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Educação do corpo e escolarização

de atletas: debates contemporâneos


Organização:
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Carlus Augustus Jourand Correia
Leonardo Bernardes Silva de Melo

Educação do corpo e escolarização


de atletas: debates contemporâneos

coleção VISÃO DE CAMPO


© 2016 Antonio Jorge Gonçalves Soares, Carlus Augustus Jourand Correia,
Leonardo Bernardes Silva de Melo

Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico


da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.

Coordenação editorial
Isadora Travassos

Produção editorial
Eduardo Süssekind
Rodrigo Fontoura
Victoria Rabello
coleção VISÃO DE CAMPO

“O esporte visto pelas lentes das ciências humanas e sociais”

cip-brasil. catalogação na publicação Coordenação


sindicato nacional dos editores de livros, rj
Bernardo Borges Buarque de Hollanda
e26
Victor Andrade de Melo
Educação do corpo e escolarização de atletas: debates contemporâneos / organização Antonio
Jorge Gonçalves Soares , Carlus Augustus Jourand Correia , Leonardo Bernardes Silva de Melo. Conselho editorial
- 1. ed. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2016.
(Visão de Campo) Profa. Dra. Simoni Lahud Guedes
isbn 978-85-421-0487-5
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes
Profa. Dra. Mary Del Priore
1. Esportes escolares. 2. Educação física (Ensino fundamental) - Estudo e ensino - Brasil.
3. Professores - Formação. i. Soares, Antonio Jorge Gonçalves. ii. Correia, Carlus Augustus
Prof. Dr. João Malaia
Jourand. iii. Melo, Leonardo Bernardes Silva de. iv. Série. Prof. Dr. Ronaldo Helal
16-33990 cdd: 769.07
cdu: 769.81

2016
Viveiros de Castro Editora Ltda.
Rua Visconde de Pirajá, 580 sl. 320 – Ipanema
Rio de Janeiro rj – cep 22410-902
Tel. (21) 2540-0076
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sumário

apresentação
Tensões na administração da dupla carreira
no esporte e na escola  9
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Carlus Augustus Jourand Correia
Leonardo Bernardes Silva de Melo

parte 1: o aluno atleta na escola


capítulo 1
O desafio de uma conciliação: o estudante-atleta
e a descontinuidade na formação escolar 21
Daniel Machado da Conceição
Jaison José Bassani

capítulo 2
Perfil educacional de jovens atletas de futsal em Santa Catarina:
concorrência entre projetos de formação 51
Lucas Barreto Klein
Jaison José Bassani

capítulo 3
Escola, expectativas escolares e rotinas esportivas
de atletas em formação no futebol e no remo 79
Carlus Augustus Jourand Correia
Antonio Jorge Gonçalves Soares

capítulo 4
A escola no entendimento do atleta de elite 110
Márcio Faria de Azevedo
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Felipe Rodrigues da Costa
Amarílio Ferreira Neto
Wagner dos Santos
parte 2: estratégias de conciliação
entre esporte e escola
apresentação
capítulo 5 Tensões na administração da dupla carreira
A escola dos jóqueis: entre o acadêmico e o profissional 133 no esporte e na escola
Hugo Paula Almeida da Rocha
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Antonio Jorge Gonçalves Soares
Carlus Augustus Jourand Correia
capítulo 6 Leonardo Bernardes Silva de Melo
Apontamentos sobre a escolarização de jovens atletas
de voleibol no estado do Rio de Janeiro 157
Marcio Gabriel Romão
Felipe Rodrigues da Costa
Amarílio Ferreira Neto Mesmo reconhecendo o papel central que a escolarização assumiu em
nossa sociedade na formação de crianças e jovens, devemos relembrar a
capítulo 7
óbvia afirmação de que a educação das novas gerações não se dá exclusiva-
Esporte vs escola: conciliação esporte e escola de jovens
mente entre os muros escolares. Diferentes instituições sociais como famí-
alunos/atletas beneficiados pelo Programa Bolsa Atleta no Brasil 174
lia, escola, religiões, política, esporte, trabalho, lazer e outras, possuem, de
André Luiz da Costa e Silva
acordo com os projetos familiares e a socialização secundária, o papel de
Hugo Paula Almeida da Rocha
Marcio Gabriel Romão fornecer perspectivas e trajetos a serem percorridos pelos filhos da socie-
Leonardo Bernardes Silva de Melo dade. Este livro, numa perspectiva, analisa como a escolarização, os proje-
tos familiares e o esporte moldam parte da vida dos estudantes que opta-
capítulo 8 ram conciliar um tipo de dupla carreira,1 na escola e no esporte, em seus
Conciliação entre a formação no futebol e na escola 201 processos socializatórios. Noutra perspectiva, o material aqui apresentado
Leonardo Bernardes Silva de Melo também trata da educação do corpo encetada pelo esporte de alto rendi-
Hugo Paula Almeida da Rocha mento, seja através das rotinas dos treinamentos, das pedagogias corporais,
Antonio Jorge Gonçalves Soares
dos constrangimentos e prêmios, da dor, das disciplinas, do prazer, da esté-
parte 3: educação da vontade e do corpo tica e da erotização que o campo do esporte impõe àqueles que decidem
por uma carreira esportiva.
capítulo 9 A escolarização básica para todas as crianças e jovens foi a afirmação de
Educação do corpo e da vontade na ginástica rítmica 219 um direito, presente na Revolução Francesa, que foi se materializando em
Patrícia Luiza Bremer Boaventura diferentes ritmos temporais nas nações ocidentais. Esse direito no Brasil
Alexandre Fernandez Vaz ganha voz a partir do movimento dos pioneiros da educação na década
capítulo 10 1 “Sequência de posições ocupadas durante a vida de uma pessoa, em função não só dos tra-
balhos, estudos e outras experiências de vida, mas também das suas percepções individuais,
Dor e educação do corpo: atletismo e balé 240 atitudes e comportamentos profissionais, que resultam em desenvolvimento de competências
Michelle Carreirão Gonçalves para lidar com situações de trabalho de maior complexidade, e em constante transformação.
Essas posições são influenciadas e negociadas considerando motivos e aspirações individuais,
Alexandre Fernandez Vaz expectativas e imposições da organização e da sociedade.” (COSTA; DUTRA, 2011)

Sobre os autores261 9
de 1930, mas o ensino fundamental só veio a ser universalizado na última em ocupação profissional, a despeito dos debates sobre o amadorismo das
década do século XX. Hoje podemos dizer, por força da lei, que toda criança primeiras décadas do século XX. Com isso, o esporte passou a ser uma ins-
(ou adolescente) de 4 a 17 anos deve frequentar obrigatoriamente a escola. tituição educativa, em diferentes níveis e graus, e converteu-se, progressi-
Os censos escolares demonstram que o ensino fundamental está universali- vamente, numa opção de profissionalização para os jovens. É verdade que
zado, o mesmo não podemos ainda afirmar sobre o ensino médio. Todavia, a profissionalização esportiva está diretamente relacionada a forma pela
é importante dizer que as famílias estão conscientes dessa obrigatoriedade e qual determinado esporte está estruturado no mercado esportivo, tanto
que é consensual essa perspectiva no Brasil de hoje. Mesmo as crianças tra- em nível nacional quanto internacional. Assim, os capítulos aqui reunidos
balhadoras, fato que vai de encontro ao aparato legal de proteção à criança, tratam, direta ou indiretamente, do processo de formação profissional de
devem frequentar a escola. Independentemente da trajetória que a criança atletas em idade escolar.
ou jovem decida seguir, seja ela dependente ou não da certificação escolar, Como já dito, a escolarização das novas gerações se tornou consenso
a escolarização se impõe como um direito e valor social para todos. Se por social. Não é fortuito que os clubes que recrutam potenciais talentos espor-
um lado, estamos satisfeitos com a universalização do ensino fundamental, tivos para formar atletas de alto desempenho exigem ou oferecem a matrí-
por outro, a qualidade da escolarização oferecida às novas gerações ainda é cula escolar para os jovens que entram nesse processo formativo. A esco-
uma questão em aberto em nossa agenda política. larização de crianças e jovens, para além da necessidade de estruturação
O esporte moderno, a partir do século XIX, se transforma, a despeito e renovação da sociedade e do mercado, se tornou um tema moral e sua
das diferentes interpretações e periodizações históricas, numa instituição obrigatoriedade e acesso não entra mais em questão, independentemente
social voltada para o mercado de entretenimento e justificada socialmente da posição política assumida na atualidade; mesmo as tendências conser-
por seu caráter educativo. Todavia, não podemos esquecer que o esporte vadoras não assumem explicitamente suas manobras de fechamento (clo-
moderno também esteve associado ao mundo das apostas, de forma ofi- sure weberiano) para garantir privilégios para seus filhos nesse campo.2 O
cial e explícita (como no caso do turfe e outros esportes) ou clandestina. valor que articula o ideal da formação de um indivíduo autônomo e livre
Progressivamente, no decorrer do século XX, o esporte ganha terreno no no mundo ocidental pressiona e deve regular qualquer instituição social
mapa da cultura como instituição social voltada para a educação, para o que pretenda formar as novas gerações com habilidades ou competências
lazer e para o mercado de entretenimento dos centros urbanos. Os clubes para além dos saberes escolares. O estudo aqui apresentado, nesse sentido,
de colônia e de bairro no Brasil, com a anuência do poder público, foram problematiza a relação constituída entre a escolarização formal e a forma-
fundamentais para a expansão do esporte como instituição educativa e de ção profissional para o esporte de alto rendimento vivida pelos jovens que
lazer, bem como para sua entrada e permanência nos currículos escola- optam em conciliar essa dupla carreira nessa fase da vida.
res. No entanto, o mercado de entretenimento que se formou através do O jovem que vive a dupla carreira deve, obrigatoriamente, frequentar
esporte, aqui e em outros países, se autonomizou. O mercado assim exigiu a escola, estudar, realizar provas, trabalhos escolares e participar da vida
que os clubes e outras instituições formassem os quadros, tanto para gerir escolar; ao mesmo tempo, a carreira de formação esportiva exige treina-
as instituições esportivas quanto para prover os atletas que desenvolvem o mento regular diário, viagens, participações em competições e cuidados
espetáculo. Esse processo de formação de atletas no Brasil tem uma densa necessários com o corpo e com o estado psíquico. As demandas do esporte
história a ser contada que não está no escopo desse trabalho, mas deve- e da escola precisam ser administradas por aqueles que se empenham
mos destacar que a progressiva e contínua estruturação do mercado espor- atingir o alto desempenho esportivo em alguma modalidade. Embora não
tivo exigiu diferentes estratégias para a formação de atletas de alto rendi- muito problematizada essa questão em nossa sociedade, esse é um tema
mento para alimentar o espetáculo das diferentes modalidades esportivas. central para as carreiras que exigem uma precoce profissionalização para
O desenvolvimento do mercado esportivo criou uma série de profissões e 2 É fácil observar como a ideia de cotas nas universidades públicas e o sistema de sorteio de vagas
especialidades, bem como rapidamente transformou a atividade de atleta em escolas federais de educação básica cria veladas tensões entre os setores de classe média.

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aqueles que, em tese, ainda vivem um período de moratória social. Nos 2016. Esses ginásios experimentais, juntamente com outros dedicados à
campos esportivos, artísticos ou mesmo no mercado de trabalho ordinário, música, às artes e às tecnologias (Ginásio Experimental do Samba – GES –,
esse tipo de problema de conciliação de carreiras passa pelo debate da polí- Ginásio Experimental de Artes Visuais – GEA – e o Ginásio Experimental
tica e dos programas educacionais de forma quase invisível em nosso país. de Novas Tecnologias – GENTE), são escolas de tempo integral que aten-
No caso do esporte, os estudos aqui apresentados indicam que a escola, dem os alunos do ensino fundamental a partir do 6º ano escolar. Sem
em geral, se adapta aos projetos individuais dos atletas estudantes, seja entrar no debate da eficácia desse tipo de escola temática, podemos afirmar
afrouxando ou flexibilizando as normas escolares, remarcando avaliações que, no caso do Ginásio Experimental Olímpico, o processo de formação
e abonando as faltas. Quando a escola não flexibiliza suas normas, o atleta esportiva está totalmente desarticulado do sistema esportivo e das compe-
estudante é convidado a trocar de escola ou paga o preço com a reprovação tições das categorias de base do esporte no Rio de Janeiro (SOARES; MELO;
por não existir um sistema de apoio para realização das tarefas escolares ou ROCHA, 2015). Além disso, esses estudantes atletas, ao terminarem o ensino
mesmo programas escolares que administrem esse tipo de demanda. fundamental, não possuem nenhum tipo de possibilidade de continuar no
Podemos afirmar que, timidamente, esse tema passa a fazer algum ensino médio esse tipo de formação ou, pior ainda, caso sejam recrutados
barulho na construção da agenda do esporte brasileiro. Muito desse baru- pelo sistema esportivo durante a escolarização no ensino fundamental, são
lho se dá pelas ações do Ministério Público do Trabalho (MPT)3 ao auditar obrigados, em geral, a abandoarem a escola de tempo integral.
os clubes de futebol que recrutam jovens em idade escolar, de diferentes No Brasil, a separação entre formação esportiva e a escolar acabou por
estados brasileiros, que os mantêm em condições precárias e, muitas das gerar distâncias entre essas instituições, de modo que cada uma perseguiu
vezes, fora da escola. Essas ações do MPT demonstram que, no caso desse seus objetivos.4 Em termos comparativos, nos Estados Unidos o esporte se
rentável mercado esportivo, os jovens que voluntariamente se submetem desenvolveu basicamente através da escola e da universidade. No modelo
a essas condições são explorados e possuem seus direitos à escolarização dos Estados Unidos da América, o sistema esportivo está diretamente
e permanência junto às suas famílias sequestrados. Todavia, toda essa dis- ligado ao sistema escolar, tanto a iniciação esportiva quanto o aperfeiçoa-
cussão passa ao largo do debate no campo da educação que legitimamente mento para o esporte de alto rendimento ocorrem no espaço da escola de
debate uma série de especificidades de atendimento no sistema escolar, ensino médio. O currículo dos estudantes atletas deve ser harmonizado
mas não trata as demandas dos estudantes que necessitam precocemente com as demandas escolares. Após a escola básica, a formação esportiva
construir uma carreira paralela ao sistema escolar. As iniciativas de conci- terá continuidade no sistema universitário. O desempenho esportivo do
liação da carreira esportiva com a escolar no caso brasileiro são modestas estudante atleta é uma boa credencial para garantir acesso às grandes uni-
ou desarticuladas. Temos os programas federais e estaduais que fornecem versidades que participam do sistema esportivo universitário. Algumas
auxílio financeiro aos atletas estudantes (modelo Bolsa Atleta) que apenas associações organizam o esporte de alto rendimento. No nível da escola
exigem destes a matrícula escolar ou universitária. Tais programas não básica, o esporte é acompanhado pela National Federation of State High
fornecem nenhum tipo de apoio ou convênio com os sistemas escolares School Associations (NFHS), e o esporte universitário é acompanhado pela
para que os estudantes atletas tenham também bom desempenho acadê- National Collegiate Athletic Association (NCAA). O estudante atleta deve
mico. Outro caso de conciliação da escola com o esporte são os Ginásios cumprir sua rotina esportiva e escolar, desfrutando de todos os benefícios
Experimentais Olímpicos; estes foram construídos, pela Prefeitura do Rio e restrições que estas associações disponibilizam aos seus associados. Tais
de Janeiro, como legado olímpico a ser deixado pelos Jogos Olímpicos de benefícios são, entre outros: adequação do calendário esportivo ao calen-
dário escolar, tutores e orientadores para reposição de conteúdo acadêmico
3 Em Belo Horizonte, no ano de 2008, o MPT encontrou 20 adolescentes de 11 a 17 anos, de perdido em função das competições ou treinamentos e bolsa de estudo.
vários estados brasileiros, alojados em condições precárias. Dormindo em colchonetes e se
alimentando apenas uma vez por dia. Eles tinham a promessa de fazerem testes em clubes de 4 O debate entre escola, esporte de alto rendimento e educação física mobilizou o debate no
São Paulo e Minas Gerais. campo da educação física escolar durante boa parte dos últimos trinta anos.

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A NFHS é a organização responsável por essa interação quando o estu- esportivos não escolares que podem ter inadequada supervisão adminis-
dante atleta se encontra em idade escolar. Esta federação nacional promove trativa; desestimular que outras entidades pressionem os estudantes atletas
atividades nas diversas modalidades esportivas. Essa instituição tem como a faltarem à escola para aturarem em eventos não escolares. A restrição às
missão servir a seus membros e liderar a administração das atividades inte- participações esportivas não escolares também objetiva controlar conflitos
rescolares baseadas em educação, propiciando suporte acadêmico, cidada- advindos de calendários esportivos que não levem em conta o calendário
nia e oportunidade equitativa. Programas de atividades interescolares são escolar. Segundo os documentos oficiais, o compromisso primordial da
uma extensão da sala de aula para garantir os padrões acadêmicos exigidos; sociedade NFHS é a saúde, o bem-estar e o crescimento ético dos estudantes
assim, tais programas intencionam garantir o equilíbrio entre a participa- que participam diretamente em programas de atividades de ensino médio.
ção esportiva de alto rendimento e o desempenho acadêmico desejado. Uma das principais missões dessa entidade é a de ensinar aos participantes
Seus objetivos são os seguintes: (a) servir, proteger e melhorar os pro- habilidades essenciais para uma vida de contribuições para suas comunida-
gramas interescolares propostos pelos membros para suas escolas e estu- des, pois, tanto os esportes quanto as artes cênicas possibilitam aos jovens
dantes; (b) promover os valores educativos através de atividades atléticas sentir-se parte de suas comunidades, e, portanto, tais atividades, em tese,
e artísticas interescolares; (c) regular as atividades que, na determinação podem ser veículos eficazes para promover cidadania. Essa entidade existe
dos membros, melhor podem ser administradas em um nível nacional; (d) desde o ano de 1923 e continua em atividade até os dias de hoje.
patrocinar reuniões, publicações e atividades em benefício dos membros, A National Collegiate Athletics Association (NCAA) é a mais conhecida
relacionadas com grupos profissionais e seus constituintes; (e) promover a das instituições responsáveis por gerenciar essa conciliação entre formação
eficiência na administração de atividades atléticas e belas artes interesco- esportiva e acadêmica em nível universitário. Ela também apresenta rigidez
lares; (f) formular, publicar e distribuir as regras para atividades atléticas de acompanhamento dos desempenhos escolares através dos “conselhos de
e artísticas interescolares; (g) preservar registros atléticos interescolares e esporte”, formados por membros das instituições acadêmicas, treinadores e
a tradição e a herança de desporto interescolar; (h) fornecer programas, famílias, com a finalidade de oferecer melhor orientação aos estudantes atle-
serviços, materiais e assistência aos membros e profissionais envolvidos na tas em diversas áreas, e utilizam, assim, várias estratégias de formação (LEE,
conduta e administração das atividades atléticas e artísticas interescolares; 1983; GOLDBERG; CHANDLER, 1995; CARODINE; ALMOND; GRATTO, 2001).
(i) servir como uma base de dados de informação nacional para atividades No continente europeu, são identificados quatro tipos de estratégias
atléticas e artísticas interescolares; (j) identificar necessidades e problemas sobre a conciliação do esporte de alto rendimento com a escola, tal como
relacionados à atividades atléticas e artísticas interescolares e trabalhar em foi diagnosticado por Henry (2010): (a) atuação de um sistema centrali-
direção a sua solução. zado no estado com obrigação legal definida. Nesta abordagem, a insti-
O NFHS é uma empresa, de abrangência nacional de caráter não lucra- tuição de ensino deve, por força da lei, se adaptar às necessidades formati-
tivo, que coordena e dá suporte às atividades de construção de regras, con- vas do atleta; (b) o Estado patrocina um sistema formal estabelecido com
ferências nacionais e funções educativas em nome de seus membros parti- base em uma legislação permissiva. Nessa estratégia há um sistema formal
cipantes A NFHS está empenhada em reforçar e estimular oportunidades de reconhecimento das necessidades do estudante atleta que, baseado na
para um número cada vez maior de estudantes qualificados nos programas legislação vigente, autoriza, mas não impõe, que a escola atenda de forma
esportivos e artísticos, através de programas educacionais e/ou organiza- especial às demandas do estudante atleta; (c) presença de órgãos de repre-
ções não escolares envolvidas no esporte amador e profissional. A restrição sentação dos interesses educacionais dos atletas. Aqui as necessidades para
à participação esportiva dos estudantes atletas em atividades promovidas o desenvolvimento do estudante atleta são mediadas por representantes das
por organizações que não pertencem à NFHS tem por objetivos: proteger os entidades esportivas, e tais mediadores agem em nome do estudantes para
estudantes da exploração precoce daqueles que procuram capitalizar ganhos negociar acordos flexíveis com a instituição de ensino, de modo a garan-
sobre os atletas em formação; evitar os riscos de participação em programas tir que os mesmos não tenham perdas em sua formação acadêmica; (d) a

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última estratégia, levantada por Henry (2010), é uma não-estratégia que o planos de carreira sob medida para os atletas de elite, na posição de estu-
autor nomeou de Laissez-faire, isto é, as instituições interessadas funcio- dantes atletas ou atletas, remunerados ou não.
nam sem nenhuma regulação. Esse diagnóstico demonstra que a Europa, No Brasil, esses dois sistemas, escola e esporte, não estão articulados. O
mesmo após a instituição da União Europeia, não tinha em sua agenda custo da conciliação recai, em geral, sobre o estudante atleta e sua família,
uma preocupação com a dupla carreira vivida por estudantes atletas. que devem negociar diretamente com a escola ou com o clube as demandas
Esse quadro parece estar em processo de mudança na União Europeia geradas por essas duas instituições. O Laissez-faire (HENRY, 2010) parece
(EU). O EU Guidelines on Dual Careers of Athletes Recommended Policy governar a gestão tanto das carreiras dos estudantes atletas quanto as dos
Actions in Support of Dual Careers in High-Performance Sport (2012) foi estudantes artistas ou trabalhadores, pois não existem políticas ou pro-
a resposta às demandas geradas pelo European Council’s Declaration on gramas de apoio, de assistência ou de reforço escolar para esses que são
Sport de 2008 (Bruxelas, Bélgica), que indicou as dificuldades de conci- obrigados a dividir o tempo e a atenção entre a escola e outras atividades
liação entre esporte e escolarização dos atletas. As diretrizes propostas no igualmente importantes para suas vidas e identidades. Com uma escola
Guidelines (2012) orientam os estados membros da UE a garantirem aos de ensino médio que não diferencia demandas, não oportuniza nem esti-
estudantes atletas formação educacional e esportiva de qualidade. O pro- mula o desenvolvimento de potencialidades individuais (SCHWARTZMAN,
blema que desejam atacar é a redução do número de atletas que abandonam 2011), os pleiteantes a uma dupla carreira são, nessa fase da vida de mora-
a escola, universidade ou esporte. As diretrizes apontam para a necessidade tória social, obrigados a fazer opções que podem excluir uma ou outra car-
de qualidade dos centros de formação esportiva e para a construção de reira ou ainda apostar mais fortemente numa única carreira. Com isso o
mecanismos que garantam a permanência dos estudantes atletas nas esco- desempenho acadêmico escolar pode ser administrado, muitas das vezes,
las e nas universidades. A intenção da orientação dessa política é garantir o de forma medíocre em função do esporte ou o estudante atleta também
desenvolvimento moral, educacional e os interesses profissionais dos estu- pode desinvestir no esporte em função das demandas escolares ou em fun-
dantes atletas. Outra preocupação das diretrizes do Guidelines (2012) é a ção das pressões familiares e/ou classe social.
gestão da pós-carreira dos atletas. Os atletas necessitam possuir ferramen- Este livro expressa o esforço do Laboratório de Pesquisas em Educação
tas para ingressarem no mercado de trabalho após o final de suas carrei- do Corpo (LABEC), integrado à Faculdade de Educação da UFRJ, na produ-
ras esportivas. A baixa capacidade de reconversão profissional do ex-atleta ção de pesquisas que tentam entender o processo de conciliação entre for-
para o mercado de outras profissões no esporte preocupa os formuladores mação esportiva de alto rendimento e escolarização no Brasil, bem como
dessa política na UE. Nesse sentido, ter uma formação acadêmica alterna- os modos pelos quais os corpos dos atletas são educados, disciplinados e
tiva ou mesmo no campo acadêmico do esporte se torna fundamental para administrados pelas instituições de formação esportiva. No livro encon-
aumentar a capacidade de reconversão profissional dos atletas quando dei- traremos, também, estudos que estão no escopo desse projeto, realizados
xam o espaço das competições esportivas. Tal política intenciona preservar em outras universidades e grupos de pesquisa. Esse projeto, apesar de sua
as possibilidades do desenvolvimento dos talentos esportivos e, ao mesmo curta existência, se ampliou para outros grupos de pesquisa que possuem
tempo, garantir uma educação de qualidade. tradição no estudo da educação dos corpos nos espaços institucionais dos
Acordos para conciliar dupla carreira são relativamente recentes na esportes e das intuições escolares. Nossos principais parceiros são o Grupo
maioria dos estados membros da comunidade europeia. Tais estados podem de Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC-CNPq), alo-
ainda não possuir legislação, quadro jurídico ou política governamental cado na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Santa Catarina
sustentável para equacionar esse tipo de demanda social. Orientação da (UFSC), coordenado pelos professores Alexandre Fernandez Vaz e Jaison
CE pode ser útil para desenvolver e melhorar as condições necessárias para José Bassani, e o PROTEORIA (CNPq), do Centro de Educação Física e
que os programas de dupla carreira sejam sustentáveis e permitam elaborar Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), coordenado

16 17
pelos professores Wagner dos Santos (UFES) e Amarílio Ferreira Neto
(UFES). Os capítulos que seguem são produtos dos estudos desenvolvidos
no interior desses grupos e/ou da parceria realizada em projetos específi-
cos entre LABEC, PROTEORIA e NEPESC. Esperamos que o texto deste livro
chame atenção para a necessidade de construirmos políticas públicas para
estudantes atletas no Brasil.

referências bibliográficas
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parte 1:
both in and out of the classroom. New Directions for Student Services, v. 93, p.
19-33, 2001. O aluno atleta na escola
COSTA, Luciano V.; DUTRA, Joel. Avaliação da carreira no mundo contemporâneo:
Proposta de um modelo de três dimensões. Revista de Carreiras e Pessoas, São
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GOLDBERG, A. D.; CHANDLER, T. Sports counseling: Enhancing the development
of the high school student-athlete. Journal of Counseling & Development, v. 74,
p. 39-44, 1995.
EUROPEAN COMMISSION. Guidelines on dual careers of athletes: recommended
policy actions in support of dual careers in high-performance sport. 2012.
HENRY, I. Elite athletes and higher education: lifestyle, balance and the managment
of sporting and educational performance. Brusselles: International Olympic
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LEE, Courtland C. An investigation of the athletic career expectations of high school
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SCHWARTZMAN, Simon. O Viés Acadêmico na Educação Brasileira. In: BACHA,
Edmar; SCHWARTZMAN, Simon (Ed.). Brasil: a nova agenda social brasileira.
Rio de janeiro: LTC Editora. 2011. p. 254–269.
SOARES, Antonio Jorge Gonçalves; MELO, Leonardo Bernardes Silva de; ROCHA,
Hugo Paula Almeida da. O Ginásio Experimental Olímpico: um programa de
escolarização de potenciais atletas na onda das olimpíadas. In: CAVALIERE,
Ana Maria; SOARES, Antonio Jorge Gonçalves (Org.). Educação pública no Rio
de Janeiro: novas questões à vista. 1. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2015. p. 155-176.

