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“O amor feliz nao tem histdria’: notas sobre o amor cortés ea impossibilidade' Miriam Ximenes Pinho “O amor, isso me incomoda, A vocés também, é claro, Mas nio como a mim” (LACAN, 1973-74inédito). Também eu, instigada por este incbmodo, fui inves- tigar o fendmeno amoroso pela via de um de seus avatares, o amor cortés, cujos artificios Lacan de(se)cantou em diferentes momentos de sua obra. Do amor cortés, interessa-me o seu principio de impossibilidade e, para tanto, os Semind- ros 7,20 ¢ 21 foram examinados. Qual o estatuto dessa impossibilidade? Seria dda mesma ordem daquela que atinge todos os amores, mesmo os mais eternos? Parto de um romance de cavalaria medieval que comeca assim: “Quereis ouvir, senhores, um belo conto de amor ¢ morte? E de Tristio ¢ Isolda, a rainha. Ouvi ‘como em alegria plena e em grande afligdo eles se amaram, depois morreram no ‘mesmo dia, ele por ela, ela por ele” (BEDIER, 2012, p. 1). A lenda de Tristio versa sobre o amor ilicito entre um bravo cavaleiro e uma dama de alto valor destinada « desposar o rei Marcos, tio de Tristio, Rodeios ¢ obstéculos perseguem os aman- tes atéo desfecho trigico quando morrem um pelo outro. ‘© romance de Tristao e Isolda expressa um tipo de relagio entre um homem e uma mulher, surgido em um determinado circulo sociale hist6rico, a sociedade cortés e cavaleiresca dos séculos XII e XIII (ROUGEMONT, 1988). Um romance ‘que encanta menos por celebrar os prazeres do sentido, a paz e a felicidade dos amantes do que os entraves, o sofrimento, o amor irrealizado. Em pleno feudalis- ‘mo, trata-se de um embate em que o amor é contraposto ao casamento arranjado. ‘Uma relacio em que a fidelidade, ou melhor, a “feudalidade” (LACAN, 1973-741 {nédito) €sustentada pelo amor e nao pelo contrato. (Os trovadores medievais nomearam de firvamour esse amor fino, delicado, con- tido, cheio de cortesias e regras cavalheirescas, O amante tudo suporta, tudo sofre por sua Dama, mulher divinizada, inatingivel e, por isso mesmo, investida da mais elevada superestima. Gaston Paris foi quem, no século XIX, batizou esta relagio singular de “amor cortés” e destacou os seus tragos distintivos: 1) é ilegt- 1 Trabalho apresentade no XV Encontro Nacional da EPFCL Bras, 2014, Campo Grande-MS. Stylus Revista de Pscandlise Rio de Janeiro no. 31 p.187-193 outubro 2015 88 PINHO, Mitr ximenes timo e furtivo; 2) o amante pertence a uma classe inferior enquanto que a Dama é nobre e altiva; 3) oamor da amada é ganho por meio de demonstragio de proeza, valor e devogio; 4) 0 amor & uma arte ¢ uma ciéncia sujeita a regras ¢ regulagbes (MOORE, 1979). Hd um quinto trago a acrescentar: aconjugagio amor e morte, que no Ocidente se tornou formula de sucesso de intimeros romances, No amor cortés morre-se de amor, morre-se por amor. O amor é mortal, Um outro modo de se falar da no ¢garantia do amor, de seus limites: “Amor e morte, amor mortal: se isso nao é toda a poesia, &, 0 menos, tudo o que ha de popular, tudo 0 que hé de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e em nossas mais, belas cangdes. O amor feliz nao tem histéria, S6 existem romances do amor mor- tal, ou seja, do amor ameacado e condenado pela propria vida” (ROUGEMONT, 1988, p. 15). © amor cortés esté entre a satisfagdo erdtica e a realizagao espiritual. f “a0 ‘mesmo tempo ilicito ¢ moralmente elevado, passional edisciplinado, humilhante ¢ exaltante, humano e transcendente” (NEWMAN, 1968, p. 7). E essencialmente tum ideal... de lealdade, conduta e comportamentos que partem de uma erética (LACAN, 1959-60/2008). 0 amor é 0 pivé que langa o cavaleiro, a servigo de sua Dama, a buscar nao mais as armas, mas as virtudes (NEVES, 2004). A paixio amorosa é clevada ao estatuto de uma moral. O amante étransfigurado na medi- dda em que submete sua paixio a um idedrio sublime compensatério. Ernesse sentido que Lacan (1959-60/2008, p. 156), no Semtindrio 7, tomouo can- to dedicado 20 amor cortés como “uma obra de sublimagio em seu mais puro alcance”, O objeto do amor cortés, um objeto feminino, ¢ idealizado, exaltado, elevado “A dignidade da Coisa” (Ibid, p. 137). De outro modo, se uma mulher € qualificada como a Dama, um objeto digno do mais alto louvor, isso se deve _menos as suas virtudes reais e concretas do que aquilo que os trovadores criaram: ‘um objeto “enlouquecedor, um parceiro desumano”, cujo alto valor esta em se prestar a ser um objeto transcendente a si mesmo, uma representagio da Coisa (Ibid, p. 182). Sea mulher é cortejada como um significante a servigo da Coisa, ¢ compreen- sivel a produgéo do cariter desumano da belle dame sans merci [bela dama sem misericérdial* que exige de seu cavaleiro-amante toda espécie de homenagens e servigos por mais absurdos ou arbitrdrios que sejam. Uma relagio de vassalagem qual o cavaleiro se submete com o intuito de provar-se, enobrecer-se para, por fim, se fazer merecedor de sua inalcangvel amada. Malgrado seus esforyos, 0 ob- jeto cobigado sempre falta ao encontro, permanece inacessivel. Na obra poética, 2Referéncia a0 célebre pooma de John Keats, ‘Labelle dame sans mer escrito em 1819, Stylus Revista dePsicandlise Rio de Janeiro no. 31 p.187-193 outubro 2015 *O.amorfeliznao tem histéria™ notas sobre o amr cortés ealmpossibidade “nio ha possibilidade de cantar a Dama [.] sem o pressuposto de uma barreira ‘que.a cerque ea isole” (LACAN, 1959-60/2008, p. 181) ‘A Dama, no lugar da Coisa, é um objeto produzido para ser cingido, mas jamais, atingido. © cortejo do amor nao implica goz0 do corpo. “Fazer amor é poesia, ‘mas hi um mundo entre a poesia e 0 ato” (LACAN, 1972-73/2008, p. 78). A erbtica cortés prima pelo amor em suspensio, interruptus, irrealizavel, impossivel. ‘No Semindrio 20, Lacan (1972-73/2008) evoca novamente o amor cortés, desta ver para associé-lo com 0 fato de que “entre os sexos, no ser falante, a relagio rio se dé” (Ibid. p. 72) 6.0 tempo da nao relagio sexual. E 0 amor cortés, 0 que @ “Uma mancira inteiramente refinada de suprir a auséncia de relagéo sexual, fingindo que somos nés que lhe pomos obsticulos” (Ibid, p. 75). O romance de ‘Tristio e Tsolda segue risca a formula do amor inflamado, mas impossibilitado por iniimeros entraves: a diferenga de status entre o humilde cavaleiro e a nobre Dama; 0 marido ciumento; as intrigas dos invejosos e dos maledicentes de plan- tio e ainda aqueles inventados pelos préprios amantes, tal como o casamento pre-

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