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GOIAS +300 Memiéoria e Patrim6nio Orgat izadores . Lenora de Castro. Barbo ~ Joao Guilherme da Trindade Curado © Autoras e autores ~ 2022 A teprodugao nao autorizada desta publicagiio, por qualquer meio, seja total ou parcial, constitui violagdo da Lei n® 9.610/98. Depésito legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n® 1.825, de 20 de dezembro de 1907, ‘Comissfo Técnica do Sistema Integrado de Bibliotecas Regionais (SIBRE), Catalogagio na Fonte ss Coordenadores da colegdo: GOIAS. _JalssMeadonca jalescoelhomendonca@gmail.com #300 Nilson Jaime (Editor geral) PEFLExAO EnEssiauiricacko —_nilsongjaime@gmail.com VOLUME IIL Meméria e Patrimonio Otganizadores: Lenora de Castro Barbo | Joo Guilherme da Trindade Curado Autores: Adriana Mara Vaz de Oliveira —_Jacira Rosa Pires Ménica Martins da Silva Altair Sales Barbosa Jales Mendonca. Narcisa de Abreu Cordeiro Alvato Catelan Joao Guilherme Curado Nilson Jaime Ana Cisudia Lima ¢ Alves Jordana Pires Rodrigues Pedro Freire Andrey Schlee Lenora Barbo Pedro Henrique C. de Santana Antdnio César Caldas Pinheiro Mara Moscoso Rafael Alves Pinto Jr. Bariani Ortencio Marco A. de Faria Galvao Rosangela Barbosa Silva Camila A. de Moraes Wichers Maria Cristina Campos Ribeito. Sibeli A. Viana Clovis Carvalho Britto ‘Maria Idelma Vieira D'Abadia Tadeu Veiga Cristiane Loriza Dantas Maria Teresinha C. de Santana Tania M. Q. A. de Mendonca Enrfpedes A. da Silva Neto Marta Quintiliano, Tereza Caroline Lobo Gustavo Neiva Coelho Martiniano J. Silva Vercilene Francisco Dias Foto da capa: Rui Faquini Projeto grafico, capa e editoragao: Adriana Almeida Revisio: Fatima Toledo Dados Internacionais de Catalogagao na Fonte (CIP) (Blaboragao: Filipe Reis - CRB 1/3388) M533. Meméria e patriménio / Lenora de Castro Barbo, Jodo Guilherme da Trindade Curado (Organizadores). — Goidnia : Edigées Goiés +300, 2022. 374 p. ; 16 x 23 cm. — (Goifs +300 : reflexio ¢ ressignificagio / Jales Mendonga, Nilson Jaime ; v. 3) ISBN 978-65-87737-54-6 1. Memérla - Goids. 2. Patriménio histérieo ~ Golds. 3. Historia de Goits, 1, Barbo, Lenora de Castro. If. Curado, Joao Guilherme da Trindade. UL. Série, CDU: 930(817.3) Capitulo 21 MUITO ALEM DOS 300 Olhares da arqueologia para lugares persistentes, povos em suas trajetérias e temporalidades no Estado de Goids Sibeli A. Viana! Camila A. de Moraes Wichers? Cristiane Loriza Dantas* Nie capitulo iremos tratar de aspectos do patriménio arqueoldgico, tendo como recorte espacial a atual cartografia onde Goids se insere €, em termos temporais, consideraremos diferentes perfodos das ocupages humanas na regio. Para isso, abordaremos acerca das conexées entre luga- res, objetos e pessoas através de seus restos materiais, incluindo reflexes epistémicas sobre o tempo e suas correlagdes entre o pasado e o presente. O recorte territorial adotado, qual seja, o atual Estado de Goids, € uma “invengao recente”, posto que os 300 anos da invasdo europeia com- péem um capitulo diminuto dessa histéria de longa duragao. Ademais, © recorte politico da unidade federativa, cujos contornos atuais foram 1 Sibeli Aparecida Viana é arquedloga, mestra e doutora em Historia Antiga (concen tragao em Arqueclogia). Professora da Escola de Kormacao de Professores e Humani- dades [PUC Goias, pesquisadora do Instituto Goiano de Pré-Histéria e Antropologia (IGPA/PUC Goiés) e vice-coordenadora do Mestrado em Histéria da PUC Goits. E-mail: sibeli@puegoias.edu.br 2 Camila A. de Morees Wichers é doutora em Arqueologia pela Universidade de Sao Paulo e em Museologia pela Universidade Lusdfona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Docente da Universidade Federal de Goids (UFG). E-mail: camilamoraes@ufg.br 3° Cristiane Loriza Dantas é arquedloga e mestra em Historia Culcural pela Pontificia Uni- versidade Catélica de Goiss. Professora ¢ coordenadora do curso de Arqueologia da Pontificia Universidade Catélica de Goids. E-mail: crisloriza@gmail.com 345 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Loriza Dantas estabelecidos em 1988 com o desmembramento do Estado do Tocantins, é arbitrario no que concerne aos horizontes de ocupagéo humana abor- dados pela arqueologia. Por conseguinte, nosso propésito maior é trazer quest6es que oportunizem uma reflexao critica acerca da histéria do que chamamos de Goids do que tragar um panorama completo desse proceso. Nao obstante, cabe primeiramente pontuarmos o quadro arqueo- légico atualmente reconhecido para 0 Estado de Goids. Segundo dados do Instituto do Patrim6nio Histérico e Artistico Nacional (IPHan, 2022), temos 1.652 sitios arqueoldgicos cadastrados no Estado, distribufdos em 177 municfpios (Figura 1). Contudo, a auséncia de sitios cadastrados nao significa que eles nfo existam, estando diretamente relacionada