18
capítulo 1
O desafio de uma conciliação: o estudante atleta
e a descontinuidade na formação escolar
Daniel Machado da Conceição
Jaison José Bassani

introdução
O propósito deste texto está em relatar os resultados obtidos na disserta-
ção de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal de Santa Catarina. O texto foi elaborado como
uma síntese, composto por fragmentos/trechos do texto então defen-
dido (DA CONCEIÇÃO, 2015). Importante pontuar que todo o treina-
mento adquirido até o momento se deve em parte à formação acadêmica
obtida durante a graduação, pós-graduação e à participação em ativida-
des de pesquisa no Núcleo de Estudos Pesquisas Educação e Sociedade
Contemporânea (NEPESC/UFSC).
O interesse por estudar o esporte trouxe a oportunidade de conhe-
cer projetos e pesquisas desenvolvidas em parceria com o Laboratório de
Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC), localizado na área da Educação,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A parceria entre os núcleos
acontece dentro de uma tradição de estudos sobre o corpo, corporalidade e
questões sobre o esporte. Um dos temas de grande interesse que envolve a
parceria entre as duas instituições centra-se na formação esportiva de jovens
atletas e sua relação direta com a escolarização. Assim, várias modalidades
de prática esportiva foram ou estão sendo estudadas, ampliando as possibi-
lidades de interpretação sobre a relação entre esporte e formação esportiva
na contemporaneidade. Portanto, o estudo aqui apresentado integra um
projeto amplo desenvolvido em conjunto entre o NEPESC e o LABEC sobre a
temática da formação esportiva e da escolarização de jovens atletas. As pes-
quisas desenvolvidas têm coletado informações relevantes sobre a realidade

21
dos jovens atletas em diversas modalidades esportivas que são pensadas à categoria fracasso escolar, que envolve situações de repetência, desistência
luz da sociologia, da antropologia e da educação. e evasão, tende a ser quase inexistente. Aqui surge nosso questionamento
Os principais resultados das pesquisas desenvolvidas pelos dois grupos e objetivo em relação à presente pesquisa: como se dá a formação escolar
atestam, primeiro, que os atletas em formação no futebol possuem escola- de jovens atletas inseridos em categorias de base de clubes profissionais de
ridade idêntica ou superior se comparada com jovens da mesma idade, no futebol? Se considerarmos esse cenário em que acontece um desinteresse
estado do Rio de Janeiro (SOARES et. al., 2011). Este dado contradiz o senso progressivo na escolarização e, mesmo assim, ocorre um contínuo avanço
comum que afirma ser o esporte, e o futebol em específico, promotor de na escolaridade, qual a relação do estudante atleta com a escola e seu
fracasso escolar (evasão, abandono ou repetência). Na verdade, as exigên- saber (SOUZA et al., 2008; SOARES et al., 2009; MELO, 2010; ROCHA, 2011;
cias pautadas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.069, SOARES, 2011; BARTHOLO, 2011; COSTA, 2012; CORREIA, 2014; BARRETO,
de 13 de julho de 1990) impostas aos clubes garantem, entre outros aspectos, 2012; KLEIN, 2014; DA CONCEIÇÃO, 2014)?
a matrícula escolar e a permanência do atleta na sala de aula. O questiona- Para entender a relação escola e atleta foram investigadas duas insti-
mento que surge dessa constatação diz respeito a que tipo de escolarização tuições estaduais de ensino médio regular em Florianópolis/SC, nas quais
o atleta está submetido, e como ele se relaciona com o saber escolar. Uma estudantes atletas de futebol estão matriculados. As escolas possuem atletas
segunda constatação das pesquisas anteriormente referidas indica que os vinculados às categorias de base do Avaí Futebol Clube e do Figueirense
atletas despendem semelhante tempo para formação escolar e a formação Futebol Clube, clubes profissionais de Florianópolis (SC), que em 2015 dis-
esportiva. Isto é, a carga horária escolar e a carga horária de treinamentos putam o Campeonato Brasileiro da Série A, e selecionados devido a sua
ou competições, a primeira voltada para “formação geral” ou inserção do representatividade no cenário do futebol catarinense e nacional. Os clubes
jovem na profissionalização para o mercado de trabalho formal e a segunda desenvolvem a formação de atletas de alto rendimento em centros de trei-
direcionada para a profissionalização no mercado de trabalho esportivo, se namento (CT) próprios e de acordo com a Lei Pelé2 (BRASIL, Lei 9.615/1998)
equiparam (ROCHA et. al., 2011). Este fato instiga a pensar como o estudante e a Nova Lei Pelé (BRASIL, Lei 12.345/2011), são qualificados como entidades
atleta1 se relaciona com o meio escolar, considerando tanto o contexto de
progresso constante (aprovação) na escolarização, já que apresenta escola- 2 A Lei Pelé de 1998, institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Em seu
artigo 29 se pode ler: § 2º É considerada formadora de atleta a entidade de prática desportiva
ridade média igual ou superior quando comparada com jovens não atletas que: I – forneça aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complemen-
da mesma idade, quanto as exigências (físicas e emocionais) de aperfeiçoa- tação educacional; e (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011). II – satisfaça cumulativamente os
seguintes requisitos: (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011). a) estar o atleta em formação ins-
mento no esporte. Em outras palavras, pode ser pensado que, no caso de crito por ela na respectiva entidade regional de administração do desporto há, pelo menos, 1
jovens atletas ligados a clubes profissionais de futebol, e apesar da conco- (um) ano; (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); b) comprovar que, efetivamente, o atleta em
formação está inscrito em competições oficiais; (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); c) garan-
mitância e concorrência com outro projeto de formação (a do esporte), a tir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação,
transporte e convivência familiar (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); d) manter alojamento e
1 Termo utilizado para designar atletas em formação esportiva que estão matriculados em uma instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança
modalidade de ensino. A expressão faz relação com o estudante trabalhador que vivencia e salubridade; (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); e) manter corpo de profissionais espe-
semelhante situação ao estudar e trabalhar. No entanto, as características na rotina de trei- cializados em formação técnico-desportiva; (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); f) ajustar o
namento, competições, relações contratuais com clubes de futebol e a inexistência de uma tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta, não superior a 4 (quatro) horas por
legislação trabalhista para amparar o jovem atleta em formação no futebol justificam a neces- dia, aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante, além de propiciar-lhe a
sidade de identificar ambos de maneira distinta. A Lei 10.097/2000 é voltada para estudantes matrícula escolar, com exigência de frequência e satisfatório aproveitamento; (Incluído pela
trabalhadores, reconhecidos como jovens aprendizes. Ela prevê formação e qualificação pro- Lei nº 12.395, de 2011); g) ser a formação do atleta gratuita e a expensas da entidade de prática
fissional para o mercado de trabalho formal e mantém como requisito básico sua permanente desportiva; (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011); h) comprovar que participa anualmente
escolarização. Dessa forma, o jovem é reconhecido como estudante trabalhador ou aluno de competições organizadas por entidade de administração do desporto em, pelo menos, 2
trabalhador. Os atletas das categorias de base de diversas modalidades esportivas também (duas) categorias da respectiva modalidade desportiva; e (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011);
se encontram em uma atividade formativa, mas não reconhecida como trabalho conforme i) garantir que o período de seleção não coincida com os horários escolares. (Incluído pela
a referida legislação. Assim, o termo que melhor caracteriza sua condição é o de estudante Lei nº 12.395, de 2011). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615compi-
atleta ou aluno atleta. lada.htm>. Acesso em: 17 jun. 2015.

22 23
formadoras.3 A faixa etária observada está situada entre 14 e 17 anos em Os clubes Avaí e Figueirense, mediante a legislação que rege a forma-
atletas de futebol do sexo masculino, compreendendo as categorias Sub-15 ção de atletas, assumem a tutoria/responsabilidade dos jovens alojados
(infantil) e Sub-17 (juvenil). Esses jovens estão na relação idade série que e devem, assim, proporcionar a contínua escolarização. A legislação não
corresponde à matrícula no ensino médio. Este momento aparece como impõe orientações específicas além da obrigatoriedade de proporcionar
crucial em relação ao campo de possibilidades dos atletas, caracterizado matrícula escolar. Na verdade, deixa a cargo dos clubes o poder de esco-
por uma maior intensidade de treinamento que repercute, muitas vezes, lha, independentemente do sistema de ensino privado ou público e da
na mudança do turno escolar, bem como de um maior número de via- modalidade de ensino, regular ou supletivo, para atender os atletas que
gens (SOARES et al., 2013). O turno de funcionamento das escolas selecio- tenham discrepâncias na relação idade-série. Com o objetivo da contínua
nado para observação foi o noturno, pois nele concentra-se a maior parte escolarização dos atletas, os clubes tendem a realizar parcerias com escolas
dos jovens das categorias de base alojados4 nos dois clubes investigados, e regulares para que a matrícula de seus jovens seja garantida. Em geral, as
também representa um momento na carreira em que a formação esportiva escolas públicas são mais procuradas, em razão da diminuição dos custos
ganha prioridade (SOARES et al., 2009; MELO, 2010; ROCHA et. al., 2011; com mensalidades, além de facilitadores geográficos como distância do
BARTHOLO, 2011). alojamento e a disponibilidade de transporte.
Faz-se importante ressaltar que podemos categorizar os atletas como Os atletas encontram-se em um período da vida no qual é necessário
“alojados” e “não alojados”. A principal diferença entre ambos é a condi- um investimento árduo no trabalho corporal e psicológico para aperfei-
ção que o clube adquire como tutor dos atletas alojados enquanto esses çoamento técnico, tático e físico no futebol, o qual coincide com a fase em
estão sob sua responsabilidade. Os atletas alojados, geralmente migram que os jovens precisam igualmente se dedicar à escolarização (ROCHA et
de outras regiões fora da Grande Florianópolis, o que requer sua perma- al., 2011). Nessa fase, a primordial consequência da concomitância obser-
nência longe da família e sob os cuidados e responsabilidade dos clubes. vada por Bartholo et al. (2011) foi descrita como a troca de turno escolar,
Os atletas não alojados são geralmente moradores da região, seja porque isto é, a saída do período matutino ou vespertino e a entrada no ensino
são naturais da grande Florianópolis com residência fixa ou então porque noturno. O fato é característico entre jovens pertencentes às categorias
a família realizou a mudança para acompanhar mais de perto a formação Sub-13 e Sub-15 quando de sua passagem para Sub-17, pois o período de
esportiva do jovem atleta. Outra diferença entre ambos, alojados e não treinamento passa a ser mais intenso na medida em que a profissionaliza-
alojados, está na manutenção dos laços e rotinas familiares. Os “não alo- ção se aproxima. Muitas vezes, a formação nos clubes pode acontecer em
jados” parecem manter uma rotina de treinamento, escola e volta para o dois turnos, o que faz o jovem procurar o ensino noturno (SOARES, 2009,
seio familiar, o qual exerce principal influência. Diferentemente, os atletas p. 4) como maneira de minimizar o número de faltas escolares e também
alojados se inserem no sistema de albergamento e as relações são construí- como facilitador para os clubes priorizarem os horários de treinamentos
das com os profissionais dos clubes e com os outros atletas, que passam a e competições.
compor uma “nova família”. Todo esforço em investigar o estudante atleta traz nova luz sobre a ati-
vidade de formação esportiva, principalmente se a encararmos como uma
3 Expressão utilizada na criação da Lei Pelé, de 1998. A partir da Nova Lei Pelé, de 2011, utiliza-se atividade de trabalho, como qualificação profissional que ocorre em para-
“clube formador”. O Figueirense foi o primeiro clube no Brasil a conseguir a certificação no
ano de 2012, já o Avaí recebeu sua certificação no ano de 2013. Disponível em: <http://www. lelo à escolarização básica. Esse tipo de estudo poderá gerar argumentos
figueirense.com.br/noticia/figueirense-e-o-primeiro-clube-do-pais-a-receber-certificado-de- para a construção de legislação e programas específicos voltados para asse-
-clube-formador-de-atletas/>. Acesso em: 9 jun. 2015. Disponível em: <http://www.fcf.com.br/
avai-futebol-clube-recebe-certificado-da-cbf-de-clube-formador/>. Acesso em: 9 jun. 2015.
gurar maiores garantias aos jovens atletas e suas famílias, de modo que a
4 Referência a alojamento, jovens em regime de albergamento que vivem em dormitórios formação no esporte não coloque em risco a formação escolar. Passemos
mantidos pelos clubes em suas dependências. Guardada as devidas proporções, é algo muito aos cenários observados no trabalho de campo.
semelhante ao regime de internato.

24 25
as escolas e os clubes O ensino noturno então aparece como possibilidade para viabilizar as
duas atividades: trabalho/treino e escola. Nesta relação escola-trabalho/
A Escola Estadual Básica Ildefonso Linhares,5 no bairro Carianos, parceira treino, facilmente percebemos a necessidade de a instituição escolar flexibi-
do Avaí FC, contava com 38 dos atletas alojados matriculados (de um total de
lizar a participação dos jovens trabalhadores ou atletas, principalmente em
187 alunos matriculados no período noturno), e na Escola Estadual Básica
razão de a jornada de trabalho, muitas vezes, atravessar o horário de início
Aderbal Ramos da Silva,6 no bairro Estreito, parceira do Figueirense FC,
da primeira aula da noite. Esta postura de flexibilização pode ser entendida
tinham 32 jovens atletas alojados (de um universo de 231 jovens que estu-
dentro de um projeto pedagógico de compensação, isto é, facilitar o acesso à
dam à noite). As duas escolas estão organizadas no ensino médio noturno
escola com o objetivo de não gerar dificuldades maiores quanto à perma-
com três turmas de 1º ano, duas de 2º ano e duas de 3º ano. A justificativa
nência e participação desses jovens na vida escolar. Além disso, acontece a
para a escolha do período noturno passou pela maior frequência de atletas
flexibilização no aceite de atestados de abono de faltas para remarcação de
alojados em relação aos períodos matutino e vespertino, nos quais, geral-
provas ou trabalhos (BARRETO, 2012), seja por motivos de viagens ou de
mente, os jovens têm atividades nos respectivos clubes. Além disso, outra
jornada de trabalho estendida.
importante razão é que o ensino noturno também atrai outros estudantes
Para melhor entender as categorias presentes no campo e como os pro-
que desenvolvem atividades durante o dia, muitos realizam cursos de apri-
moramento ou são trabalhadores formais e informais em uma condição fissionais da escola e do clube agem quanto à formação no futebol e à esco-
semelhante de tempo e dedicação para escola como os estudantes atletas. larização dos atletas, realizamos entrevistas com gestores das duas escolas
(IL: Diretor e Coordenadora Pedagógica; ARS: Coordenadora Pedagógica
5 A Escola Estadual Básica Ildefonso Linhares, em informação fornecida pelo site da Secretaria – total 3) e com profissionais dos clubes envolvidos com o acolhimento dos
de Educação do Estado de Santa Catarina, possui matriculados 564 alunos, dos quais 187 jovens atletas (Avaí: Assistente Social e Psicólogo; Figueirense: Assistente
frequentam o ensino noturno. A escola possui um corpo de professores celetistas, professo-
res estatutários e outros funcionários, somando um total de 58 profissionais de acordo com Social – total 3). Procurando entender a relação construída pelo atleta com
informações do Censo Escolar de 2013. A escola está localizada entre as instalações do Avaí a escola, realizamos entrevistas com quatro jovens das categorias de base
FC e o Aeroporto Internacional Hercílio Luz, distante cerca de 5 minutos de caminhada do
Alojamento onde vivem os atletas albergados do Avaí. No momento da pesquisa nesta insti- do Avaí e mais 11 atletas do Figueirense. As entrevistas ocorreram indivi-
tuição, em 2013, 38 atletas do clube estavam matriculados no ensino médio noturno, perfa- dualmente e também em grupo, no caso dos atletas.
zendo 20% dos alunos matriculados neste período do dia. O clube e a escola anunciam uma
parceria em vigência desde 2004, que, em 2009, precisou ser revista mediante demanda da O campo de observação se constituiu nas dependências das escolas e dos
escola devido ao comportamento que os jovens atletas apresentavam. Neste “ajuste de con- clubes investigados. As observações nas escolas foram realizadas em dois
duta”, o clube, por meio dos profissionais da comissão técnica e do setor psicossocial, mais os
gestores e professores da escola, delimitaram a responsabilidade que cabe a cada entidade no momentos temporais distintos: em 2013 na Escola Ildefonso Linhares, em
quesito escolarização. 2014 e início de 2015 na Escola Aderbal Ramos da Silva. Foram produzidos
6 A Escola Estadual Básica Aderbal Ramos da Silva está localizada no bairro Estreito, região registros de minha participação como investigador no campo, relatando
continental da cidade, um bairro com forte ocupação demográfica e que faz a ligação dos
bairros continentais e dos municípios vizinhos com a área insular e central de Florianópolis. conversas com os professores e os gestores escolares, bem como as interven-
Em dados informados no site da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catariana, a ções nas salas de aula que contavam com a presença de atletas. Nos clubes,
escola possui 1.196 alunos matriculados e, destes, 231 frequentam o ensino noturno. A escola
possui boas instalações, com biblioteca, sala de informática, uma quadra coberta e outras os locais de observação cobriram as dependências internas e os campos de
duas quadras externas. O seu quadro funcional era composto, em 2014, de acordo com o treinamento, de modo que conseguimos trocar informações com profissio-
Censo Escolar, por 72 profissionais, divididos em professores celetistas, professores estatutá-
rios e outros funcionários. No momento da pesquisa nesta instituição (2014), 32 atletas das nais de diferentes setores que permitiram o registro das visões destes sobre
categorias de base do Figueirense estavam matriculados no ensino médio noturno, represen- o processo de profissionalização no futebol. As informações produzidas nas
tando 13% do total de alunos. A parceria entre clube e escola foi realizada, entre outros aspec-
tos, devido à proximidade com o alojamento dos atletas (que fica a uma distância aproximada
observações foram registradas em diário de campo para posterior análise com
de 500 metros) e parece não ter sofrido ajustes quanto às exigências do clube ou às demandas base em categorias que surgiam do cruzamento dessas fontes com conceitos
da escola. A postura da escola, captada nas declarações de seus gestores, está reservada ao
papel de atender à solicitação de obrigatoriedade em ofertar vagas para os jovens, indepen-
ou com resultados de trabalhos desenvolvidos sobre a temática. Algumas
dentemente de serem atletas ou não. destas categorias foram a “flexibilização”, “escolarização”, “descontinuidade”,

26 27
“atleta”, “trabalhador”, “bom ou mau atleta” e o “bom ou mau aluno” e “pro- Os dois setores possuem um papel primordial na “engrenagem” de for-
fissionalização”. Todos os dados foram produzidos por meio da interação do mação esportiva, pois esses profissionais estabelecidos tratam da acolhida
pesquisador com os atores presentes aos contextos investigados. do jovem atleta no clube, organizam a documentação dos atletas, resolvem
O contato com o Avaí FC foi realizado no ano de 2013, mediado por questões que envolvem a saúde dos atletas (como a marcação de consultas e
um colega da pós-graduação que atua como profissional ligado à comissão acompanhamento nas clínicas médicas), realizam a intermediação das rela-
técnica do clube. Este “porteiro” abriu portas para conversas diretas com os ções familiares, dão apoio emocional e psicológico e fazem a mediação com
profissionais do setor psicossocial do clube. No Figueirense FC, a incursão os profissionais da comissão técnica, além de serem responsáveis pelo con-
no clube aconteceu no ano de 2014, no mês de abril, quando contatamos tato direto com a escola que frequentam os estudantes atletas. Essas atribui-
diretamente a Comissão Técnica de Futebol. Seus membros nos receberam ções são perpassadas por procedimentos burocráticos inerentes às funções.
de forma amistosa, embora houvesse desconfianças sobre a presença de um No geral, cada setor atende por volta de 160 atletas das categorias de base.
“pesquisador” dentro do clube. O anúncio aos investigados que se tratava A idade dos atletas situa-se entre 14 e 20 anos, que corresponde ao
de um estudo de mestrado contribuiu para abrir portas e deu um caráter de período de formação no esporte, uma vez que a legislação que regula (Lei
“maior seriedade” à imagem do pesquisador no campo. Pelé e a Nova Lei Pelé) permite que o atleta seja alojado em um clube a partir
Sobre os clubes, podemos dizer que ambos se assemelham em seus dos 14 anos, e que firme contrato de trabalho aos 16 anos. Todas as atribui-
objetivos na formação de atletas, porém apresentam singularidades naquilo ções e responsabilidades dos dois setores, Psicossocial e Desenvolvimento
que podemos chamar de posturas “administrativas” e “operacionais”. Do Humano, multiplicam-se no caso dos atletas alojados que passam a ser da
mesmo modo, podemos afirmar que tais clubes apresentam comportamen- responsabilidade direta do clube.
tos e procedimentos distintos na relação que travam com a escola básica no No Figueirense, o alojamento conta com 48 atletas, e, no Avaí, com 50
acompanhamento de seus atletas. No Avaí FC percebemos a ausência da jovens. Os profissionais dos dois setores, devido à formação acadêmica que
constituição de um projeto institucional ou de um programa regulamen-
possuem, como eles mesmos declaram, tendem a olhar por uma lente “mais
tado de acompanhamento dos estudantes atletas, mas, em compensação,
humana” para os jovens atletas quando comparados com os profissionais
observamos que a presença e participação dos profissionais que dão apoio
da comissão técnica que atuam na formação direta para o esporte (treina-
e suporte aos atletas no setor psicossocial parece ser mais intensa no acom-
dor, preparador físico, médico, fisioterapeuta etc.), pois dizem perceber os
panhamento escolar quando comparamos com o Figueirense. Todavia, no
desafios próprios da adolescência como um momento de transformação do
Figueirense FC existe um projeto institucional consolidado, denominado
corpo e da personalidade. No entanto, no setor da comissão técnica, espaço
“Programa Jovem Furação”, com metas bem definidas para o desenvolvi-
voltado para produção de atletas, há outra lógica de funcionamento e de
mento dos trabalhos e objetivos de formação extracampo, porém a relação
resposta aos atletas. Os atletas para esses profissionais ganham um selo de
com a escola se apresenta de forma pouco intensa. Outra diferença está na
“produto”, o qual deve ser lapidado e aperfeiçoado na busca constante por
composição do setor que realiza a acolhida e acompanhamento do atleta
melhor e mais alto rendimento. Assim, uma tensão pode ser observada nos
dentro do clube, que, no caso do Avaí, contava com uma assistente social e
um psicólogo, formando assim o “Setor Psicossocial”, no qual os profissio- setores Psicossocial e Desenvolvimento Humano em relação ao restante da
nais cumprem uma jornada de 20 horas de trabalho semanal no clube. O comissão técnica empenhada na formação. Embora todos estejam ligados
Figueirense contava com uma assistente social e um pedagogo,7 compondo ao objetivo de formar atletas profissionais, a comissão técnica tende a enca-
o setor de “Desenvolvimento Humano”, com expediente de 36 horas sema- rar o atleta como produto que pode fazer a diferença em um jogo ou durante
nais de trabalho. a competição, enquanto que nos setores Psicossocial e Desenvolvimento
Humano, o jovem parece ser reconhecido como um indivíduo em forma-
7 Na parte inicial da pesquisa, o pedagogo foi o responsável pela mediação e primeiras
autorizações para pesquisa. No decorrer, ele foi chamado em um concurso público, deixando
ção social, física e emocional, o qual necessita aprender a ter responsabili-
o Desenvolvimento Humano do clube, e todo o trabalho foi acumulado pela assistente social. dades e ser responsabilizado por atos e ações. De forma bastante simples,

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posso dizer que, junto à comissão técnica, são reconhecidos como atletas, e tecnologias e saberes desenvolvidos para um melhor desempenho no
junto aos setores Psicossocial e Desenvolvimento Humano são reconheci- esporte (SANTOS, 2009, p. 222). Nesse espaço, centro de treinamento, o
dos como meninos enfrentando os desafios da juventude, e em muitos casos conhecimento adquire um carácter institucionalizado, isto é, legitimado e
longe de casa e dos laços familiares. Por esta razão, os setores Psicossocial passa a ser reconhecido como local de excelência para a prática e formação.
e Desenvolvimento Humano são centrais para entender como os atletas Desta maneira, as chances de se tornar atleta profissional fora de um centro
percebem seu momento de formação esportiva e formação escolar, pois são de treinamento carrega uma dificuldade enorme. Muitos jovens investem
a ponte entre a escola e o clube. recursos familiares percorrendo bairros, cidades e estados brasileiros (pre-
Exemplificando as sutilezas da relação das escolas com os dois clu- cisamos ainda considerar que cada vez mais jovens viajam para o exterior
bes de futebol investigados, podemos apresentar a maneira como cada com o propósito de realizar testes) na busca de uma oportunidade para
escola instituição “fala” sobre seus estudantes atletas. Na escola Ildefonso desenvolverem seus talentos num clube de futebol (SOUZA et al., 2008).
Linhares, a frase mais usual de professores e gestores faz referência “aos O sucesso de um atleta quando se integra a categoria de base de um clube
meninos do Avaí”. Já na escola Aderbal Ramos da Silva, a expressão para pode significar uma ruptura com os laços familiares e de vizinhança, uma
designar os atletas tem outro sentido: “os nossos Figueirinhas”. As duas separação que sinaliza o início “exitoso” do projeto de jogador profissional
expressões, em uma análise inicial, representam atitudes distintas com os (RIAL, 2008, p. 46; KLEIN, 2014, p. 40; DA CONCEIÇÃO, 2014, p. 31).
estudantes. Assim, consequentemente, as exigências e conflitos são resolvi- Este motivo leva meninos e seus familiares à seleção em peneiras,8 por
dos de maneira diferenciada entre cada entidade e com os atletas. Ao fala- meio dos quais, entre outros processos de ingresso, acontece a escolha de
rem “os meninos do Avaí”, os profissionais da educação marcam uma dis- atletas para integrarem as equipes de base. Os jovens podem ser seleciona-
tância espacial que atribui responsabilidades ao clube, pois os meninos são dos através das peneiras organizadas pelos clubes, ou através de indicação
“deles”. A expressão “nossos Figueirinhas”, por sua vez, tem um peso maior de olheiros9 que circulam por campos de várzea, escolinhas, competições
na dimensão de pertencimento, passa uma mensagem de envolvimento e, escolares e campeonatos promovidos por outras entidades e organizações
sobretudo, de afetividade, que não significa necessariamente proximidade sociais. Entre essas formas de seleção, a que detém maior respaldo na socie-
e consequente melhor desempenho dos atletas em sala de aula. Na verdade, dade e que representa enorme competição é a peneira, pois, apenas 1% dos
nas observações realizadas, percebeu-se certo favorecimento ou a conces- jovens são escolhidos nesse processo de seleção (SOARES et al., 2009). O
são de prioridades ao clube e seus atletas no quesito flexibilização se com- respaldo, como na fala de um informante, significa um retorno à sociedade,
parado aos estudantes trabalhadores que compartilham de situação seme- alimentando o imaginário de descoberta e de conquista pelo mérito pessoal.
lhante de tempo dedicado à escola e ao trabalho. Isto é, a condição de atleta
pareceu, em certa medida, ser valorizada pelos profissionais da educação, 8 Processo de seleção de atletas, com data e hora marcada. Geralmente, os clubes realizam a
devido à representatividade de um clube profissional como o Figueirense, o cobrança de algum valor em dinheiro no ato da inscrição. Em 2013, o Avaí cobrava R$ 40,00
pelo teste no clube, o qual acontecia durante três dias, com avaliações técnicas e táticas.
que aponta para um afrouxamento ou comodismo das exigências escolares. Durante a pesquisa, observei uma das peneiras e 80 jovens estiveram presentes. A peneira
aconteceu no meio do ano de 2013, condição em que as equipes estavam disputando competi-
ções. Como se diz na língua do futebol, “o grupo estava fechado”, de modo que, conforme ficou
formação esportiva e formação escolar claro em conversas com profissionais do clube, somente se algum jovem se destacasse como
“fora de série” seria admitido na ocasião. Geralmente as peneiras não costumam ser a principal
O foco primordial da formação no esporte está na inserção dos atletas nos porta de acesso dos garotos no mercado profissional do futebol, conforme mostra pesquisa
de Toledo (2002), que revela que este tipo de processo de inserção promove baixos índices de
clubes profissionais, e para isso são organizados centros de treinamento aproveitamento, pois cerca apenas de 1% dos candidatos são aproveitados pelos clubes.
com toda uma estrutura voltada para formação, com quadro de profis- 9 Profissional que descobre talentos circulando por clubes e competições e faz a intermediação
sionais diversos como nutricionistas, médicos, fisiologistas, preparadores de propostas para ambos. Esta é uma das razões para a circularidade dos jovens no meio do
futebol, pois são assediados frequentemente para mudança de clube com oportunidades mais
físicos, treinadores etc., criando um espaço social privilegiado para novas promissoras.

