You are on page 1of 6
22112128, 0958 Diferenciar para incluir ou para excluir? Por uma pedagogia da iferenca DIVERSA 2 @ Diferenciar para incluir ou para excluir? Por uma pedagogia da diferenga Matia Teresa Eglér Mantoan - 29/10/2013 Em sua aproximacao inicial, a inclusao escolar foi entendida sumariamente como a insercao dos estudantes com deficiéncia que frequentavam classes e escolas especiais nas turmas das escolas comuns. Conquanto ainda muitos a concebam assim, estamos chegando pouco a pouco & compreensao de seu mote: garantir 0 direito & diferenca na igualdade de direitos 8 educagao. A educacao brasileira, na Constituicdo de 1988, tem como principio a observancia do direito incondicional e indisponivel de todos os alunos a educagao. A Convencio Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiéncia, de 2007, assimilada ao nosso ordenamento corrobora esse direito. A garantia do acesso e permanéncia de todos a escola comum ¢ absolutamente necesséria, mas insu jente para que a educacao inclusiva se efetive em nossas redes de ensino. O direito & diferenca é determinante para que sejam cumpridas as exigéncias dessa educagao, propiciando a participacao dos alunos no proceso escolar geral, na medida das capacidades de cada um, Quando nos referimos a igualdade, estamos falando de direitos iguais e ndo de educandos igualados e reduzidos a uma identidade que Ihes é atribuida e definida de fora, formando conjuntos arbitrariamente compostos: bons e maus, repetentes e bem sucedidos, normais e especiais etc. Quando nos referimos ao direito a diferenca, estamos tratando da diferenga entre os estudantes que, mesmo passiveis de serem agrupados por uma semelhanga qualquer, continuam diferentes entre si, dado que a diferenca tem seu sentido adiado infinitamente, Diferenga e identidades na escola As praticas da inclusdo giram em torno de uma questo de fundo: a produgao da identidade e da diferenga, Coloca em xeque a estabilidade da identidade, usualmente compreendida como algo fixado, imutavel; questiona a diferenga, como uma referéncia pela qual alguns grupos discutem seus tracos a partir de concepsées de “comunidade”, enfatizando as necessidades comuns desses grupos. Os sentidos da identidade e da diferenca nos fazem cair em muitas armadilhas, obrigando-nos a caminhar com cuidado para evitar as insidiosas ciladas. A inclusao implica pedagogicamente na consideracao da diferenca dos alunos, em processos educacionais iguais para todos. A ambivaléncia dessa situacao assemelha-se ao andar no fio da navalha. Exige um equillbrio. dinamico dos que atuam nas escolas para que possam atender plenamente o que a inclusdo nitpsfaiversa.org.brartgos/diferenciar-pare-incur-ou-para-exclur-poruma-pedagogia-de-iferenca/ 16 22112123, 08:58 Diferenciar par inluir ou para excluir? Por uma pedagooia da “a prescreve como pratica pedagégica, ou melhor, para nao cair em diferenciagdes que excluem e nem pender para a igualdade, que descaracteriza o que é peculiar a cada educando. A igualdade gera identidades naturalizadas, estaveis, fixadas nas pessoas ou em grupos e elas tem sido Uteis para que a escola defina aparatos pedagégicos e estabeleca em sua organizacao critérios e perfis educacionais idealizados. A diferenca nao cabe nesses perfis engessados, nas classificacdes e identificacdes que encerram os estudantes mais adiantados, por exemplo, em uma dada turma, os mais atrasados, em outra. Os alunos sao sujeitos tinicos, singulares, heterogéneos, que no se encaixam plenamente nelas. A diferenca e as identidades sao tao instaveis quanto 0 processo de significagdo do qual dependem. Elas tém sentidos incompletos e, sendo cara e coroa da mesma moeda, ambas estdo sujeitas a relades de poder, entre as quais as exercidas na escola. Diferenciar para incluir ou para excluir? Na lida com os professores e pais de alunos com deficiéncia é comum chegarem até mim casos em que uma crianga ou jovem é barrado no acesso & escola, em razao de sua diferenca. Tal motivo tem sido usado para justificar o despreparo dos professores, das edificacées, mobilidrios e ambiente fisico das escolas, concebidos para os que se enquadram em um padrao, os que nao exigem mudancas no que esté estabelecido e aceito para alguns e nao para todos. 