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|. CRISE, DESIGUALDADES E A ATUALIDADE DE MARX NA CRITICA AO CAPITALISMO' ‘Manuel Carlos Silva e Fernando Bessa Ribeiro Introdugao ‘© materialismo histérico e dialético, como fundamento tedrico-metodoldgico do marxismo ¢ este como o conjunto de principios sustentados pelos seus fundadores ‘Marx e Engels para a interpretacéo da histéria, dos diversos modos de produsao ¢ tipos de formagées sociais, nomeadamente do modo de producio capitalista, tem. sido desde o século XIX fonte inspiradora para a explicayao dos fenémenos econd- ios, sociais e politico-ideolégicos nas sociedades modernas. © micleo central de teses ¢ argumentos da teoria marxista continuam vilidos, nao obstante os altos ¢ baixos dos movimentos e das organizacées que nela se inspiram e, paradoxalmente, os sucessivos antincios da sua morte e recorrentes ataques fabricados ¢ lancados por tedricos (ultra)conservadores, (neo)liberais ¢ até social-democratas ¢ respetivos aparelhos comunicacionais e politicos do statu quo, nomeadamente apés a queda do muro de Berlim, Ou seja, apesar das declaragies de dbito e/ou de anacronismo sobre ‘© marxismo feitas pela burguesia e seus bragos medisticos ¢ intelectuais defensores da ordem vigente, os escritos dos fundadores do marxismo estio bem vivos e pre- sentes para inspirar e mobilizar nio s6 teéricos e investigadores das mais diversas, ciéncias sociais, como ativistas sociaise politicos? 1 Uma versto parcial do texto, baseada nos pontos tes quatro, estépublicada na revista ita liana La Critica Sociologica (2022, vol LVI, n° 222, 39-50), Agradecemos a Mara Clemente a tradugio revisio meticulosa do texto para italian. 2 Se tomarmor como indicador 0 Google Trends, constata-se que Marx ¢ 0$ tépicos mais ‘conectados com o marxismo (vg, lula de classes, ocialismo, comunismo) sio objeto de ‘pesquisa recorrente. Talvez ainda mais relevante, no contronto entre Marx ¢ Weber, o pri- reiro é manifestamente mais perquisado do que o segundo (ct hiips/trende google com/ tuends/exploretdate=all&eq=Karl%20Marx Max%20Weber). Sendo Marx, de modo geral 2% Em jeito de abertura as questies, argumentos ¢ perspetivas que dao corpo a este livro, pretendemos fazer uma interpelagio geral ao capitalismo - um sistema eco- ndmico, social e politico entendido, no sentido braudeliano, como ‘civilizagio’ que destrona a senhoriagem ¢ inaugura novas contradigées -, tomando como referencia dois aspetos cruciais que nao podem ser compreendidos em separado: as desigual: dades sociais ¢ os danos ambientais, Guiado pela busca incessante da mais-valia, ‘sua “marca genética’ ~ a qual, reproduzida e ampliada no seu desenvolvimento, constitui a razdo da sua existéncia -, o capitalismo como sistema histérico legitima todos os meios para se reproduzir, explorando a forga de trabalho de bilides de seres humanos, produzindo injusticas, desigualdades e guerras e pondo em causa a pré pria existéncia da humanidade e de muitas outras formas de vida, tal como o assina- laram, ais de modo pioneiro, Marx e Engels em diversos textos. Em apenas duas décadas so ja duas as crises que enfrentamos. A bem dizer, ‘mal se saiu da ultima - cujos efeitos, sob a forma de alargamento das desigualda- des sociais e aumento das dividas publicas e privadas, continuam bem presentes ~ engrenamos numa nova crise, aparentemente de um outro tipo. Como oi ja dis- cutido em texto recente (Ribeiro, Leite ¢ Felizes 2020), a compreensio desta crise deve comecar por ir mais além dos apelos piedosos & coesio politica e unidade de cio - “estamos juntos e juntos venceremos o virus’, anunciou Anténio Guterres, 0 Secretério-geral da Organizagio das Nagbes Unidas (ONU 2020) ~ e focar o olhar no que realmente ela nos exige: proceder a uma interpelagio critica do proprio sis- tema capitalista, assumindo a sua historicidade como componente que o fard ero dir, corroer pelas suas proprias contradigdes, combaté-oe, a longo prazo, superi-lo para uma sociedade ecossocialista. Dadas as teses de conservadores e neoliberais, defensoras da imutabilidade do capitalismo e/ou de mutacio para o que é designado considerado como o teérico procminente do materialism histricae dilético ¢ do préprio smarxisme, importa, convocando a figura metaférica da face de Janus, salientar 0 contributo imprescindivel de Engels no apenas como amigo, companheiro de utae provedor de Marx. ‘mas também como parceiro de reflexio c estado sobre a dialétca na natureza ena sociedade, 4 economia politica, aestruturae historia do capitalismo industrial, as condigoes de vida da dlasse operivia. Por isso, em linha com 0 defendido por Krakte (2020), impée-se a necessiria revalorizagao da figura e do lugar de Engels como fundador do marxismo. 