You are on page 1of 8
8, «Eu tenho um feeling!»: Diana, seguindo as pegadas de Antigona Sofa Morgues dest nivrsidadedo Ports Faculdade de Plcologa ede CidncasdaEducagso CE Corte ds Invostigagioa de IntervengioEdvestivas 1. Introdugao Este texto € produzido a partir de um estudo etnogréfico (2005-2008) rea- Jizado numa Casa da Juventude localizada na periferia do Porto. A situa- io social da maioria da populagio residente na freguesia onde se localiza a Casa da Javentude 4é conta de uma relagéo prolongada com processos de injustiga social e que so decorrentes dos efeitos de uma acentuagao da pobreza e de fragilidade da coesio social. As redes de fragilidade em que esta populasio, e principalmente owas jovens, esti envolvida, cria obstéculos 2 que se rclacionem com estrururas e dindmicas de capital social que thes ppermita sair do ciclo vicioso de desproteccio (MacDonald et al., 2005). Os ‘sujeitos no esto contudo alheados desse seu lugar e pode mesmo dizer-se que existe experiéncia forte de um certo sofrimento social ¢ ontolégico. AA precatiedade que marca estas sealidades torna-se compreensivel na peti- feria de cumplcidades consttutivas da estrutura da exclusio. Os caminhos para a exclusdo poderio see vsiveis nos fenémenos de desemprego, na explo- ragio salarial, na discriminagéo, no abandono escolar, na baixa escolaridade « qualficagéo ou na pobreza material (Bal et a, 2000). ‘OslAs jovens que frequentam a Casa da Juventude conhecem realidades em tetmos de trabalho bastante precérias. As geragOes anteriores, prini- palmente as mies, stm conhecido processos de desemprego ou conhecem situagGes de emprego semelhantes as doslasjovens. O «trabalho pobre», no sentido atribufdo por Brown e Scase (1991), io realidades préximas ¢ é em tomo dessa precariedade que a maior parte dos/as jovens deste com texto organiza as suas expectativas em relacio aos seus percursos educativos possircis ow a um mercado de trabalho de segunda. Este tem-se organizado nas dltimas décadas em plataformas insecurizantes precérias, onde é quase impossivel aos/is jovens desenvolver culturas de projecto assente empregos ‘minimamente estéveis. 0 facto de trabalharem por curtos perfodos de tempo (por vezes apenas tum més) e de néo terem qualquer tipo de integragao em © Poor works 158 processos de seguranga social (decorrente dessa precariedade) impede jovens ¢€ adultosles de se equacionarem, e de equacionarem os seus percursos, a longo prazo, gerando ciclos de inseguranga. Para estes/as jovens 0 «poor work» é uma coisa que desejam, colocando-os ainda mais 4 mezc® de empre- gadores e de logicas de mercado pouco justas. Furlong e Cartmel (1997), no que diz respeito as populagSes da infancia e juvenis, acentuatn o facto do esquema de distribuicio das oportunidades continvar numa légica acentuadamente de reprodusio. Dizem os autores ‘que, «0s modelos de reprodugao sosial continuam de um modo geral intac- tos, enquanto para outros se podém identficar novas vulnerabilidades que podem, em hima andlise, condusie & marginalizago» (1997: 3). Apesar da precariedade se ter alargado a varios sectores e lugares da socie- dade, este tipo de vida, marcado pela inseguranga e pela exclusio, vai-se ainda encontrar concentrado geograficamente,visbilizando um conjunto de pessoas que conhecem o desemprego a longo prazo e que, para além de setem excluidas do mercado de trabalho, também sio excluidas da partcipagzo na sociedade em geral. Deste modo, a preceriedade «inscreve-se num modo de dominagio de tipo novo, baseado na instimuigio de um estado generalizado e permanente de inseguranga (que leva) 4 aceitagio da exploragdo» (Bourdicw, 1998a: 118). A partir de um caso particular ~a itinerncia de Diana ~ este texto procura acentuar diversas aparigbes da relacéo dos individuos com a pobreza. Esta ‘toma-se visivel¢ experimentada nos processos de exclusdo de circuitose dif- culdade em eriar clos; nos percursosinsuportAveis resultado das teases entre © mundo da escola e da familias nas experincias continuas de fracasso; nas situagéesclimite de continuo desgaste geradoras de medo; na continuidade ‘existente entre 6 sofrimento na escola eo sofrimento no mundo do trabalho 2. As itinerancias juvenis As itintincias comprcendem os percursos que jovens rapazes e raparigas Procaram realizar sobre um conjunto de constrangimentos estruturais que vivem, Este caminho em construcio é particularmente marcedo por irregu- laridades e imprevisbilidades, tornando fragil a ideia mais tradicional de transigdo para vida adulta,jé que muitas vezes as itinerincias desaguara em realidades mais precirias As itinerdncias dio conta das transigbes possveis, reconhecendo-se que os percurtos em zigue-zague sao testermunko da impossibilidade de seguir os tra- jectos mais padronizados (Bal, McGuire 8 MeCrae, 2000). Assim, apesar 1 da tendéncia para socialmente se regularem as transigdesjuvenis, econhece- -se uma diversidade de opgGes e de percursos biogréficos 0 que demonstra 8 de-standardizagao das transigdes ea pluralidade de estlos de vida (Walther, 2006). No entanto, se existe uma nio linearidade, ¢ sendo percursos mar- ceados por alguma reversbilidade, esta ocorre no interior de uma condigéo Iabirintica. Assim, diferentes ldgica, ritmos, sequéncias esto presentes nas transigdes & saida da escola, organizando-as os/as jovens em justaposigoes possiveis: na mesma biografia podem coexistir dependéncia com autonomia, ‘como 0 caso de Diana demonstraré. As itierdncias so marcadas pela sinu- osidade dos labirintos, levando os/asjovens a perderem-se para o bem e para ‘o mal. Para Machado Pais 0 «dilema do labirinto traduz-se na incapacidade de decisio relativamente ao rumo a tomar» (Pais, 2001: 10). Dé-se, ent relevncia & forma como 0 proprio sujeito pensa sobre as opgbes que est a ‘omar na altura em que fala. ‘través das suas itinerncias mostram-se a irregularidade das trajectorias e a precatiedade de uma grande parte delas. As itinerdcias juvenis procuram ajudar a compreender 0 modo como se vivem ao nivel individual as vérias vulnerabilidades. Foi possivel encontrarem-se diversos percursos ideais-tipicos protagonizados pelosfas jovens: 0s percursos errantes, encurralados, em suspensio, & bolina « para a autonomia. Oslas jovens errantes costumam estar varios meses, 02 ‘mesmo anos, sem oeupagio, apds terem vivido hist6rias de insucesso e/ou ‘abandono escolar. Ox/AS exrantes podem encontrarse durante tardesa fio no ‘Bar da Casa da Juventude a jogar Pay Station, na Internet ou sentadosfas nas mesas do fundo do Bar, a conversar, ou em silénco, a espera que cheguem parceiros de jogo ou um curso profissional. As jovens encurraladas so pre- dominantemente raparigas que t@m em comum o peso de responsabilidades familiares que as obriga a fazer cortes com mundos juvenis ou mundos esco- lares. Saem da escola precocemente ¢ com poucas habilitagbes. Conhecem empregos precirios ¢ inseguros ¢ sio recrutadas pelas familias para acti dades relacionadas com o cuidar. Viver as perdas de mundos juvenis com sofrimento e parecem esperar 0 inesperado. Um percurso em suspensio existe {quando os/asjovens abandonam a escola ou trabalho durante alguns meses, regressando posteriormente a um desses mundos. Ov/as jovens em caminhos, para a auconomia sio mais raros/es ¢ tém, de um modo geral, um grau de independéncia mais elevado do que os/as outros/as jovens. Mantém