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Sobre o amor, 0 desejo € OS parceiros Marcia Assis Introdusao Nio hi relacéo sexual: cis o impossivel que niocessa de ndo se escrever. Porém, ‘hi “uma relagio de amor possivel que, desta vez, econhece 0 outro” (SOLER, 2012, p. 183) 0 trecho citado, recortado de Lacan, 0 inconscente reinventado, fo 0 ele _mento provocedor,instigando esta elaboracio, O capitulo O amor eo Real nos faz pensar sobre os efeitos da analise diante da questio amorosa. Sendo o amor uma paixio amiga da ignorincia, que nio quer saber nada disso, aposta-se na mudana, considerando-se que a experiéncia analitica desvela o real irredutivel da castragio. © gozo nio éligante por si s6, No nivel do gozo néo ha par. Impossivel escrever 0 dois do sexo. Mas hi o par da fantasia, esteio do desejo.Ressalto, no entanto, que 0 esejo nao comporta uma relagio subjetiva simples com o objeto, tal como repre sentado pelo losango no matema da fantasia, No seminario A angiista, Lacan pro- poser este matema da seguinte maneira: § desejo de a (1962- 63/2005, p. 59). Bis 0 casal que se apresenta no nivel do desejo, § em suas relagées possiveis com 0 objeto ‘a mais-de-gozar, Isto envolve um gozo, certamente, 0 g020 filico ao redor do qual tudo gira, segundo o que se demonstra na exper cia analitica,justamente por ser tal goz0 obsticulo. Faco referéncia ao semindrio Mais Anda, onde Lacan explicita, ‘que 0 go70 filico obstaculiza 0 homem gozar do corpo da mulher, pois do que ele {goza € do gozo do drgao (1972-734 1985, p. 15). Ou seja,“o gozo enquanto sexual, & fli, quer dizer, ele nao se relaciona ao Outro como tal” (Ibid. p. 18). O amor ignorante do desejo Do que se trata no amor? Seré que é fazer um s6? Estas sio questées trazidas por Lacan no seminério citado acima, as quais acrescento mais uma: qual é 0 par no nivel do amor? © amor é sempre reciproco, pois “o amor demanda o amor” (Ibid. p. 12)."Amar 6 querer ser amado” (1964/1988, p. 238), afirmativa de Lacan que denuncia a es- séncia narcisica do amor, salientada desde Freud. His a baixeza do amor, revelada por Alcibiades em sua busca pelo agalma (LACAN, 1964/1998, p. 867) Stylus Revista de Pscanlise Ro de Jancito no. 28 991-96 junho 2016 & 1 92 ASSIS, Maris Anda no Seminério 20 (op. cit, p. 12), 20 falar sobre o amor, Lacan nos diz ser este uma paixio ignorante do desejo, impotente e reeiproco, pois “ignora que & apenas 0 desejo des Gao dos dois sexos” (Ibid. p. 14), Para ilustrar este impossivel, Lacan recorrew 20 paradoxo de Zendo, onde Aquiles s6 pode ultrapassar a tartaruga endo em(par) elhar-se a ela. Bis o dito para o que concerne ao gozo sexual: de Dois nao se faz Um, Esse Um s6 se aguenta pela via do significante, O ozo é solitério, Os corpos copulam porque as palavras copulam. “Um corpo, isso se goza. Isso se goza por corporizé-lo de maneira significante” (LACAN, 1972-73/1985, p. 35) A lingua- gem é obsticulo ao gozo pleno, Este éda ordem do impossivel ao ser falante. Resta © goz0 limitado, castrado, gozo ferido. Entre os seres falantes, 0 ato de amor é a perversio polimorfa do macho, ou sea, sendo falante, aquele que se vé macho aborda a mulher, no entanto, o que ele aborda é 0 objeto a, causa de seu desejo. Nao hi acesso a0 Outro a nio ser pela via das pulsses parciais. E em revolver esses objetos para neles resgatar, restaurar em si sua perda original, que se empenha a atividade pulsional (LACAN, 1964/1998, p.863). Porém, 0s corpos que gozam, solitariamente, vém a se atrair eletivamente, Sem esquecer que ha reciprocidade entre o amar ¢o ser amado, pressupondo um par. No entanto, que par é este? Havers outro par que nao seja oda fantasia, se 0 parceiro do sujeito nao € 0 Outro, mas o que vem substtuir-se ale na forma de cau sa de desejo, forma a-sexuada? Dito de outro modo, 0 objeto que causa o desejo néo € nenhum parceiro em particular, apenas a contrapartida do sujeito na fantasia. O «que nos leva areafirmar que o amor & enganador, pois ele mente sobre o verdadeiro parceiro, Soler enfatiza este ponto, o parceiro do casal € sempre o lugar-tenente do verdadeiro parceiro: Dante s6 obtém de Beatriz um batimento de cflios, um olhar, objeto de sua fantasia (SOLER, 2012, p. 186). Tal exemplo diz o que vale em Beatriz, invélucro do objeto a mais-de-gorar, mas nao diz