a falta de pesquisas nesses municipios. Em 2006, Mello & Viana indicavam que 84 municfpios do Estado possufam sitios cadastrados, o que demonstra que 0 avango das pesquisas resultou na ampliagio de sftios reconhecidos em um maior ntimero de municipios, ora reconhecidos em 177 unidades. Consideramos o tempo sob a ética de longa duragao (Re1s, 1996, p. 244), em que se reconhece o seu fluxo, em sentido “muiltiplo, descontinuo, heterogéneo, nao linear”, cadenciado pelos eventos socioculturais. Com esse posicionamento, buscamos, com este texto, fortalecer o paradigma: decolonial de romper com a tradig&o ocidental, que, segundo Habber (2016), prevé um ponto de partida temporal de natureza metaffsica, ou de conhecimento histérico ocidental, como a colonizagéo da América do Sul, por exemplo. Nessa perspectiva, contrapomos também a episteme hegeménica de fragmentacao e hierarquizagao do tempo da histéria, que considera periodo anterior a colonizagao, constitu(do por povos sem historia (pré- -histéria), ausentes de alteridade cultural (ScHwipr; Mrozowski, 2013). Assim, nos propomos ao desafio de tratar de aspectos da vida sociocultural de grupos humanos presentes em Goids em tempos profundos, sem passar pela linha histérico-temporal tradicional. Para isso, focaremos em temas que nos possibilitem compreender as relagGes entre pessoas, objetos € seus ambientes, em diferentes momentos do passado, buscando realgé-las, a partir de sua rede constitutiva origindria. 344 MUITO ALEM DOS 300 Figura 1- Sitios arqueolégicos cadastrados no Estado de Goids por municfpios LEGENDA Sitios arqueotigics dastredk Fonte: Iphan, 2022; Zansttini, 2018. Mapa elaborado por Michiel Wichers. Lugares persistentes, técnicas e historia profunda Consideramos que o meio natural envolvente é uma categoria fecunda para se pensar sobre as pessoas no passado profundo, sobre seus conheci- mentos, saber-fazer e suas relagdes com os objetos. Nas relagGes de tec- nicidade, experimentada simetricamente entre as pessoas, as técnicas ¢ 0 meio (Vieira PINTO, 2005), os elementos naturais ¢ culturais estao inter- conectados como “tecidos sem costura” (OLsEN, 2012). Nessa perspectiva, percebe-se 0 meio nao como palco de atividades, mas como elemento constitutivo dos seres humanos e nao humanos, apropriado subjetivamente como territérios. Nesses lugares, de contornos flexiveis, ha caminhos de 345 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Loriza Dantas diversos itinerdrios, ¢ as topologias que configuram tais lugares teriam sido incorporadas as redes de relagdes. Alguns desses “lugares” se destacam no passado profundo de Goiés, pois, para além de favorecerem os aspectos econdmicos, propiciados pelo bioma Cerrado, a presenga imponente de certos abrigos rochosos, de aspecto monumental e de alta visibilidade na paisagem, nos faz pensar que teriam sido, no passado, marcadores geoculturais (VIANA; HOLTZ, no prelo). Nesses lugares registram-se complexos arqueolégicos, constituidos por agrupamentos de mais de 40 sitios, cujas colunas estratigréficas, algumas com mais de 1,5 metro de profundidade, atestam a presenga continuada de pessoas nesses locais). A exemplo, ressaltamos a regido Sudoeste do Estado de Goi, com sitios de datagées antigas em Serran6polis em cerca de 12.000 anos AP* e, em Palestina de Goids, em cerca de 4.000 anos AP (Figura 2), sendo que alguns deles apresentam datas mais recentes, que chegam até cerca de 900 anos AP (ScHmiTz et al. 2004; 1986)’. Nesses complexos arqueolégicos, as préticas culturais sio marcan- tes e diversificadas, podendo apresentar estruturas funerdrias de enterra- mentos humanos; areas de produgao de ferramentas, de combustao, com remanescentes alimentares e, dentre outras, as praticas relativas A execu- cio de grafismos rupestres. A natureza e pluralidade dessas praticas, conforme destacado em Viana etal. (no prelo), demarcam fortes relagdes de sociabilidade humana entre seus ocupantes e diversidade de conhecimentos, evidenciando tam- bém relagdes de afetividade entre pessoas, espagos e outros seres. Nesse sentido, tais lugares podem ser compreendidos a partir do conceito de “lugares persistentes” (SCHLANGER, 1992), pois, para além de serem espa- gos ocupados reiteradamente ao longo do tempo, compreende-se que 0 entrelagamento de elementos naturais e culturais teria potencializado a recorréncia das reocupagGes. 4 AP significa anos Antes do Presente. Unidade temporal adotada pela Arqueologia, con- siderando 0 ano de 1950 como base. 5 Sitios dessas regides foram registrados nas décadas de 1970/1980, e inicialmente estu- dados por Schmitz et al. (1986, 2004). Atualmente estiio sendo pesquisados por Viana (2017) e Rubin (2017). 