0 fato ¢ que as pessoas ndo se reduzem a modelos identitarios estabelecidos arbitrariamente e produzidos pela dificuldade de lidarmos com o cardter emergente, imanente e inacabado do sujeito em todas as fases de sua existéncia, As diferencas definidas por agrupamentos constituidos pela semelhanca de um ou mais atributos tendem a se tornarem permanentes, reificadas descartando o carater mutante da diferenca e sua capacidade de escapar a toda convengao possivel. Quando se abstrai a diferenca, para se chegar a um sujeito universal, a inclusdo perde seu sentido. Conceber e tratar as pessoas igualmente esconde suas especificidades. Porém, enfatizar suas diferencas, pode exclui-las do mesmo modo. Como, entao, encarar 0 processo ardiloso de (des)equilibraco impostos pela incluso? Como ir em frente, sem cair nas suas armadilhas? Distinguir diferenca de diversidade é um primeiro passo. Nao se trata de um jogo de palavras, mas de se reconhecer a natureza de ambas. A diferenca tem natureza multiplicativa e ndo se reduz & identidade - a diferenga vai diferindo e se reproduzindo. A diversidade tem a ver com 0 idéntico e, portanto, com o existente, o imutdvel. Identidade e diferenca nao se compéem. Ademais, estamos habituados as formas de representacdo da diferenca, que sdo resultantes de comparacées e de contrastes externos. As peculiaridades definem a pessoa e esto sujeitas a diferenciacbes continuas, tanto interna, como externamente. Para Burbules, estudioso do tema, a forma usual de se pensar a diferenca é estabelecendo diferencas “entre”, que resultam de oposic6es bindrias e nos remetem ao idéntico, ao existente, a ideia de diversidade, Os modos de subjetivacao nos aprisionam na representacao pela qual o outro nos define. Uma identidade enunciada resulta do poder de assujeitamento de quem nos nomeia. Segundo Guattari, htips:ildversa.orgbrlarigosiiferenciar-pare-inclu-ou-pare-exclul-por-uma-pedagogia-da-iferencal 216, 2an2, 09:58 Dierenciar para incu ov para exclu? Por uma pedagoga da derenga a producao subjetiva, ou melhor, a fixaco em uma identidade atribufda de fora torna a pessoa tributéria de verdades universais, que a fazem perder a sua singularidade e submeter-se a exclusio, Por se apoiarem no sentido da diferenca “entre” e em discursos cientificos que instituem a identidade pela definigao de desvios e da normalidade, grande parte de nossas politicas puiblicas confirmam o projeto igualitarista e universalista da modernidade. Embora ja tenhamos avangado muito, desconstruir o sentido de diferenga “entre” e desconsiderar a identidade idealizada e fixa do individuo modelar em nossos cenérios sociais é ainda uma gigantesca tarefa. A diferenca “entre” esta subjacente a todos os entraves as mudangas propostas pela inclusao. Velada ou explicitamente, ao fazermos comparacées, fixamos padrées desejaveis, definimos classes e subclasses com base em atributos que nao dao conta das pessoas por completo, excluindo-as por fugirem & média ou & norma estabelecida. O poder que subjaz a essas. enunciacdes estabelece, pela via da comparasao, os processos de diferenciacao para excluir, que limitam o direito de participacao social e 0 gozo do direito de decidir e de opinar de determinadas pessoas e populagdes. Essa tendéncia se opde a incluso e ainda é a mais frequente. A diferenciacao para incluir como saida para se enfrentar as ciladas da inclusio est se impondo 0s poucos e cada vez mais se destacando e promovendo a incluso total. Tal processo de diferenciagao implica a quebra de barteiras fisicas, atitudinais, comunicacionais, que impedem algumas pessoas em certas situagées e circunstancias de conviverem, cooperarem, estarem com todos, participando, compartilhando com os demais da vida social, escolar, familiar, laboral, como sujeitos de direito e de deveres comuns a todos. Ao diferenciarmos para incluir, estamos reconhecendo o sentido multiplicativo e incomensurével da diferenga, que vaza e nao permite contengées, porque esta se diferenciando sempre, interna e externamente, em cada sujeito. Essa forma de diferenciagao, na concepgao de Burbules e de outros autores voltados para o estudo da diferenca, é fluida e bem-vinda, porque nao celebra, aceita, nivela, mas questiona a diferenca, Em uma palavra, entfrentar as ciladas da incluso ¢ reagir contra 0s valores da sociedade dominante e rejeitar o pluralismo, entendide como uma incorporagao da diferenca pela mera aceitacao do outro, sem conflitos, sem confronto, A incluso desestabiliza a diferenca tolerada e coloca em xeque a sua produgao social, como um valor negativo, discriminador e marginalizante. Os que se envolvem na defesa dos preceitos inclusivos precisam estar atentos ao sentido da diferenga como padrao produzido pelos que procuram se diferenciar cada vez mais para manter a estabilidade de sua identificagao ou diferenga, Ai mora o perigo. Hé muitas formas de se contribuir para que se confirme o sentido desestabilizante da diferenca, no