30 31
São poucos os jovens selecionados em peneiras, se comparados às indica- também sobre proporcionar matrícula escolar, certificando-se que jovens
ções e trocas de clubes negociadas internamente no meio através de convites. atletas tenham frequência e satisfatório desempenho acadêmico.
A entrada em uma categoria de base de um clube significa para o jovem O problema a destacar são as brechas existentes na legislação quanto ao
e sua família a superação de um primeiro alambrado,10 que separa o brincar requisito escolarização, pois não são definidas maneiras de acompanhar o
de bola de um processo mais racional de jogar bola, o qual requer regra- desempenho escolar dos estudantes atletas. Esta abertura parece fazer com
mento, tempo de treino, alimentação adequada, cuidados específicos com que os clubes tomem decisões que favoreçam a formação no esporte em
o corpo, separação da família, disciplinamento e responsabilidades (DA detrimento da escolarização dos jovens. Não que isso leve os clubes a reti-
CONCEIÇÃO, 2014, p. 38). Estar na categoria de base de um clube profissio- rarem os jovens da sala de aula, mais permite que ajam em conformidade
nal, muitas vezes, acaba por transmitir certa segurança quanto às possibili- com a cultura de gestão na qual a formação do atleta se torna prioritária em
dades de carreira, pois é um indício de sucesso se comparado com milhares relação a qualquer outra formação. Nesse sentido, os clubes matriculam os
de jovens que não conseguem a aprovação nos processos de ingresso, prin- atletas em escolas particulares ou públicas, em horários que não interfiram
cipalmente quando dentro do campo de formação de atletas o jovem está nos treinos, ou mesmo incentivam a matrícula em programas educação
vinculado a um clube com boa visibilidade no mercado nacional (e, por de jovens e adultos, sejam presenciais ou virtuais (BARTHOLO et al., 2011;
consequência, também internacional). A incursão dentro do “alambrado” BARRETO, 2012). Portanto, a “formação à brasileira, quando comparada a
das categorias de base de um clube de futebol marca a entrada do jovem em modelos de formação esportiva de outros países,12 possui a liberdade para
uma comunidade de prática (LAVE; WENGER, 1991), com saberes profissio- formar sem priorizar a conciliação com a agenda escolar” (DAMO, 2005, p.
nais (DUBAR, 1997) e o começo de uma socialização profissional (BERGER; 219). A inserção em categorias de base para formação esportiva interfere na
LUCKMANN, 2002; MELO; VALLE, 2013) dentro de uma subcultura ocupa- escolarização e as políticas públicas brasileiras não oferecem suporte para
cional11 (GIULIANOTTI, 2010). Todos esses espaços e experiências demons- mudança do atual processo de formação de atletas (KLEIN; BASSANI, 2014).
tram que o jovem terá que adquirir, além do capital corporal (condições O rendimento nos treinamentos e competições exige um forte esforço
físicas, técnicas e táticas), um conjunto de saberes que serão incorporados dos atletas e constituem-se em parâmetros de avaliação constante para a
e reconhecidos no meio futebolístico. permanência nos clubes. No dia a dia, a pressão por ser melhor é lembrada
Os clubes de futebol que desenvolvem a formação esportiva são reco- semanalmente, pois sempre os gestores do esporte lembram que a oferta
nhecidos como entidades formadoras e como tal devem seguir as orienta- de novos atletas é permanente nos clubes. Muitos indicados (convidados)
ções que constam na Lei Pelé (BRASIL, 1998) e na Nova Lei Pelé (BRASIL, por pessoas influentes no campo ou por empresários buscam uma chance
2011), as quais ditam diretrizes sobre o fornecimento e atendimento de de demonstrar o quanto são bons de bola. Em contrapartida, os jovens que
requisitos básicos aos jovens atletas. Estas diretrizes versam sobre treina- procuram os clubes, sem a necessidade do processo de peneira, passam de
mento, atendimento de saúde (médica, odontológica, psicológica e educa- uma a quatro semanas em avaliação e representam uma constante pressão
cional), alojamento (alimentação e transporte), convívio com a família e para aqueles que estão temporariamente incorporados às categorias.
Esse processo de seleção de alguns dias ou semanas consome as ener-
10 Cerca de tela que delimita o local de prática do futebol. Geralmente, os campos e gramados
gias dos jovens atletas e recria novas perspectivas de sucesso no esporte.
mais estruturados tendem a separar os praticantes e os observadores. O termo aqui é empre- A escola, no imaginário desses jovens, é quase esquecida durante esse
gado como metáfora para designar as “barreiras” e obstáculos que os jovens e seus familiares
processo, pois, na lida para buscar uma vaga no clube, os jovens acabam
devem transpor para obter o sonho de profissionalização no esporte.
11 Richard Giulianotti apresenta que na década de 1960 já era possível identificar no futebol
uma subcultura ocupacional marcada pela mesma experiência educacional limitada, valores 12 Para maior conhecimento do processo desenvolvido em outros países, ler Damo (2005), que
sociais conservadores e códigos de comunicação restritos ao sentido de companheiros profis- faz um comparativo entre Brasil e França, e também Moita (2008), que realiza estudo de caso
sionais, inclusive compartilhamento de padrões de carreira comuns e semelhantes objetivos no Sporting Club de Portugal, que traz um pouco do panorama europeu nos grandes clubes
profissionais (GIULIANOTTI, 2010, p. 150). de ponta.

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voluntariamente distantes, física e/ou simbolicamente, da escola, sobre- não começa cedo em uma equipe de maior expressão, tende a circular bus-
tudo aqueles que vêm de outras cidades e estados brasileiros. Esse dado cando outras oportunidades, ficando assim mais vulnerável a perder o ano
também é reforçado na pesquisa realizada por Marques e Samulski (2009) letivo, pois realiza grandes deslocamentos e perda de contato com a escola
sobre a análise de carreira esportiva de jovens atletas de futebol na transi- em que estava matriculado (quando estava), ocasionando descontinuidade
ção da fase amadora para a fase profissional. Segundo Marques e Samulski na escolarização, com consequências que podem incidir na desistência ou
(2009), os jogadores de futebol nessa fase deixam de morar com os pais, reprovação em função do elevado número de faltas.
em geral, a partir dos 13 anos de idade, e a maioria destes jovens não tem A prioridade dada ao futebol produz, neste caso, um ensino desconti-
contato diário com seus familiares. Um ponto a ser ressaltado está no fato nuado ou mesmo a total ausência na escola, pois, muitas vezes, os jovens
de que estes meninos, que vêm de cidades e regiões distantes, permanecem circulam por vários clubes procurando efetivação para então serem matri-
alojados nos clubes sem frequentar a escola, enquanto aguardam a finali- culados na escola. Estes não são casos majoritários, mas acontecem com
zação dos testes e o resultado final da seleção. Quando conseguem a apro- muita frequência, segundo os depoimentos dos profissionais ligados aos
vação para ingresso nas categorias de base, os procedimentos de matrícula clubes. Por essa razão, enquanto o jovem não cria um vínculo com o clube
são providenciados de acordo com as condições de calendário da escola profissional, fica ainda mais exposto ao fracasso escolar ou ao abandono
e/ou do momento em se transferem para a nova cidade. Por outro lado, escolar. Tal situação acontece com certa regularidade, ligada diretamente ao
quando não obtêm o resultado positivo, retornam para casa e passam a sistema de aprovação para ingresso nas categorias de base que se expande
procurar outra oportunidade em outro clube. Adriana,13 assistente social do para além da origem geográfica dos atletas. Os testes são realizados durante
Avaí, ressalta que acontece uma alta rotatividade dos jovens atletas entre os todo o ano e, como dito, os jovens podem chegar a qualquer momento
clubes, fato que tende a deixar a escola ainda mais em segundo plano, pois aos clubes e, independentemente do mês, as escolas investigadas atendem
os jovens, ao darem prioridade ao futebol, viajam de cidade em cidade na os clubes realizando extemporaneamente a matrícula do atleta. Por outro
busca de seu projeto, que novamente marca uma descontinuidade com o lado, o atleta, quando obtém sua inserção nas categorias de base de um
projeto de escolarização (ENTREVISTA, 1º/5/2013). clube formador, aumenta suas chances de escolarização em função das exi-
Apesar disso, Soares et al. (2009) constataram que os atletas tendem a gências legais impostas ao clube formador. A parceria das escolas com o
permanecer mais tempo na escola devido ao vínculo com o futebol, contra- clube garante o atendimento de matrícula para o atleta; no entanto, este
riando o senso comum que afirma que o futebol leva os jovens a abandona- estudante, muitas vezes, está com o ano letivo comprometido ou perdido,
rem a escola. No entanto, a não repetência e a não interrupção dos estudos sem notas ou frequência escolar. A escola, devido à descontinuidade do
não garantem qualidade ou apreensão do conteúdo e dos saberes escola- ensino e vivência em seu espaço, entra com a imposição de que o atleta
res. Almeida e Souza (2013), ao realizarem pesquisa com atletas em forma- deve frequentar a escola, mesmo que faltando dois ou três meses para o
ção na cidade de Belém/PA, atestam que, embora não aconteça abandono final do ano letivo.
escolar, encontram-se entre os atletas em formação déficit escolar consi- A relação do estudante atleta com a escolarização passa a ser cons-
derável e dificuldades de conciliar a rotina do futebol com a escolariza- truída de maneira muito frágil e precarizada. Um exemplo observado foi
ção. Anteriormente, afirmamos que o esporte não afasta o jovem da escola, o caso de um atleta inserido na categoria de base no último bimestre letivo
mediante seu vínculo permanente com o clube, porém, quando este jovem (2014), sem notas anteriores, e informando sua condição de repetente. Isso
demarca que a matrícula pode apenas auxiliar a exigência formal de matrí-
13 Assistente social do Avaí, trabalhava há três anos no clube e aquela estava sendo sua primeira cula para o clube formador. Outro caso observado foi o de um atleta da base
experiência atuando no futebol. Realizava uma jornada de trabalho de 20 horas semanais e incorporado à equipe profissional que realizou viagens durante todo ano,
atuava profissionalmente em outras organizações no restante do tempo. A entrevista foi reali-
zada no clube em uma sala anexa ao setor Psicossocial (maio. 2013). Além da entrevista, Adriana
acompanhando a equipe no campeonato brasileiro em 2014. A descontinui-
foi uma interlocutora importante no clube, relatando situações do cotidiano dos atletas. dade de permanência na escola, e o consequente acúmulo de faltas, levou o

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referido aluno à reprovação. Esse fato gerou discussões com o clube e com A constatação que pudemos fazer foi sobre uma postura muito seme-
o pai do atleta, que, não satisfeito, processou a escola, fundamentando seu lhante dos atletas nas duas escolas investigadas. Cria-se uma relação com
argumento de que seu filho, por ser atleta, deveria ter tido um atendimento o saber bastante frágil e utilitarista, isto é, a escola ajuda a ler os contratos
especial. Sem entrarmos na querela citada, podemos inferir que existe uma futuros e a dar boas entrevistas, e, também, a escola passa a ser apenas mais
demanda para que os estudantes atletas e/ou trabalhadores recebem algum um requisito para manter o vínculo com o clube, pois indisciplina ou faltas
tipo de atendimento de suplência ou reforço escolar. Essas são situações constantes não são toleradas por muito tempo e podem significar dispensa
corriqueiras, para não dizer regulares, no trabalho das assistentes sociais e do clube. Nesse caso, a permanência obrigatória na escola como contrapar-
da direção das escolas investigadas. Ambas as situações demonstram como tida de permanência nos clubes passa a definir o sentido da escolarização
a escola parece ficar secundarizada e de braços atados para resolver esse tipo para parte dos estudantes atletas. Inclusive, na escola, pudemos observar
de situação. Todavia, no caso brasileiro, podemos observar que a expecta- que os modos de comportamento demonstram que os estudantes atletas
tiva do clube e do jovem atleta é de que a escola aceite incondicionalmente não estão dispostos a ver aquilo que lhes é transmitido pelo professor como
a condição dos atletas e se flexibilize às exigências escolares. essencial para suas vidas. No entanto, mais que agressividade ou submissão
A relação com a escola é construída de maneira muito frágil se pensar- frente à escola, a postura de indiferença dos estudantes atletas caracteriza o
mos nas implicações que estão presentes. O conteúdo ministrado nas dife- desinteresse pela escolarização (DA CONCEIÇÃO, 2014, p. 47).
rentes disciplinas não interessa, em geral, a atletas e não atletas, e os atletas A escola, como espaço de socialização, permite ou possibilita aos estu-
também têm dificuldades de relacionamento com os colegas. As faltas por dantes atletas o contato com uma realidade para além do meio do futebol.
conta das viagens descontinuam ainda mais o ensino, suprimindo ainda No entanto, para preservar a individualidade e fugir das injustiças e da rotu-
mais os vínculos do estudantes atletas com a escola. Por outro lado, a falta lagem (e estigmatizada) a que são submetidos, os jogadores de futebol aca-
recorrente de professores foi tema de conversas que observamos durante bam criando guetos para compartilhar os mesmos interesses com aqueles
nossas visitas às escolas investigadas. Os estudantes trabalhadores e atle- que conhecem as agruras da carreira e sabem as dores do corpo atlético
tas compartilham da mesma inquietação em relação a esse problema; no e a alegria da vitória. Os atletas estão “ligados” com aqueles que perten-
entanto, a maioria dos atletas parece ficar satisfeita com a falta de docentes cem a sua comunidade de prática no futebol. A comunidade de prática da
às aulas, enquanto os estudantes trabalhadores se sentem, às vezes, incomo- escola e seu saber não são tão interessantes, por estarem afastados dos sabe-
dados e frustrados. Porém, não são todos os estudantes que demonstram res produzidos no futebol e de seus sonhos de sucesso. A escola e os atletas
insatisfação com a falta de professores. Muitos deles, independentemente de convivem sem que haja interferência nos projetos para a instituição e para
serem atletas ou trabalhadores, parecem satisfeitos e contentes com a ausên- os atletas, até que o equilíbrio seja quebrado. Quando os estudantes atletas
cia dos professores e as saídas mais cedo. Precisamos pensar o quanto o sis- geram demandas não esperadas ou inflijam as normas escolares, os assis-
tema de ensino precarizado contribui para uma relação de desinteresse com tentes sociais dos clubes são acionados para que tomem providências junto
a escola, que, no caso do ensino noturno, é ampliada com a diminuição no aos seus tutelados.
aparato técnico de profissionais que trabalham neste horário. À noite – algo O espaço escolar representa para os atletas uma continuidade de suas res-
muito comum em ambas as escolas do ensino público estadual investigadas ponsabilidades dentro da formação esportiva, isto é, não é parte integrante
– a falta de professores contribui ainda mais para um ensino descontínuo do processo formativo no esporte, mas se torna um dos requisitos para con-
e desconectado. Não são apenas os estudantes trabalhadores e atletas que tinuarem o processo de profissionalização. A frequência à escola é encarada
possuem jornadas laborais durante o dia e à noite precisam encarar um ter- como mais uma obrigação (imposição) a ser cumprida. Os atletas, devido
ceiro turno de tarefas e aulas. Essa é uma situação vivida também por grande às exigências do clube sobre seu comportamento dentro e fora do campo,
parte dos docentes que lecionam no período noturno. mantêm uma conduta que os afasta de colegas não atletas no ambiente esco-
lar e procuram evitar qualquer tipo de discussão ou desacordo no ambiente

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escolar (DA CONCEIÇÃO, 2014). A postura dos estudantes atletas está pau- Em conversas exploratórias no campo de pesquisa, o relato mais
tada na condição de evitar “confusões” – em função da provocação de alunos comum entre os atletas era o de que se esforçavam apenas para tirar a
torcedores de outros clubes de futebol, por exemplo – que abalem a ordem nota suficiente para passar. De acordo com os profissionais dos clubes e
escolar, pois eles, assim como os demais, sabem que o mau comportamento das escolas, os atletas não têm interesse em tirar “boas notas” ou ter um
e a indisciplina levam à dispensa do clube. A manutenção do grupo dos atle- “ótimo desempenho” acadêmico. Na escola IL, a postura de “fazer o sufi-
tas na escola fornece identidade e sentimento de segurança e proteção, que, ciente” pôde ser percebida facilmente como uma regra de sociabilidade na
somado ao sentimento de não pertencerem ao local, sendo considerados os relação escola e os estudantes atletas. A participação nas aulas e a entrega de
forasteiros ou estrangeiros, os atletas constroem um ethos bem adaptado ao provas e trabalhos sinaliza o esforço e suposto compromisso com a escola,
ambiente escolar dentro das possibilidades de integração social. o que parece satisfazer os professores. Porém, o comentário realizado por
A necessidade de permanecer em grupo faz com que sejam criados Roberta,15 coordenadora pedagógica da escola IL, mostra qual é a expec-
valores e códigos sociais internos, ou que algumas ações sejam mais bem tativa da escola em relação aos estudantes atletas na instituição: “reprovar
reconhecidas que outras. No grupo, começam a vivenciar uma subcultura, o aluno no ensino médio, por quê? Ele não quer ser doutor, ele quer ser
conformando ações e posturas que, muitas vezes, não são consideradas homem, ele quer ter uma formação. Ele vem de outras escolas pra cá, eu
como ideais ou bem vistas pelo resto da comunidade que se sente excluída. não sei se vai ficar muito tempo aqui!” (ENTREVISTA, 3/5/2013). De maneira
Os desafios da socialização profissional com a aquisição de um capital fute- semelhante, na escola ARS a primeira conversa com as gestoras sinalizou
bolístico vão além das técnicas, adaptações orgânicas e performances. Ao que a prática de aprovação automática era comum, pois, no final do ano, os
estar inserido em uma comunidade de prática, o jovem atleta fica sujeito às professores se perguntam no conselho de classe: “o que vamos fazer com os
rotinas de sua formação esportiva, na qual trocas e vivências são comparti- ‘nossos Figueirinhas’”? (DIÁRIO DE CAMPO, 19/5/2014). A solução comum
lhadas até o ponto de tornarem-se naturalizadas. Desta forma, um compor- é aprová-los, justificada pelo fato de seu interesse ser outro e de que não
tamento social dentro de uma subcultura ou socialização profissional passa será a escola que dificultará (ainda mais) a carreira dos meninos. A ati-
a representar um padrão, quase como norma que deve ser aceita e inter- tude dos professores no conselho de classe na escola parece estar pautada
nalizada. Por isso, o atleta bom estudante que aos olhos da escola poderia no “drama social” do aluno que determina diretamente sua nota (PRADO;
render mais, no grupo de prática tenderá a se tornar mais um estudante EARP, 2010). Também percebem que o julgamento feito sobre o aluno é de
relapso e negligente. Ser aluno dedicado e focado no projeto de escolariza- cunho muito mais moral, social, do que escolar (PRADO; EARP, 2010).
ção coloca em risco o projeto de carreira construído para o futebol. Logo, Apesar de “naturalizada” e rotineira, essa situação em relação ao desen-
a “naturalização” de priorizar a formação esportiva desenvolve paulatina- volvimento escolar dos estudantes atletas, não deixa de gerar algum mal-es-
mente um comportamento de desinteresse e afastamento da escola devido tar às instituições escolares. Irene,16 coordenadora pedagógica da escola ARS,
às chacotas, piadas e situações internas no grupo, que ridiculariza o atleta fala sobre o sentimento da escola a respeito dos atletas:
que se empenha em estudar. Aqui, ressalto que esta situação socializadora
pode ser percebida em atletas alojados sob a responsabilidade dos clubes partir dos 16 anos de idade, apenas 10% dos familiares possuem contato diário com os filhos.
de futebol. Os atletas que convivem com suas famílias desenvolvem uma Esses dados sugerem que há uma diminuição da participação das famílias junto a seus filhos
à medida que eles se aproximam do final do processo de formação esportiva.
relação com a escola de acordo com a importância que o grupo familiar 15 Coordenadora pedagógica da escola IL, estava há sete anos desenvolvendo atividades na
deposita nas chances de sucesso na escolarização.14 escola, durante dois anos como professora de história e o restante na supervisão. Roberta
também demonstrou grande entusiasmo com a pesquisa e mediou o contato com professores
14 Os dados da pesquisa de Moraes, Rabelo e Salmela (2004) sobre o envolvimento dos familiares e alunos da instituição.
com o desempenho escolar e também esportivo de jovens atletas de futebol apresentam que, 16 Coordenadora pedagógica da escola Aderbal Ramos da Silva, possui formação em letras por-
na fase de iniciação e especialização (dos 6 aos 15 anos), 65% dos pais exigem desempenho tuguês-inglês, com 23 anos de experiência trabalhando com educação, 13 deles em sala de aula
nos estudos e no esporte. Segundo os autores, nessa fase, cerca de 90% dos familiares possuem e 10 na assessoria pedagógica. A entrevista foi realizada durante uma noite de visita à escola,
contato diário com seus filhos. Mas, à medida em que o jovem avança na carreira esportiva, a na sala da direção (mar. 2015).

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[...] passam de ano empurrados e amparados em documentos, atestados de Sobre as viagens, é importante pontuar que os atletas têm uma per-
falta, atestados médicos e declaração de jogo que a gente respeita. Fazemos o cepção diferenciada entre viagens de longa e de curta duração. As “longas”
pacto, mas não recebemos nada em troca. Nós nos sentimos frustrados em
são para competições em que permanecem vários dias ou semanas, depen-
relação a eles, pois os maiores prejudicados são eles (ENTREVISTA, 5/3/2015).
dendo do desempenho da equipe, e as “curtas”, muitas vezes realizadas den-
Na relação escola-atleta-clube, pequenas ações são pensadas visando tro do estado de Santa Catarina, são de “bate e volta” (saída e retorno no
contornar algumas situações. Roberta, coordenadora pedagógica da escola mesmo dia ou, no máximo, na manhã seguinte). Os estudantes não atletas
IL, expressa satisfação em dizer que naquele momento em que a pesquisa também realizam viagens; no entanto, em menor número e frequência,
era realizada (2013), os jovens estavam avisando com antecedência quando as quais não influenciam diretamente na sua relação com a escola, pois a
iriam viajar. Essa foi uma das solicitações da escola para o Avaí, dentro do permanência neste espaço é maior, pelo menos em termos quantitativos,
mencionado “ajuste de conduta”, realizado em 2009, pois anteriormente não gerando continuidade. Os atletas sofrem com a descontinuidade, pois per-
existia a preocupação de comunicar aos professores as ausências. Às vezes, dem a oportunidade de aprender o conteúdo com o auxílio do professor, e
depois de dias ou semanas de ausências, os atletas simplesmente retornavam posteriormente têm que despender esforço e tempo maiores de dedicação
às salas de aula. Os professores não conseguiam dar suas aulas, mediante o a fim de realizar as provas e avaliações.
dilema de avançar no conteúdo, respeitando os outros estudantes, e a neces- Essas são maneiras que interferem no processo e organização dos pro-
sidade de rever a matéria para os estudantes atletas que estiveram ausentes. fessores, tendo em vista o conteúdo do componente curricular que minis-
Roberta, coordenadora pedagógica IL, contou que, antes de 2009, o contato tram. O modo como clube e atletas lidam com as sucessivas ausências afeta
da escola com o clube era quase inexistente, se restringia apenas à burocracia diretamente a postura que o professor deve ter frente aos atletas, na medida
inicial para garantia de matrícula. Depois que a parceria foi revista e a escola em que, mesmo que informalmente, são tratados de forma diferenciada.
teve a possibilidade de se organizar melhor para atender esses estudantes Os relatos colhidos durante as observações afirmam que, entre os profes-
atletas. Roberta explica que: “Aprendemos, essa turma é do clube, vão sair em sores, parece haver aqueles que reconhecem o esforço dos jovens em tri-
tal período, precisamos que o professor prepare uma avaliação assim... Os lhar a carreira esportiva e acabam tendo uma postura mais compreensiva,
atletas então enviam os trabalhos e os conteúdos” (ENTREVISTA, 3/5/2013). adequando as avaliações aos estudantes atletas. Por outro, há os que reali-
No Figueirense, a prática de antecipar a justificativa das faltas dos estu- zam “marcação firme” nos atletas, gerando categorias de acusação, como
dantes atletas não foi observada durante o trabalho de campo. A conversa “bagunceiros” e “desinteressados”, que nada mais são do que rótulos para
com a Juliana,17 assistente social do clube, deixou entrever que parte da uma postura desviante contrária ao que o professor reconhece como aluno
responsabilidade é dada ao atleta em mediar sua condição de estudante: ideal (DA CONCEIÇÃO, 2014).
“Incentivo a eles correr atrás do professor, para criar vínculo, negociar com Ao não expressar uma harmonia com o sistema escolar e sua suposta
o professor, não deixar para depois da viagem” (ENTREVISTA, 6/3/2015). A função social, os estudantes atletas passam a ser taxados como “desinte-
intenção é proporcionar um melhor relacionamento com os professores ressados”, “dispersos”, “ausentes”, “malandros”, “folgados”, “descompromis-
e anunciar os períodos de ausência, com o intuito de que as tarefas sejam sados”, “bagunceiros” ou “quietos demais”, e são elevados a um status de
planejadas para o estudante. Infelizmente, o mais comum segue sendo os carreira que os reconhece como futuras “estrelas”. Essas características mar-
atletas se ausentarem e, posteriormente, com as declarações e atestados, cam desigualdades de performances reconhecidas como ideias no espaço
serem pensadas maneiras de repor as aulas ou avaliações. escolar (DUBET, 2008, p. 40).
Todas as falas que atribuem categorias de acusações aos estudantes
17 Assistente Social do Figueirense, tinha, na ocasião de nossa conversa, oito anos de experiên- atletas estão baseadas em relatos e experiências dos sujeitos que interagem
cia no clube. Realizou estágios durante a graduação e o Figueirense foi o primeiro emprego
após concluir sua formação. A entrevista foi realizada na sala do Desenvolvimento Humano
com eles na escola. Essas categorias também são empregadas para com
(mar. 2015). os estudantes trabalhadores, mas de maneira muito mais contida, menos