346 MUITO ALEM DOS 300 Fonte: Acervo PUC Goids. Foto: Siboli Viana (2018). O meio natural envolvente também é uma categoria importante para sé pensar nas relagdcs de tecnicidade existentes entre as pessoas, os objetos no passado e no presente. Compartilhamos com Simondon (2020) a nogao ontolégica da técnica que a considera no somente como modo de fazer as coisas, mas enquanto modo de existéncia através do qual um individuo devém humano. Refletir sobre o entrelagamento de humanos e ndo humanos, a par- tir da perspectiva de tecnicidade, é uma forma de “desnaturalizagao” dos artefatos e a possibilidade de fazer uma arqueologia reflexiva, na medida em que damos espago para que memérias tecno-culturais de protagonis- tas do passado se desvelem, ampliando a diversidade e a temporalidade da histéria profunda de Goids (VIANA; Ramos, 2022). Sabe-se que os artefatos rochosos (denominados “Iticos”) e as cer’- micos se constituem nas materialidades mais preservadas nos contextos atqueoldgicos. Sendo a presenga da ceramica temporalmente mais recente, € nos objetos liticos que podem ser encontrados os tragos das historias mais remotas. Assim, em tempos mais profundos, entre cerca de 12.000 anos AP até cerca de 4.000 anos AP, em Goids, a materialidade litica é 347 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Loriza Dantas predominante nos contextos arqueolégicos. Nessa extensa faixa temporal, dois horizontes crono-culturais se destacam. O mais antigo, definido em termos geoldgicos de Holoceno antigo (entre cerca de 12.000 anos AP até cerca de 8.000 anos AP), é espacial- mente mais restrito, estando presente nos municfpios de Serrandpolis (Scumr7z et al., 2004), Hidrolina (Barsosa; Scxmrrz; Minanpa, 1976/1977), Planaltina de Goids (ANDREATTA, 1988) e Sio Domingos (ZANETINNG Moraes Wicuers, 2010). As ocupagées humanas em tais temporalidades so marcadas por conhecimentos técnicos diversos, todavia, destaca-se a presenga de ferramentas liticas, consideradas como “mareadores cultu- rais” por apresentarem uma silhueta remarcavel, facilmente identificada, denominadas de “lesmas” ou planos-convexos (SCHMITZ et al., 2004). A. tecnologia desse perfodo (tecnocomplexo Itaparica), presente também em, outros sitios do Brasil Central, representa um fendmeno, circunscrito em um tempo e espago definidos (LourDEAU, 2010). Sao cerca de quatro mil anos de persisténcia teeno-cultural de produgao e funcionamento de uma ferramenta. Entende-se que sua persisténcia temporal teria se mantido e propagado para além da tecnologia em si (VIANA; HosL1z, no prelo). Estudos atuais buscam entender os fatores de ruptura dessa tecno- logia, com o infcio de um novo periodo temporal, entre 8 mil e 4 mil AP, denominado pela geologia de Holoceno médio. A materialidade litica é constitufda por outra légica tecno-funcional, recorrentemente estereotipada de forma negativa pelo patadigma da simplicidade. Para acessar tal ldgica tecno-funcional, tecndlogos tém se distanciado da percepgao ocidental e dualista que equipara pouca modificagfio de um objeto arqueolégico a simplicidade técnica (Ramos et al., no prelo). Em outra perspectiva, com- preende as porgdes rochosas naturais presentes no volume das ferramentas como elementos téenicos, os quais teriam sido intencionalmente incorpo- rados aos esquemas de producao ou de funcionamento dessas ferramentas. Os processos de eleigao de elementos topolégicos da matéria-prima (volume, forma, peso, tenacidade, cor etc.), naturalmente presentes sobre os suportes (seixos, desplacamentos, fragmentos etc.), s4o definidos a partir de quest6es culturais e integrados in natura como elementos técnicos. A Epa; Ramos, 2017)%, esse processo configura-se a nogio de afordancia (Bi 6 Segundo Ramos et al. (no prelo), o conceito de Afordancia advém da nogao de per- cepeao de G. Canguilhem (1994 [1968]). Nos estudos liticos a afordancia esta presente 348 ata ian MUITO ALEM DOS 300 pelo qual & possivel evidenciar relagdes estreitas entre pessoas € o meio envolvente. Na gestdo da matéria-prima esto em jogo os mapas mentais de localizacio dos bens desejados, assim como aspectos de conhecimentos técnicos ¢ saber-fazet, presentes e reconheciveis na materialidade litica. Nessa temporalidade, nao hé um artefato diagnéstico e, neste capi- tulo, nao caracterizaremos a variabilidade técnica dos tecnotipos presentes na caixa de ferramentas desse perfodo. Nao obstante, queremos realgar a presenga deles, regidus, de forma destacada, em Palestina de Goiés, pelo princfpio técnico da afordancia. Tais modos de fazer ferramentas e de se envolver com o ambiente desvelam aspectos das memérias técnicas de povos do passado profundo de Goiis e expdem modas particulares de rela- gGes dessas pessoas com o ambient Os objetos que evidenciam essa histéria profunda, olhada pelas lentes da arqueologia, denotam relagdes entre pessoas, coisas e Ingares atraves- sadas também por preocupagdes