qual a inclusdo se fundamenta, para que continuemos a progredir na direcao de uma sociedade verdadeiramente democratica. Deslizes que possam ocorrer no entendimento do direito a diferenca, com base no que esta significa, e durante os processos de diferenciacao criam problemas e caminhos equivocados para 05 que buscam construir uma pedagogia alinhada aos preceitos inclusivos. Os processos de diferenciagao precisam ser cuidadosamente observados, para que, na intengao de acertar, as escolas acabem se perdendo e caindo em armadilhas dificeis de escapar. nitpsfaiversa.org.brartgos/diferenciar-pare-incur-ou-para-exclur-poruma-pedagogia-de-iferenca/ ais 2an2, 09:58 Diferenciar para incu ov para exclu? Por uma pedagoga da derenga Diferenciar para incluir é possivel, quando a aluno ou beneficidrio de uma aco afirmativa qualquer estiver no gozo do direito de escolha ou nao dessa diferenciacao. Um exemplo desse direito é 0 aluno que pode optar pelo lugar que ocupard em uma sala de aula, quando usa cadeira de rodas. Ele nao ¢ obrigado a se sujeitar @ imposicao de sentar-se sempre a frente de todos, em um lugar especial, definido por especialistas, se sua turma de colegas est localizada mais ao fundo. Um aluno cego ou com baixa visdo, que é 0 Unico a usar um computador na sala de aula nao esta sendo diferenciado e excluido dos seus colegas, se o computador o faz participar das aulas com autonomia e independéncia, por meio de um leitor de tela, por exemplo. Ele também tem o direito de estudar os contetidos escolares em braille, ampliados na fonte ¢ essas diferenciagdes sao aceitdveis, porque nao sao recursos que o discriminarao em sala de aula. Nos exemplos de diferenciagées citados, que envolvem incluso nos processos educativos, estio resguardados os direitos a igualdade - de estudar e compartilhar conhecimentos com os colegas de turma - e a diferenga, que assegura ao aluno equipamentos, apoio da tecnologia na sala de aula e outros suportes e que Ihe faculta a liberdade de escolhé-los, de modo que se sinta melhor assistido para participar das aulas e aprender. Hé alunos que sao diferenciados por participarem de programas de reforco escolar e outros cujos estudos so realizados de acordo com atividades contetidos adaptados e limitados, que professores e especialistas Ihes prescrevem na iluséo de serem capazes de definir e controlar 0 aprendizado. Ha mesmo intervencdes que so realizadas por professores de educacao especial, que acontecem na sala de aula, durante as atividades didtias e que também diferencia alunos, excluindo-os da turma, mesmo temporariamente, Muitos poderao entender que essas diferenciacées sao para incluir, pois do contrério os alunos seriam relegados pela escola, por falta de atenso a suas necessidades. Ocorre que tais programas, por restringirem contetidos e atividades escolares, so considerados discriminatérios e excludentes e atentam para a liberdade de estudante aceité-las ou ndo, no perfodo de aula. Na boa vontade de “customizar” o processo educativo, de modo que se ajuste ao feitio de cada um, a exclusio se manifesta, embora estejamos pretendendo o contrério. A escola tem poderes para diferenciar e para identificar os alunos, submetendo-os a mecanismos de inclusao e de exclusao educacional. Uma pedagogia da diferenga A tendéncia de diferenciar o ensino escolar comum para certos grupos ou mesmo para um tinico aluno é uma pratica que nao corresponde a uma educacao verdadeiramente inclusiva, Os aparatos pedagégicos que visam tornar menor ou maior o grau de dificuldade do ensino nas salas de aula, associar exclusivamente algumas atividades e niveis de dificuldade a certos alunos, realizar a escolarizagao de alguns, seguindo uma programacao a parte, mesmo que estejam gozando igual direito de estar com todos nas salas de aulas do ensino comum, eles continuam sendo excludentes @, portanto, descumprindo 0 direito a diferenca nitpsfaiversa.org.brartgos/diferenciar-pare-incur-ou-para-exclur-poruma-pedagogia-de-iferenca/ 46 2an2, 09:58 Dierenciar para incu ov para exclu? Por uma pedagogia da derenga Para que uma pedagogia da incluso seja exercida nas escolas, ela deverd acolher a diferenca de todos os alunos como préprias da natureza multiplicativa da diferenga, que se reproduzem, nao se repetem, se ampliam e nao se reduzem ao idéntico e existente. Esse acolhimento impede que o ensino e aprendizagem escolares de alguns alunos sejam restritas a curriculos adaptados, objetivos educacionais reduzidos, critérios de avaliagio abrandados, terminalidade especifica para cettificacao escolar, facilitagao de atividades, sempre