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generalizantes e menos rotuladoras. Entre eles também há “desinteressados”, de escolarização com um satisfatório aproveitamento. No entanto, também
aqueles que “não querem nada com nada”, mas parecem ser minoria. “Só pode ser negativa, se a mesma foi relegada para o segundo plano e dada
alguns apresentam esse comportamento, não são todos” ou a grande maio- prioridade à formação no futebol, pois a descontinuidade com o saber esco-
ria, disse Irene, coordenadora pedagógica ARS (ENTREVISTAS, 5/3/2015). A lar tende a dificultar uma possível reconversão profissional (MARQUES;
homogeneidade do tratamento dado aos “meninos do Avaí” ou aos “nossos SALMUSKI, 2009, p. 104). Um grande desafio vinculado à segunda possibi-
Figueirinhas” acaba incorrendo em rotulagens que inviabilizam o sucesso lidade, a mais frequente, é enfrentar o fato de superar a condição de profis-
acadêmico mesmo daqueles que desejam superar as dificuldades de con- sional frustrado (SOUZA et al., 2008).
ciliação da escolarização com o futebol. Nessa situação estão o atleta que lê As duas alternativas de futuro – escolarização e formação esportiva – se
um livro concentrado durante a falta de um professor (DIÁRIO DE CAMPO, equiparam, mas os indivíduos procuram fazer escolhas mediante a percep-
16/3/2015); o atleta do Figueirense que, por meio da nota do Enem, conse- ção das oportunidades ou desejos disponíveis nos seus contextos socializa-
guiu vaga em uma universidade (ENTREVISTA 6, JULIANA, mar. 2015); o tórios. O termo “estudante atleta” traz a designação de dois papéis sociais
atleta que sempre estudou em escola particular, e agora, porque está alojado compartilhados, o primeiro de jovem estudante e o segundo de jovem
no Figueirense, frequentará a escola pública e os pais, por conta isso, quase atleta. Ambos exigem atitudes e posturas reconhecidas em cada uma das
desautorizaram sua mudança de cidade (ENTREVISTA 6, JULIANA, mar. instituições que representam. A junção dos dois papéis significa estar na
2015); ou do atleta da base do Avaí que passou no vestibular da Universidade intersecção entre dois mundos que objetivam possibilidades de futuro e
Federal de Santa Catarina.18 No entanto, esses podem ser considerados caminhos diferentes (DA CONCEIÇÃO, 2013). O ideal seria que ambos favo-
‘trânsfugas”19 dentro do mundo da formação esportiva. Todo o maquinário recessem um ao outro como uma dupla carreira; no entanto, no modelo
na indústria do futebol induz no jovem a necessidade de dedicação plena no atual, percebem-se muito mais conflitos e interferências que incompatibi-
aprimoramento de seu corpo. Toda a técnica e talento tem origem nele. A lizam sua concomitância.
dimensão intelectual é conhecida na capacidade de criação e improvisação, A intensificação dos treinamentos à medida que a profissionaliza-
não na aquisição de conhecimento escolar. ção se aproxima acarreta a mudança de turno escolar (BARTHOLO et al.,
Os dois projetos, que envolvem o banco escolar e o vestiário, são 2011). Assemelha-se, assim, ao estudante trabalhador, que procura o ensino
opções racionalizadas que os indivíduos e suas famílias operacionalizam noturno para melhor conciliar a escolarização à atividade principal exercida
para suprir o momento imediato ou futuro. Bourdieu (2003) percebe que durante o dia. Neste momento surgem desafios que remetem ao cansaço, à
nas classes populares o período de juventude significa maior produtividade fadiga e aos grandes deslocamentos que dificultam sua participação e apren-
e energia, por isso, o esporte é bem recebido e pode ser vinculado à possibi- dizado em sala de aula (SOARES, 2009). Além disso, em função da grande
lidade de profissionalização. O futebol não é apenas um jogo para os jovens rotatividade de jogadores que chegam e vão dos clubes, a procura de opor-
e seus pais: é assunto sério pelo qual vale a pena deixar de lado outras coisas tunidades pode levar o jovem a integrar mais de um clube no ano, o que
e que pode trazer dividendos substanciais no futuro (MENESES, 2014, p. 17). promove a descontinuidade de seu convívio escolar.
Para um jovem atleta em formação, a escola pode ter ou não relação
com suas percepções de futuro. Se pensarmos no caso de desistência ou considerações finais
descontinuidade na carreira de atleta, a formação escolar pode ser positiva
quando houve sucesso em equilibrar a formação esportiva e a obtenção O esforço empreendido nessa pesquisa buscou ampliar o foco de luz
sobre a escolarização de jovens atletas. O estudo de caso foi realizado por
18 Disponível em: <http://goo.gl/7uHjXt>. Acesso em: 11 mar. 2015. meio de observações em duas escolas públicas estaduais de Florianópolis/
19 Crianças de famílias populares que mudam de mundo graças ao sucesso escolar (CHARLOT, SC que desenvolvem parceria com os clubes de futebol do estado, Avaí
2000, p. 64). Embora sabendo o limite do uso dessa categoria na situação apresentada, na
ausência de melhor termo, o mesmo parece ser significativo para os atletas que obtêm êxito
e Figueirense. O objetivo foi compreender a partir da constatação de
na escolarização em meio à formação no futebol. que os atletas em formação avançam em sua escolarização, mesmo com

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a intensificação de treinamentos e competições no momento em que se categorias como “família” e “irmãos”. Desta maneira, aqueles que não com-
amplia o campo de possibilidades rumo à profissionalização, a qual direta- partilham da realidade da formação esportiva enfrentam dificuldade ou
mente ocasiona maior desinteresse pela escola. Procuramos identificar por não conseguem ser aceitos pelo grupo. Estas duas características refletem
meio de observações nas escolas e nos clubes, bem como através de entre- parte do jogo de interação social imposta pelos indivíduos (atletas) na busca
vistas, como os estudantes atletas vivenciam o espaço escolar e constroem por defesa e proteção. Uma terceira situação observada, agora com ligação
sua relação com a escola e seus saberes e normas. direta às normas e regras inerentes ao processo de formação no esporte, e
À luz dos resultados obtidos na dissertação, apresentados nesse texto, que potencializam as duas situações anteriores, pode ser citada na neces-
podemos retornar ao trabalho de título “O educar que se repele” (DA sidade de disciplina extracampo. Os atletas devem manter um comporta-
CONCEIÇÃO, 2013), no qual os atletas entrevistados do Avaí apontaram mento aceitável no clube, nos treinamentos e na escola, devido ao constante
fatores que interferem para um maior ou menor interesse pela escolariza- receio de dispensa com os processos de vigilância permanente que vivem.
ção. Entre eles foram citados: a) a influência familiar, o quanto a escolari- Os atletas não buscam confusões no espaço escolar com os outros estudan-
zação faz parte do projeto da família ; b) maturidade do jovem, uma cons- tes ou professores, pois não desejam perder oportunidades de visibilidade
ciência das reais chances e oportunidades dentro do mercado do futebol; ao cumprirem punições em treinos ou competições que limitam as chances
c) consciência da fragilidade da carreira, preocupação com contusões ou de serem observados e avaliados por outros clubes, ou na direção oposta,
lesões graves, além das limitações táticas, técnicas e físicas; d) distancia- contribuir para a tomada de decisão sobre sua dispensa/liberação do clube.
mento do conteúdo escolar, falta de relação com a realidade vivida; e) falta As escolas investigadas utilizam a expressão oportunizar para dar signi-
de acompanhamento no clube, ausência de cobrança ou incentivo para ficado à presença dos atletas em seu espaço. No decorrer do trabalho pude-
melhor desempenho escolar; e f) a rotatividade dos jovens, expressa nas mos verificar que mesmo este ideal de “oportunizar” sofre com tensões pre-
viagens para competições durante a formação em uma categoria de base, sentes oriundas do mercado do futebol que envolve a rotina de treinamento
ou nas viagens para procura da aprovação e vínculo com um clube. Destaco e competições dos atletas. Os estudantes atletas, por deixarem a escola em
as viagens para competições que produzem uma alta rotatividade dos atle- segundo plano, ao realizarem as atividades da formação esportiva, acabam
tas no espaço escolar e influenciam diretamente sua relação com a escola por descontinuar seu relacionamento com a mesma e, consequentemente,
e seu saber, promovendo descontinuidade no processo de incorporação de com o saber produzido em seu espaço.
uma rotina escolar. A rotina da formação esportiva causa no espaço escolar, entre gestores
O espaço escolar, como local rico e propício para contato e relações e professores, reações diversas. Algumas delas podemos ressaltar na resis-
interpessoais, parece ser valorizado pelos profissionais do clube e da educa- tência de professores em abrir mão de seus programas para adequá-los aos
ção, pois permite aos atletas uma fuga da bolha que parece ser vivida dentro atletas, ou por outro lado, apontar para a exaltação da trajetória social dos
do mundo do futebol. Neste entendimento, a escola continua a ser pensada atletas ao serem avaliados positivamente dentro de um padrão moral. A
como espaço que proporciona ao atleta um contato com outros jovens e socialização profissional, dada em uma comunidade de prática, no caso
novas amizades. No entanto, de acordo com as observações, os atletas ten- do estudo as categorias de base, parece gerar atitudes e comportamentos
dem a permanecer em grupo, isto é, restringindo o contato com outros nos atletas que facilmente são reconhecidas nas categorias de acusação que
estudantes não atletas. Os motivos para esta situação estão na dificuldade rotulam e estereotipam os estudantes atletas no espaço escolar. Entre elas
de interação com outros jovens por serem reconhecidos como os de fora, estão: a ausência de material escolar, chegar atrasado, uso do celular, fones
os estrangeiros ou forasteiros, situação que gera um primeiro desafio a ser de ouvido, “ser quieto”, “desinteressado”, “bagunceiro”, “relapso”, “descom-
superado por estes. Um segundo motivo pode ser identificado como o de promissado”, “alheio à escola”, “marrento” e “ter empáfia”. Essas são situa-
pertencimento a uma comunidade de prática que vivencia situações seme- ções que não condizem com o modelo de estudante esperado pela escola,
lhantes e que passa a conformar e criar uma identidade de grupo, gerando e as expressões “meninos do Avaí” e “nossos Figueirinhas” representam o

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quanto o grupo de atletas se aparta e é apartado dos outros e “da escola”. Os escolares sobre as atribuições do esporte ou mesmo de uma “pedagogia
atletas, também em razão de sua rotina de treinamento e viagens, além de esportiva”. A ausência de um aproveitamento pelas escolas dos conheci-
sua socialização profissional, vivenciam uma descontinuidade em sua rela- mentos e aptidões “sobre” esporte de seus alunos provoca um movimento
ção com a escola, com professores e com o conteúdo oferecido. de diminuição de tais práticas e, principalmente, não abre margem para
Os atletas tendem a ter suas avaliações flexibilizadas, isto é, são tolera- valorização de profissões ligadas ao esporte (gestão, jornalismo, prepara-
das ausências e as provas e trabalhos, remarcados. No entanto, seu limite ção, formação, médica, nutricional, publicidade, marketing etc.). Esse é um
está imposto na frequência à sala de aula. A tensão existente entre presença dado relevante, se considerarmos, como dito acima, que há um percentual
na sala de aula e flexibilização tem sua válvula de escape marcada em ates- considerável de jovens atletas de futebol nas duas instituições.
tados e declarações diversas, que são validados para justificar a ausência No entender do pesquisador, a relação das duas escolas com seus atletas
dos atletas no espaço escolar, mas que não devem extrapolar o limite exi- e respectivamente com os clubes deveria ser como uma via de mão dupla
gido pelo sistema de ensino. em que ambos se beneficiassem. Contribuições dos dois lados, escola e
Mediante as contingências do mercado futebolístico e o tipo de escola clube, enriqueceriam o espaço escolar, aproximando assim dois projetos
que também se faz excludente, os jovens e seus familiares jogam com as formativos, não os separando em duas carreiras, mas possibilitando uma
cartas que possuem. Direcionam suas apostas após racionalizar sobre os “dupla carreira”. No entanto, a escola não promove maior envolvimento de
caminhos propostos e as chances reais de sucesso. Independentemente seus atletas em atividades, na medida em que não valoriza o conhecimento
de determinismos do clube, da família ou da escola, os agentes jogam na adquirido durante sua experiência de formação no esporte, ocasionando
procura de ampliar seu campo de possibilidades, maximizando as chances uma descontinuidade entre a realidade presente na formação esportiva
de sucesso. A escolarização pareceu ser uma escolha que, ainda no meio frente à formação escolar. Os clubes, por sua vez, também não desenvolvem
do futebol, não está incluída como exigência para objetivar a formação de atividades no espaço escolar, proporcionando desde melhorias em equipa-
um excelente atleta. Os mecanismos de flexibilização (ROCHA et al., 2011, mentos e estrutura, a conhecimento sobre esporte, corpo e saúde. Durante
BARRETO, 2012) continuam a passar uma mensagem para o jovem e a socie- as observações, ambas as instituições escolares demonstraram muita carên-
dade que o melhor é dedicar-se à profissionalização, sem se preocupar com cia e interesse que os clubes contribuíssem com conhecimento e atividades
projetos inconclusos ou com aqueles que ficam frustrados pelo caminho. sobre a prática esportiva, pensadas como: o desenvolvimento de projetos em
Os primeiros passos estão sendo dados para mudar essa situação, pois parceria ou a disponibilidade de profissionais para palestras e treinamentos.
as pesquisas sobre o tema apontam os desafios para a conciliação da esco- Essas são ações simples que demonstrariam que a parceria entre clubes
larização e da formação esportiva. Esse fato indica que no futuro, políticas e escolas poderia superar de vez o alambrado entre o campo de futebol e
públicas possam amparar e garantir ao jovem atleta a possibilidade de desen- o muro escolar. Algumas atividades não envolvem custos, em sua maioria
volver-se em uma dupla carreira sem a necessidade de priorizar apenas uma. demandam tempo dos profissionais, principalmente dos clubes. O retorno
No entanto, a realidade apresentada demonstra que a escolarização, na visão obtido em ações conjuntas seriam: (a) uma maior valorização do esporte
dos atletas, parece não contribuir para a carreira; assim muitas vezes, a sua no espaço escolar, para além de uma redução pautada apenas na prática
perspectiva escolar tem seu fim na conclusão do ensino médio, apenas como atlética, e (b) ao mesmo tempo, uma valorização do conhecimento escolar
uma exigência da legislação que orienta as ações com crianças e adolescentes. que, tornado científico, é parte do esporte de alto rendimento.
Ainda em tempo, uma última constatação observada nas várias visitas
às escolas investigadas diz respeito à ausência de cartazes20 ou trabalhos referências bibliográficas
20 Na escola Ildefonso Linhares em duas semanas no primeiro semestre de 2014 puderam ser ALMEIDA, Tobias B. C. de; SOUZA, Divaldo Martins de. Abandono dos estudos: uma
vistos cartazes sobre esporte que tratavam de questões sobre saúde, alimentação e evidencia- análise dos atletas de futebol em formação nas categorias de base de Belém/
vam algumas modalidades olímpicas. Eram trabalhos desenvolvidos em uma disciplina sem
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o envolvimento escolar mais amplo.

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jovens (BASSANI; TORRI; VAZ, 2003).
No Brasil, pesquisas sociológicas que buscam compreender o fenô-
meno esportivo e suas relações com a escola tiveram início a partir das
elaborações de Alba Zaluar em artigo intitulado “O esporte na educação
e na política pública”, publicado no ano de 1991 na revista Educação &
Sociedade. Pouco tempo depois, em 1994, a autora lançou o livro Cidadãos
não vão ao paraíso: juventude e política social, no qual o esporte é também
objeto de investigação.
Apesar dos estudos mencionados, segundo Bartholo et al. (2011, p. 12),

no Brasil, os estudos sobre a relação entre o processo de formação de atletas e


a formação na escola básica são pouco numerosos. De fato, não há qualquer
regulação do Estado sobre os limites de carga horária dos treinamentos e sobre
estratégias de reforço na escolarização dos estudantes atletas. Um problema
inicial é exatamente a falta de dados sistemáticos que descrevam a rotina dos
jovens e as cargas médias a que os jovens atletas são submetidos nas diferentes
modalidades esportivas.

50 51
Recentemente, o LABEC (Laboratório de Pesquisas em Educação do de idade,2 no naipe masculino, disputando o campeonato estadual da
Corpo),1 motivado em compreender as relações entre juventude, forma- modalidade.3
ção escolar e formação esportiva, vem se empenhando em analisar como A opção por investigar esses clubes se justifica na medida em que, em
jovens atletas de diferentes modalidades esportivas conciliam as atividades função de possuírem instituídos processos de formação, detecção e seleção
relativas à formação profissional no esporte e os estudos, sobretudo em um de talentos para o futsal profissional, por participarem das principais com-
período da vida escolar que exige maior dedicação destes estudantes atletas. petições nacionais e estaduais – inclusive, em alguns casos, também de com-
A partir dos dados produzidos até o momento, a hipótese que vem sendo petições internacionais – e por estarem em evidência nos meios de comu-
trabalhada é a de que as características intrínsecas de cada modalidade nicação de massa, tanto no âmbito local quanto nacional,4 são essas equipes
esportiva condicionam a formação do projeto de carreira do jovem atleta e que provavelmente atraem para seus centros de treinamentos o maior con-
determinam suas escolhas por uma maior dedicação à escola ou ao esporte tingente de jovens que almejam ingressar e seguir na carreira esportiva.
(ROCHA, 2013). Em dados coletados com atletas de voleibol e de futsal femi- A escolha por focalizar jovens entre 14 e 20 anos de idade se deu, sobre-
nino, por exemplo, evidencia-se que há uma rotina de treinamento ade- tudo, pelo fato de que as competições oficiais de categorias de base da
quada e compatibilizada com os horários escolares (COSTA, 2012). Confederação Brasileira de Futsal (CBFS) acontecem a partir da categoria
Inserido neste contexto, o presente artigo parte da dissertação intitu- Sub-15 (jovens de 14 a 15 anos de idade). Em geral, é a partir também dessa
lada Profissionalização e escolarização de jovens atletas de futsal em Santa faixa etária que os jovens passam a se dedicar com mais ênfase ao projeto
Catarina (KLEIN, 2014) e se vincula ao projeto Escolarização e formação de profissionalização, podendo deixar em segundo plano outros projetos de
de jovens atletas, desenvolvido pelo LABEC/PPGE-UFRJ em parceria com formação, como a escola. Para estes jovens, esporte e escola aparecem como
o Núcleo de Estudos e Pesquisa Educação e Sociedade Contemporânea uma espécie de dupla carreira de formação, justamente em um período de
(CED/UFSC/CNPq). Ele tem como objetivo apresentar dados e discussões escolarização obrigatória e de aumento de investimentos na rotina esportiva
referentes à rotina e ao desempenho escolar de jovens atletas de futsal, bem – fator que tenciona ainda mais a concorrência entre ambos os projetos.5
como as estratégias de compatibilização das atividades escolares com os
2 Essas idades correspondem às seguintes categorias do futsal: Sub-15 (14 a 15 anos de idade);
treinamentos esportivos. Sub-17 (16 a 17 anos de idade) e Sub-20 (18 a 20 anos de idade). No futsal, de acordo com as
Para melhor compreender este fenômeno, a proposta de investigação regras da Federação Catarinense de Futebol de Salão, os atletas de categorias de base podem
competir na categoria correspondente a sua faixa etária e também na imediatamente supe-
foi a de mergulhar no contexto das categorias de base das principais equi- rior a sua idade, ou seja, jovens com 15 anos de idade, por exemplo, podem participar de
pes profissionais de futsal do estado de Santa Catarina, participantes da competições oficiais tanto na categoria Sub-15 quanto na Sub-17, salvo nas categorias Sub-20
e Adulto quando deverão ter completa a idade mínima de 16 (dezesseis) anos e um dia, com
Liga Nacional de Futsal (Campeonato brasileiro) e também da Divisão
autorização do pai ou responsável. Entretanto, em função, sobretudo, das exigências físicas da
Especial de Futsal (Campeonato catarinense) no ano de 2013, e que man- modalidade, e da diferença morfofisiológica entre os jovens nestas faixas etárias, a utilização
tinham pelo menos uma equipe de categoria de base entre 14 e 20 anos de atletas de menor idade nas categorias superiores é relativamente rara.
3 A equipe Floripa Futsal, de Florianópolis, possuía somente as categorias Sub-11 (10 e 11
anos) e Sub-13 (12 e 13 anos), portanto, não atendia aos critérios de inclusão na investigação.
Entretanto, é importante mencionar que, como veremos mais adiante, além das oito equipes
profissionais que privilegiamos nesta investigação, outros 55 clubes profissionais e não profis-
sionais participaram, no ano de 2013, do campeonato estadual de futsal de Santa Catarina em
1 O LABEC é vinculado a Universidade Federal do Rio de Janeiro e sua demanda está atre-
alguma das categorias entre o Sub-9 e o Sub-20.
lada à compreensão do estudo das políticas, programas e ações de educação do corpo e da
expressividade em diferentes instituições sociais. Coordenado pelo Prof. Dr. Antônio Jorge 4 Os jogos da Liga Nacional de futsal são transmitidos tanto pelos canais fechados de televisão
Gonçalves Soares, do Programa de Pós-graduação em Educação daquela instituição, tendo SporTV e ESPN quanto pelo rádio, importante veículo de comunicação em diversos locais do
como foco de investigação a educação das técnicas de expressão corporal, artística e espor- estado de Santa Catarina. Há ainda um forte apelo na mídia eletrônica, por meio de sites e
tiva que impacta a formação de redes sociais, a profissionalização para o mercado do entre- blogs de notícias sobre os clubes.
tenimento (esporte e artes), a construção de identidades na formação educacional formal e 5 Ao entendermos que o período da juventude representa uma condição social de transitorie-
não formal, entre outros. dade como elemento importante para a definição do jovem, sobretudo a partir dos 15 anos

52 53
Na sequência do texto serão descritos os caminhos metodológicos per- A população dos clubes investigados neste estudo foi estimada em
corridos, para, em seguida, discutirmos os resultados desta investigação, 210 atletas, segundo dados da Federação Catarinense de Futebol de Salão6
que, para fins de organização e apresentação, estão estruturados em eixos (FCFS). Considerando a proporção média7 de atletas inscritos por catego-
articuladores, constituídos por meio da triangulação dos dados extraídos ria, estabelecemos as amostras necessárias para investigação, conforme
das diferentes fontes produzidas na pesquisa (entrevistas estruturadas e quadro 1.
semiestruturadas, diários de observações sistemáticas da rotina de treina- A amostra foi formada por 160 atletas estratificados nas categorias de
mento e de parte da rotina escolar), cruzando-os tanto com nossas ques- base Sub-15, Sub-17 e Sub-20. Para calcular o tamanho da amostra foi con-
tões orientadoras como com dados de organismos oficiais de estatística e siderado um nível de significância de 0,05 e um poder de teste de 95%.
com dados e interpretações de outras pesquisas realizadas com jovens em O formulário de entrevistas estruturadas aplicado aos atletas tratou dos
busca de profissionalização em distintas modalidades esportivas. seguintes pontos: a) escolaridade de pais e atletas; b) formação profissio-
nal no futsal; b) tempo gasto com treinamento; c) meio de transporte e
procedimentos metodológicos tempo gasto nos deslocamentos para o clube; d) tipo de formação escolar;
e) tempo gasto na rotina escolar; f) meio de transporte e tempo gasto nos
Realizamos um estudo exploratório de inspiração etnográfica no sentido deslocamentos para a escola; g) hábitos culturais: estudo, cinema, internet,
de investigar a rotina de treinamentos e de escolarização de jovens atletas
televisão e leitura. Para a análise dos dados foi utilizada uma abordagem
vinculados às categorias de base de oito equipes profissionais participantes
descritiva com cálculo de média e desvio padrão. Os indivíduos foram
da Divisão Especial de Futsal do Estado de Santa Catarina do ano de 2013,
agrupados por categoria (Sub-15, Sub-17 e Sub-20) e as análises foram rea-
sendo que quatro dessas equipes disputaram também a oitava edição (2013)
lizadas no software SPSS v. 21.
da Liga Nacional de Futsal, principal competição nacional para esta moda-
Em paralelo à aplicação dos formulários de entrevistas, realizamos um
lidade, sendo estes clubes: A. D Hering, de Blumenau; A. D Universitária,
período de observação sistemática em um dos clubes investigados, selecio-
de Tubarão; Chapecoense Futsal, de Chapecó; Clube Caça e Tiro, da cidade
nado intencionalmente,8 por meio da qual focalizamos a rotina esportiva e
de Lages; CSM/Pré-fabricar, de Jaraguá do Sul; F. M. D de Rio do Sul; Krona/
escolar de quatro jovens9 integrantes da categoria Sub-15. Foram realizadas
Futsal, de Joinville, e Passarela/Águia Seguros, de Concórdia.

quadro 1: distribuição da amostra da pesquisa 6 No ano de 2013, entre as 33 equipes participantes do campeonato estadual na categoria Sub-15
somente seis possuíam a categoria profissional; no Sub-17 entre os 20 participantes quatro
Número de clubes possuíam a categoria profissional; no Sub-20 entre os oito participantes quatro possuíam a
Média de atletas Amostra categoria profissional. Disponível em: <http://www.futsalsc.com.br> Acesso em: 15 jul. 2014.
Categoria investigados inscritos Total
federados da pesquisa 7 A média é estimada sobre os dados das equipes inscritas na FCFS, pois, segundo o regulamento
por categoria
das competições oficiais da entidade em 2013, somente 12 atletas podiam integrar a equipe nas
Sub-15 6 15 90 70 partidas. Em geral, as equipes possuíam dois ou três atletas suplentes, utilizados em caso de
lesões, suspensões, entre outros.
Sub-17 4 15 60 50 8 O clube, que não será identificado em função da solicitação do seu diretor esportivo para
evitar problemas de divulgação da marca e patrocínio, localiza-se a cerca de 200 km da
Sub-20 4 15 60 40
cidade de Florianópolis, na região norte do estado de Santa Catarina, e foi intencionalmente
Total – – 210 160 selecionado pelos pesquisadores sobretudo por possuir estrutura que comporta as categorias
– (idades) alvo da pesquisa, por ser considerado uma das principais referências em formação
de atletas no estado e também pelo acesso facilitado, mediado entre o treinador da equipe e
de idade, é possível afirmar, segundo Groppo (2009), que, ao seguir um tempo especial do gestores do clube – o fato de o treinador da equipe ser um amigo de longa data foi também
curso da vida voltado para experiências, ensaios e erros, os jovens acabam provando distin- um fator importante para a escolha do clube.
tos papéis até consolidarem sua própria personalidade. Neste sentido, a juventude pode ser 9 Os jovens foram selecionados pelo técnico responsável da equipe, indicando que eles eram
caracterizada pelo conceito de moratória social, ou seja, enquanto um período da vida desti- as principais apostas do clube. Ao longo de quatro semanas, acompanhamos estes jovens nos
nado à proteção, orientação e livre experimentação. treinamentos e jogos da equipe, e também na escola onde estudavam.

54 55
16 observações em treinamentos e três jogos oficiais da equipe no campeo- Segundo Damo (2005), em geral, atletas de futebol de campo12 iniciam-
nato estadual, além de 12 observações no ambiente escolar onde estudavam -se no processo de formação a partir dos 12 anos de idade, inclusive em
os quatro atletas acima mencionados. Com o roteiro de observações, bus- regimes de concentrações (alojamentos, albergamentos etc.), e o caminho
camos registrar os seguintes tópicos: a) rotina de treinamento; b) rotina de que se percorre rumo à profissionalização possui um gasto de aproxima-
jogos e competições; c) a rotina escolar. damente 5 mil horas de trabalho com treinamentos, jogos e outros quesi-
A partir das observações sistemáticas, elaboramos um roteiro de entre- tos voltados para o domínio de técnicas corporais e psicológicas da prática
vistas, por meio do qual registramos as falas dos quatro atletas que acompa- esportiva. Já Soares et al. (2009), ao apresentarem dados sobre atletas entre
nhamos no clube e na escola sobre os seguintes eixos temáticos: a) história 12 e 20 anos de idade inscritos na Federação de Futebol do Estado do Rio
individual; b) experiências esportivas; c) experiências com a instituição de Janeiro, estimam que o tempo de dedicação aos anos de formação chega
escolar; d) relações da família com o esporte e a escola. a aproximadamente 6.321 horas neste estado.
A participação dos sujeitos foi consentida por seus responsáveis atra- Para reforçar o significado dos dados acima, é válido ressaltar ainda
vés da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) que o aluno da escola pública brasileira permanece, em média, quatro
aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da horas por dia em sala de aula, se considerarmos somente o tempo regular
Universidade Federal de Santa Catarina (protocolo #121.2013).10 despendido com a escola. Portanto, se cada ano possui 200 dias letivos, a
formação no ensino fundamental terá uma carga média de 7,2 mil horas ao
Para produção deste artigo, selecionamos dados produzidos na pes-
longo dos nove anos de escolarização obrigatória, e o ensino médio, uma
quisa que se relacionavam especificamente ao tema da presença do estu-
carga de 2,4 mil horas ao longo de três anos (SOARES et al., 2009). Sendo
dante atleta na escola.
assim, é possível observar que o tempo investido no processo de formação
de um jogador no Brasil é algo que impulsiona ao distanciamento de uma
tempos de investimentos na formação esportiva e escolar
escolarização adequada.
Sabe-se que os caminhos percorridos rumo à profissionalização no esporte Os dados apresentados no quadro a seguir: quantidade média de ses-
são conflituosos e, por vezes, envolvem obstáculos, como a separação do sões de treinamento por semana, tempo médio de treino em cada sessão e
meio social (amigos) e familiar. É também a família que, segundo Marques tempo médio de deslocamento para o treinamento para os atletas inscritos
e Samulski (2009), surge como principal referência no que diz respeito às nas categorias de base de futsal no estado de Santa Catarina, representam
expectativas com relação à profissionalização e ao planejamento de suas a quantificação dos tempos médios investidos na formação esportiva entre
carreiras esportivas. Para os jovens que ingressam desde cedo neste meio, a as diferentes categorias investigadas.
carreira esportiva passa a ser constituída também por um projeto familiar Identificamos não haver diferença média significativa entre os tempos
intencional.11 de duração das sessões de treinamentos entre as diferentes categorias de
Estes jovens, ao integrarem uma equipe esportiva de base, e se apro- base; porém, ao cruzarmos esta variável com a quantidade média de sessões
ximarem cada vez mais da profissionalização, incorporam uma rotina de de treinamentos por semana, que cresce gradativamente à medida que o
treinamentos que tende por concorrer, em relação ao tempo gasto, com a jovem se aproxima da categoria profissional, há uma tendência de aproxi-
dedicação aos estudos e à formação escolar, entre outros aspectos. Chama a mação entre estes tempos concorrentes, sobretudo pelo fato de que, con-
atenção o fato de haver certa tensão entre ambos os projetos: o da carreira forme apresentaremos no quadro 3, houve diminuição nos tempos médios
de permanência do estudante atleta na escola entre as diferentes categorias.
esportiva e da formação escolar.
10 Os nomes dos sujeitos (atletas, funcionários do clube e da escola) da equipe e da escola são 12 Considerou-se o futebol de campo como objeto privilegiado de análise comparativa com o
fictícios, a fim de garantir total sigilo dos participantes. futsal, sobretudo por aquele constituir fortes relações com a prática do futsal, e também por
11 Para aprofundamento sobre o tema da participação familiar na carreira de jogadores de fute- haver, do ponto de vista quantitativo, maior acúmulo de referenciais que versam sobre o tema,
bol, consultar o artigo de Rial (2008). dada sua importância simbólica e material no contexto brasileiro.