por que Beatriz e nao Julieta O verdadeiro parceiro, o objeto a, nfo tem nome, nem imagem. “Ele é causa de angiistia, justamente por ser anénimo e desconhecido” (Ibid. p. 170). Ele causa 0 desejo, mas como indeterminado. A causa faz desejar,langa 0 vetor, deixando 0 alvo em branco, quer dizer, nio diz sobre o desejavel, sobre o parceito eeito, de onde extrair o mais-de-gozar visado, Soler nos convida &releitura do seminario A angiistia (op. cit) para alcangarmos a distingao estabelecida por Lacan entre 0 ob- jeto a como pura causa de desejoe o objeto a passado a0 campo do Outro, quando ‘um investimento & transferido para objetos historizados, vestidos com as imagens € os significantes do discurso, A fantasia, portanto, ¢ 0 produto desta transfusio de a para o campo do Outro, Mais tarde, no seminério Mais ainda, Lacan refere- se imagem como vestimenta que envolve 0 objeto a, causa de desejo, afirmando que o amor se dirige a0 semblante (op. cit, p. 125). ‘Um, que nos conduz a0 impossivel de estabelecer a rela- Stylus Revista de Pscanlise Ro de Janeito no. 28 p.91-96junho 2016 & Sobre.oamor odesejo eos parcelros ‘Ao objeto tornado alvo do desejo, Soler ira designé-to objeto sintoma. Ai se ‘encontra o que Lacan enunciou como modelo do pai que apresenta o exemplo de uma soluglo para a indeterminagao do desejo, sendo a condigdo de superagio de angiistia, pois ha para ele um aassegurado, fiado. Portanto, um pai a figura de tuma solucao sintomética que aponta a via da supléncia, a partir de seu sintoma. Ele pode ter outros sintomas, mas € por esse que ele traz a fungio de enodar 0 ICSRa verdade da fantasia, com seu dizer de nomeagéo. S6 hi amor por um nome e s6 ha superacéo da angistia quando 0 Outro é nomeado, Cito Lacan, no seminério A angiistia (op. cit, p. 366). Melhor traducio de tai frases, encontrei no verso “Teadoro, Teodora’, do poeta Manuel Bandeira, inventor do verbo teadorar! Duas afrmativas se esclarecem: 0 sintoma supre aauséncia da relagdo sexual ea segunda, enunciada no seminario Mais ainda:"O que ver em supléncia relagio sexual € precisamente 0 amor” (ap. cit. p. 62. ‘A passagem ao espaco do Outro é 0 que fundamenta a transferéncia, considera Soler, que afima ser o SsS (no qual o objeto esté latente) um outro nome ao que Lacan denominou campo do Outro. “O que faz da andlise uma aventura singular 6 abusca do agalma no campo do Outro” (1962-63/2005, p. 366). O. amor de transferéncia: condicao e obstaculo do tratamento: E pela via do amor que a andlise opera, sabemos disso desde Freud (1915(1914] 1986), que néo duvidava da autenticidade deste amos, ainda que nio reciproco. ‘Também Lacan nao duvidou, chegando a afirmar que sua formulagio sobre 0 '$s$ mostra que a transferéncia nao se distingue do amor, pois “aquele a quem eu suponho o saber, eu o amo” (1972-73/1985, p. 91), sendo, portanto, condigio do tratamento por Ser um amor que se dirige ao saber. No entanto, em sua vertente resistente obstaculiza o processo analitico, a nao querer saber nada disso. ‘No Seminério 10, presenta o amor de transferéncia como um amor presente no real (op. cit. p. 122), alertando que nada alcancaremos a respeito do conceito de transferéncia, se ignorarmos que ela tamloém & consequéncia desse amor presen- te, ressaltando a questao central da transferéncia, sobre o que falta a0 sujeto, pois €apartirda falta que ele ama, No seminario A transferéncia (1960-61/1992), Lacan buscou 0 Banquete de Plato para nos mostrar do que se trata na transferéncia, que nao pode ser apreendida fora do regisiro indicado como o ugar de a, o objeto mais-de-gozar, 0 agalma, na relagio 1 Refecéncia 20 poema Neologism, de Manuel Bandeia Stylus Revista de Pscanlise Ro de Jancito no. 28 991-96 junho 2016 & 93 94 ASSIS, Maris de desejo2 “Mesmo que o sueito nao osaiba, jé é no outro que o pequeno a funciona” (bid. p. 198), Esteé um efeito legitimo e irredutivel da situagio transferencial Lacan ja nos alertara no Seminario A Angiistia (op. cit, p. 70), para afungio do desejo no plano do amor; ele intervém no amor, sendo seu pivé essencial, porém o desejo nao diz respeito a0 objeto amado. O analista, aquele que passou pela expe a, sabe sobre a fangao do desejo ¢ do objeto-causa, Fle sabe sobre o segredo chocante do funcionamento do desejo, dissimulado pelo amor de transferéncia, em sua versio resistencia: 0 Outro se reduz.ao objeto a. Desejar o Outro nunca é sendo desejar 0 a (Ibid. p. 198). O desejo aiza o parceiro.’ Um amor mais digno Soler (2012, p. 188) se refere ao termo empregado por Lacan em Carta aos Italia nos: “amor mais digno” (1973/2008), ao qualifcar que aandlise ndo ésem efeto so- bre o amor. Portanto, podemos apostar que uma andlise orientada para o real possa fazer surgir um amor mais digno, aque que nao acredita no parceiro, uma forma de sintoma socializante, A Psicanlise nio 0 prescreve, Este amor ateu, menos ta- garela, pode acontecer, pois 2 anzlise é capaz de provocar mudanga, mas o bom. encontro, ela nio pode prometer, embora possa criar as condigées de possibilidade, a0 provocar as des-identificagies, liberando o sujeito das restigdes que arepetigio impunha, A anise revela que o amor é repetitivo, sempre a mesma decepeio, 20 esperar um efeito de ser. Eo amor repetitive trabalha na diregio da conformidade. Porém, ha escolhas discordantes que nao obedecem nem ao ideal, nem fantasia Lacan afirma no seminario Mais ainda que o reconhecimento de sujeito a su- jeito, onde sujeito € apenas efeito do saber inconsciente, é a maneira pela qual a relagio dita sexual para de nao se escrever (op. cit, p. 198). Ponto de suspensio, contingéncia, instante “infinito enquanto dura’. Momento em que nosso desejo estende a mio para a acha ardente ¢, da chama, por um instante, outra mio se estende para nds, bem como seu de © termo reconhecimento indica a fungéo nova que o amor assume, revelar a presenga e os efeitos do inconsciente real (SOLER, 2012). Indice ndo de uma inter- subjetividade, mas de um inter-reconhecimento entre dois falaseres que trazem, cada qual, as marcas de seu exilio, pois quem fala sé tem a ver com a solidio, no que diz respeito ao impossivel da relagio sexual. Doisfalaseres, duas disparidades desejantes. Afinidade que ndo faz identificagio, nem traz uma identidade. A partic 2 Lacan faz uma equivaléncia entre agalma e objetos parciais na Seminéri A transferénca 3 Expressio de Lacan, utlizadano Seminario Aangista, “4Referencia 0 poema Soneto de Fielidade, de Vinicius de Moraes Stylus Revista de Pscanlise Ro de Janeito no. 28 p.91-96junho 2016 & Sobre.oamor odesejo eos parcelros de tais consideragdes, talvez se possa alcangar a frase que instigou esta produgao: uma relagio de amor possivel, que desta vez reconhece 0 outro, unicidade solitaria © amor é posto & prova a0 se defrontar com 0 impossivel. Diante da impossi- bilidade, pode surgir a relagao de amor possive, alternativa ao amor que visa 20 ‘complemento de ser, a0 cessar os amores com a verdade e a miragem de comple tude, uma vez consentida a sorte de falasser. referéncias bibliograficas FREUD, S, (1914), Puntualizaciones sobre el amor de transferencia. Obras Com- pletas de Sigmund Freud. Tradusio de José Luis Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. XII, 1986, pp. 159-174 LACAN, J. (1960-61). O Semindrio, livro 8: a transferéncia, Tradugao de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, 386p. (1962-63). Osemindrio, livro 10:a angustia. Traducio Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, 367p. (1964), Posigao do inconsciente. In: LACAN, J. Escritos, Tradugao ‘Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 843-864. (1964). Do “Trieb” de Freud e do desejo do psicanalista, In: LA CAN, J. Escritos. Tradugio Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, pp. 865-868, (1964). 0 Seminario, ivro 11: 0s quatro conceitos fundamentais da psicandlise. Versio brasileira de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 269p. (1972-73). 0 Seminario, livro 20: mais ainda. Versio brasileira de M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. 201p. (1973), Nota italiana, In: LACAN, J. Outros eseritos, Tradugio Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, pp. 311-315. SOLER, C. Lacan, 0 inconsciente reinventado. Tradugao Procépio Abreu. Rio de Janeiro: Cia, de Freud, 2012. 234p. resumo © presente trabalho traz-as articulagdes entre amor e desejo e, partindo do prin- cipio que no nivel do gozo nio ha par, aponta o parceiro do desejo e a parceria ‘amorosa, enquanto apresenta o amor em trés vers6 : © amor paixio ignorantedo

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