla expansio da ideologia burguesa. No caminho, a burguesia havia arrancado “contingentes consideriveis da populagio do embrutecimento da vida rural" e retrado 0 véu que evitava que a cxploracio fosse vista como ela realmente é. A natureza espeta- cular da transformago do mundo pela burguesia é explicitada, ‘mais uma veo, em um trecho do Manifesto comunista: Com 0 répido aprimoramento de todos os meios de produgio, com as imensas facilidades dos meios de comu- nicagio, a burguesia arrasta todas as nagées, mesmo as mais bérbaras, para a civilizagao. Os baixos pregos de suas mercadorias formam a artilharia pesada com que destréi todas as muralhas da China, com que obriga & capirulagao, 05 barbaros mais hostis aos estrangeiros. Forca todas as nagies, sob pena de extingio, a adorarem 0 modo burgués de produgio; forga-as a adotarem o que ela chama de civi- \G40, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo a sua imagem.” Segundo Marx, eno, éa morte a alternativa oferecida pelo ca- caso alguma comunidade ou individuo nao queira com- partilhar deste novo mundo: “Sob pena de extinga0”, toda socie- dade é chamada a se moldar segundo a imagem da burguesia. De acordo com esta leitura, o processo, embora violento — € para Marx nao hé diivida de que o seja—, é inevidvel. Mas 3 Marx e Engels, Man 2 Ibid, p. 148. comunista, ed. ci., p. 148, 54 MARCOS PIASON NATAL é também necessirio e desejdvel, no que Marx nio diverge das ‘dcologias liberais dos séculos XVIII e XIX25 Pensadores libe- rais também condenavam, sentimento nostilgico. A esquerda nao tem, portanto, mono. Pélio do compromisso com o futuro, A diferenca, no entanto, € que a visio liberal compartilhava a crenca de Kant em um melhoramento constante, mas se afsstava do principio de per fectibilidade de ‘Hegel tal como foi reform lado por Marx. O liberalismo defendia um ‘tescimento econdmico € social cons- tante sem a perspectiva de uma transformagio radical no hori. Zonte histérico. A ideologia liberal do progresso e do desenvol- viento social se torna uma forma de justificar a propria exis- téncia do capitalismo, chegando em algumas formulagées a declarar que seu methoramento constante representa o tltimo estdgio de desenvolvimento histérico. A diferensa entre Marx ¢ 0s apéstolos do capitalismo ¢ que para ele a ascensio da burguesia ¢ 0 capitalismo sio vistos com bons olhos, primeito, porque o capitalismo substitui formas inais opressivas de organizar a sociedade e representava um passo além das formagbes histéricas anteriores. Além disto, no entanto, a expansio do capitalismo permite o surgimento do prolet do, assim assentando as condigées para sua propria ruina, con- forme a conhecida formulacio: “O que a burguesia produz cipalmente so seus préprios coveiros. Sua queda e a vitéria do proletariado so igualmente inevitéveis’ > A sicuagao criada pela burguesia se tornaria insustentével, com as contradigées internas do sistema levando & derrocada do sistema econdmico e, final- ‘mente, & sua substicuigéo por um modo de produgio que intro- duzitia o fim da exploracio do ser humano por outros seres hu- ® Como demonstrado por Christopher Lasch em The True and Onl) Heaven: Progress and Its Critcr, New York, W. W. Notton 8 Co 1991. 2 Marx ¢ Engels, Manifeso comunista ed. ci [APOLITICA DA NOSTALGIA: Um esteo das formas do passado manos. A devogao de Marx ao futuro repousa portanto na viogio de que cle traré a emancipagio da clase trabalhadorac, por extensio, de toda a humanidade, O capitalism, inaugurado economicamente pela Revolugio Industral inglesae p mente pela Revolugdo Frances, seiao tiltimo modo de produ- Gio baseado no antagonismo, o tiltimo sistema social determina- do pela luta de classes, a ultima organizagio baseada na explora- Go de grupos inteiros de pessoas ¢, em suma, a tlkima forma de servidio. Como uma pele, ela serd abandonada” ‘Apés 0 aniincio do triunfo do modo de produgao burgués — pelo