56 57
quadro 2: tempo médio de investimento em treinamentos Somando-se os tempos diários médios de dedicação ao esporte (qua-
dro 2) e a escola (quadro 3), temos que, para a categoria Sub-15, há uma
Quant. de treinos Tempo de treino Tempo de deslocamento
Categoria média de 8h07 de investimento de tempo diário nesses projetos. Já para a
(por semana) (por sessão)13 (para o treino)
categoria Sub-17, a média fica em 8h04, e, para a Sub-20, os valores médios
X 4 02:00:00 01:15:00 são de 7h55.
Sub-15
DP 1 00:00:00 01:09:00 Estes dados reforçam as expectativas encontradas em diferentes autores
X 5 02:18:00 00:58:00 (BARRETO, 2012; BARTHOLO, 2011; COSTA, 2012; DAMO, 2005; MARQUES;
Sub-17
DP 1 00:28:00 00:37:00 SAMULSKI, 2009; ROCHA, 2013; SOARES et al., 2009) com relação a con-

X 7 02:03:00 00:47:00
corrência entre ambos os projetos, sobretudo pelo tempo médio investido
Sub-20 na formação profissional esportiva se aproximar cada vez mais do tempo
DP 2 00:25:00 00:29:00
médio de dedicação à escola por parte dos jovens atletas ao final do pro-
X 5 02:06:00 01:03:00
Grupo cesso de escolarização básica, como apresenta o quadro a seguir:
DP 2 00:21:00 00:52:00
quadro 4: padrão semanal do tempo investido nas atividades
X = Média relacionadas ao futsal e a escola
DP = Desvio Padrão13
Categoria Futsal Escola Tempo Total
quadro 3: tempo médio de investimento para a escola
X 13:00:00 24:20:00 37:20:00
Sub-15
Tempo de escola Tempo de deslocamento DP 04:36:00 03:35:00 08:11:00
Categoria
(por dia) (para a escola) X 16:20:00 23:55:00 40:15:00
Sub-17
X 04:17:00 00:35:00 DP 05:25:00 04:55:00 10:20:00
Sub-15
DP 00:23:00 00:20:00 X 19:50:00 23:25:00 43:15:00
Sub-20
X 04:13:00 00:34:00 DP 06:18:00 12:45:00 19:03:00
Sub-17 X 15:45:00 24:00:00 39:45:00
DP 00:40:00 00:19:00 Grupo
DP 06:05:00 05:10:00 11:15:00
X 04:02:00 00:39:00
Sub-20
DP 01:16:00 00:17:00 X = Média
DP = Desvio Padrão
X 04:13:00 00:35:00
Grupo
DP 00:43:00 00:19:00 Podemos afirmar que o tempo médio de frequência escolar desses atle-
tas está dentro do que é previsto em lei, e que não é consideravelmente
X = Média
DP = Desvio Padrão comprometido pela rotina de treinamentos. Para Neri (2009), esse fator
é mais relevante do que a taxa de presença e está intimamente ligado ao
13 Os dados referentes ao tempo médio de duração de uma sessão de treinamento apresen- rendimento dos alunos, mas ainda está distante do tempo escolar ideal para
tavam algumas diferenças entre os goleiros e demais atletas da equipe. Isto se dá pelo fato proporcionar melhores rendimentos na educação nacional, que é entre sete
de ser comum o goleiro realizar treinamentos específicos em horários diferentes do restante
da equipe e também por participar de treinamentos em mais de uma categoria na mesma e oito horas diárias. O que se deve questionar são os impactos que o tempo
semana, por exemplo: o goleiro da categoria Sub-15 da equipe observada por vezes era con- de investimento na formação esportiva (treinamentos, viagens, pressão
vidado para integrar o treinamento da categoria Sub-17, mas neste caso o jovem não treinava
em dois períodos, pois era liberado do treino de sua categoria naquele dia, o que pode não
por resultados, entre outros) causa na rotina de escolarização destes jovens
acontecer em outros clubes. estudantes atletas, ou seja, na qualidade da formação escolar.

58 59
perfil escolar dos atletas catarinenses
70

Vimos no item anterior que o tempo de dedicação do jovem atleta em for- 60


mação tende a concorrer com a rotina de escolarização, sobretudo quando 50 Ensino fundamental
este se aproxima da profissionalização no esporte. Segundo Rocha (2013), 40
Ensino médio
o atleta que aposta na carreira esportiva acaba deixando de lado outros 30
projetos formativos, entre eles o escolar. 20 Ensino superior
O fato de os jovens atribuírem mais tempo e esforços para se dedica- 10
rem aos treinamentos pode ser, em parte, explicado pela falta de qualidade 0
das escolas brasileiras. De acordo com Veloso (2009), apesar de terem sido Nível de ensino/matrícula
realizadas importantes transformações na política educacional brasileira
nos últimos 15 anos, tais como a universalização do acesso ao ensino fun- Figura 1: Distribuição percentual do nível de ensino em que
damental para crianças de 7 a 14 anos de idade, e o aumento significativo os atletas estão matriculados.
na frequência escolar de jovens entre 15 e 17 anos no ensino médio,14 em
Veloso (2009) atenta ainda para duas situações, pois embora uma taxa
geral, o Brasil ainda se caracteriza por apresentar um baixo nível na qua-
significativa de jovens entre 7 e 17 anos frequentem regularmente a escola,
lidade educacional, tanto em termos de níveis de aprendizado adequado
isso não é garantia de que estejam na série correta, devido ao elevado grau
para cada série quanto em comparação com outros países, inclusive com
de repetência no ensino fundamental e médio, já que cerca de 40% dos
aqueles que se encontram em condições semelhantes de desenvolvimento
jovens entre 15 e 17 anos de idade, que deveriam estar matriculados no
socioeconômico.
ensino médio, ainda cursam a etapa anterior de escolarização, e embora
No contexto de nossa pesquisa, ao observarmos na figura 1, abaixo, a
se tenha atingido recentemente a universalização do ensino fundamental,
distribuição percentual dos 160 atletas investigados em relação à série em
grande parte dos jovens não conclui esse nível de ensino.16
que estavam matriculados no ano de 2013, temos 28 sujeitos, o que repre-
Além das políticas de universalização de acesso à escola, a agenda atual
senta 17,5% da amostra da pesquisa, frequentando o ensino fundamental,
da educação no Brasil tem como meta ampliar o tempo de permanência
outros 101 sujeitos (63,1%) no ensino médio e ainda 10 atletas (6,3%) matri-
do aluno na escola. Em vigor desde abril de 2013, a Lei nº 12.796 apresenta
culados no ensino superior. Os outros 13,1% são distribuídos da seguinte
as diretrizes e bases para a educação nacional, estabelecendo a obrigato-
forma: 15 atletas (9,4%) concluíram o ensino médio e não estavam estu-
riedade de frequência à escola para a população entre 4 e 17 anos de idade,
dando quando da aplicação dos questionários, 5 atletas (3,1%) abandona-
compreendendo, no total, 14 anos de formação escolarizada.
ram o ensino médio sem concluí-lo e 1 atleta15 (0,6%) havia abandonado o
Com a edição da Lei 12.395/2011, que alterou diversos artigos da cha-
ensino fundamental.
mada Lei Pelé,17 passou-se a estabelecer regras específicas em relação aos
14 Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), em 1995, 93% das
crianças entre 7 e 14 anos frequentavam a escola; em 2002, a taxa elevou-se para 97%, o que pediu para seu sobrinho passar por um período de avaliações no clube. Tiago foi aprovado
caracterizou quase uma universalização do ensino fundamental – elevando-se para 98% em e seu tio falou para o treinador que este ano ele não iria frequentar a escola, pois tinha notas
2007. Com jovens entre 15 e 17 anos de idade os valores passaram de 65%, em 1995, para 80% ruins e não havia tempo para recuperar. O treinador pareceu entender a situação e disse que
desde 2003. Nesse período também houve aumento expressivo nas taxas de conclusão do dificilmente alguma escola o aceitaria naquela época do ano.
Ensino Fundamental e Médio (VELOSO, 2009). 16 Essa afirmação pode ser corroborada pelos dados do Sistema Nacional de Avaliação da
15 Tiago tinha 15 anos de idade e é natural da Paraíba, chegou ao clube na segunda semana de Educação Básica (SAEB) e será relacionada mais à frente com os dados dos atletas investiga-
observações por intermédio de seu tio, jogador da seleção brasileira de futsal e craque do dos nesta pesquisa.
time profissional do clube observado. No diário de campo do dia 28/06/2013 temos o relato 17 A Lei Pelé surgiu quando Edson Arantes do Nascimento, o Pelé, era Ministro do Esporte e
da presença do atleta no treinamento dos jovens. Ele conversou com o treinador da equipe e presidente do Conselho do INDESP (Instituto Nacional de Desenvolvimento do Desporto),

60 61
contratos profissionais no esporte nacional, sobretudo por constatar-se no rendimento escolar do aluno, embora até certo ponto, pois eventual-
que a fase de formação esportiva de um atleta coincide com seu período mente o excesso acaba influenciando negativamente no rendimento escolar.
de escolarização básica. Segundo Barreto (2012), essa lei obriga os clubes, Entre os clubes investigados, nenhum possui escola dentro de suas
agora vistos como entidades formadoras, a acompanhar o rendimento instalações, diferentemente do contexto analisado por Barreto (2012).19 Ao
escolar dos atletas entre 12 e 21 anos de idade, além de oferecer alojamento perguntarmos aos jovens atletas se o clube oferecia escola, 33,1% deles res-
adequado e contato facilitado com a família. ponderam que sim, ou seja, é possível indicarmos que alguns clubes façam
parcerias com escolas da rede privada de ensino, o que não é o caso do
Tipo de escola clube que acompanhamos também por meio de observações sistemáticas.
Com relação ao tipo de escola em que estes jovens estão inseridos,
observa-se no quadro a seguir que, em geral, os atletas integrantes das Turno escolar
principais equipes de futsal de base do estado de Santa Catarina possuem Com relação ao turno escolar, os dados gerais mostram que a maior
uma taxa média de matrícula na rede privada de ensino maior que a média parcela dos atletas investigados estuda no período matutino, 77,7%, e que
nacional e estadual, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio.18 20,9% estudam à noite. Os outros 1,4% frequentam aulas nos turnos matu-
tino e vespertino, algo relativamente comum no ensino médio, sobretudo
quadro 5: média de frequência por tipo de escola da população em escolas privadas, que oferecem aulas de reforço, atividades complemen-
brasileira, de santa catarina e dos atletas investigados tares e, por vezes, também aulas de disciplinas curriculares obrigatórias,
Nível como de Educação Física, por exemplo, no contraturno principal de estudo.
Fundamental Médio
de ensino Não encontramos respostas referentes somente ao turno vespertino. Parece
Tipo Santa Atletas Santa Atletas
de domínio comum que os treinamentos das categorias de base de futsal no
Brasil Brasil estado de Santa Catarina ocorram no período vespertino, impossibilitando
de Escola Catarina Futsal SC Catarina Futsal SC
que atletas frequentem a escola nesse turno. Quando estudam de manhã
Pública 87,10% 89,40% 64,30% 86,30% 79% 67,30%
e de tarde, é muito provável que haja compatibilização entre as atividades
Particular 12,90% 10,60% 35,70% 13,70% 21% 32,70%
escolares e as de treinamento. Ao analisarmos a relação entre turno esco-
lar cruzando com a categoria, percebemos um aumento na procura pelo
Segundo Neri (2009), há diferenças significativas entre escolas públicas ensino noturno nas categorias superiores, já que na categoria Sub-15 100%
e privadas quanto aos dias de aulas aproveitados (índice de presença esco- dos atletas estudavam no turno matutino, na categoria Sub-17 tivemos
lar) e às horas diárias dedicadas à escola (índice de jornada escolar), sendo 28,3% frequentando o ensino noturno e na categoria Sub-20 esse número
que a rede privada de ensino apresenta maiores valores nesses quesitos. cresceu para 66,7%. Essa mudança ocorre, sobretudo, pelo fato de que os
O referido autor relaciona ainda a jornada escolar com o aproveitamento treinamentos das categorias Sub-17 e Sub-20 acontecem, por vezes, em dois
nas provas do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e períodos (manhã e tarde ou tarde e noite), ou seja, os atletas tendem a ade-
aponta que o aumento do tempo de dedicação às aulas é um fator positivo quar o turno escolar ao tipo de exigência dos clubes.20 Para Barreto (2012), a

sendo sancionada em 24 de março de 1998 a Lei Nº 9.615, que estabelece normas para diversos 19 Barreto (2012) investigou 193 atletas de futebol de campo com idades entre 14 e 17 anos que
assuntos referentes à condução do esporte no Brasil. Entre esses temas, a Lei Pelé determina moravam no alojamento dos centros de treinamento do Esporte Clube Cruzeiro e do Clube
repasses de recursos das loterias federais para o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), o Comitê Atlético Mineiro, ambos do estado de Minas Gerais. Para os atletas alojados, o Cruzeiro apli-
Paraolímpico Brasileiro (CPB), o Ministério do Esporte e a Confederação Brasileira de Clubes cava a estratégia de oferecimento direto de acesso à escolarização, com uma escola particular
(CBC). Disponível em: <http://goo.gl/3CzWCb>. Acesso em: 28 maio 2014. funcionando no interior do centro de treinamento, e o Atlético, por sua vez, conduzia seus
18 Resultados semelhantes foram encontrados por Melo (2010) com atletas de futebol de campo atletas às escolas da região.
do estado do Rio de Janeiro. 20 Souza et al. (2008) contam a história de um jovem atleta brasileiro de 16 anos de idade que

62 63
frequência escolar no turno noturno vem se tornando comum na forma- No intervalo da aula conversamos rapidamente com a professora de Artes das
ção de atletas e, como se sabe, as atividades escolares nesse turno apresen- turmas de Arthur,21 Dudu,22 João Pedro23 e Mateus.24 Perguntamos se ela tinha
alguma informação sobre os atletas que estudavam na escola, mas ela respon-
tam maior grau de flexibilização, sobretudo por haver indícios de práticas
deu que “não sabia quem eram os atletas que estudavam ali” e sugeriu que
facilitadoras para o percurso escolar dos atletas (mas não somente deles) conversasse com os professores de Educação Física, pois ela não lidava com
referentes aos prazos para trabalhos, provas, número de faltas, entre outros “jogos e esporte” em suas aulas. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/6/2013)
fatores. No caso da modalidade de voleibol, apresentado por Romão, Costa No intervalo da aula conversamos com o professor de Sociologia das turmas
e Soares (2011), os praticantes tendem a realizar suas atividades estudantis de Arthur, Dudu, João Pedro e Mateus, e contamos a respeito da pesquisa que
predominantemente pela manhã, sobretudo por ocorrer uma adequação estávamos desenvolvendo com os atletas. O professor ficou interessado em
dos treinamentos ao período escolar, ou seja, em geral, os atletas estudam saber mais sobre a pesquisa e disse que não sabia quem eram os atletas que
estudavam na instituição. Afirmou ainda que, apesar de a escola não oferecer
de manhã e realizam os treinamentos nos períodos vespertino e noturno.
estrutura suficiente ao esporte, possuía bom desempenho nos Jogos Escolares
– JESC. (DIÁRIO DE CAMPO, 4/7/2013)
ambiente escolar observado
Esporte e escola, segundo Rocha (2013), são encarados como duas
A escola na qual realizamos as observações, entre os meses de junho e julho agências educativas, como instituições sociais pelas quais os jovens podem
de 2013, pertencia à rede estadual de ensino e atendia do 3º ano do ensino formatar diferentes projetos de vida, sobretudo pelo fato de o esporte, desde
fundamental ao 3º ano do ensino médio, totalizando 1.108 alunos divididos sua gênese, possuir argumentos legitimadores sobre a educação e disciplina
nos três períodos: matutino, vespertino e noturno. Os quatro jovens acom- do corpo, além de encontrar na escola, por meio da Educação Física, um
panhados de perto estudavam no 1º ano do ensino médio do período matu- lócus privilegiado de difusão e expansão (BOURDIEU, 1983).
tino e em turmas separadas. Segundo Ângela, coordenadora pedagógica da Bassani, Torri e Vaz (2003), ao analisarem um contexto que lidava com
instituição (DIÁRIO DE CAMPO, 18/6/2013), a escola estava acostumada a a formação esportiva no futsal com atletas em idade escolar (entre 11 e 13
lidar com atletas de diferentes equipes e modalidades esportivas e apesar de anos de idade), mostraram a preocupação do professor/técnico em ressal-
não haver parceria formal entre os clubes e a instituição, era comum atletas tar os aspectos “positivos” do esporte no que diz respeito à aprendizagem
serem matriculados ali. Ângela disse ainda que, em geral, os professores de valores, como disciplina, determinação, humildade, entre outros. O dis-
não sabiam como funcionava a rotina destes jovens fora da escola, pois, se curso se manifestava também na exigência colocada aos alunos/atletas em
soubessem que alguns deles viviam longe das famílias e que viajavam para relação ao bom desempenho escolar, havendo, inclusive, possíveis puni-
competições, poderiam dar tratamento diferenciado a eles, talvez sendo ções para aqueles que obtivessem notas baixas ou que estivessem faltando
mais condescendentes e menos exigentes com o desempenho e comporta- em demasia à escola. Encontramos um discurso semelhante em nossas
mento em sala. A coordenadora atentou para o fato de que os atletas que observações: era comum, antes do início das sessões de treinamentos, nos
seriam observados haviam se matriculado recentemente na escola (cerca
de um mês antes), a pedido do treinador da equipe, e que nem todos os 21 Arthur é natural de Campos Novos/SC, tinha 15 anos de idade e 2013 foi seu primeiro ano
profissionais da instituição os conheciam bem. Sobre esse assunto, temos morando fora de casa. Sua família mora a cerca de 360 km de distância do clube.
duas passagens registradas no diário de campo: 22 Dudu tinha 15 anos de idade e também é natural de Campos Novos/SC. Com apenas 13 anos
de idade foi morar em Caçador/SC (cerca de 100 km de distância de sua cidade natal), ficando
um ano. Este é seu segundo ano morando fora de casa.
ao ser contratado para jogar na Holanda tinha seu regime escolar das 9h às 16h (7 horas 23 João Pedro tinha 15 anos de idade e, entre os quatro atletas que acompanhamos nas observa-
diárias), além de aulas particulares de holandês necessárias para sua adaptação ao contexto ções e posteriormente entrevistamos, era o único que morava ainda com a família, apesar de
local. Os treinamentos eram diários e aconteciam após o horário escolar, sempre ao final da os pais serem separados. Este foi seu primeiro ano como atleta da equipe da cidade.
tarde. Como se pode perceber, neste caso em específico, era o clube que se adequava à rotina 24 Mateus tinha 15 anos de idade e é natural de Indaial/SC. 2013 foi seu primeiro ano no clube
de escolarização. investigado.

64 65
depararmos com o técnico da equipe conversando com os atletas sobre quadro 6: notas parciais e faltas
suas notas e a importância de se dedicarem aos estudos e treinamentos. O
treinador disse ainda que, por vezes, conversava por telefone com a família Disciplina Atleta Nota Falta Atleta Nota Falta Atleta Nota Falta

dos meninos sobre o comportamento na escola, e que achava isso muito Português 7,5 3 7,5 2 7 3
importante. Além disso, como revelado pela coordenadora, foi ele quem Matemática 9 7 6,5 6 6 9
solicitou a transferência e matrícula dos jovens acompanhados na atual História S/N 8 S/N 8 S/N 8
escola (DIÁRIO DE CAMPO, 27/7/2013). Geografia S/N 6 S/N 6 S/N 7
Dudu contou que, no início do ano, eles moravam num apartamento junto Biologia 8 0 S/N 0 S/N 0
com atletas das outras categorias do clube investigado e estudavam à noite: Física 3,3 5 4,5 5 3,3 5
Arthur Dudu Mateus
quando a gente chegava da aula era uma bagunça, daí o vizinho reclamava. Química 4,5 6 5 5 5 5
Depois disso a gente veio morar nessa outra casa25 e mudou de escola. Nosso Filosofia 7 3 1 5 1 4
técnico teve que ir na escola e matricular a gente de manhã, disse pra diretora Sociologia 5 0 6 0 S/N 0
que não ia ter incomodação, o pessoal da escola já sabia que a gente jogava
Inglês S/N 3 S/N 2 S/N 3
bola porque o João Pedro tava estudando lá. (DUDU, 4/12/2013)
Artes 8 1 8 3 8 0
Nessa mesma direção, Mateus disse que: Ed.Física S/N 0 S/N 0 S/N 0

a gente estudava em outro colégio, chegamos depois e não tinha muita nota
e as que tinham não eram altas, daí foi difícil né [...]. Não sei se vou passar de
Apesar de representar uma pequena parte do conjunto anual escolar
ano. [...] Tem professor que ajuda, sabe que a gente é de fora e tem uma atenção (notas parciais e número de faltas referentes ao segundo bimestre letivo),
maior, mas tem professor que não tá nem aí. (MATEUS, 4/12/2013)26 é possível visualizar algumas características tendenciais para este grupo de
atletas e suas relações com as disciplinas escolares. Ângela, coordenadora
Tivemos acesso às notas parciais do segundo bimestre para fins de pedagógica da atual escola dos atletas, informou que essas notas parciais
transferência que foram enviadas pela antiga escola (pública estadual) onde seriam complementadas com as notas das provas e trabalhos para fecha-
Arthur, Dudu e Mateus estudavam no início daquele ano letivo (2013), na mento da média do segundo bimestre. As faltas não foram tema constante
mesma cidade. Essas notas parciais, apresentadas no quadro 6, são refe- durante o período de observações dos atletas no ambiente escolar, diferen-
rentes ao início do segundo bimestre, correspondente aos meses de abril e temente dos números parciais encontrados na antiga escola, que os jovens
maio de 2013 (não tivemos acesso às notas do primeiro bimestre). Antes da frequentavam no período noturno.27
transferência para a escola observada, João Pedro estudava em uma escola Sobre esse assunto, perguntamos aos quatro jovens que acompanha-
diferente da dos demais atletas, a qual ainda não havia enviado, até aquele mos na escola também sobre a expectativa de aprovação e os motivos que
o momento em que coletamos esses dados (junho de 2013), suas notas par- levaram os atletas a obterem o desempenho acima detalhado.
ciais para a secretaria da nova escola. Em entrevista, Arthur contou que até o início do 3º bimestre “estava
bem”, mas no 4º piorou: “vou pegar recuperação só em quatro matérias –
25 O clube oferece uma casa com dois quartos, sala, cozinha e banheiro a três atletas da categoria
Sub-15. A casa ficava próxima da escola onde os jovens estudavam e da residência do treina- Português, Matemática, Inglês e Química, tudo por 1 ponto, 1 ponto e meio”.
dor da equipe, mas distante do principal local de treinamento.
26 As entrevistas com os atletas foram realizadas no mês de dezembro, ou seja, cerca de cinco 27 No início das observações, Dudu faltou à escola por dois dias seguidos, pois se recuperava de
meses após o período de observações no ambiente escolar. Na época das entrevistas, colegas, uma lesão no joelho, tinha dificuldades para se locomover e realizava sessões de fisioterapia
professores e demais funcionários da instituição possivelmente sabiam sobre parte da rotina numa clínica conveniada com o clube. Na terceira semana de observações, o jovem também se
desses jovens fora da escola, apesar dos cuidados da coordenadora pedagógica em manter ausentou da escola e dos treinamentos, pois seu pai estava doente e viajou para sua cidade natal
sigilo para que não houvesse nenhum tipo de favorecimento aos estudantes-atletas. para ficar próximo de seus familiares naquele momento, como nos revelou em entrevista.

66 67
Na opinião dele, o motivo pelo qual isso aconteceu se deveu ao fato de educação institucionalizada gera uma tendência de que haja preocupações
que “faltou estudar, porque tempo tem, a gente corria atrás quando tinha não somente com o desempenho esportivo dos jovens, mas também sobre
trabalho e o pessoal da escola ajudava bastante, o clube cobra as notas da o desempenho escolar.
gente” (ARTHUR, 4/12/2013). Já Dudu disse que “foi relaxamento, culpa da Moraes, Rabelo e Salmela (2004) apresentam que na fase de iniciação
gente mesmo, na outra escola eu tava mal em Química, daí quando eu tava e especialização (dos 6 aos 15 anos), 65% dos pais exigem desempenho nos
machucado uma amiga minha ajudava a estudar, perdi aula por causa da estudos e no esporte. Nessa fase, cerca de 90% dos familiares possuem con-
fisioterapia”. Preocupado com sua situação, em função das notas baixas, ele tato diário com seus filhos. Mas esses valores se invertem na medida em
diz que “o pessoal do clube pensa assim né: vamos mandar embora esse que o jovem avança na carreira esportiva, pois a partir dos 16 anos de idade
jogador? Incomodou o ano inteiro e tira nota baixa na escola, isso pesa, não apenas 10% dos familiares possuem contato diário com os filhos. Esses
é só jogar bola” (DUDU, 4/12/2013). dados sugerem que há uma diminuição da participação das famílias junto
Mateus apresentava um quadro mais problemático com relação às a seus filhos à medida que eles se aproximam do final do processo de for-
notas e em tom de ironia disse: “eu só não vou pegar em Educação Física! mação esportiva.
[...] A chance de eu passar de ano é pequena, só se os professores ajudarem No diário de campo do dia 12/7/2013, relatamos uma conversa com
muito, daí dá”. Mateus disse ainda que o treinador não cobrava tanto dele, Dona Regina, mãe do jovem Mateus, contando que os meninos que mora-
mas que seus pais ficavam “em cima”: vam alojados na casa oferecida pelo clube pesquisado precisavam se orga-
nizar melhor para se dedicarem mais aos estudos, pois no início daquele
[...] nunca fui mau aluno, sempre passei direto [ou seja, sem recuperação], ano, logo que foram morar na cidade, eles estudavam em outra escola e
mas agora que tô morando aqui me afastei dos estudos. É meu primeiro ano
a troca de instituição prejudicou as notas no segundo semestre. Mas, na
fora [da casa dos pais] e não dei muito valor pra escola. Lá em Indaial [onde
morava antes] minha mãe ficava sempre em cima, aqui a gente não tem uma opinião dela, a nova escola era melhor, pois ficava mais perto de casa.28 Em
rotina de estudos, até tem reforço na escola à tarde, mas tem treino e não tem entrevista, Dudu contou que a rotina para a escola iniciava cedo na casa
como a gente ir. (MATEUS, 4/12/2013) dos atletas:

João Pedro, que morava com sua família, acreditava que iria passar de [...] aqui nós somos três né, eu sempre acordo às 6h30 e o primeiro que acorda
ano mesmo ficando em exame final em duas matérias (Química e Física): chama os outros, às vezes o primeiro a levantar é o Arthur [...]. A gente toma
café aqui mesmo e às 7h05 o ônibus29 passa aqui na frente, chegamos antes das
“Meus pais ficam mais em cima, já ameaçaram me tirar do time”, caso não
7h30 na escola e saímos às 11h30, lá pelas 12h10 já estamos em casa de novo
melhorasse o desempenho escolar (JOÃO PEDRO, 4/12/2013). (DUDU, 4/12/2013).