estéticas, distantes de uma perspectiva que vineula a beleza dos objetos apenas 4 forma funcional (BEAUNE, 2022). Preocupacées estéticas cuja compreensio pode se valer de reflexes acerca das perspectivas artisticas indfgenas no presente. Arqueologia, artes do barro e povos indigenas A perspectiva artistica indigena emerge de outros mundos, como nos alerta Naine Terena (2020). Para a autora, assim como para outras pes- quisadoras, a arte indfgena e: 4 imbricada a produgao de corpos e pessoas, entrelacada a um cotidiano em que humanos e objetos sfio “decorados” (Vettnem, 2010; Lacrou, 2009). Uma perspectiva que pode contribuir para reverter 0 apagamento das existéncias e memérias indigenas. Como vimos, a pratica atqueolégica no Estado de Golds tem possibi- litado a compreensao de uma histéria profunda. As coisas de barto, denomi- nadas pela arqueologia como artefatos ceramicos, s4o algumas das janelas de entrada para a vida das pessoas que compdem essa histéria (SkIBO, 1992). A durabilidade desses objetos — assim como dos materiais liticos em compa- ragdo com artefatos produzides em. matérias-primas mais peteciveis, como ‘quando porgdes naturals das marérias:primas rochosas foram intencionalmenite man- tidas nas ferramentas lascadas (Boupa; Rawos, 2017). 349 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Lorica Dantas a madeira, a palha, as penas ¢ plumas, dentre outras, torna-os centrais para a construgao dessa histéria, Do barro, seja ele formado pela argila pura ou misturada com minerais, cinzas de cascas de arvores ou fragmentos de cacos de vasilhas quebradas, nascem, com engenho e arte, muitas coisas. As vasilhas de barro, voltadas & produgao, armazenamento e consumo de alimentos e¢ bebidas, o fuso de fiar, o cachimbo e 0 carimbo corporal sao alguns dos artefatos ceramicos encontrados no territ6rio goiano (Figura 3). Figura 3 — Carimbo cerimico e detalhe de seu padrao decorativo. Sitio Juquira (Alto Horizonte) Fonte: Acervo Zanettini Arqueologia. Foto: Camila Wichers (2005), As vasilhas de harro tém sido frequentemente associadas a socieda- des onde o cultivo teve maior importancia como forma de subsisténcia e cujas dindmicas de ocupagao do espago, em aldeias, so mais duradouras. Esse cotidiano estaria relacionado também a permanéncias mais curtas, em, aldeias menores, e a lugares voltados a atividades espectficas, como a coleta de matérias-primas e frutos, acampamentos de caga e pesca, dentre outros. Nao obstante, as coisas de barro pontuam outros tempos e sociedades indi- genas, para além dessa visio mais recorrente. O Brasil Central tem sido caracterizado, pela arqueologia, como regido de confluéncia e interagdo de diversos povos indigenas produtores de artefatos ceramicos, sobretudo, relacionados ao tronco lingufstico Macro- J&, revelando processos associados a fenémenos internos e extemnos — como 7. Aslos estudiosas/os agrupam as linguas indigenas em familias linguisticas, que, pot sua. ves, podem fazer parte de conjuntos mais amplos ~ os troncos lingufsticos: No Brasil, temos dois grandes troneos ~ Tupi Maczo-Jé - ¢ 19 familias linguisticas que nfo sé0, agrupadas em troncos devido a suas diferencas. Hi, também, farnilias de apenas uma lingua. Temos, assim, uma expressiva diversidade lingufstica, sociopolitce e cultural em um mesmo tronco linguistico. No presente texto destacaremos as ocupagdes indigenas 350 MUITO ALEM DOS 300 demonstraram os trabalhos desenvolvidos por Schmitz et al. (1982), Wiist (1975, 1983), Robrélhn-Gonzélez (1996), Mello et al. (1996) e Souza (2003), dentre outros. Em Goiss, os objetos de batro mais recuados cronologicamente foram registrados hd cerca de 3,000 anos e estariam relacionados a pequenos grupos que ocuparam, sobretudo, abrigos. As vasilhas cetamicas possuem peque- nas dimen: com paredes finas ¢ acabamento alisado*. Vale ressaltar que a pratica do cultivo e de produgao da cerAmica apresentou-se de maneira heterogénea e lenta, podendo estar ligada a processos locais de invengao ¢ de interag6es grupais (RosRAHN-GonzALzz, 1996). Por volta do século VII, comecam a proliferar no Brasil Central gran- des aldeias, sendo possivel delinear duas frentes principais de ocupagao: as aldeias circulares no Centro-Sul de Goids, se estendendo para o Leste’; e uma segunda frente, concentrada, sobretuda, no Norte do atual territério goiano, também com aldeias em fileiras duplas de casas, que se estendem margeando os trios®. Registrou-se, no Centro-Sul e Leste de Gods, a presenca de grandes aldeias circulares, por vezes atingindo 500 metros de didmetro, com até 90 unidades residenciais e abrigando até duas mil pessoas, onde foram encon- trades recipientes ceramicos de contorno direto e infletido, com predominio de bases convexas. As formas dos recipientes indicam o cultivo e o proces- samento de milho, algodao, tabaco e, possivelmente, de outros produtos (Scrmrrz et al., 1982). Linhas incisas sob a borda, pequenos apliques e, com: frequéncia menor, engobo vermelho ou listras pretas sdo identificados em algumas vasilhas (Souza, 2003). Uma pequena vasilha geminada, na forma de duas pequenas tigelas unidas —provavelmente de uso cerimonial e qui¢d relacionadas ao troneo Maero-Jé, mas sities arqueolégicos Tupi também so encon- trados em Gois e em todo entomno do Brasil Central, tendo desenvolvido diversas redes de interagio com os ocupantes das grandes aldeias circulares, envolvendo um intenso fluxo de objetos e/ou informagies (RoBRABN-GonzAuiz, 1996). 