inenos nas economias avangadas; o resto do mundo seguiia a seu tempo — e apés o comiunismo ter sido ungido como seu sucessor, todas as outras formas sociais podiam ser representadas como parte de um passado injusto: 05 modos de produgio , Feudal e burgués moderno podem ser qualificados como épocas progressivas da formacio econdmica da sociedade. As relagbes de pro- dugio burguesas sio a tiltima forma contraditéria do pro- ‘cesso de produgio social... No entanto, as forcas produti- vvas que se desenvolvem no seio da sociedade burguesa ctiam ao mesmo tempo as condigSes materiais para resol- ver esta contradicao.8 Em linhas que parecem ecoar as palavras de Kant sobre a inevitabilidade de um periodo de transicio carregado de tensio nna passagem da servidao & liberdade, Marx escreveria que: Nés dizemos aos trabalhadores e & pequena burguesia: E melhor sofrer na sociedade burguesa moderna, que com F Marx, “Grundrisse”, em The Marsx-Engels Reader, ed. city p. 291 2% Marx, Contribuigéo a erttica da economia politica, tradugao de Maria Helena Barreiro Alves, Sio Paulo, Martins fontes, 2003, p. 6. 586 [MARCOS PIASON MATALL sua indiistria cria os meios materiais para a fundacio de Juma nova sociedade que os libertaré, do que retroceder a ‘uma forma anterior de sociedade que, com 0 pretexto de salvar suas classes, langa a nagio inteira de volta & barbie wal 29 Embora essa linha do raciocinio de Marx possa ser tragada em virias de suas obras, é O 18 Brumdrio de Luts Bonaparte 0 texto em que Marx € mais veemente — e, alvez, mais lirico — sobre a necessidade de abandonar © passado em nome da justi- $a A verdadeira revolugio sé serd possivel, Marx insiste, se a ,imaginagio se concentrar no futuro: A tevolusio social do século dezenove nao pod: sua poesia do passado, ¢ sim do futuro, Nao pod sua tarefa enquanto nio se despojar de toda venerago su- » persticiosa do passado.3° ZS 0 contrast, aqui, & entre a revolugio por vir € os eventos na * Franga entre 1848 e 1851. Nestes, a tentativa de extrair poesia do passado — de 1789 — resultara em um fracasso farsesco. Note-se que na formulagio de Marx o elemento que deve ser posto de lado na relacdo com o passado é a “supersticéo”, e é neste ‘momento que aparecerd o apelo para que os vivos nao se ocupem dos mortos. Uma leitura atenta do Dezoito Brumdrio, no entar- to, revela que o peso maior da ctftica de Marx é mais uma vez di- rigido nao Aquilo que jé passou — isto deve, afinal, ser deixado Para os mortos — mas aquilo que persiste no presente. A preo- cupagio de Marx é Gom aqueles que se aferram obstinadamente a formas de ser que ele enxerga como parte do passado, como os % “Montesquieu LVI", Neue Rheinische Zeitung, 202, 21 de janeiro de 1849, tradugdo do Instituto Marx-Engels. » Marx, “O 18 Brumdrio de Luis Bonaparte’, ed. [APOLIICA DA NOSTALGIA: Un sudo das ora do pssado 57 camponeses que tentam salvar sua existéncia da extingéo. Des- ‘erever a forma de sua vida social no presente como “paralisada” € denomind-la “restos inconquistados” & uma maneira de situd-los A margem do presente.?! Aqueles que habitam esses espagos marginais esto “vivos como se estivessem mortos”, para uti a frase com que o escritor cubano José Lezama Lima se descre- ia? Eles sio, na expressio do historiador Dipesh Chakrabarty, ‘mortos-vivos entre nds") aqueles que aguardam “que a morte dé uma forima’fisica a0 ‘fato’ de sua obsolescéncia” 3? Em seu romance autobiogréfico de 1992, o escritor indiano Amitav Ghosh descreveu 0 que ele via como a conseqiiéncia, para um grupo de aldedes egipcios no final do século XX, da internalizagio de uma versio dessa ideologia: Tive entio uma nogio da verdadeira e desesperada gra- vidade de seu embate com 0 modernismo, porque eu per- cebi que os fellaheen enxergavam as circunstincias materiais de suas vidas exatamente da mesma forma em que o faria um economista académico: como uma situacio vergonho- samente anacrénica, uma deformagio no tempo; eu enten- di que suas relagdes com os objetos de suas vidas cotidianas nao estavam livres do conhecimento de que existiam ou- tos lugares, outros paises que nio tinham casas com pare- des de barro arados puxados por gado, tanto que aqueles ‘objetos, aquelas casas ¢ aqueles arados, eram coisas sem substincia, fantasmas deslocados no tempo, aguardando 0 exorcismo € 0 sepultamento definitivo. 