Participação familiar Indíces de reprovação / tipos de moradias


Identificamos que a maior parcela dos familiares dos atletas que inves- Entre os 26 atletas que declararam ter repetido ano na escola, apenas
tem na carreira do futsal no estado de Santa Catarina (pais, 55%, e mães, dois (7,7%) deles estão atrasados com relação à idade/série escolar, pois
45,6%) concluíram pelo menos o ensino médio em algum tipo de insti- foram reprovados em duas ocasiões, enquanto que os outros 24 atletas
tuição escolar, e que 16,3% dos pais e 23,8% das mães dos atletas avança- entrevistados repetiram apenas uma vez. Valores parecidos foram encon-
ram para o ensino superior. Esses índices são semelhantes aos encontra- trados com atletas de voleibol em Romão, Costa e Soares (2011). A partir
dos por Moraes, Rabelo e Salmela (2004), que investigaram a escolaridade
de 20 pais de atletas de futebol, os quais tinham entre 15 e 18 anos de 28 O percurso entre casa e escola durava cerca de dez minutos de ônibus e o clube fornecia vale-
idade, e que estiveram envolvidos nas finais do campeonato mineiro de -transporte para o deslocamento dos atletas.
29 Entre os 139 atletas que declararam estar estudando no momento da investigação, 38% disse-
base no ano 2000. O fato de os familiares, em geral, possuírem acesso à ram que vão a pé para escola, 26% vão de ônibus, 25% de carro, 10% de bicicleta e 1% de moto.

68 69
desses dados, é possível afirmar que os atletas de futsal apresentam uma nessa parte da escola a gente é meio preguiçoso, essa é a palavra certa, se a
taxa de repetência escolar baixa, ainda mais se comparada às médias nacio- gente quisesse dava pra passar direto, mas por preguiça e por pensar mais no
futsal a gente acaba deixando a escola um pouco de lado, o que é errado! O pai
nais para a mesma faixa etária.30
e a mãe sempre falam e o treinador cobra também. (DUDU, 4/12/2013)
quadro 7: repetência na escola
Nesse sentido, os clubes carregam uma grande responsabilidade, pois
Repetiu na escola? Sub-15 Sub-17 Sub-20 Total em seu discurso oficial afirmam que os atletas são obrigados a frequentar a
Sim 8 (11,4%) 14 (28%) 4 (10%) 26 (16,3%) escola e estudar. Na mesma direção, as Federações afirmam exigir frequên-
Não 62 (88,6%) 36 (72%) 36 (90%) 134 (83,7%) cia escolar para que os atletas participem das competições oficiais, mas as
cobranças dessas instituições não ultrapassam o fato de receberem infor-
Não encontramos uma tendência percentual de reprovação relacio- mações fornecidas pelos próprios clubes, ou seja, não há nenhum tipo de
nada aos anos escolares dos atletas. A maior taxa encontrada foi no Sub-17, fiscalização por parte das entidades esportivas oficiais (BARRETO, 2012).
intermediária entre as categorias Sub-15 e Sub-20, diferentemente dos dados Destacamos anteriormente que sobre os quatros atletas do clube que
encontrados por Melo (2010), que revelou um aumento das taxas de repe- acompanhamos insidiam preocupações por parte das famílias referentes ao
tência escolar conforme o atleta se aproxima da categoria profissional. Assim desempenho escolar deles. O clube, principalmente na figura do treinador,
como no caso da pesquisa com atletas de voleibol (ROMÃO; COSTA; SOARES, também exercia uma espécie de monitoramento sobre as tarefas escolares
2011), a relação com os estudos parece ter um sentido diferente para o futsal e, apesar de os jovens afirmarem sua preferência pelas atividades esportivas
em relação ao futebol de campo. em detrimento às atividades regulares e complementares de estudo, havia
Contudo, ao relacionarmos a taxa de repetência dos atletas ao tipo de certos cuidados para que alcançassem, pelo menos, o mínimo necessário
moradia, temos que, entre os quatro atletas da categoria Sub-15 que mora- para serem aprovados na escola. Mateus contou que eles (atletas alojados)
vam em alojamentos dos clubes, nenhum havia repetido de ano na escola costumavam pedir ajuda aos colegas da turma para cumprir algumas ativi-
até aquele momento. Já entre os 11 atletas da categoria Sub-17 que moravam dades avaliativas (trabalhos, tarefas, entre outros), e que sempre realizavam
em alojamentos dos clubes, três declararam terem repetido de ano, o que essas atividades (MATEUS, 4/12/2013). Em entrevista, pedimos para que o
representa 21,3% do total de reprovações para a categoria. E na categoria jovem Arthur contasse sobre alguma passagem marcante na escola naquele
Sub-20, os quatro atletas que haviam repetido de ano moravam em aloja- ano (2013):
mentos dos clubes, o que representa o total de 100% dos reprovados nesta uma vez, na prova de Química, matéria mais difícil pra mim, tirei 10. Eu não
categoria. Apesar do n amostral dos atletas reprovados ser baixo, podemos sabia nada, precisava de muitos pontos e estudei bastante, isso que é a maté-
interpretar que o desempenho escolar dos atletas alojados entre as catego- ria que menos sei, nunca gostei. O professor nem acreditou que eu consegui.
rias que se aproximam da profissionalização tende a ser menor do que no (ARTHUR, 4/12/2013)
início do processo de formação esportiva.
Para Barreto (2012), os atletas alojados em centros de treinamentos são, Expectativas escolares
aos olhos do clube formador, aqueles com maiores chances de sucesso pro- No ano de 2005, o jornal O Globo fez um levantamento com 113 atle-
fissional e, para as famílias, o clube oferece segurança e garantia de que o tas profissionais de futebol dos quatro grandes clubes do Rio de Janeiro e
filho estará recebendo educação de qualidade. Dudu conta em entrevista constatou que 54 deles tinham o ensino médio completo e que 14 cursavam
que é cobrado pelo clube e por seus familiares com relação à escola: faculdade, ou seja, existe certa tendência entre os atletas da nova geração
em preocupar-se com a escolarização. Exemplo disso é a seleção brasileira
30 Taxa de reprovação no ensino fundamental é de 11% e, no ensino médio, de 13,1%. A taxa de
de handebol masculina que foi às Olimpíadas de Atenas em 2004, a qual
abandono escolar é 3,2% para o ensino fundamental e de 10% para o ensino médio (IBGE,
2010). Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 9 maio 2014. contava com o seguinte perfil educacional entre seus atletas: 93% entraram

70 71
na universidade, 66% concluíram o ensino superior, sendo que desses, Educação física: um caso a parte
três atletas possuíam curso de pós-graduação em nível de especialização31 A Educação Física apareceu como um ponto em comum entre os
(MELO, 2010). Entre atletas de futsal feminino, Costa (2012) encontrou 17 jovens, ainda mais quando perguntados sobre a disciplina favorita na
atletas (56,6%) da categoria Sub-20 frequentando a universidade. escola. Apenas Arthur disse gostar também de Matemática, mas, para ele,
Ao perguntarmos sobre o nível de escolaridade que desejavam alcan- a “Educação Física é a melhor aula, o ambiente é livre e a gente faz o que
çar, 79,4% dos jovens atletas de futsal entrevistados mostraram interesse quiser”. João Pedro conta que na Educação Física “a gente vai e joga bola, às
em fazer faculdade, 12,5% em fazer pós-graduação e 8,1% pensavam em vezes nem faz nada”.
concluir apenas o ensino médio. A alta expectativa de formação escolar Tivemos a oportunidade de observar algumas aulas de Educação Física
deste grupo também pode ser explicada pelo nível de escolaridade dos da escola dos jovens, sobretudo por acontecerem em ambientes abertos
familiares apresentado anteriormente. (ginásio e quadra poliesportiva). No diário de campo, registramos uma
observação de aula:
quadro 8: deseja estudar até que nível de ensino?
No ginásio da escola estavam duas turmas do primeiro ano (as turmas de João
Nível de ensino Sub-15 Sub-17 Sub-20 Total Pedro e Dudu). João Pedro contou-me que ‘o professor (de Educação Física)
Completar Ensino Médio 7 (10%) 6 (12%) 0 (0%) 13 (8,1%) adiantou a aula porque o de Sociologia não veio, vamos sair mais cedo.’32
Durante quase todo o período da aula, Dudu e João Pedro permaneceram sen-
Fazer Faculdade 53 (75,7%) 40 (80%) 34 (85%) 127 (79,4%) tados na arquibancada conversando com algumas meninas, o professor desti-
Fazer Pós-graduação 10 (14,3%) 4 (8%) 6 (15%) 20 (12,5%) nou um tempo de dez minutos para uma partida de futsal entre as meninas e,
em seguida, outros dez minutos para o jogo dos meninos. João Pedro partici-
pou do jogo e exibia um desempenho técnico de destaque, a atividade era em
Para Barreto (2012), aqueles que não são aproveitados pelo mercado tom de brincadeira e o professor apenas observava e controlava o tempo das
esportivo, os malsucedidos, precisam adquirir capital cultural institucio- partidas. (DIÁRIO DE CAMPO, 21/6/2013)
nalizado durante os anos de formação esportiva suficiente para buscar
uma colocação no mercado de trabalho também fora do esporte. Em tese, Essa prática se repetiu no dia 10/7/2013, pois o professor de Física estava
o diploma escolar pode ser considerado um facilitador neste processo de doente, então as turmas de Arthur e Mateus adiantaram a aula de Educação
recolocação profissional, e mesmo para aqueles que alcançam o sucesso, se Física. As turmas foram ao ginásio e para a quadra poliesportiva que ficava
ao lado do ginásio da escola, mas desta vez a dinâmica foi diferente: foram
a dedicação à carreira esportiva fosse acompanhada da dedicação à forma-
entregues aos alunos uma bola de voleibol, uma bola de futsal e uma bola
ção escolar, poderia haver uma reconversão profissional facilitada.
de basquete, a aula foi livre e os grupos se auto-organizavam. Arthur pas-
Em entrevista, o jovem Mateus disse que, no momento, não pensava
sou boa parte do tempo jogando futsal com os companheiros da turma,
tanto na escola: “penso mais em seguir na carreira [de atleta], se não der
enquanto Mateus permaneceu todo o tempo sentado na arquibancada con-
certo no esporte daí tem que estudar, fazer uma faculdade né, mas se der
versando com algumas meninas da turma. Em ambas as atividades obser-
certo no futsal vou terminar o ensino médio e dar uma parada”. Dudu, João
vadas, não houve mediações do professor.
Pedro e Arthur também falam em investir mais no esporte do que na esco-
A relação dos estudantes-atletas observados com a disciplina de Educa-
larização: “a prioridade é o futsal, a escola vem depois”, mas, caso não des-
ção Física se deu também para fora dos muros da escola. Acompanhamos de
sem certo nessa primeira opção, disseram que gostariam de fazer faculdade
de Educação Física. 32 Essa prática era comum, e por diversas vezes durante o período de observações os atletas
tinham aulas adiantadas e saídas antecipadas. O treinador da equipe comentou em tom de iro-
nia: “saem mais cedo porque é escola pública, se fosse particular ficavam até as 13h estudando”
31 Disponível em: <http://www.esporte.uol.com.br/olimpiadas/brasileiros/escolaridade>. Acesso (DIÁRIO DE CAMPO, 25/6/2013). Esse cenário vai ao encontro das análises de Neri (2009) sobre
em: 17 jun. 2014. a jornada escolar em escolas públicas, apresentadas anteriormente neste capítulo.

72 73
perto a etapa microrregional33 dos Jogos Escolares (JESC) para jovens de 15 a semana seguinte. A expectativa dos professores e amigos dos alunos/atle-
17 anos de idade. Os jogos aconteceram ao longo de todo um dia (na terceira tas era bastante parecida, e a pergunta mais frequente que ouvimos após o
semana de observações) e aqueles que participavam eram liberados das jogo foi “ganharam de quanto?”, mesmo antes de saberem se realmente eles
aulas. Em conversa com Ângela, coordenadora pedagógica, ela nos explicou tinham vencido o jogo.
que os alunos seriam liberados se os jogos acontecessem no período de aulas. A equipe da escola estava classificada para as finais no futsal e o título
Ângela disse ainda que tinha que “dar um jeito de os meninos recuperarem a parecia certo, mas havia um problema: uma das escolas que disputava a
matéria perdida”. Este tipo de flexibilização ocorre, segundo Barreto (2012), competição havia entrado com um recurso contra a equipe do professor
pelo fato de a escola conceder benefícios aos atletas que faltam por motivos Caio, pois o regulamento dizia que, para disputar o JESC, os alunos deve-
de jogos e viagens, o que não é comum aos demais alunos da escola.34 riam estar matriculados na escola desde o mês de abril daquele ano. Arthur,
Quem organizava as equipes de competição eram os dois professores Dudu, João Pedro e Mateus se transferiram para a escola somente no final
de Educação Física da escola, e os quatro estudantes-atletas foram autori- de maio. O professor mostrou preocupação com o protesto, mas disse que
zados pelo técnico do clube a jogarem apenas futsal, apesar de receberem se tratava de “choro de perdedor”. Naquele mesmo dia, o coordenador geral
convite para jogarem também futebol de campo. Mas Caio, o professor de da competição chamou o professor Caio para uma reunião e ficou decidido
Educação Física das turmas do ensino médio, disse que “daria um jeito” que a escola seria eliminada da competição por descumprir o regulamento.
de os meninos jogarem, pois queria ser campeão também no futebol de Na escola, Ângela comentou: “Como pode o Caio não saber disso? Coitados
campo (a escola já havia conquistado o título no handebol e o professor dos meninos”. Na semana seguinte ao ocorrido, em conversa rápida com o
acreditava que o título no futsal seria tranquilo, pois, além dos meninos do professor de Educação Física, ele lamentou o fato de ter sido eliminado do
Sub-15 do clube da cidade, havia outros do Sub-17 que estudavam na insti- futsal e apontou para os troféus que já havia conquistado: “Era mais um
tuição). Os jogos de futebol de campo aconteceriam na semana seguinte e o pra estante!” Contou, ainda, que tinha se classificado também para as finais
no futebol de campo e que aproveitava os dias de jogos para convidar bons
treinador não autorizou a participação dos atletas, pois no final de semana
jogadores para estudarem na escola no ano seguinte: “Assim eu já monto
haveria jogos do clube pelo campeonato estadual.
um time forte desde o começo do ano”. O desejo do professor parecia ser
Apesar de as partidas de futsal do JESC acontecerem no final da manhã
apoiado pela direção da escola.35
e início da tarde, nenhum dos quatro atletas assistiu às aulas em dias de
Ao longo das observações, a relação dos atletas com as atividades
jogos. Ângela reclamou dessa escolha dos jovens atletas: “poxa, o jogo é só
extraescolares se resumiu na participação frustrada dos Jogos Escolares.
às 11h, dava pra ficar na aula até o recreio né”. De fato, os meninos aguarda-
Nenhum deles frequentava a escola no contraturno para atividades de
vam o professor de Educação Física em frente à escola para se dirigirem ao
reforço ou projetos desenvolvidos pela instituição,36 nem mesmo da festa
local de jogo, mas não entravam em sala de aula.
junina organizada pela escola e que aconteceu num sábado (13/7/2013),
Os três jogos da primeira fase foram vencidos com facilidade pela escola
justamente no horário de jogo do campeonato estadual. A coordenadora
dos atletas. O técnico do clube onde jogavam os atletas comentou que a
pedagógica comentou que era “comum os atletas não participarem das ati-
etapa microrregional seria vencida tranquilamente pela escola e pediu para vidades extras da escola”.
os meninos não levarem tão a sério, pois teria competição pelo clube na
35 Historicamente, no Brasil, há um cenário de disputas simbólicas e materiais (econômicas)
33 Este evento acontece em praticamente todo o território nacional. Na etapa microrregional e os jogos estudantis serviram e ainda servem como um meio de incorporar na juventude
participam apenas as escolas de cada município, o campeão em cada modalidade espor- brasileira valores morais e modelos de comportamento concebidos por meio das políticas de
tiva (futsal, basquete, vôlei, entre outros) representa sua cidade na etapa regional para, em esporte. Para saber mais, consultar os artigos: “O esporte não é em si conservador nem pro-
seguida, buscar vaga para a fase estadual e nacional. gressista, e tampouco é neutro” (JUVENTUDE, 2009) e “Esporte e política na ditadura militar
34 Durante o período de observações, não houve faltas dos atletas na escola por motivos de brasileira: a criação de um pertencimento nacional esportivo” (OLIVIERA, 2012).
viagens da equipe, pois os jogos oficiais aconteceram na própria cidade, porém o treinador 36 A escola oferecia no contraturno dos alunos atividades esportivas e aulas de informática a par-
afirmou que as viagens ainda estavam por vir. tir do projeto “Mais Educação”, além de grupos de estudos organizados pelo grêmio estudantil.

74 75
considerações finais GROPPO, Luís Antonio. O funcionalismo e a tese da moratória social na análise das
rebeldias juvenis. Estudos de Sociologia, Araraquara, v. 14, n. 26, p. 37-50, 2009.
Assim como em Melo (2010), apesar das semelhanças entre o tempo de JUVENTUDE, Centro de Estudos e Memória da. O esporte não é em si conservador
permanência na escola entre atletas e não atletas, as entrevistas e observa- nem progressista, e tampouco é neutro. Juventude.br, São Paulo, n. 1 , p. 2-3,
ções sugerem que os atletas colocam a escola em segundo plano, mesmo dez. 2009.
reconhecendo a importância da escolarização diante do futuro incerto KLEIN, Lucas. Profissionalização e escolarização de jovens atletas de futsal em
na carreira esportiva. Para Rocha (2013), enquanto o esporte possui uma Santa Catarina. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal
dimensão muito forte associada ao prazer, e a adesão do sujeito é voluntá- de Santa Catarina, Centro de Ciências da Educação. Florianópolis, 2014.
ria, a frequência à escola é uma imposição social garantida por lei, indepen- KUNZ, Elenor. O esporte enquanto fator determinante na educação física. Contexto
& Educação, v. 15, p. 63-73, jul./set. 1989.
dente da voluntariedade do indivíduo. De certa forma, a rotina esportiva
não impede a permanência do aluno atleta nos bancos escolares, mas tende ______. Educação física: ensino & mudanças. Ijui: Unijui, 2001.
a ter características mais sedutoras do que a escola. Com isso, os jovens que MARQUES, Maurício Pimenta; SAMULSKI, Dietmar Martins. Análise da carreira
esportiva de jovens atletas de futebol na transição da fase amadora para a fase
buscam esse tipo de profissionalização acabam por preferi-lo à educação
profissional: escolaridade, iniciação, contexto sócio-familiar e planejamento da
institucionalizada. Além disso, a intensa rotina de treinamento dos atle- carreira. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 23, n. 2,
tas coloca-os em uma posição de negociação frequente entre as tarefas no p. 103-19, 2009.
esporte e as obrigações escolares. MELO, L. B. S. Formação e escolarização de jogadores de futebol no estado do Rio de
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introdução
O estudo em questão tem como objetivo comparar as rotinas escolares e as
rotinas esportivas dos atletas do futebol e do remo em uma grande agre-
miação esportiva do Rio de Janeiro a fim de compreender quais os possí-
veis impactos da rotina esportiva sobre a rotina escolar. Esse texto é um
dos desdobramentos de análises realizadas inicialmente pelo Laboratório
de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC), da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, que vem empreendendo pesquisas sobre a escolarização de
jovens atletas desde o ano de 2007.
Os estudos realizados anteriormente sobre o tema apontavam para
um cenário de concorrência e conflito entre o esporte e escolarização,
impondo escolhas aos jovens no momento de conciliar essas duas ativi-
dades. O argumento básico existente nesses trabalhos (EPIPHANIO, 2002;
VIANNA JÚNIOR, 2002; MORAES, 2004) sugeria que os atletas em geral
tinham baixa escolaridade por terem dificuldade de investir concomi-
tantemente nas duas carreiras – futebol e escola. No entanto, os estudos
realizados recentemente pelo Laboratório de Pesquisas em Educação do
Corpo (LABEC-UFRJ) evidenciaram que o esporte não impede que os atle-
tas se mantenham na escola. A nova hipótese que vem sendo testada nos
estudos do LABEC sugere que os atletas em processo de profissionalização
no esporte podem apresentar dificuldades no processo de escolarização e
na reconversão dos saberes escolares e esportivos para o mercado de tra-
balho formal, mas tais dificuldades não provocam, na maioria dos casos
estudados e nas diferentes modalidades esportivas, evasão escolar. Em

78 79
geral, o esporte exige uma rotina de treinamento extenuante e uma dispo- esportivas: o remo e o futebol.1 A partir dessa seleção foram levantadas as
nibilidade para cumprir uma agenda de competições que cria dificuldades seguintes questões: a) Os resultados escolares dos atletas dessas duas cate-
na gestão da vida escolar. gorias diferem? b) Como o nível socioeconômico e/ou o capital cultural
De fato, a concorrência entre as demandas de tempo para o esporte da família interfere na gestão da dupla carreira, escolar e esportiva? c) O
de alto rendimento e para a escola é muito comum na fala dos atletas em tempo de treino é semelhante para as modalidades em tela? d) Quais as
processo de formação no Brasil. Isso ocorre porque o clube e a escola se for- consequências das escolhas esportivas dos atletas sobre suas rotinas escola-
maram em nosso país como agências independentes, não integradas, que res? e) Como os valores e regras do campo esportivo da modalidade inter-
tomaram para si papéis distintos, ou seja, a escola, dentre as várias funções ferem no processo de conciliação entre escola e esporte?
que assumiu, centrou-se na tarefa de formar as novas gerações para o mer- Os dados apresentados na pesquisa são produto de coleta realizada nos
cado de trabalho e para a vida cidadã; o clube, por sua vez, assumiu a tarefa anos de 2012 e 2013 dentro do centro de treinamento e da escola de um
de formar e selecionar jovens talentos esportivos para o mercado esportivo clube esportivo situado na cidade do Rio de Janeiro. Foram selecionados 71
(SOARES et al, 2008). Dessa maneira, o modelo brasileiro de desenvolvi- alunos-atletas (50 do futebol e 21 do remo)2 que atuavam nessas modalida-
mento educacional distanciou-se: a) dos Estados Unidos, que procuraram des no clube estudado. Os alunos-atletas investigados estavam entre os 15 e
integrar nos espaços escolares a formação de atletas para o esporte de alto 19 anos de idade. A seleção dessa faixa etária teve por função homogeneizar
rendimento; b) de alguns países europeus que construíram escolas de edu- os grupos para procedermos à comparação, pois, todos os atletas estavam
cação básica especializadas para atletas ou desenvolveram projetos integra- cursando o ensino médio. Esse recorte também se justifica pelo fato de os
dos entre clube e escola (METSA-TOKILA, 2002). atletas estarem localizados nas três categorias mais próximas da profissio-
A consequência desse modelo apartado de formação dos atletas no nalização no esporte em suas respectivas modalidades esportivas.
Brasil, no clube e na escola, os leva a operar com duas lógicas próprias de Os números expostos refletem as respostas obtidas através de formu-
funcionamento dessas instituições, que, muitas vezes, entram em conflito, lários de entrevistas estruturadas aplicados aos atletas e versando sobre os
porque funcionam de forma autônoma, em espaços apartados, com objeti- seguintes eixos: a) formação escolar; b) formação profissional na moda-
vos distintos e com pouca comunicação entre elas. Com isso, os atletas-alu- lidade; b) tempo gasto com treinamento; c) meio de transporte e tempo
nos das modalidades esportivas de alto rendimento no Brasil precisam ope- gasto nos deslocamentos para o clube; e) tempo gasto na rotina escolar; f)
rar em duas realidades formativas que, em certos casos, criam concorrência meio de transporte e tempo nos deslocamentos para a escola; g) hábitos
de tempo e de objetivos em suas vidas (SOARES et al, 2009). culturais; h) nível socioeconômico; i) hábitos culturais dos familiares. Para
Tendo como ponto de partida esse panorama da formação esportiva a análise dos dados foi utilizada uma abordagem descritiva com cálculo de
e escolar brasileira e ancorado nas referências recentes do campo de pes- média e desvio padrão. Os indivíduos foram agrupados por modalidade e
quisa, o objetivo do estudo é, mais uma vez, redimensionar a hipótese as análises foram realizadas no software SPSS v. 21. Também foram realiza-
das dez entrevistas com indivíduos das duas modalidades com a intenção
central da pesquisa. Nesse sentido, buscamos demonstrar que o tempo de
de aprofundar algumas questões que o questionário não captou. O número
treino/rotina esportiva não é o principal elemento para explicar a dificul-
de entrevistas respeitou o método de saturação, e com isso foram realizadas
dade de conciliação de uma dupla carreira para os alunos-atletas. Existem
até o momento em que as respostas começaram a se repetir.
outras variáveis, tais como a estruturação do campo esportivo da moda-
lidade e os respectivos projetos familiares que interferem, decisivamente,
1 Essas duas modalidades esportivas foram escolhidas porque possuem grande quantidade de
nesse processo de formação e escolha. tempo necessário para formação através de treinos e/ou competições.
Buscando testar a hipótese sobre a relação entre a rotina de treino e as 2 Desse contingente de indivíduos, todos aqueles inseridos no futebol são do sexo masculino.
dificuldades de escolarização, optou-se por selecionar duas modalidades No remo, 14 deles são do sexo masculino e 7 do sexo feminino. Essa diferença de gênero não
impacta no tempo de treino da modalidade, que é igual para homens e mulheres.