levando em conta 0 que o nosso poder de decidir sobre o que nossos alunos tém ou nao capacidade de aprender. Tais procedimentos diferenciam para excluir e so préprios de um ensino diferenciado que chega ao nivel de sua individualizagao, ou seja, a ser proposto sob medida para cada um. A pedagogia a que queremos chegar nao seria jamais concebida como uma pedagogia que congela identidades e que em funcao dessa estabilidade construida, estabelece um campo especifico, uma férmula padrao para atuar com cada uma delas. Sao tipicas desse congelamento as pedagogias para alunos com deficiéncia intelectual, com surdez, com problemas de linguagem, em que a “customizagao” do ensino considera o cliente como um sujeito abstrato, desencarnado para os quais se destinam procedimentos universalizados, generalizados. A esta maneira de fazer educagao escolar comum e especial podermos chamar de “pedagogia da diversidade”, em que a diferenga é redutivel a identidade, a um dado cultural, & natureza. Na linha da diversidade, esto as pedagogias das etnias, religides, género, minorias, que tem um caréter estatico e que celebram identidades estaveis, prontas, que se impdem como representativas de grupos que buscam entre outros objetivos, a afirmagao social. Essas pedagogias diferem da pedagogia da diferenga, construida no entendimento pleno da inclusdo, destinada a alunos que nao se repetem e para os quais é impensavel sugerir qualquer “customizacio" educativa. No ambito dessa pedagogia, que ¢ inclusiva por natureza, é 0 aluno que introduz a cunha da diferenga ao ensino e a aprendizagem, trazendo para a sala de aula mudangas substanciais, que atingem 0 papel do professor, sugerindo moderacao na sua fungio explicativa na de sancionar acertos e erros e deixando espaco para que a criatividade e as descobertas se manifestem a partir das experiéncias e buscas do aluno. A expressio livre de ideias, sentimentos, posicionamentos desioca 0 poder que identifica e reduz as diferengas a niveis de compreensao, desempenho e acompanhamento do ensino, segundo normas que permitem distinguir a verdade no que parece ser um ero. O exercicio propiciado pelo ensino em que a autonomia intelectual revela a capacidade de tomada de decisio do aluno, escolhendo por si sé suas tarefas e 0 modo de desenvolvé-las, de acordo com suas capacidades e interesses, corresponde ao que almejamos atingir em uma pedagogia alinhada a incluso. © trabalho colaborativo, préprio da pedagogia da diferenga, organiza-se em redes, onde o saber circula horizontalmente, sem hierarquia. Todos tém o que ensinar e aprender em um ambiente escolar caracterizado pela diferenga de capacidades, as quais circulam e diluem a autoria do conhecimento conferida a um Unico aluno. Os contetidos escolares disponibilizados para todos, a partir de atividades diversificadas e de livre escolha, as quais nao foram predefinidas para um grupo ou para um aluno em especial, oferecem nitpsfaiversa.org.brartgos/diferenciar-pare-incur-ou-para-exclur-poruma-pedagogia-de-iferenca/ 56 22112123, 08:58 Diferenciar para inluir ou para excluir? Por uma pedagogia da al na 20s professores indicios sobre as capacidades dos alunos e sobre o que desejam conhecer, tornando-0s sujeitos ativos do conhecimento. Em resposta ao que seria uma pedagogia que nao cai nas armadilhas da diferenca, propomos que a incumbéncia de “customizar” seja do aluno e ndo do professor. Ao colocar em acao suas capacidades, diante de um conteudo que pode explorar, sem o controle externo da verdade, o aluno compreendera o novo nas suas medidas e confortavelmente transitaré pelos caminhos que tracou para aprender. Uma sociedade inclusiva é possivel e esta a caminho. Os avancos nessa direcao sao evidentes e resultantes de conquistas que os tornam itreversiveis. Nosso compromisso como educadores do século XXI reveste-se da responsabilidade de concretizar uma pedagogia que responda aos anseios e necessidades desse novo tempo. Maria Teresa Eglér Mantoan é doutora em educac¢ao, professora da Faculdade de Educacao da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora do Laboratorio de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferencas (LEPED). Olnstituto Rodrigo Mendes. Licenca Creative Commons BY-NC-ND 2.5, A cépia, distribui¢do e transmissao dessa obra sdo livres, sob as seguintes condi¢ées: Vocé deve creditar a obra como de autoria de Maria Teresa Eglér Mantoan e licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes e DIVERSA htips:ildversa.orgbrlarigosiiferenciar-pare-inclu-ou-pare-exclul-por-uma-pedagogia-da-iferencal 86

You might also like