3 Escrito antes da guerra na Uni, a revisto derradeira deste texto ocorve num momento em que de nove nos confrontamos de modo especialmente exacerdado com a eventvalidade do aniguilamento atSmico. Nio cabendo aqui uma discussio aprofundada sobre esta nova crise, importa sublinhar que a mesma nio pode ser compreendida fora das dinimicas do funciona mento do capitalise marcadas pela mudanca irreversvel da hegemonia do Ocidente para © Oriente, tendo como polo central a China ¢ as relagSes geopolitcas e econémices dela ddecorzentes, naz quais a Rissia se assume como poténcia secundiria mas estratégica nesta lta sem tréguas entre as partes envelvidae. por pés-capitalismo e sua combinagao com uma democracia radical ou radicalizada, como sustentam Santos (1994 ¢ 2009) ¢ Laclau e Mouffe (1987) ou ainda o novo achado teérico de ‘império sem imperialismo’ de Hardt e Negri (2000),* poder-se-4 formular a questio do seguinte modo: terd o capitalismo deixado de ser um sistema historico, tornando-se o sistema final da hist6ria, como defendeu Fukuyama (1997), implicando a rendigéo & mercantilizacdo de todas as coisas a submissio da vida humana a0 mercado, em nome de uma pretensa eficiéncia econémica? Ou, pelo contrario, o capitalismo, sendo um sistema historico, é como tal, passivel de ser objeto de critica desde a sua génese aos diversos desenvolvimentos atuais sob formas imperialistas, implicando assim a exigéncia politica e aco coletiva em vista da sua superagio e da construcio de uma sociedade ecossocialista? Partilhando nés desta segunda tese, tal pressupde certamente uma critica na peugada marxista a0 capi- talismo nas suas dimensdes econdmica, social e politica, expressas sob a forma de «rises ciclicas ¢ de guerra; porém, sem descurar os contributes dos préprios funda- dores do marxismo, ela convoca reflexes suplementares sobre a devastagio ambien tal decorrente do seu funcionamento, jé largamente desenvolvida por varios autores xiticos do capitalismo. Se, entre os criticos do neoliberalismo provindos de varios, 4quadrantes € assumido estar hoje o neoliberalismo, nalguns casos, articulado com 0 conservadorismo da extrema-direita, teremos também, na esteira de Boron (2006), de operar certamente uma critica cerrada relativamente as narrativas pés-moder- nas celebratérias do statu quo como as de Lyotard (2009 [1979]) e Maffesoli (1985), ‘mas, num outro registo, proceder também a alguma vigilincia critica relativamente a alternativas embrulhadas sob novas teorias eriticas da ‘velha' teoria critica, sus- tentada por virios autores como Santos (2017) que tendem a interpretar de modo sobranceiro e mesmo errado a teoria marxista, assim como a teoria critica da Escola de Francoforte ¢ outras, considerando-as absorvidas ¢ colonizadas pela narrativa hhegeménica moderna. 4 Segundo estes autores, “Os Estados Unidos nio constituer ~ ¢, na verdad, nenbuim outeo Estado-nacio pode constitu hoje ~0 centro de um projeto imperialista” Mais, a guerra do Golfo desencadeada pelos Estados Unidos sobre o aque em 1991 teria sido realizada “nto ‘como uma fungio de suas motivagies nacionais dos Estados Unidos mas sim em nome do dizeito global” (Hardt e Negri 2000; 180). Este iro acolhido benignamente nalguns ciculos de exquerda fo, todavia, studado por varios colunistas de revistas anglo-americanas como ‘Times, New York Times, London Observer (ef Foster 2006: 441), 2» 1. Marx eo marxismo na critica ao capitalismo e suas crise: Discutir, uma vez mais, os fundamentos teéricos e politicos ‘Mesmo sabendo que 0 marxismo representa um corte epistemolégico com as gno- seologias anteriores um eixo incontornavel no projeto emancipatério da huma- nidade (Althusser 1972), ele néo é apenas mais uma teoria do conhecimento nem. tio pouco um mero projeto de pesquisa ou um conjunto de textos que se esgotam za biografia dos seus fundadores.