8 Categorizadas como Tradigao Una, 9 Categorizadas, sobretudo, como Tradigao Aracu, 10 Categorizadas, sobretudo, como Tradigao Uru. 351 Sibeli A. Viana | Camila A. de Mores Wichers | Cristiane Loriza Dantas interligadas & metafisica da dualidade dos povos Jé'' —, é encontrada em muitos desses contextos, Enquanto uma das frentes parece mais relacionada a areas vegeta- das de floresta, outra se associa ao cultivo da mandioca amatga (ROBRAHN. GonzA1sz, 1996). As vasilhas utilizadas para o beneficiamento da mandioca sio pratos assadores e tigelas rasas de borda reforgada. Também esto pre- sentes as vasithas infletidas e os elementos como entalhes, apliques e incisses ponteadas (SCHMITZ & Bargosa, 1985, p. 9-13). Se em tempos mais recuados essas frentes de ocupagio localizam-se em areas exclusivas, posteriormente, por volta do século XIV, passam.a interagir de formas diversas. Uma faixa que se estende do Centro-Sul até o Centro- Norte do atual Estado de Goids seria a regiao onde esses processos teriam ocorride com maior intensidade (RoprAtHN-GonzALEz, 1996), Ainda que alguns parametros cronolégicos tenham sido mencionados até o momento, convém reforcar que estamos lidando com miiltiplas nogdes de temporalidade, proprias das ontologias amerindias. Outrossim, o recorte territorial adotado foi construfdo a partir da colonizagao europeia, sendo tomado aqui apenas como balizador. Importa notar que a arqueologia evidencia um processo longo, marcado por diferengas, trocas e negociagdes entre povos indfgenas de familias linguisticas Macro-Jé, dentre outros. Como afirma Beaune (2022, p. 64), os contatos entre populag engendram empréstimos, trocas e a circulagao de ideias, “tanto do know-how, como de objetos, seja qual for o contexto histérico, etnalégico e arqueald- gico”. Dessa forma, olhar as pessoas por meio das coisas de barro, em distintos tempos e espacos, buscando construir uma historia profunda do que deno- minamos como Goids, é uma tarefa complexa, mas plena de possibilidades. Estudos realizados ma regio do atual municfpio de Mossamedes demonstram, por exemplo, essa potencialidade. As bacias dos rios Araguaia e Paranafba, evidenciaram grandes aldeias em tertitérios que foram. rela- cionados aos Kayapé do Sul (Scurrz et al., 1982)'?, areas compreendidas LL Comentério do pesquisador Marcel Mano em banca de defesa de doutorado de Renan Pozzi Rasteiro, intitulado Arqueologia dos Povas Jé nut bacia do Rio Grande(SP: relagées e interacées na variabilidade ceramica do Norte de Sao Paulo, no Programa de Pés-graduagid em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Emologia da Universidade de So Paulo, no dia 17 de agosto de 2022, 12. Esse material foi eategorizado como Fase Mosstimedes da Tradigao Aratu. 352 MUITO ALEM DOS 300 também como lugares persistentes. Esses contextos socioculturais foram abruptamente atingidos e remodelados pela colonizagao, destacando-se na tegiao.a implantagao dos aldeamentos Sao José de Mossimedes ¢ Maria I, no século XVIU (Dras, 2017). Junqueira (2021) traca alguns fios para essa tecitura, por meio de uma proposta interdisciplinar, intercultural e decolo- nial. Tomando o territério de Goias e, em especial, ao analisar o contexto do aldeamento de Mossamedes, a autora afirma que os Kayap6, por meio de miiltiplas relagdes com o mundo exterior, seriam “capazes de incorporar € adquirir outros pontos de vista possfveis —néo kayap6 humano e nao humano ~ ativa-los conscientemente” (JUNQUEIRA, 2021, p. 12), indicando outras leituras possiveis dessas relagdes, que podem ser trazidas para a arqueologia realizada na regio de Mossamedes. Um artefato que pode colaborar para o avango desses debates é 0 carimbo corporal, ainda que pouco abordado na literatura arqueoldgica (Souza, 2003). Em Goids, esses objetos ceramicos foram encontrados na regio do municipio de Mossimedes, j& mencionado, mas com uma quan- tidade mais expressiva no Norte Goiano, em Alto Horizonte, Uruagu e Niquelandia. Os exemplares encontrados sf, sobretudo, cilfndricos, cor- tespondendo aos carimbos de “rolo” descritos por Baldus (1961/62). Esse autor estudou os carimbos dos povos indigenas no Brasil, descrevendo