5 Marx, “Grundrisse”, ed. cit., p. 241. % Segundo Cintio Vitier, em "Nueva lectura de Lezama", Critica cubana, Havana, Editorial Letras Cubana: ® Dipesh Chakrabarty, “Marx after Marxism: History, Subalternity and Difference”, em Saree Makdisi, Cesare Cesarino e Rebecca E. Karl (cds.), Marxism beyond Marxism, Nova York, Routledge, 1996, p. 64 * Amitav Ghosh, Jn an Antique Land, Nova York, Vintage Books, 1992, pp. 200-201 og [MARCOS PIASON NATALL . edie ce Cotidiano so fantasmas, seus donos, os~ Fos so os mortos-vivos de Chakrabarty. O dra. ma ae Fae cath idenciado quando se constata que, tan- he : = fe Skee nna de Chakrabarty, o que thes fora anancnds, Soa consumo de uma morte que 5 » esperar a morte real apés a morte si bélica. Para Marx, esses elementos abstinades dentro da mo- dernidadé;apreseniados wins Temmianéscentes fantasmagéricos do pasado, sao 0 peso que impede o avango da socic sim, se 0 enterro dos mortos deve ser ignorado, é ante do enterro dos mortos-vivos, xtesseresainda-nio mores de fato, que Marx parece nos chamar a desempenhar. Que esses enterros figurados e reais fossem vistos como ine- vitiveis Iembra aquilo que 0 historiador Michel Rolph- Trouillor, seguindo formulacio de Frangois Furet, denomina s “segunda ilusio de verdade” — isto é, a idéia de que “o que aconteceu & 0 que devia ter acontecido”.?> Kant, Hegel e Marx de diferentes formas buscavam convencer seus leitores justa- mente da inevitabilidade de suas narrativas histéricas. Além disso, o que acontecera — ou, ¢ isto é crucial, estava aconte, cendo — era, além de inevieivel, desejével. Desta forma, qual- quer potencial critico contido em um sentimento como a nos- talgia se torna imediatamente suspeito, e é possivel ver a bur- guesia eo desenvolvimento celebrados tanto por idedlogos ca- Pitalistas como por seus criticos mais contundentes. Essa situa- ‘ao produziria aliangas curiosas, com pensadores diferentes em muitos aspectos aproximando-se em suas apreciagées da evolu- go econémica ¢ social. O critico marxista E. J. Hobsbawn, por exemplo, em discussio sobre ideologias do século XIX, primeiro concorda que, de fato, “a histéria humana cra um avango ao invés de um retrocesso ou um movimento oscilante * Michel Rolph-Tiouillot, Silencing the Past: Power and the Production of History, Boston, Beacon Press, 1995, p. 107. APOLITCADA NOSTALGIA Um et as oma do paseo 3 ao-redor-de certo-nfvel”,3 para depois oferecer sua contribui- 40 & critica 4 nostal Comparadas com estas relativamente coerentes ideolo- gias do progresso, as de resisténcia 20 progresso mal mere- ccem o nome de sistemas de pensamento. Eram antes atitu- des carentes de um método intelectual comum e que con- fiavam na precisio de sua compreensio das fraquezas da sociedade burguesa ¢ na inabalavel conviccio de que havia algo mais na vida do que o liberalismo supunha. Conse- qiientemente, exigem pouca atengio.37 Embora compartilhe com aqueles que resistem ao pro- Bresso 0 desconforto em relacao ao capitalismo, Hobsbawn enxerga na “atitude” daqueles que criticam o desenvolvimento uma intuicao que pode de fato chegar a ser “aguda” mas é em tiktima andlise mal orientada. A nostalgia, como a religigo para Marx, é um sintoma de um mal-estar real, produzido por uma ‘Sociedade injusta e contraditérias como tal, o sintoma deiapa- recerd assim que a causa fundamental da insatisfacao for elimi- nada. Para Hobsbawn, como para tantos outros, é inclusive “dificil imaginar que o racioc{nio légico nao leve uma pessoa razodvel