* Ele pressup6e, como sublinham Lukées (2003 [1923]) e Boron (2006: 375s), um incontornavel método revoluciondrio, Conhecido por materialismo histérico e dialético (caraterizado pela totalidade, contradigio e ‘mudanca), constitui uma alavanca de compreensio e explicacéo da realidade, assim como um instrumento para a sua transformagio e uma forte inspiracao de movi ‘mentos sociais, nomeadamente sindicais, de organizagées e partidos dos trabalha- dores. Queremos com isto dizer que os argumentos de Marx ¢ Engels continuam a ser imprescindiveis para armar intelectualmente as lutas sociais e politicas. Com eles temos um caminho tedrico para, considerando o trajeto do capitalismo, adquirir ‘uma compreensio aprofundada das formas da exploracao e opressio, a0 mesmo tempo que fornecem inspiracio para renovar as lutas, 0s movimentos sociais € os partidos politicos de esquerda, tendo no horizonte a emancipacio social, No primeiro pais do mundo em que os trabalhadores organizados no ¢ pelo Partido Bolchevique ¢ coadjuvados por intelectuais orginicos no seu seio con- quistaram o poder e construiram a Unido Soviética,‘ enquanto Estado de orien- tacao socialista, a aristocracia ¢ a burguesia deixaram de mandar e, consequente- mente, os meios de produgio foram socializados. A médio-longo prazo nio foi, todavia, bem-sucedida esta experiéncia politica na medida em que, a par de con- quistas internas ¢ contributos decisivos para degolar 0 nazismo e enfraquecer 0 5 Nio obstante a justeza da tese de Althusser (1972) sobre o marxismo como rutura cpistemolégica e tebrica, a este respeito o ertruturaliemo dogmético deste autor leva-o a operar indevidamente uma cisto artificial entre o jovem humanista e ideélogo Marx e 0 maduro e centifico Marx, posicio esta desconstruida por Cerroni (1976), Boron (2006a) ¢ Silva (2022), sem ignorar avangos e maturagées no pensamento de Marx. 5 Cabe refeir em particular teéricos como Lenine e Trotsky. Para além de lideres da revolugso «de Outubro, inspirados na prais revelucionéria desenvolveram, nas novas edifices condigbet |istricas, a teoria marxistadesignadamente em torno do materalismo histérieo e dialético, ddo desenvolvimento do eapitalismo na Rissa e das classes socins, da organizagio politica e critica & social democraca, da revolusio e cobretudo do fendmeno do imperiaismo como cstidio supremo do captalismo, tese esta nfo totalmente partlhada por Rora Luxemburgo (1967 [1912], teGrica e lider do Partido Comunista Alemdo, asassinada pela ala direta da social-demacracia em janeiro de 1919, juntamente com o seu camarada Kat] Licbknecht. capitalismo em diversos paises, o capitalismo viria a restaurar-se. O ‘socialismo real’ acabou por sogobrar gracas a um conjunto de fatores internos ¢ externos, sendo de assinalar a visio linear e inelutivel do processo historico e a subsequente tese do surgimento automatico do ‘homem nove’ a partir da socializagao dos meios de produgo e do desenvolvimento das forcas produtivas sob a planificagio dita socialista, a néo realizacao da alianga operdrio-camponesa, @ falta de democracia interna no modelo organizacional de ‘centralismo democritico’ ea perseguicio de dirigentes dissidentes (Ikotsky, Zinoviev, Bukarine), processos de burocratiza¢io, aproveitamento de lugares de comando para beneficio da nomenclatura no topo do Partido Bolchevique e do Estado. Apesar das derrotas desta e doutras experién cias de orientagao socialista no Leste de Furopa e noutros quadrantes e paises ~ as quais podem ser tecidas criticas pertinentes pelos seus erros, deformagdes ou des- vvios ~ Marx ¢ Engels continuam a ser fundamentais para pensar 0 passado, 0 pre- sente ¢ o futuro da sociedade humana e, num plano mais amplo, da prépria vida na terra, Porém, tal implica superar nao s6 interpretagoes economicistas e reformis tas do marxismo pela II Internacional inspiradas em autores revisionistas como Kautsky (1974/1897) e Bernstein (1964/1899), como as concesdes mecanicistas, ¢ inclusive fossilizadas do marxismo por parte do estalinismo, perpassadas por tragos hagiogréficos para com a figura de Estaline e reforcadas por um sectarismo organizacional, com perseguicio, repressio e eliminacio de opositores internos no seio do Partido Bolchevique, Com efeito, contrariamente @ uma leitura vulgar, nao pode ser imputado a Marx e Engels um determinismo economicista e mecanico, se tivermos bem presentes os jf referidos principios do materialismo historico ¢ dialético ¢, em especial, parte considerivel dos seus escritos no que concerne & relacio entre a infraestrutura, traduzida nas relagSes econdmicas e demais condi- ‘gbes materiais de existéncia, ¢ a superestrutura, compreendendo as relagdes juri- dicas, politicas, ideologicas, estéticas, éticas e religiosas. Com efeito, Marx (1976a (1857) analisa a sociedade como uma