sete tipos (vareta, plano-largo, garfo, babagu, calaga, rolo e corda), as maté- tias-primas empregadas ¢ sua ocorréncia em mais de uma dezena de etnias, dentre as quais destacam-se os Akwé (Xerente) e Iny (Karaja) no Vale do Rio Tocantins e no Araguaia, ambos entrelagados ao que veio conformar o Norte Goiano e seu entorno. Para Schmitz et al, (1982), essa regido refletiria um fendmeno de fron- teira entre ocupagGes do Planalto e da Amaz6nia. Souza (2003) apresentou novos dados para essa discussfio, descrevendo ceramicas caracterizadas por uma alta frequéncia de engobo vermelho, técnicas de entalhe, de inciso e a presenga desses carimbos corporais’®, Em Alto Horizonte, municipio que evidencia também lugares persistentes, a equipe da Zanettini Arqueologia (ZANETTINI; Moraes Wicuers, 2011) estudou diversos contextos com mate- rialidades apresentando tais caracteristicas e identificou mais de duas dezenas de carimbos corporais, produzidos por modelagem e excisao, que resultam 13. Esse macerial foi categorizado como Fase Urungu da Tradigao Uru. 353 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Loriza Dantas ‘em padres graficos impressos compostes por faixas com linhas retas, curvi- Imeas, pontos, cfrculos ¢ semicfrculos, espagos cheios e vazios. A arte indigena é compreendida como pratica de transmissao de concepgdes de fundo social ou cosmolégico. Desse modo, as relacGes entre os grafismos indfgenas e os padrdes impressos pelos carimbos arqueolégicos seriam uma das vias a ser explorada. Entre os Akwé (Xerente), por exem- plo, as pinturas corporais sao uma linguagem ativa vinculada a estrutura social. Uma vez pintados, “os compos expressam uma classificagdo que é clanica (e, consequentemente de metades) e inequivoca” (SILVA; FARIAS, 1992, p. 114). Ou seja, a pintura corporal ilumina aspectos da vida social ‘Akwé, ainda que incertezas, ambiguidades e indefinigdes aparegam nas etnografias com esses povos. A andlise dos carimbos arqueolégicos demanda uma pratica que persiga relagdes possiveis entre os objetos arqueolégicos e etnograficos, oportunizando a compreensao desses artefatos como ele- mentos de um sistema gréfico impresso nos corpos e objetos. Um esforgo sempre incompleto, mas certamente relevante. Caminhos, trajetérias e lugares Os caminhos constitufdos no sertio dos Goyazes sao importantes elementos de anilise na pesquisa arqueolégica, uma vez que guardam importantes informagées sobre as trajetérias de coletivos humanos de tempos distintos. Nesse sentido, so pensados para além da fungao pré- tica de circulagao de pessoas e mercadorias. Os caminhos e seus trajetos sfo carregados de sentidos e significados, podendo ser utilizados em longa duragio e, portanto, podem ser compreendidos como lugares persistentes (SHLANGER, 1992). Eles podem ser identificados ainda na atualidade por marcas deixadas na paisagem. O processo de construgao dos caminhos e estradas em Goids, entre 0s séculos XVII e XIX, favoreceu a criagdo de rotas de circulagdo que via~ bilizaram o fluxo de pessoas que se deslocavam do litoral para o sertao dos Goyazes. Parte significativa das 4reas que foram implementadas se tratava de territérios amplamente ocupados por povos indigenas, que ja faziam uso de trilhas e em muitas situagées foram utilizadas para a construgao das rotas de acesso oficiais 4s Areas de mineragiio. A arqueologia histérica ve desvelando que esses caminhos, mais tarde chamados de “estradas reaii 354 MUITO ALEM DOS 300 desempenharam papel fundamental A manutengio das vilas e atraiais no atual Estado de Goids. Os caminhos que conectavam as fazendas ¢ nticleos urbanos, além das estruturas materiais, guardaram importantes informagées do cotidiano dos grupos que se estaheleciam no lugar. Além da funeSo de abastecimento, as estradas tinham a premissa de deslocamento de pessoas, transformando esses espacos em locais de encontros e passagens, conectando intimeras trajetérias de vida. A construgao de lugares estratégicos ao longo desses caminhos permitiu a formagio de sitios arqueolégicos que carregam materialidades de coleti- ‘vos humanos que nao possuem outros tipos de registros na historiografia. O mapa dos Sertées que compreendem de mar a mar entre as capitanias de S. Paulo, Goyaxes, Cuyabé, Mato Grosso e Pard traz, além das informagées de rotas terrestres e fluviais j4 registradas na primeira Carta da Capitania de Goyaz, registros de cidades, vilas, fortalezas, arraial com freguesia, sitios e as capitais. Em Goids, duas dreas de estudo em contexto relacionado aos cami- nhos podem ser destacadas, uma vez que foram pensadas nas petspectivas que aqui abordamos. O sitio arqueolégico histérico Fazenda Cachoeira do Corrente (DaNTAS, 2010), localizado no municfpio de Aporé, no Sudoeste Goiano, e 0 sitio histérico Fonte da Carioca, na Cidade