80 81
resultados maiores percentuais de respostas na vontade de acesso e término do nível
superior (56% no futebol e 57,14% no remo). No entanto, percebemos que,
Resultados educacionais no remo, existem percentualmente mais atletas que desejam avançar para
Os resultados foram obtidos através da coleta de dados amostrais díspares, a pós-graduação (33,33%) e menos atletas que desejam somente concluir o
sendo que a população de atletas do futebol era basicamente o dobro daquela ensino médio (9,52%), enquanto que no futebol esse panorama se inverte e
verificada no remo (o tamanho de cada grupo influencia os dados e sua varia- vemos que mais atletas preferem somente concluir o ensino médio (24%) e
bilidade). Além disso, os indivíduos selecionados correspondem àqueles que menos deles (2%) avançarem para a pós-graduação.
estavam, no período de 2012 a 2013, matriculados na escola do clube. Desse Ainda na comparação entre as duas modalidades em suas aspirações
modo, as comparações educacionais e sociais realizadas possuem certa esta- educacionais, cabe destacar a vontade de atletas do futebol de fazerem um
bilidade que permite comparar os atletas dentro desse espaço educacional, curso técnico ou profissionalizante (categoria “outros”) como forma de
mas não possuem alto grau de segurança no cenário macro e, por isso, devem prosseguir nos estudos e se posicionar no mercado de trabalho.
ser relativizadas. As inferências realizadas sobre esses dados devem funcionar quadro 2: modalidade x aspiração educacional
como possibilidades e pontos de partida para pensar o campo de análise.
Ao procurar comparar expectativas escolares e esportivas de atletas Até onde deseja estudar? Futebol Remo
do futebol e do remo, a primeira questão indagada aos atletas das duas Até o 9°ano fundamental 4 (8%) 3
0 (0,0%)
modalidades foi: “Quais as suas pretensões de vida após terminar o ensino Até o ensino médio 12 (24%) 2 (9,52%)
médio”. O resultado obtido com essa pergunta apontou perspectivas opos- Até a faculdade 28 (56,0%) 12 (57,14%)
tas para cada modalidade com uma clara diferença de delineamento do Até a pós-graduação 1 (2%) 7 (33,33%)
projeto esportivo e escolar entre elas. Outros 5 (10%) 0 (0,0%)
quadro 1: modalidade x pretensões após o ensino médio Fonte: Survey realizado no colégio.3

O que pretende fazer após Somente Somente praticar Conciliar esporte quadro 3: modalidade x percepção de possibilidade educacional
terminar o ensino médio? estudar o esporte e estudos
Remo 34,5% 4,75% 60,75% Você acha que consegue
Futebol Remo
estudar até aonde?
Futebol 1,14% 35,02% 63,84%
Até o 9°ano fundamental 2 (4%) 0 (0,0%)
Fonte: Survey realizado no colégio.
Até o ensino médio 35 (70%) 1 (4,76%)
Apesar de mais da metade dos atletas (aproximadamente 60%) de Até a faculdade 11 (22%) 12 (57,15%)
ambas as modalidades dizerem que pretendem conciliar o esporte com os Até a pós-graduação 2 (4%) 8 (38,09%)
estudos, vemos uma posição diametralmente oposta entre as modalidades Outros 0 (0,0%) 0 (0,0%)
quando o assunto é se dedicar exclusivamente ao esporte ou à educação. No
Fonte: Survey realizado no colégio.
remo, quando a opção é pela dedicação exclusiva a alguma atividade, há a
predileção pelo estudo (34,5%) e, no futebol, na mesma situação de escolha, Os dados mostrados no quadro nos permitem afirmar que os atletas
a predileção incide sobre a prática do esporte. entrevistados em ambas as modalidades possuem aspirações educacionais
A construção de um discurso que privilegia o esporte no caso do futebol altas, visto que tanto no futebol quanto no remo as porcentagens de atle-
e aquele que privilegia a escola no caso do remo é reforçada quando analisa- tas que pretendem fazer pelo menos a faculdade são de respectivamente
mos as expectativas escolares das duas modalidades. Quando perguntados
3 Esse dado mostra que alguns atletas que estão no ensino médio só desejavam estudar até o ensino
sobre até onde desejavam estudar, ambas as modalidades verificaram seus fundamental, mas, por obrigações do clube e da legislação brasileira, precisam se manter na escola.

82 83
58% e 90,47%. Todavia, quando analisamos conjuntamente o quadro ante- utilizavam por semana com os estudos. Os dados obtidos permitem iden-
rior com a percepção deles sobre até onde acham que conseguem avançar tificar que o contingente de jovens de ambas as modalidades que não estu-
no sistema educacional, identificamos no futebol uma dissonância entre dam em casa tende a ser maior quando confrontamos as respostas dadas
desejo e percepção da realidade (ver quadro 3 na página anterior). presentes no quadro anterior em comparação com a quadro a seguir.
No remo, os resultados apontam um alinhamento quase perfeito entre
quadro 5: modalidade x tempo semanal de estudo
o desejo e a convicção de chegada às posições educacionais que esses jovens
aspiram. Na situação do futebol, o panorama é diferente, pois percebemos Modalidade/Tempo de estudo semanal Futebol Remo
grande diferença entre os resultados ligados ao desejo dos jovens e a obten- Não estuda 12 (24%) 5(23,82%)
ção deles. Apesar de muitos jovens desejarem realizar uma faculdade, uma Estuda até 1 hora 16 (32%) 1(4,76%)
pós-graduação ou curso profissionalizante/técnico, vemos em suas respos- Estuda até 2 horas 14(28%) 3(14,28%)
tas que eles não enxergam a possibilidade de alcançarem esses objetivos, Estuda até 3 horas 4(8%) 3(14,28%)
visto o decréscimo das porcentagens nessas categorias mais altas de escola- Estuda até 4 horas 2(4%) 3(14,28%)
rização em comparação com o quadro anterior e, consequentemente, um Estuda até 5 horas 1(2%) 1(4,76%)
aumento do número de respostas no item “até o ensino médio”. Estuda até 6 horas 1(2%) 5(23,82%)
quadro 4: modalidade x frequência de estudos Estuda até 7 horas 0 (0,0%) 0(0,0%)
Estuda até 8 horas 0(0,0%) 0(0,0%)
Modalidade/ frequência de estudo Futebol Remo
Estuda até 9 horas 0(0,0%) 0(0,0%)
Sempre 4 (8%) 1(4,76%)
Estuda 10 ou mais horas 0 (0%) 0(0,0%)
Quase sempre 6(12%) 5(23,81%)
Fonte: Survey realizado no colégio.
Às vezes 13(26%) 9(42,86%)
Raramente 20(40%) 5(23,81%) Ao serem questionados sobre a prática de estudo fora do ambiente esco-
Nunca 7(14%) 1(4,76%) lar com duas perguntas diferentes, mas com mesmo intuito, as respostas evi-
Fonte: Survey realizado no colégio. denciaram que a abrangência daqueles que não estudam é significativa nas
duas modalidades, já que, em ambas, aproximadamente ¼ não tem contato
Além desses dados, outras questões formuladas para as duas modalida- com os livros fora do ambiente escolar. No futebol, aqueles que afirmaram
des também reforçam um engajamento maior dos atletas do remo sobre a
estudar fora do colégio o fazem principalmente por um período de até duas
escola quando comparados aos seus pares do futebol. Quando perguntados
horas semanais (60%), sendo que a porcentagem vai diminuindo conforme
sobre a frequência com a qual estudavam fora da escola, os resultados entre
vai se estendendo o tempo de estudo semanal. Os atletas do remo que dizem
as duas modalidades apontam que aqueles pertencentes ao remo se envolvem
estudar fora do colégio desempenham essa atividade mais comumente entre
mais com uma rotina de estudos do que aqueles do futebol. No remo, as res-
três até seis horas por semana (57%). Os dados obtidos permitem afirmar
postas mais ouvidas foram aquelas que relatavam uma frequência esporádica
que, apesar de ambas as modalidades terem um alto contingente de indi-
com o estudo, enquanto no futebol a resposta mais ouvida foi o raro contato
víduos que estudam muito pouco ou quase nada fora do espaço escolar,
com os estudos. Cabe ressaltar que, entre os atletas que dizem estudar “quase
ainda assim os atletas do remo possuem uma rotina de estudos para além da
sempre”, temos um contingente duas vezes maior no remo quando compa-
escola percentualmente maior do que aqueles do futebol.
rado com o futebol proporcionalmente. No quesito daqueles que dizem não
Todos esses resultados obtidos poderiam, numa análise apressada,
estudar “nunca”, temos três vezes mais atletas do futebol do que do remo.
Na tentativa de aprofundar a compreensão sobre a rotina de estudos nos fazer acreditar que expectativas subestimadas dos jovens do futebol
desses jovens fora da escola, foi perguntado a eles quanto tempo em média sobre a obtenção de títulos acadêmicos e a predileção pela prática esportiva

84 85
seriam consequência de uma trajetória escolar acidentada e caracterizada reprovações ou mais é mais que três vezes menor do que aquele verificado
por repetências e alta defasagem idade-série. No entanto, não é isso que os no futebol. Nesse sentido, apesar da média de defasagem idade-série dos
dados aparentemente mostram sobre a progressão desses jovens no sistema atletas do futebol estar próxima daquela verificada no país, ainda assim ela
básico de ensino, quando comparados ao remo. evidencia que quase 1/3 desses jovens possui um percurso escolar aciden-
figura 1: modalidade x repetências tado, enquanto que no remo esse índice não chega a 10%.
Na situação do futebol, a trajetória escolar mais acidentada parece ter
25 forte correlação com a vontade de priorizar o esporte após o término do
20 ensino médio, assim como a visão sobre até onde consegue chegar na escola.
15
As referências do campo educacional (BOURDIEU, 1990; BRANDÃO, 2011,
número de alunos

NOGUEIRA, 1995; LAHIRE, 1997) evidenciam uma forte correlação entre a


10
trajetória escolar dos indivíduos e sua percepção sobre as possibilidades
5 de acesso a determinados níveis de ensino. Contudo, juntamente com a
0 trajetória escolar, talvez outros elementos, inerentes ao campo esportivo,
nenhuma uma duas três quatro cinco
reprovação reprovação reprovações reprovações reprovações reprovações
desempenhem um papel importante nessa percepção.
futebol remo
Resultados socioeconômicos
Fonte: Survey realizado no colégio.
Na análise dos resultados socioeconômicos, podemos identificar uma
Quando comparados os atletas do futebol com os do remo, vemos que grande diferença entre o posicionamento dos indivíduos de ambas as moda-
a proporção daqueles que nunca foram reprovados é equivalente (47,5% no lidades na estrutura social e econômica. No remo, verificamos um grande
remo e 46% no futebol). As diferenças entre as modalidades aparecem de contingente dos atletas (61,9%) inseridos nas camadas mais altas da socie-
forma mais incisiva quando nos debruçamos sobre os atletas que possuem dade, identificadas como A1, A2, B1 e B2, e um pequeno número (19,06%)
alguma repetência em seu histórico escolar. No futebol, 22% dos jovens posicionado naquelas consideradas mais baixas, ou seja, camadas D e E.
possuem uma reprovação; 24%, duas reprovações; 4%, três reprovações, e Tendo como parâmetro os critérios feitos para classificação desses segmen-
2% possuem quatro e cinco reprovações. tos, podemos concluir que os atletas do remo possuem majoritariamente
No remo, identificamos um alto contingente de atletas com uma maior renda familiar, grandes possibilidades de acesso a bens de consumo e
reprovação, no caso, 42%, mas esse número decai drasticamente com 4,8% culturais, além da presença de responsáveis com alto grau de escolaridade.
de atletas com duas ou três reprovações e nenhum atleta com quatro ou Na análise socioeconômica5 dos atletas do futebol, vemos uma confi-
cinco reprovações. guração diferente daquela identificada no remo. Os atletas do futebol estão
Analisando esses números, vemos que os índices de histórico de reprova-
ções dos jovens do futebol e do remo estão dentro dos padrões da educação 5 Primeiramente, o parâmetro usado na pesquisa foi pensado através da agregação de itens de
consumo, a renda informada pelo entrevistado e a informação sobre a escolaridade da mãe.
brasileira para o ano de 2013 no ensino médio, no qual a média de defasagem Essas medidas foram escolhidas porque servem como a base para o cálculo do Critério de
idade-série (dois anos ou mais de reprovação) é de 30%. No futebol, esse con- Classificação Econômica Brasil, proposto pela ANEP (Associação Nacional de Empresas de
Pesquisa). Com relação aos estratos sociais, foram usados critérios do Instituto Brasileiro de
tingente com duas reprovações ou mais perfaz 32% e no remo, 9,6%.4 Geografia e Estatística e do PNAD, que dividem a sociedade brasileira nas camadas “A”, “B”, “C”,
Apesar de ambas as modalidades estarem dentro da média nacional “D” e “E”. Dentro dessas divisões, ainda há uma subdivisão em A1, A2, B1, B2, C1, C2, D e E. O nível
de defasagem idade-série, é patente a diferença observada entre as duas socioeconômico dos atletas foi obtido pelo agrupamento das categorias mencionadas acima em
três segmentos. Nível socioeconômico baixo, médio e alto. O nível baixo diz respeito às cama-
modalidades, visto que no remo o contingente de atletas que possuem duas das “E” e “D”. A camada média diz respeito aos estratos “C1”, e “C2” e a alta reporta aos estratos
“A1”, “A2”, “B1” e “B2”. Diante de outros estudos realizados por Neri (2012) e Alves (2012) com
4 Disponível em: <http://www.qedu.org.br/brasil/taxas-rendimentoacesso>. Acesso em: 21 ago. 2015. a construção de níveis socioeconômicos, foi elaborado um sistema de pontuação baseado na

86 87
pouco representados entre as camadas mais altas (8%), situando-se princi- figura 3: modalidade x escolaridade da mãe
palmente nos setores médios da sociedade (62%), mas também com signi-
60%
ficativa representação nas camadas baixas (30%). Esses resultados apontam

porcentagem de alunos
30%
que os atletas do futebol majoritariamente não possuem o mesmo nível
socioeconômico do que seus pares da modalidade do remo. Sabendo da 0%
ensino ensino facul-
importância dada pela sociologia à variável “grau de instrução dos pais” 1a a 4a
incom-
1a a 4a 5a a 8a 5a a 8a médio médio dade não
com- incom- com- incom- com- com-
na formação das aspirações escolares dos filhos e na constituição do nível pleto pleto pleto pleto pleto pleto pleta
sei

socioeconômico, procuramos “isolar” a questão da escolaridade da mãe e


futebol 6% 8% 14% 16% 10% 36% 8% 2%
do pai e compará-la entre as duas modalidades.
remo 4,77% 4,77% 4,77% 14,27% 0% 52,38% 14,27% 4,77%
figura 2: modalidade x nível socioeconômico
Fonte: Survey realizado no colégio.
35%
porcentagem de alunos

30% figura 4: modalidade x escolaridade do pai


25%
20%
15%

porcentagem de alunos
40%
10%
5% 30%
0% 20%
A1 A2 B1 B2 C1 C2 D E
futebol 10%
0% 4% 4% 0% 30% 32% 26% 4%
remo 9,52% 4,78% 23,80% 23,80% 19,04% 0% 14,28% 4,78% 0%
ensino ensino facul-
1a a 4a 1a a 4a 5a a 8a 5a a 8a
médio médio dade não
Fonte: Survey realizado no colégio. incom- com- incom- com-
incom- com- com- sei
pleto pleto pleto pleto
pleto pleto pleta
Os dados evidenciam que a escolaridade das mães dos atletas do fute-
remo 0% 0% 19% 19% 0% 23,75% 38,25% 0%
bol é, em média, menor do que aquela verificada nos atletas do remo. Essa
futebol 8% 4% 12% 12% 14% 20% 14% 16%
modalidade possui, percentualmente, mais mães com ensino médio com-
pleto (52,38%) frente ao futebol (36%). Além disso, vemos também que nos Fonte: Survey realizado no colégio.
níveis de escolaridade mais baixos as mães dos atletas do futebol também
são maioria (possuem até o ensino fundamental). Por fim, no nível de esco- A análise dos dados indica que o nível socioeconômico dos atletas
laridade mais alta (faculdade), o contingente de mães do futebol é menor do remo é mais elevado quando comparado com o nível dos seus pares
do que aquele verificado no remo. do futebol. Na observação dos níveis de escolaridade dos pais e das mães
Com relação à escolaridade dos pais, os dados evidenciam que, no fute- (variáveis usadas na medição do NSE), também foram evidenciados níveis
bol, a média também é menor do que aquela verificada no remo. O remo mais altos para os atletas do remo. Nesse aspecto, fica claro que a vantagem
possui percentualmente mais pais com faculdade completa (38,25%) frente de nível socioeconômico do remo sobre o futebol se estabelece não só pela
ao futebol (14%). Além disso, observamos também que, nos níveis de esco- renda e acesso a bens de consumo materiais e culturais, mas também em
laridade mais baixos, os pais dos atletas do futebol também são maioria relação ao nível de escolaridade dos seus familiares diretos, no caso, os pais.
(possuem até o ensino fundamental) quando comparados com o remo. Desse modo, podemos supor que a proeminência do nível socioeconômico
e escolaridade dos pais dos atletas do remo sobre os pais do futebol inter-
ANEP para classificar esses jovens alunos-atletas. Todos os itens do questionário socioeconômico
receberam pontuações, bem como o nível de escolaridade dos pais e a renda das famílias. Sendo fira de alguma forma nas diferenças de projetos e expectativas escolares e
assim, pontuações de 0 a 7 caracterizavam nível E, de 8 a 13, o nível D, de 14 a 17, nível C2, de 18 esportivas verificadas entre as duas modalidades.
a 22, nível C1, de 23 a 28, nível B2, de 29 a 34, nível B1, de 35 a 41, nível A2 e de 42 a 50, nível A1.

88 89
Tempos esportivos conciliação entre o esporte e a escola a partir da autopercepção de futuro
Os alunos-atletas analisados no futebol e no remo estão distribuídos que possuem no campo esportivo.
em suas respectivas modalidades por categorias de acordo com as idades Outro dado interessante que auxilia na compreensão sobre o investi-
que possuem, como mostra o quadro abaixo. mento desses jovens na carreira esportiva é a idade na qual são efetiva-
mente federados, ou seja, momento em que os atletas são filiados por um
quadro 6: modalidade x categoria clube esportivo e passam a integrar o circuito competitivo da sua modali-
dade. Numa comparação entre o futebol e o remo, podemos observar sen-
Modalidade/Categoria Futebol Remo
síveis diferenças nas idades de entrada dos jovens em cada modalidade.
Infantil (15 a 16 anos) 18 (36%) –
Juvenil (17 a 18 anos) 28 (56%) – figura 5: modalidade x idade de federação
Júnior (17 a 19 anos) 4 (8%) –
10

número de jovens
Júnior B (15 a 16 anos) – 13 (61,90%)
Júnior A (17 a 18 anos) – 8 (38,10%) 0

se federou
não sabe
10 anos

11 anos

12 anos

13 anos

14 anos

15 anos

16 anos

17 anos
6 anos

7 anos

8 anos

9 anos
Fonte: Survey realizado no colégio.

não
Dois pontos são interessantes nesse quadro ao lidar com o futebol. futebol 0 2 7 6 9 6 7 5 2 3 1 2 0 0
Primeiramente, os dados que reportam ao maior contingente de atletas na remo 0 0 0 0 0 0 2 3 1 7 4 2 1 1
categoria juvenil corrobora outros estudos realizados por Damo (2007) e
Rodrigues (2003) e que apontam essa categoria como aquela que concentra Fonte: Survey realizado no colégio.

os maiores grupos de atletas na mesma categoria.


Por meio dos dados obtidos entre os 50 alunos-atletas do futebol, per-
A explicação desses autores para esse fato é semelhante, pois em ambos
cebemos que mais da metade deles (60%) ingressou em clubes esportivos
os trabalhos foram mencionados que essa categoria recebe constantes flu-
e competições regulares até os 12 anos de idade, sendo que as primeiras
xos de atletas vindos da categoria Infantil, mas não necessariamente esses
entradas nos clubes são verificadas já aos 7 anos de idade, como mostram
jovens avançam para a categoria posterior (Júnior), levando a um acúmulo
os dados. O pico de federalizações ocorre entre os 8 e 12 anos, com des-
de jovens considerados inaptos a avançar nesse segmento até que estourem
taque para os 10 anos de idade, e à medida que avançam nessa idade os
a idade permitida para continuarem no esporte.
números de ingressos decaem.
A segunda questão é que, ao analisar esse quadro, verificamos na pas-
Acerca dos dados, cabe ressaltar que os jovens que ingressaram no
sagem da categoria Juvenil para Júnior uma queda brusca no número de
clube antes dos 11 anos (início da categoria pré-mirim, primeira nas cate-
atletas, levando a crer na existência de um ponto de gargalo na formação
gorias de base dos clubes) integravam somente a escolinha do clube que
esportiva. O declínio acentuado nesse momento pode significar a exclu-
não possui a carga de treino das categorias de base nem o alto circuito de
são de parcelas significativas de jovens das categorias de base do clube no
competições. Essas escolinhas, consideradas espaços de pré-formação den-
momento de passagem de uma categoria para outra.6 Essas análises sobre
tro do clube, são locais disciplinados para prática esportiva com fins de
as dinâmicas de funcionamento das categorias de base são importan-
detecção de talentos para integrarem as categorias de base (DAMO, 2007).
tes para percebermos como os atletas “jogarão” com as possibilidades de
No campo futebolístico, a entrada precoce é valorizada e vista como essen-
cial para transformação do atleta de diamante bruto em elemento lapidado,
6 Normalmente, esse desligamento do centro de treinamento e, consequentemente, do clube, num processo que demanda longos anos de treinos e mais de 6 mil horas de
ocorre nas mudanças de categorias, porque é nesses momentos que a comissão técnica avalia
a utilidade dos atletas para o plantel. atividade ligadas ao desenvolvimento físico, técnico e tático (MELO, 2010).

90 91
No caso do remo, verificamos uma entrada mais tardia no esporte, a final de uma semana, os atletas da “Júnior B” treinam, em média, 21h e os
partir dos 12 anos, mas com proeminência de inserção entre os 15 e 16 anos, atletas da “Júnior A” treinam 23h42.
durante a categoria “Júnior B”. Apesar de existir a categoria infantil (até No futebol existe somente uma sessão de treinamento por dia, que
13 anos), é somente a partir da “Júnior B” que surgem mais competições, pode ocorrer na parte da manhã ou da tarde, de acordo com a categoria do
possibilidades de bolsas e gratificações financeiras. Esse fato se relaciona, atleta. Os tempos de treinamento entre as categorias não são iguais, sendo
sobretudo, com a estrutura corporal do atleta, que começa a ser melhor que este aumenta à medida que os jovens avançam em direção à profissio-
definida na puberdade, pois o remo é um esporte no qual a força física é nalização, como mostra o quadro seguinte. Todos os treinos que ocorrem
fundamental para obtenção de alto rendimento, e é por essa razão que o na parte da manhã no futebol (Juvenil e Júnior) se iniciam às 8h, e aqueles
processo de federalizar o atleta se dá nessa época. que ocorrem na parte da tarde (Infantil) começam às 14h. Em campeonatos
Sobre o tempo destinado ao treino, identificamos algumas equivalên- que ocorrem em todos os fins de semana, os atletas disputam um jogo.
cias entre as duas modalidades.
quadro 8: futebol x tempo de treino
quadro 7: remo x tempo de treino
Tempo médio Número de dias Carga semanal
Futebol / Categoria
Tempo médio Número de dias Carga semanal diário de treino de treino de treino
Remo / Categoria
diário de treino de treino de treino
5 dias+ 1 Jogo
Infantil (15 a 16 anos) 02h28min 14h20min
Junior B (15 a 16 anos) 3h37 6 dias 21h (2h00)
Junior A (17 a 18 anos) 3h57 6 dias 23h42 5 dias+ 1 Jogo
Juvenil (17 a 18 anos) 02h54min 16h30min
(2h00)
Fonte: Survey realizado no colégio.
5 dias+ 1 Jogo
Júnior (17 a 19 anos) 03h17min 18h25min
Na rotina de treinamento desses atletas do remo existem duas sessões de (2h00)
treinos ao dia, sendo uma pela manhã, de 5h a 6h30, e outra na parte da tarde, Fonte: Survey realizado no colégio.
de 15h até as 17h. O treinamento na parte da manhã é opcional, mas 98% dos
atletas entrevistados relataram comparecimento às duas sessões. Durante os Os dados verificados no quadro corroboram com os estudos realizados
sábados também acontecem treinos (quando não há competições) na parte por Melo (2010), Da Conceição (2013) e Bartholo et al (2011), ao identifica-
da manhã, entre 7h e 9h. A diferença de tempo médio de treino (20 min) entre rem um aumento da carga de treino dos jovens atletas do futebol à medida
a categoria “Júnior B” e a categoria “Júnior A” é consequência da escolha de que esses avançam na modalidade. No caso dos atletas analisados nesta
alguns atletas daquela categoria em não treinar na parte da manhã, como foi pesquisa, ocorre um acréscimo médio de 10% a 15% de tempo na carga de
dito anteriormente (2% dos atletas do remo). Caso não houvesse essa escolha treino entre as modalidades, levando a crer que cada vez mais o futebol
dos atletas, os tempos de treino seriam os mesmos entre as categorias, visto ganha centralidade na gestão de suas rotinas.
que todas as atividades físicas são desempenhadas igualmente, sem acréscimo A análise dos tempos de treino das duas modalidades evidencia que os
de tempo, à medida que se aproxima a profissionalização. atletas do remo treinam, em média, independentemente da categoria, apro-
Além da carga de treinamento, também existem as competições com ximadamente 28% mais tempo que os atletas do futebol, evidenciando uma
periodicidade bimestral, normalmente aos sábados ou domingos. Quando carga tão extenuante quanto aquela verificada pelos atletas do futebol. Essa
ocorrem essas competições, os alunos não treinam no final de semana.7 Ao proeminência de tempo gasto pelos atletas do remo sobre os do futebol não
se mantém se adicionarmos outras atividades ligadas ao esporte, tal como
o tempo de deslocamento de casa para o treino e do treino para casa e as
7 A ausência de treinos nos fins de semana de competição mantém praticamente idênticas as
médias de tempo gasto com as atividades físicas da semana.
competições realizadas.

92 93
quadro 9: remo x tempo total dedicado ao esporte no caso do futebol, ao contrário do remo, ao adicionarmos o tempo de des-
locamento desses jovens em suas rotinas, ocorreu um incremento de aproxi-
Remo / Tempo médio Tempo médio Média de tempo Total
madamente 45% de tempo dedicado ao esporte em suas rotinas.
Categoria diário de treino de deslocamento esportivo Tempo semanal
Diante desses dados, podemos perceber que os atletas do remo treinam
Júnior B mais tempo do que seus pares do futebol; no entanto, os atletas do futebol
3h37 1h06 4h43(x6) 28h
(15 a 16 anos)
gastam muito mais tempo nos seus deslocamentos frente àqueles do remo.
Júnior A Com isso, ao considerarmos todos os tempos destinados às atividades liga-
3h57 1h32 5h29(x6) 33h
(17 a 19 anos)
das ao esporte (treino, competições e deslocamentos), identificamos que o
Fonte: Survey realizado no colégio. futebol gasta, em média, 10% mais de tempo do que o remo em suas ativi-
dades esportivas.
No caso do remo, podemos identificar que o tempo de deslocamento,
Dentro dessa equação sobre os tempos dedicados ao esporte, ainda
ligeiramente maior na categoria “Júnior A” quando comparado com a
temos que pensar na necessidade desses atletas de viajar para competições.
“Júnior B”, contribui para que no final da semana o tempo total dedicado
Rotina desgastante que também requer disponibilidade de tempo. Quando
às atividades esportivas aumente ainda mais, além daquele verificado
perguntamos para eles se viajavam para competir, ficou explícita a exis-
somente com os treinos.
tência de duas situações bem diferentes entre as modalidades. Enquanto
quadro 10: futebol x tempo total dedicado ao esporte no futebol a esmagadora maioria viajava pelo menos uma vez ao ano para
competições, no remo, menos da metade realizava esse tipo de atividade.
Total
Futebol / Tempo médio Tempo médio Tempo médio
Categoria diário de treino de deslocamento de tempo esportivo
Tempo quadro 11: modalidade x viaja para competir
semanal
Modalidade/Viaja para competir Futebol Remo
Infantil
2h28 1h32 4h(x6) + 1 jogo 28h
(15 a 16 anos) Sim 48 (96%) 9 (42,85%)
Juvenil Não 2 (4%) 12(57,15%)
2h54 1h59 4h53(x6) + 1 jogo 31h18
(17 a 18 anos) TOTAL 50 (100%) 21 (100%)
Júnior Fonte: Survey realizado no colégio.
3h17 2h17 5h34(x6) + 1 jogo 35h24
(17 a 19 anos)

Fonte: Survey realizado no colégio. Essa dinâmica de viagens durante o ano, mesmo não podendo ser men-
surada de forma precisa no que tange ao tempo gasto com esporte, eviden-
No quadro de tempos dedicados ao esporte na modalidade do futebol, cia que os atletas do futebol precisam de alguma disponibilidade a mais de
também verificamos um processo semelhante ao observado no remo, ou tempo em relação aos seus companheiros do remo em seus compromissos
seja, um aumento gradativo no tempo de deslocamento desses jovens de casa esportivos. Por isso, apesar da equivalência de tempo descrita anterior-
para o clube e do clube para casa à medida que avançam nas categorias de mente entre o tempo do esporte no futebol e no remo, cabe deduzir que há
base. Isso que dizer que a categoria imediatamente posterior demanda sem- uma necessidade (muito difícil de mensurar) de disponibilidade de tempo
pre mais tempo de treino e deslocamento que a categoria anterior.8 Contudo, mais elevada no futebol do que no remo.