totalidade dialética, perpassada de contra- digdes e mudangas de ordem quantitativa ¢ qualitativa, em que 0 concreto, como refere na Introdugdo Geral a Critica da Economia Politica (Marx 1976a [185 129) “& concreto porque é a sintese de miitiplas determinagées, portanto, unidade do diverso’, ou seja, como resultado de fatores ou dimensées que nao constituem. esferas separadas ou fragmentadas, como mais tarde desenvolveram Lukécs (2003, [1923)), Labriola (1949) ¢ Gramsci (1974) com base no conceito de totalidade dialética. Considerando as hegeménicas concegses filosoficas idealistas da época, ‘em que os avancos histéricos eram atribuidos & evolugéo das ideias ¢ do espirito hhumano criador do real, Marx e Engels (1976 [1846]), embora apropriando-se dda dialética hegeliana da tese antitese e sintese, tiveram de enfrentar ¢ refutar 0 » 20 carter idealista da filosofia entio reinante, invertendo 0 edificio hegeliano assente zo movimento dialético da ideia ou do espirito e deslocando-se para o movimento dialético da matéria, quer na natureza, quer na sociedade, em suma, na praxis, material, social, historica, Relativamente a este confronto filoséfico do materia lismo histérico e dialético com o idealismo hegeliano, importa assinalar a tradu ‘40 enviesada do conceito alemao de bedingen utilizado por Marx pata expressar a relagio entre producéo da vida material e a vida politica e espiritual, © qual foi indevidamente traduzido como determinar (bestimmen) em vez de condicionar. De resto, a énfase na dimensio técnico-econdmica, tal como o refere Silva (2009), foi mais tarde repetidamente esclarecido por Engels em cartas a J. Bloch e a K. Schmidt, nao s6 por razbes do combate ao idealismo como por falta de tempo, espaco e oportunidade de dar relevo a outros fatores: Segundo a concegio materilista da histria,o fator que em sikima instincia det ‘mina a historia €a produgdo ¢ a reprodugio da vida real, Nem Marx nem eu nunca afitmamos mals do que isso, Se alguém o distorce dizendo que 0 fator econémico & fo nico determinante converteré aquea tese numa faze views, abstata e absurd, A situagdo econémicaéa base, mas os diversosfatores da superestrutura que sobre ela se levantam - as formas politics das lutas de classes e seus resultados, a¢ Constituigdes as formas jurdicas., as teorias politcas, juridicas,floséficas, as ideiasreligiosas cexercem também sa inluéncia sobre 0 curto das ltas histéricas¢ determinam, em muitos casos, sua forma... Que os diseipulos facam as vezes mais pé firme do que © Gevido no aspeto econémico & coisa da qual, em parte, temos a culpa Marx eeu mesmo, Frente aos adversirios inhamoe que sublinhar este prine 1 cardinal que se negava, © nem sempre dispiinhamos de tempo, espago e ocasiéo para dar a devids importincia 0s demas fatores que intervém no jogo das agbese reagbes (Carta de Engels a. Bloch 22/09/1890, 1965 [1880]: 494), E, numa outra carta a K, Schmidt, refere Engels relativamente aos criticos de Marx e dele: De que adoccem todos estes senhores é de falls de disltica, Nio véem mais que causas qui e efeitos ali Que isto & uma abstragio varia, que no mundo real estas antiteses polares metafisicas no existem mais gue em momentos de crise e que a grande traje- {ia das coise discorre toda ela sob formas de agbes e reagses inda que de formas muito desiguais, a mais forte, mas priméria e mais decisiva £0 movimento econdmico, {que aqui nio hi nada de absoluto c tudo ¢ relative, é coisa que eles nio vem: para cles Hegel nao existin (Carta de Engels a K. Schmidt, 27/10/1890, 1966 [1890]: 501), Contrariamente a uma leitura parcial e enviesada de Marx assente num ou nou- tro texto tal como a Contribuigao para Critica da Economia Politica (Marx 1976a [1857]), de modo algum é sustentavel uma concepgdo mecinica ¢ economicista nos fundadores do materialism histérico nomeadamente no que concerne a emer- .géncia espontinea ou passagem automitica da “classe em si” para a “classe para si’, sendo Marx (1975 [1869] ¢ 1975a [1895]) bem consciente dos obstéculos politicos ¢€ ideoldgicos nomeadamente em relagéo A tomada de consciéncia e agao coletiva, nomeadamente por parte dos camponeses, Por seu turno, Engels (1942 [1890]) des- taca a relevincia do politico ¢ ideologico, insurgindo-se mesmo contra jovens escri- tores produtores de fraseologias alegadamente materialistas: ‘A concepgio materialsta da istiia tem hoje uma série de amigos, a quem tal serve de

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