uma rela ‘go prdxima com a escola, porque eles/as ou as familias Ihe reconhecem um valor proprio. As suas ligagGes & Casa da Juventude prendem-se, sobretudo ‘com os projectos ¢ os lagos de amizade que slo fortes, Na sua itierdncia, 155 ‘Ao conseguindo conciliar as suas vidas enquanto estadantes ¢ as suas vidas juvenis, procurando tirar partido de umas nas outras. Os jovens & bolina trabalham e pertencem ao grupo dos mais antigos frequentadozes da Casa da Juventude. Sao todos ainigos, com historias antigas e andam em grupo na noite, no trabalho ena Casa da Juventude. [As biografias juvenis so marcadas por consecutivas escolhas aparentes que reflectem quer constrangimentos & sua cacgao aut6noma» (Fonseca & Aratijo, 2007: 66), quer a sua posigéo enquanto sujeitos que fazem algumas «scolhas, recoahecendo passos ¢ popsibilidades. Algumas das suas opcSes tém sido, contudo, formas de fecltir oportunidades e de tornar mais dif escapar ao circuito da exclusio. Como refere Zigmunt Bauman, & «neces- sidade de escolher nfo é acompanhada de uma reccita infaivel para a boa cescolha» (Bauman, 2007: 14), AA possibilidade da escolha que, em termos de discurso retérico, assume formas sedutoras favorece, em contextos socialmente mais desprotegidos, trajectrias de risco ¢ de exclusio, ¢ toma oslas jovens oslas principais res- ponsdveis pelas suas opgées ¢ suas consequéncias, Pode mesmo dizerse que ese a cscolha € inevitével, a responsabilidade € incontornével» (Bauman, 2007: 18). Deste modo, as mesmas circunstancias de crise e de tomada de decisio tem um impacto distinto de acordo com as posigées sécio-culturas Ulrich Beck (2005) jé havia, igualmente, reconhecido que o risco néo esté 26 de Maio de 2006 Pergunto a Diana se vai ao intercémbio, Dia que sim, Pergunto-Ihe como vai fazer como tabalho: Diana ~ «O meu contcato esti a acaba.) Ba vou falar com a pateoa, Depois, no gosto muito do que faco. Nao érepetitvo, porque nio fago sempre a mesma coisa, mas cans muito. Hoje, sa de d.tenho que limpar as méquinas, sou eu {que também fa50 isso aquilo acumula cotko ¢ ssi de a cansada Sofia ~ «Mas no € melhor arranjares primeizo um trabalho © depois ires emborad= Diana ~ «ff mas eu vou para um curso de cabelerera, Primeito tinhaescolhido servic is mesas, mas meti essa opcio em segundo kugaz>. 20 de Setembro de 2006 Diana ~ «Bles(paimée cima) nfo querem que ex volte aestadar porque quetiam que eu continuasse a trabalhar. Os meus pas, por exemplo, eles no estudaram ¢ ‘foram alguém na vida, mas podiam agora ver que se me esto a ajudar eu um dia s¢ for alguém tier a viver melhor até 08 posso ajudar um dia. S6 tém que me sjudar durante dois anos, também nfo é muito. Een quando andava na escola ‘ que eles gastavam era mais ou rsenos a mesma coisa, o dinbcito para a sens Além disso, en j4 contribu estes seis meses que estve a trabalhan As vezes, eu Senta e na outta terga jé no tiaha dinheizo. Chego a case e pergunto, ‘0 que é preciso? E preciso isto? Ent eu vou compra, se nfo!» 20 de Setembro de 2006 Diana ~ « preciso muita coragem, porgue eu todos os dias vou ouvir a mesma coira quando as alas comegarem, porque o problema é¢u ji nfo lear dinheizo, inio ¢ pela despesa que fago, porque eles 86 me tém que dar jantay € 56 0 jantar ‘que éa minha despesa. De resto, tenho o subsidio de alimentagio eo transporte ago, of mateias eles do, por issot Nem fago grande despesa, Preciso 36 de ‘qualquer coisa para i tomar café com @ meu namorado, As vezes 0 que eu fago é gue me fecho no quarto pronto jf no tenho que ouvir ninguém> 13 de Outubro de 2006 Diana ~ «Preciso de seranjae um emprego> Sofia ~ «Entio eo curso? J& no vais para o curso?» Diana ~ «Nao, ado da. Estive a fazer as contas. F ¢ assim, primeico a minha mie nio quer mesmo que eu vi e, por isso, mio me vai ajudar nada. Depois, ‘eu tve a fazer a8 contas €o dinheiro que me dio néo da para a alimentagdo € para o passe Sofia - + uma pena. Mas para o ao tentas outra vez?» Diana — «Ea queria, porque feava com 0 9” ano e depois podia acranjar uma coisa melhor, Mas agora teako que arcanjar um trabalho. Jé me embrei de dar cexplicagies desde primeira classe até & quarta..até 20 S° ano, pronto. 