de Goids (DANTAS 2014) (Figura 4). A pesquisa arqueolégica em ambos trouxe a possibilidade de se pensar as trajetérias de grupos que ocuparam e vivenciaram experién- cias nesses contextos. Os sitios Cachoeira do Corrente e Fonte da Carioca sao espagos que estio inseridos na dinfmica que envolve as estradas coloniais, bem como sii lugares que estdo sendo ocupados por longos perfodos, passando por res- significages constantes no que se refere 4 construgao da categoria “lugar”. Baseando-se na discussio de Ingold (2000) sobre paisagem, tais lugares se constituem a partir do ponto de vista daqueles que o habitam eo produzem, dando vida e movimento a esses espagos. Os estudos do sitio Fazenda do Cachoeira do Corrente, utilizado tam- bém como entreposto, suscitam indagagGes referentes as estruturas sociais estabelecidas, que, distante dos nticleos urbanos, necessitaram de solugdes aos problemas que lhes eram préprios. Toda a configuragao da fazenda foi compreendida como parte integrante da investigagdo arqueoldgica, consi- derando que a forma de apropriagéo do espago, a criagao dos lugares, seja no inicio da ocupagio, no século XIX, ou nos dias atuais, so carregadas de 355 Sibeli A. Viana | Camila A, de Moraes Wichess | Cristiane Lorisa Dantas significados. Nesse sentido, teve-se a necessidade de compreender o proceso de construgio de referencias culturais, que partiram de dois principios basi- cos: 0 primeiro diz respeito & organizagfio da estrutura inicial da fazenda e 0 segundo, ds teapropriagGes ocorridas ao longo do tempo no local. Fonte: Projelo Memorias, Foto: Ariana Braga (2012). ‘Ao que se refere A constituigo inicial da fazenda, as ordenagdes apli- cadas vinham de realidades distintas, mas nao desprovidas de apropriagdes conceituais, justificadas pela necessidade de um espago fisico para recons- trugio de lugares, onde os individuos pudessem se reconhecer. Assim, temos a desconstrugao de uma dada realidade e a reapropriagao de outras, associa- das ao universo construido coletivamente ao longo dos anos, e, por tiltimo, a reconstrugao do lugar, bem como de novos referenciais de identificagao. © segundo ponto a ser destacado diz respeito ao pleno funcionamento da fazenda desde o século XIX. Sao, portanto, dois séculos de existéncia, em que foram cravados tragos materiais e imateriais de expressdes culturais, sociais, econdmicas e de poder. Constata-se, dessa forma, que a formagao do contexto arqueolégico € tao dindmica quanto o estabelecimento das redes sociais. Em um curto espago de tempo, as assinaturas antrépicas deixadas por um evento s4o modificadas para que outros tragos sejam gravados. 356 I MUITO ALEM DOS 300 Para exemplificar parte das modificagGes ocorridas na fazenda, des- tacamos dois eventos ocorridos que retratam a dinAmica ocupacional do lugar. Trata-se de “lugares reconstrufdos”, como o local de acondiciona- mento do lixo, ¢ “lugares abandonados”, a exemplo do cemitério. Sobre os “lugares reconstrufdos”, destacamos que o lixo é uma fonte importante da pesquisa arqueolégica, assim como os critérios de selegdo dos locais para seu descarte, os quais podem revelar informages sobre comportamentos humanos préprios de cada momento histérico (SCHIFFER, 1991). Nesse sentido, a construgao do anexo da sede da fazenda é um evento que pode ser compreendido nessa perspectiva, pois a necessidade de novos elementos que pudessem favorecer a dindmica dos atuais mora- dores incidiu em mudangas no local de acondicionamento do lixo, ou seja, a drea antes escolhida para depositar 0 refugo nao mais serviria a essa fun- go (Dantas, 2010). Sobre “lugares abandonados”, o principal elemento identificado foi o cemitério, pois além do abandono da estrutura fisica, enquanto. campo destinado aos cuidados com os mortos, ocorreram também modi- ficagSes no seu entorno, deixando este de ser um elemento emblematico na paisagem. Registros indicam que antes ele se destacava na paisagem; a ampla visibilidade era possivel pela topografia do terreno e pela auséncia de demais estruturas. Atualmente, outras estruturas compdem o mesmo espaco, dessa forma, o lugar de cuidado dos mottos resiste ao tempo como uma cicatriz na paisagem. A Fonte da Carioea, por sua vez, trata-se de um sitio arqueolégico ‘as margens da Estrada do Nascente, que dava acesso ao nticleo urbano de Vila Boa de Goiés. Embora a fungao destinada a esse espago seja distinra da Fazenda Cachoeira do Corrente, ambos compartilham pontos comuns € importantes a esta discussfio. A Fonte foi também um local de entreposto que viabiliza o encontro de trajetérias humanas e s wentrelagamento com a paisagem. Pode ser considerada como um lugar persistente, pois o registro arqueolégico evidencia longos perfodos de ocupagées, tendo proporcionado espagos de coletivos se socializarem, de qualificar memérias, de constru- ¢io de identidades, mas também espagos de fricgSes (Moore; THOMPSON, 2012). Parte dessas expressdes pode ser identificada a partir dos objetos provenientes das escavagdes arqueoldgicas, das estruturas ainda existentes e das nuangas que ainda podem ser observadas na paisagem. 