a abracar 0s beneficios do desenvolvimento e abando- nat 0 apego ao arcaico. A rejeigio dessa légica ¢ freqiientemente vista com incredu- lidade, como quando o préprio Hobsbawn se pergunta com assombro como wma jovem empregada doméstica pide desejar deixar a Inglaterra e seus “excelentes patrdes” para voltar& ser- % Bric J. Hobsbawm, A Ena das revolugéer: Europa 1789-1848, tradugio dde Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel, Rio de Janeiro, Edi- tora Paz ¢ Terra, 2002, p. 326. » Thid. p. 340. Seria possvel ver esse cardter fragmentitio da resistencia 40 progresso ¢ sua fata de sistematizago como um sinal do dominio da ideologia do progresso. § 4 MaRcos Pson AL! ia® Uma pergunta s im Petgunta semelhante, abordando cir Eist6ricas muito distantes, também serérespondida Fe Cae nao he tomance Cambio de pil do esctvor mexica ee eiehtes: “Ou entzo alguém realmente acredita que teria sido melhor derrorar os espanhdis e continuar submetd a0 fascismo dos astecas?"3? Com um sorriso com cece, : Pergunta rerérica nos assegura que, na verdade, ninguém since. ss Pref avi lade pré-colonial mexican: jestrufda pelos espanhéis, esvaziando : citia do lamenta pla conquna, Eu anibor ee cata ees cunstancias hist com o ‘a. Em ambos os casos, a esco- 7 af pe comm ‘opgio entre um passado injusto — o . — eum presente superior — a colé- nia espanhola, a Inglaterra. (E também um gesto comut asso- ciar qualquer critica 20 progresso ao fascismo, como o faz Fuentes, anacronicamente.) Em estruturas nat sas, 0 martismo € 0 pensamento crltico fre pondem & pergunta “Por que alguém desejatia vol do 2 nogées como falsa consciéncia alienacio, em tincia retirand. am na crenga de que a historia € 0 movimento em diego a um estado melhor, através de um avango gradual e constante ou de eventuais transformagées profundas. Contudo, a conde- nagao da nostalgia como uma espécie de teoria politica nefasta também se apéia em outra convicgio, que, como a anterior, pode ser glosada através da leitura de alguns textos de Mars. O 3° Hobsbawm, op. cit. p. 196. » Carlos Fuentes, Cambio de piel, Barcelona, Seix Barral, 1991, p. 472. [POLITICA DA NOSTALGIA Um estuco das toms pasado 6 10 mais famoso da posi¢ao aparece na abertura a O 18 Brumdrio de Luis Bonaparte, onde Marx emenda a conhecida afirmacéo de Hegel de que eventos histéricos ocorrem duas vveves, acrescentando que eles acontecem primeiro como tragé- dia e depois como farsa. Marx se refere especificamente & crenga, na Franga do sécu na possibilidade da repetigio, da revolugio de 1789. Os acontecimentos entre 1848 ¢ 1851 sio utilizados para formular uma concepgio materialista da cvitabilidade do progresso ¢, como fidade da repeticio auténtica do pas-_ do sujeito nostilgico. O que os franceses tiveram em 1851 foi portants apenas um simulacro da revolugio de 1789 e uma caricatura do verdadeiro Napo- leo, ambos nascidos do desejo mal orientado ¢ impossivel de reviver’o pasado." Que Marx para ilustrar a impossibilidade da repetigao nao poderia ser mais adequado, j& que muitos observadores situam 0 surgimento da jdéia de uma ruptura com o passado, apés a qual ele ¢ o presente seriam incomensurdveis, no choque que foi a Revolucio.*? Para ‘Marx, essa transformagio devia ser celebrada, ¢ ¢ inclusive posst- vel sentir, lendo O 18 Brumério, que, nao obstante o pesar sen- tido pelo fracasso de 1848, Marx na verdade o enxergava como tum remédio amargo porém necessirio, uma maneira de forgar a Franga a superar ilusio de que a repericio seria possivel. Assim, depois de 1848 o passado sera visto como definitivamente mor- to e exorcizado ¢ a sujeigao de seus fantasmas permitiria a con- centragio exclusiva no futuro € suas possibilidades. No entanto, 0 apego afetivo ¢ esperangoso ao pasado so- breviveria aos apelos de Marx e chegaria ao século seguinte, histéria que ressalta conseqiiéncia, a impo: W Marx, “O 18 Brumério de Luls Bonaparte’, edit p. 17 * Wbid., pp- 17-19. CE Hobsbawm, A Era das revoluger, ed * oppbjeto de afeto ndo existe mais e que nenhum esforco o fard 8 suc Puson war fanto que em.uma data téo tardia quanto 1915 ainda se julga- ria necessdrio formular uma nova versio da antiga critica & nostalgia. Nesse ano Freud publica seu “Luto ¢ melancol tum texto que pode ser lido a luz das disputas anteriores sobre as maneiras de se relacionar com o passado. Como no século XVII, aqui tima Versio da‘nostalgla continua a definir a anor- smalidade: para Freud, enquanto 0 luto é a teacao saudavel & perda, a melancolia é a resposta patolégica. No primieirorapés uma série de “testes de realidade", &'sujéito enlutado aceita que Roltar. O trabalho de luto freudiano “compele 0 ego a di * do objeto, declarando-o morto e oferecendo a0 ego o incentivo de continuar a viver”. O desejo de viver lentamente forga 0 sujeito a se desprender do antigo objeto de afeto e adq novo. Esse “trabalho”, & Fesposta sadia a perda, é 0 oposto do impulso.tegressivo da melancolia, com sua incapacidade doen- tia de progredir® Que o primeiro passo consista em reconhecer que o objeto — 2 Revolugio de 1789, por exemplo — nio pode ser ressus- citado revela a devosio a uma forma particular de se entender a morte. A crenga de que 0s mortos nio sio acessiveis 20s vivos é necesséria para a existéncia da nostalgia como categoria diagnéstica e como critica politica; é ela que permite que se exija 0 desapego em nome da realidade. (Sem essa crenga, como se verd adiante, tanto o diagnéstico quanto a critica po- dem ser inadequados.) O apego se torna um estorvo por causa da idéia de um passado irreparavelmente perdido, 0 i te que se transforme a nostalgia em um desejo irreal ha repetigao do passado, para Freud como para Marx, mente porque os mortos — Danton, Robespierre, nossos seres justa- queridos — nao voltam. © Sigmund Freud, “Luto e melancoli, em Obras pscoldgicas compleas de Sigmund Freud, vol. XIV, Rio de Janeiro, Imago Editora, p. 290. | i AroLnon DA HSTLGA tm stds ome do so 3 Com seus testes de realidade, portanto, Freud apresenta a \ questo iniialmente como um problema emplrico; 0 real, se aiservado sem distorgGes, parece ser em si suficiente para em- purraro sujito em ditecao& conclusio adequada. Enguanto as criticas pol A nostalgia esbogadas acima dependem de uma particular da estrucura naceativa da histéria, esta nova acia censura a nostalgia invocando a nogo'moderna de neste caso ¢ crticada porsua imprecisio ¢ “Se a nocao da nostalgia como politica-~ ca esté baseada em tuma.sétie de oposigées — con- servadorismo e progressismo, servidio ¢ liberdade, reagio € progresso —, esta critica depende das dicotomias fato ¢ ficgio, 70 ¢ subjetivo. racionalidade e irracionalidade, ob O campo e a cidade, livro de Raymond Williams de 1973, fagao. O estudo abor- pode ser lido como um exemplo dess aos 100 anos apés 1750 na Inglaterra, perfodo em que 08 donos de terra se apropriaram de grande parte da zona rural, langando ondas de camponeses a0s novos centros urbanos. Ao analisar as respostas literdrias a esse desenvolvimento por auto- res como Wordsworth e Blake, Williams na verdade escreve uma espécie de hist6ria social e literéria da nostalgia. Seu obje- tivo no livro, segundo sua prépria definigao, é expor as “verda- ras relagées sociais” do perfodo anelado nas representagbes literérias, revelando que o pasado real havia sido ocultado pe- las cenas idealizadas da Iftica pastoral. E quando um sistema social anterior € analisado com as ferramentas da ciéncia social, ao invés da pouco confidvel imaginagio literdria, 0 que se en- contra? Mais uma vez € possivel hd uma resposta clara em Marx, neste caso em um de scus artigos sobie a [ndia. Embora 4 Raymond Williams, O campo ¢ a cidade: Na histéria e na literatura, tradugio de Paulo Henriques Britto, Sao Paulo, Companhia das Le- tras, 2000.

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