20 de Outubro de 2006 ‘A Diana ver para o interior esenta-te na mesa a0 lado da minha. } Sabe, D, Sofa, em minha casa fcaram todos contentes quando ex Ihes disse a minha decisio de nio ir estdar. Ber, eles também tinham rardo, pre ciaam gue sjude. Eas coisas esto difieis até Fevereiro, porque o meu pai tem tans problemas com umas dividas, mae depois fica mado resolvido e é melhor Eu agora tenho & mesmo que ateanjar um trabalho, comegar a trabalhar, se 20 de Outubro de 2006 ‘A Diana aps alguns momentos de sincio diz-me: Diana ~ . Esta situa- io organiza 08 quotidianos locais, confinando familias jovens a espacos muito limitados de acgio. Em contextos desfavorecidos socialmente, como aquele a que aqui se faz referéncia, as préticas de actuagi6 da familia em relagéo & escola so quase ausentes, o que nao significa que exista um efectivo desinterese de todas as familias na escolaridade dos/as filhosla (Diogo, 2002) Esra relagdo entre a escola ¢ a familia jé foi abordada em vacios estudos. Destaca-se em particular estud realizado po: Don Davies (1989), em que 4 conta da fragil participagio das familias na escola, especialmente as de srupos sociais mais desfavorecidoss por Pedro Silva (2003) em que se refere 4 relagdo armadilhada entre aquelas duas instituigBes ou de Ana Matias Diogo (2002) que procurava desmontar que as familias se colocam de lado quando se trata da educagao escolar. Neste coaflto entre o mundo da familia ¢ 0 mundo da escola, a Diana pro- cura decidit entre 0 que deseja para si, uma escolha mais racional e mais segura, que seria o regresso a escola, ¢ aquilo que a familia, atravessando virios problemas financeiros espera dela. Mas o que parece ser uma escolha acaba por mascarar os constrangimentosestruturais, que ainda parecer ter tam papel relevante nos percursos juvenis (Ball, Maguire & McCrae, 2000). ADiana, em jeito de Antigona, vive um confito de valozes: entre os valores educativos qué parece ter integrado e os valores familiares. Nao hé uma visivelindiferenga a nenhum destes valores e a0s mundos que representam, Hg uma distingdo entre estes dois univers eas exigéncias de cada um deles torna-os incompativeis. As tensdes entre © mundo da escola e a familias ‘ransformam @ vida de muitos jovens em percursos insuportéveis apenas Suportéveis porque romantizam os quotidianos eo futuro. ‘A Diana no tem uma relacio de excerioridade com a escola, apesar de ter tido algum insucesso escolar ¢ da familia nio esperar nada da escola. No entanto, a0 loago de dois anos vai procurando construir uma relagéo de cxteriotidade como tentativa para dar sentido as escolhas que & obrigada a fazer. Suaviza frequentemente a dureza da sua sitwago, abrilhanta a sua condigio no trabalho mas, acima de tudo, faz um exerccio de céleulo dos ‘eustos e beneficios da sua situagao. 160 © itinerivio da Diana deseavolve-se em diversos contextos hosts, desde os niveis mais abstractos de uma sociedade que banaliza os percursos mais sombrios e menos visveis dos jovens, passando pela escola que se desmarca da responsabilidade social ¢ induz & auto-expulséo, pelas familias que vo desgastando as possibilidades, até & experincia do primeiro emprego des-

You might also like