357 Sibeli A. Viana | Camila A. de Moraes Wichers | Cristiane Lorisa Dantas A leitura desse sitio foi realizada a partir das seguintes categorias: “am rio, um caminho, uma fonte e varios lugares” (Dantas, 2014). Esse eixo permitiu a realizagao de uma andlise integrada dos objetos arqueo- légicos com as fungées ¢ significados atribufdos pelos individuos a esses lugares. Dessa forma, o entreposto ¢ 0 caminho agregaram elementos de vinculagdo entre lugares e pessoas, fazendo com que esse espago tenha sido elemento importante na identidade das pessoas envolvidas. A Fonte também representou local de offcios. Suas aguas e a proxi- midade com o Rio Vermelho proporcionaram o encontro de pessoas que exerciam diversas atividades. Temos nesse contexto os carregadores e as carregadeiras de 4gua e as mulheres lavadeiras que fizeram dos dvidos aflo- ramentos o suporte material para execugao das suas atividades. O contexto arqueoldgico trouxe novos elementos acerca da constru- cdo do lugar e para compreender a dindmica das relagdes humanas que se constituiram nos diferentes momentos de ocupagao. Dados arqueolégicos desvelam que a 4rea também sofreu constantes modificages, adaptagoes e remodelagées no decorrer dos séculos XVIII, XIX e XX, demonstrando a dindmica de uso desse espago. Dessa forma, fica explicito que, tanto na Fazenda Cachoeira do: Corrente quanto na Fonte da Carioca, a pesquisa arqueolégica permi- tiu uma leitura focada nos individuos e suas trajetérias. As evidéncias materiais méveis ¢ ndo méveis e as cicatrizes deixadas na paisagem nas areas de estudo fazem parte de um contexto amplo, organizadas e aproptiadas em termos simbélicos, e que exige da pesquisa arqueolé- gica mtltiplos olhares. Consideragées Finais Ao evidenciar os miltiplos aspectos do patriménio arqueolégico ea histéria profunda da ocupag’o em Goids, buscamos apresentar parcelas de: patriménio e, ao mesmo tempo, a partir das expressdes culturais seleciona- das, problematizar tais questées. Pelos estudos de situagdes apresentados, compreendemos que as relagdes entre pessoas, objetos e meio, analisadas meio dos materiais resultantes dessas dindmicas e abordadas pelas lentes da arqueologia, podem elucidar ontologias, tecnicidades, produgao de pessoas e transmissdes de fundo social e cosmol6gico. 358 MUITO ALEM DOs 300 Ao acionarmos os conceitos de histéria indigena profunda ¢ lugares persistentes para compreender esas relagSes, evidenciamos 0 meio enquanto espago de sociabilidades, de expressdes de afetos, mas também de poder, de tenses e construgio de identidades. Isso revela as potencialidades da | _ arqueologia realizada em Goids. Por meio dos artefatos, as pessoas agem, se relacionam, se produzem. e existem no mundo, Isso nos leva a refletir sobre o que investigamos, como percebemos nosso objeto de estudo e como o sentido que imprimimos as coisas do pasado (inter)ferem na sociedade, o que nos estimula a ponderar” sobre o sentido da arqueologia que praticamos ou do quanto nossas narrativas penetram no tecido social da atualidade. Essa é uma ligdo que a arqueologia nos da, a0 mesmo tempo que é um ensinamento que essa ciéncia deve tomar como motriz, em Goids e no Brasil. Considerando a dinamica da temporalidade, consubstanciada entre “passado e presente” e “presente e passado”, concebemos que parte das “coi- sas do passado” (sejam elas humanas ou nao) esta no presente, e¢, por nao setem amorfas e inconsistentes de sentido, entendemos que as conectivida- des entre culturas sao atemporais. A percepgao dessas conectividades, conforme destaca Walsh (2012), se desvela na atualidade a partir de uma perspectiva critica centrada em um projeto alternativo, baseado em um “empreendimento politico social; epis- témico e ético de transformagao e decolonialidade”, apontando o reconhe- cimento de sociedades diferentes. Iss0 coloca a pesquisa arqueolégica desenvolvida em Goids para muito além dos 300 anos de histéria, sendo que sua densidade e pluralidade a inse- rem ao lado do movimento ind{gena da atualidade em prol do reconheci- mento dos povos originarios, do respeito as suas culturas, do direito &s suas terras, As suas diferengas ¢ & sua autonomia, portanto, uma “luta plural”, conforme salienta Idjahure Kadiwéu e Sergio Cohn (2019). Referéncias ANDREATTA, Margarida. Projeto Anhanguera de Arqueologia de Goiés (1975- 1985). Revista do Museu Paulista, Nova Série, vol. XXXII. So Paulo, 1988. BALDUS, Herbert. Os carimbos dos fndios do Brasil. 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