8 Estudos realizados por Melo (2010), Soares (2008) e Damo (2007) evidenciam que há um menos escassos e, consequentemente, maiores facilidades de encontrá-los próximos de casa.
aumento do tempo de deslocamento dos jovens conforme avançam de categoria devido ao Conforme as categorias se aproximam da profissionalização e os postos de inserção dimi-
afunilamento das chances de profissionalização nos clubes. Dito de outra forma, esses estu- nuem, esses jovens precisam procurar muitas vezes em lugares mais distantes da sua residên-
dos mostram que nas categorias mais distantes da profissionalização há postos de colocação cia, afetando assim o tempo de deslocamento.

94 95
A exposição de todo o panorama do tempo dedicado ao esporte nas ambiente social ou virtual propício às condições para a troca de bens, servi-
duas modalidades evidenciou que no futebol há uma utilização de tempo ços e performances atléticas com vistas à transformação desses em produ-
em média 10% maior do que no remo. Contudo, será que essa porcentagem tos econômicos, sendo que cada modalidade possui características e graus
seria capaz de explicar as grandes diferenças de dedicação à escola e a per- de desenvolvimento específicos no mercado esportivo.
cepção dos atletas das duas modalidades sobre essa instituição? No caso do futebol, existe um mercado mundial e nacional solida-
mente estruturado pelo grande contingente de praticantes e consumidores
discussão do esporte, pelo circuito constante de competições, pela ampla exposição
midiática dos eventos e dos personagens inseridos nele (jogadores, treina-
Nos grupos de pesquisa que trabalham com escolarização de atletas, a hipó-
dores, juízes, agentes), pelo volume financeiro movimentado e pelos postos
tese comumente trabalhada diz que a rotina de treino extenuante dificulta
de trabalho criados direta e indiretamente (CORREIA, 2014).
a obtenção de capitais escolares necessários à reconversão para o mercado
Essa concepção pormenorizada do futebol profissional enquanto um
de trabalho. Os resultados obtidos na comparação entre remo e futebol
mercado consolidado é muitas vezes assimilada pelo senso comum como
apontam que essa relação entre rotina de treino extenuante e dificuldade
sinônimo de amplas oportunidades para aqueles que buscam se tornar
de obtenção de capitais escolares não é de causa e efeito direta, logo, não
jogadores de futebol. Nesse sentido, as atuais mídias impressas, televisi-
podemos afirmar que a atividade esportiva por tempo prolongado causa
vas e digitais ajudam a reforçar essa visão através da glamourização dos
dificuldades na obtenção de capitais escolares. Ao analisarmos compara-
tivamente os tempos utilizados nas atividades esportivas do futebol e do atletas famosos e da divulgação das suas trajetórias de vida, muitas vezes
remo, verificamos que ambas possuem um tempo semelhante gasto no pontuadas pela forte ascensão social e econômica promovida pelo esporte
esporte, mas que esse tempo parecido não produz resultados semelhantes (SOARES; MELO 2013).
na rotina escolar de seus praticantes nem no seu processo de escolarização. A construção desse imaginário auxilia a estruturação da crença do fute-
Partindo do princípio de que a hipótese consolidada no campo é verda- bol como um espaço democrático, meritocrático que conferirá aos mais
deira, teríamos que verificar, em ambas as modalidades, dificuldades esco- dedicados um posto de trabalho (SOUZA, 2008).9 Dessa forma, a despeito
lares, pouco tempo de estudo, e baixas expectativas de chegada aos níveis do número de postos de trabalho restritos que se apresentam pelas agências
mais altos de escolaridade, mas não foram esses os resultados apresentados de controle do futebol (Confederação Brasileira de Futebol e Federação
pelos dados. Em linhas gerais, percebemos que mesmo as duas modali- Internacional de Futebol Association), a sociedade brasileira e, mais espe-
dades possuindo altas cargas de treino e tempos semanais dedicados ao cificamente, os jovens atletas, enxergam o mercado do futebol como uma
esporte quase semelhantes, ainda assim foram verificadas sensíveis diferen- viável possibilidade de trabalho, desde que haja muita dedicação e também
ças na rotina escolar e na conciliação entre o esporte e a escola. um pouco de sorte.
Os resultados mostraram que os atletas do remo possuem uma frequên- As configurações do mercado esportivo do futebol expõem uma rela-
cia de estudos maior, um tempo dedicado às atividades extraclasse maior, ção candidato-vaga que superam em muito os mais concorridos vestibu-
bem como uma maior percepção de poderem alcançar os níveis mais altos lares ou concursos públicos, com milhares de atletas disputando somente
de instrução, quando comparados com os atletas do futebol. Nesse sentido, uma vaga (PRONI, 2000). Nesse sentido, são excluídos do funil de for-
compreendemos nos resultados a evidência de que outros elementos alheios mação, a qualquer momento, aqueles jovens considerados incapazes de
à rotina de treino interferem de forma decisiva nos resultados/aspirações
9 Segundo dados da FIFA e da CBF, o Brasil possui atualmente 29.208 clubes de futebol regis-
escolares dos jovens, sobretudo o NSE e o capital cultural dos pais. trados, com aproximadamente 642.576 postos de trabalho formais para os atletas de futebol
Um desses elementos diz respeito ao mercado esportivo da modalidade do país. Apesar do número expressivo de vagas (muitas não remuneradas), há de se perceber
que o número de atletas registrados na CBF também é muito grande, chegando perto dos 2,1
em que esses atletas estão inseridos. Por mercado esportivo entendemos o milhões de pessoas, e maior ainda se pensarmos nos 11,2 milhões de atletas que compõem o
circuito amador nacional.

96 97
adquirir mais capitais futebolísticos para desenvolver seus talentos. Essa Ao falarmos da influência do mercado esportivo do futebol na trajetó-
dinâmica competitiva e instável de permanência na carreira futebolística ria esportiva e escolar desses atletas, também devemos lembrar a existência
cria nos jovens e nas suas famílias uma noção de que a inserção precoce de uma grande exposição midiática sobre a modalidade. No ano de 2014,
nos centros de formação ampliam as chances de obtenção dos capitais e, por exemplo, foram televisionadas 7 mil horas de futebol, ou seja, aproxi-
consequentemente, sua profissionalização (DAMO, 2007). madamente 3,5 mil partidas,10 permitindo que as imagens de centenas de
Ao analisarmos os dados dos jovens entre 15 e 19 anos inseridos no fute- atletas fossem vinculadas a diversas marcas para milhões de pessoas. Essa
bol dessa agremiação esportiva estudada, percebemos que 48% dos jovens exposição permite aos agentes em torno do esporte, entre eles os atletas, a
da pesquisa se engajaram em centros de formação e nos circuitos competi- obtenção de patrocínios vultosos e ganhos financeiros na casa dos milhares
tivos antes dos 11 anos de idade. Além disso, torna-se evidente a existência de reais, mesmo que seja para uma pequena parcela dos atletas que inte-
de um intervalo entre os 8 e os 12 anos, no qual se concentra a maior inci- gram o mercado.
dência de atletas federados do futebol. Esse intervalo vai ao encontro das Outro fator que chama a atenção dos jovens para inserção no futebol é
conclusões de Damo (2007), que identifica nas categorias Sub-11 e Sub-13, a construção feita pela mídia sobre o valor dos salários dos atletas, muitas
ainda inseridas numa etapa de pré-formação, uma entrada menos difícil vezes associados, no senso comum, a grandes cifras. No entanto, a reali-
para os jovens no circuito futebolístico. Damo (2007) também salienta que, dade salarial da profissão mostra que 84% dos jogadores, de todas as divi-
durante essa faixa de idade, os recrutadores dos clubes possuem maior inte- sões do futebol profissional no Brasil, recebem salários até R$1 mil, sendo
resse em “pinçar” os principais talentos identificados. que apenas 3% recebem acima de R$9 mil por mês (SOARES et al, 2011),
Esse investimento no futebol desde cedo coincide, justamente, com o mas, ainda assim há a crença dos jovens de que futebol é um caminho pos-
momento em que esses jovens estão obtendo os capitais culturais na escola, sível de ascensão social.
podendo significar certa concorrência dos tempos dedicados ao esporte Essa visão do mercado do futebol enquanto um campo de possibilida-
e à escola. Na verdade, as questões do tempo de concorrência entre roti- des ampliado fortalece a crença nas chances de profissionalização; sendo
nas esportivas e rotinas escolares são uma tônica de todas as modalida- assim, o jovem atleta do futebol parece observar nessa modalidade um
des esportivas, mas, no caso do futebol, vemos que esse processo se inicia espaço possível de transformação e de concretização dos seus objetivos,
muito mais cedo do que nas outras modalidades. sendo um caminho mais aberto do que outros, por exemplo, a educação. A
Ao observarmos a idade de federação dos atletas do remo, identifica- internalização dessa crença constrói um sentido que concede à escolha do
mos as primeiras inserções no circuito esportivo aos 12 anos de idade, com futebol como carreira, em nosso contexto, como uma ação totalmente racio-
prevalência na idade dos 15/16 anos. Isso significa que, ao longo do pro- nal para o próprio atleta, mesmo que, aos olhos dos outros, essa ação seja
cesso educacional, pelo menos em teoria, os atletas do remo conseguiram considerada irracional ou de baixa probabilidade de sucesso (ELSTER, 1994).
postergar por mais tempo a concorrência de tempo entre o esporte de alto No remo, a configuração do mercado é bem mais restrita. Atualmente,
rendimento e a escola e, possivelmente, conseguiram se dedicar durante a modalidade é praticada em 53 clubes, distribuídos por 13 estados do Brasil,
mais tempo somente a ela. englobando um contingente de aproximadamente 5,5 mil remadores, 38
O fator da entrada precoce no esporte acaba por inserir esses jovens em técnicos, 30 carpinteiros náuticos, 46 funcionários administrativos e 1.860
ambientes de alta competitividade ainda muito cedo, requisitando muito barcos de variados tipos em utilização.11 Com relação ao salário dos atletas
tempo para o engajamento e priorização no esporte. Nesse caso, as dificul- profissionais do remo, não possuímos nenhum tipo de dado sistematizado
dades na conciliação do esporte com a escola não estão, necessariamente, que possa nos oferecer algum panorama acerca da remuneração média
no tempo de treino em si, mas sim na exposição a longo prazo desses jovens
à rotina de treino, de competições e de possibilidades de profissionalização. 10 Dados obtidos em <http://www.cbf.com.br/televisionamento>. Acesso em: 10 jan. 2015.
11 Dados retirados de: <http://www.remobrasil.com/>. Acesso em: 10 ago. 2015.

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deles, até mesmo no Rio de Janeiro. Os dados que temos são referentes ao com apenas 1,14% dos jovens dizendo que pretendem somente estudar,
estudo realizado por Sousa (2010), no qual aponta como principais motivos 63,84% dizendo que pretendem estudar e praticar esporte (muitos falaram
para o abandono da modalidade do remo pelos atletas12 a necessidade de em estudar até o momento que o esporte deixasse) e 35,02% afirmando que
trabalhar para ajudar na renda familiar e a ausência de recursos e patrocí- pretendem somente praticar esporte. A inversão no padrão de respostas
nios para continuar na modalidade. O remo, na atualidade, possui um nível das modalidades do remo e do futebol deve ser entendida como uma res-
de exposição midiática muito baixo, quase nulo, na mídia digital e impressa posta do indivíduo no desenvolvimento da sua ação frente aos campos de
no Brasil, sendo as regatas televisionadas somente em período de Jogos possibilidades postos para eles.
Olímpicos. Nos jornais, geralmente, quando aparecem, ocupam as últimas A percepção desses jovens sobre o seu campo de possibilidades no
páginas sob o título genérico de “outros esportes” (como faz o jornal líder mercado, em média mais alargado no futebol do que no remo, permite
de circulação esportiva no Rio de Janeiro, o “Lance”). Nas mídias digitais compreender por que os jovens do futebol desejam menos formação esco-
como, por exemplo, o sítio globoesporte.com (o maior do segmento nacio- lar e, consequentemente, investem menos tempo nela. No ato de projetar,
nal), o remo não possui nenhuma área própria para notícias e informações, ou seja, de criar uma conduta organizada para atingir finalidades especí-
ficando agrupado no segmento de esportes aquáticos, no qual as notícias ficas (SCHUTZ, 1979, p. 32), o indivíduo constrói prioridades, cria alvos e
são predominantemente sobre natação.1314 mecanismos para alcançá-los, o que, no caso da formação esportiva para
o futebol, significa secundarizar a formação escolar em prol da esportiva.
A estruturação do mercado esportivo do remo nesses moldes constrói
A influência desse mercado sobre as ações dos jovens ajuda a explicar
nos atletas a crença de que “viver de remo” é muito difícil e o campo de pos-
por que mais da metade daqueles inseridos no futebol não possuem uma
sibilidades da profissionalização é extremamente restrito e com remunera-
rotina constante de estudos e, quando ela acontece, não perfaz mais do que
ções que dificilmente conseguirão dar grande conforto para eles (CORREIA,
duas horas semanais. Também ajuda a compreender por que mais de ¼
2014, p. 199). Por isso, quando perguntados sobre o que pretendiam fazer
deles só pretendem estudar até o ensino médio e depois desempenhar fun-
após finalizarem o ensino médio, 60,75% deles afirmam que continuariam
ções exclusivamente no futebol. Na mesma linha de argumentação, pode-
conciliando o esporte com o estudo (na esperança de se estabilizarem no
mos supor que as adesões maiores para as práticas escolares e aos estudos
remo),15 4,75% disseram que continuariam somente no esporte e 34,5% fala-
verificados nas coletas de dados dos atletas do remo estejam, em parte,
ram em somente estudar. relacionadas com essa percepção do mercado esportivo da modalidade e à
Os resultados apontam que, diante das evidências e das informações crença construída sobre as dificuldades de profissionalização nesse esporte.
coletadas pelos atletas no campo esportivo do remo e nas suas redes de Claro que a escolha da própria modalidade passa por uma clivagem
sociabilidade, a crença na profissionalização dentro da modalidade é de classe e de capital cultural da família. Aliado à questão do impacto da
pequena, enfraquecendo o projeto de tornar-se atleta profissional e dando percepção do mercado esportivo sobre o processo de conciliação entre o
respaldo ao projeto escolar. Ao nos debruçarmos sobre as respostas dos atle- esporte e a escola, o nível socioeconômico e a escolaridade dos responsá-
tas do futebol para a mesma pergunta, observamos um cenário diferente, veis cumprem um papel igualmente importante na construção das visões
de mundo dos atletas e, consequentemente, das suas opções sobre a dedi-
12 Esse estudo foi realizado com atletas de nível nacional e internacional no Brasil. Alguns deles cação ao esporte e a escola.
já haviam participado de sul-americanos e das Olimpíadas de Barcelona, Atlanta e Pequim,
demonstrando que eram atletas de destaque na modalidade. Estudos realizados pela sociologia da educação têm, desde as décadas
13 Interessante destacar que modalidades como surfe, tênis, futebol de areia, atletismo, vôlei e de 1950/60, creditado um papel às famílias no processo de êxito ou fracasso
até stock car possuem espaços próprios no sítio com informações cotidianas. escolar. Todo o estoque de pesquisas empíricas centradas no tema da relação
14 Fato curioso que merece destaque é que, realizando buscas nos principais navegadores de inter-
entre a educação e a estratificação social, desenvolvidas entre os anos de 1950
net com a palavra “remo” ou “modalidade+remo”, a maioria das notícias é do Clube do Remo,
equipe de futebol do Pará, e que ocupa posição periférica no mercado esportivo nacional. e meados da década de 1960, nos Estados Unidos (“Relatório Coleman”),
15 Essa expressão foi utilizada em mais de uma entrevista realizada com os atletas. na Inglaterra (“Aritmética Política”) e na França (“Demografia Escolar”),

100 101
enxergou no meio familiar de origem, em particular em sua dimensão socio- mães dos atletas do futebol possuem, ao longo da sua trajetória escolar, um
cultural, um poderoso fator explicativo das desigualdades escolares. caminho acidentado e marcado por fracasso e abandono da escola, visto que
Bourdieu (2007) afirma que as diferenças na origem social podem mais da metade delas não concluiu o ensino básico.18 O exame dos dados
afetar as disparidades nas trajetórias e na desigualdade de oportunidades sobre a escolaridade dos pais desses atletas das duas modalidades também
escolares do indivíduo mais por uma questão de acumulação de capital cul- aponta para um caminho semelhante ao encontrado entre as mães.
tural e não simplesmente pelos fatores socioeconômicos. Embora os fato- Segundo estudos consolidados no campo da sociologia da educação, o
res socioeconômicos possam afetar a disponibilidade dos bens e capitais desconhecimento da escolaridade dos pais aponta indícios de um ambiente
culturais para o consumo, não significa implicitamente que a presença de familiar no qual o estudo e a escolarização não se constituem como elemen-
boas condições econômicas no seio familiar leve o jovem a incorporar o tos centrais (GUERREIRO-CASANOVA; DANTAS; AZZI, 2011). Nesse ponto,
capital cultural necessário para se obter sucesso na trajetória escolar. Nesse os 16% de atletas do futebol que não souberam precisar a escolaridade dos
sentido, o nível socioeconômico e os capitais culturais compartilhados com pais nos permitem inferir que entre esses indivíduos e suas famílias o tema
a família influenciam na trajetória escolar de seus filhos e, consequente- educação e, consequentemente, o envolvimento da família com o processo
mente, na maior adesão destes à escola ou ao esporte.16 educacional não seja grande a ponto de os filhos se interessarem pela traje-
Na análise de nível de capital cultural dos jovens atletas, selecionamos tória escolar dos pais.
a escolaridade da mãe e do pai como parâmetro de análise. Essa escolha se O panorama exposto sobre a escolaridade dos pais e mães do remo e do
baseia nos novos estudos sobre a relação entre família e escola (BRANDÃO; futebol de alguma forma pode influenciar a percepção dos filhos sobre as
LELLIS, 2003; NOGUEIRA 2013; ROMANELLI, 1995), que defendem um possibilidades de êxito na escola e de ascensão social por meio da educação.
escrutínio sobre os agenciamentos educacionais da maior quantidade de Nesse caso, uma trajetória educacional menos acidentada dos pais e mães
indivíduos do ambiente familiar como forma de delinear características do remo, quando comparados com os do futebol, pode simbolizar para seus
mais precisas sobre as trajetórias escolares dos seus membros.17 filhos e para o próprio corpo familiar uma percepção maior de oportunidades
Na análise sobre a escolaridade das mães dos atletas do futebol vimos na educação do que no esporte, enquanto no futebol temos o cenário oposto.
que um grande contingente delas (44%) possui formação até o ensino fun- A trajetória desses responsáveis não significa a consolidação de uma
damental, sendo que aquelas que só alcançaram o até o 5º ano perfazem trajetória de fracasso e desinteresse escolar dos seus filhos, visto que exis-
14% da amostra. Em comparação, quando olhamos para as mães dos atletas tem outros condicionantes de ação social para além da influência fami-
do remo, identificamos que 28,5% delas só possuem o ensino fundamental liar (LAHIRE, 1997), no entanto, isso pode explicar, pelo menos em parte,
(9,5% só concluíram até o 5º ano). Ao analisarmos aquelas mães que pos- o privilégio do engajamento no esporte em detrimento da educação em
suem o ensino básico completo ou a faculdade completa identificamos que, uma modalidade e não na outra. Além disso, é possível cogitar que aqueles
no remo, 52% delas concluíram o ensino médio e 14,27% concluíram a uni- membros familiares dos jovens que conseguiram transpor as barreiras edu-
versidade. No caso das mães dos atletas de futebol, 36% delas concluíram o o cacionais e possuem alto nível de escolaridade precisam no seu cotidiano,
ensino médio e 8% concluíram a universidade. Os dados evidenciam que as ultrapassar outras barreiras ligadas, por exemplo, ao local onde moram
para alcançarem os mais altos postos de trabalho. Isso nos mostra que a
16 O capital cultural objetivado é resultado de produtos associados ao fomento do saber e agrega
exemplos como livros, revistas, folclore, mitologia etc. O capital cultural institucionalizado é
rede de sociabilidades na qual o indivíduo está inserido desempenha papel
aquele em que suas raízes estão fincadas nas instituições de ensino, como escola, universida- importante na sua visão de mundo e na construção de projeto de vida, pois,
des, cursos, entre outros. O capital social, cujo significado mais simples pode ser o de “forma- a partir dela, o sujeito compreende seu campo de possibilidades e quais
ção de redes sociais”, com a qual o indivíduo estabelece um circuito de troca de informações
e influências. ações possuem a maior chance de sucesso.
17 Esse posicionamento supera uma abordagem da sociologia da educação que via somente na
análise da escolaridade da mãe uma das ferramentas mais confiáveis para traçarmos as rela- 18 A título de comparação, podemos perceber que a quantidade de mães do futebol que não
ções educacionais dos pais com os filhos. concluíram o ensino básico é o dobro daquelas que não o fizeram no remo.

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Nessa equação também temos o impacto do nível socioeconômico Essa noção corrobora a ideia de Rial (2006) quando afirma que o
sobre a formação do campo de possibilidades e das oportunidades postas ingresso e a permanência no esporte de alto rendimento dependem de
para os indivíduos, pois é possível compreender que, para determinadas um “projeto familiar” minimamente estruturado. A aposta da família no
camadas sociais, em especial as populares, os custos da escolarização são talento esportivo deve ser realizada em idade precoce e, em geral, demanda
muito altos e os ganhos/benefícios são duvidosos e, muitas vezes, resgatados esforços de todos para custear os primeiros anos de treinamento do aspi-
somente após um longo tempo de investimento.19 Nesse ponto, questões que rante à atleta. Nesse ponto, podemos supor que, entre os jovens esportistas
condicionam ou não a sua adesão escolar perpassam pelas oportunidades de camadas sociais mais populares (nível socioeconômico mais baixo), haja
escolares, experiências vividas, características particulares, representações uma adesão maior da família para o projeto esportivo, visto como uma pos-
sobre a escola na família, bem como o “estilo de vida”. Tais observações sibilidade de ascensão social por caminhos alheios à escola, principalmente
vão ao encontro de outros estudos da área educacional como o de Paixão quando a história pregressa dos pais e amigos à sua volta não evidenciam
(2013),20 mas em especial ao trabalho realizado por Costa e Koslinski (2006) grandes chances por meio dessa instituição.
ao trabalharem a escola e as representações sobre o presente e o futuro na Entre as famílias com nível socioeconômico mais baixo também existe
visão de estudantes do ensino fundamental em duas escolas públicas do Rio uma maior dificuldade de protelar as recompensas advindas da ocupação
de Janeiro. Esse estudo, apesar da amostra restrita com que trabalharam os do tempo livre dos indivíduos inseridos nela. Isso quer dizer que nessas
autores citados, reforça que a existência de expectativas de futuro profissio- famílias onde os recursos são escassos, o presente ou pelo menos o futuro
nal e escolar podem ser diferenciada conforme as origens socioeconômicas próximo contam mais em relação ao futuro distante e, por isso, os indiví-
e a localização socioespacial da escola dos estudantes pesquisados.21 duos nesses grupos familiares se direcionam para os caminhos nos quais
Baseados nesses estudos e suas considerações, identificamos que o possuem a crença de que os benefícios chegarão mais cedo e numa proba-
nível socioeconômico dos atletas do futebol, principalmente concentrado bilidade maior (ELSTER, 2009). Essas famílias, por suas condições socioe-
conômicas, normalmente possuem pouca capacidade de “descontar o pre-
nas camadas médias mais baixas (C1 e C2) e nas camadas populares (D e E),
sente” para investir no futuro.
pode contribuir para uma conciliação mais conflituosa entre o esporte e
No caso do futebol, mesmo a formação esportiva sendo caracterizada
a escola, devido aos custos materiais necessários à formação, tais como
por uma longa jornada, assim como a formação escolar, na trajetória do
dinheiro para transporte, alimentação, material esportivo e a possibilidade
esporte existem maiores possibilidades de retorno de benefícios num prazo
de manter o filho fora do mercado de trabalho, mesmo que a família neces-
menor de tempo do que na trajetória escolar. Nesse ponto, a obtenção de
site de mais recursos.
ajudas de custo, pequenos salários e alguns patrocínios se constituem com
uma chance dessas famílias das camadas populares e do jovem atleta de
19 Cabe ressaltar, amparado nos trabalhos de Jon Elster(1994) e Raymond Boudon (1981), que reduzir os tempos de investimentos/custos e obter algum benefício com a
os custos e benefícios do desenvolvimento das habilidades educacionais não possuem con- atividade desenvolvida.22
gruência entre todos os segmentos sociais. Dessa forma, alguns grupos têm a possibilidade
de postergar ganhos e impelir mais custo no presente com vistas a ganhos maiores no futuro. A adesão familiar em torno do projeto esportivo (entendido como
Um exemplo disso é um jovem de classe média ou alta que pode se ausentar do mercado de melhor caminho pelos agentes) pode ser vista como um elemento que faci-
trabalho por um tempo maior, investindo em sua qualificação com vistas a receber melhores
remunerações no futuro e melhor posicionamento no mercado de trabalho. Em outros seg-
lite a conciliação entre as rotinas do esporte e as rotinas escolares, pois abre
mentos sociais, mediante imperativos diversos, esse caso pode não ser possível. possibilidades de os jovens terem a permissão dos seus pais para flexibili-
20 Os dados obtidos por Paixão (2013) encontram significativa diferença no valor dado à edu- zarem suas rotinas escolares e, muitas vezes, sacrificarem seus tempos de
cação escolar pelos segmentos populares de nossa estratificação social. Nesse sentido, seus
levantamentos empíricos obtiveram resultados claramente dissonantes entre “povo” e seg- 22 Em oposição a essa situação, os indivíduos com projeto prioritário direcionado para a
mentos de elites (não somente elite econômica) quanto ao valor que conferem à educação. educação comumente necessitam investir numa longa trajetória de dedicação aos estudos
21 Como era bastante previsível, em conformidade com a literatura clássica que trata o tema das extremamente custosa e na qual os benefícios desse investimento só poderão ser sentidos de
expectativas desde 1960. maneira mais aguda após o termino do 3º grau, normalmente a partir dos 21 anos.

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108 109
capítulo 4 e não atletas (SACK; THIEL, 1979), no reconhecimento do desequilíbrio de
tempo dedicado aos campos de formação (PARKER, 2000) e no risco de
A escola no entendimento do atleta de elite contusões limitadoras a que esses jovens atletas estão expostos durante sua
formação esportiva (HICKEY; KELLY, 2008). Essas condições evidenciam
Márcio Faria de Azevedo uma necessidade de estratégia que permitiam ao jovem ter acesso qualita-
Antonio Jorge Gonçalves Soares tivo e equilibrado ao contexto de formação escolar e esportivo.
Felipe Rodrigues da Costa Por sua vez, outros aspectos influenciam na hierarquização entre as
Amarílio Ferreira Neto formações escolar e esportiva. A principal delas seria a família na qual o
Wagner dos Santos jovem está inserido. O chamado background familiar (NERI, 2009) torna-
-se responsável por grande parte da denotação de importância atribuída
a determinada formação; além do habitus familiar, da condição social, do
nível de formação acadêmica dos pais, do mercado esportivo específico
de cada modalidade. Estes elementos configuram-se como importantes
introdução indicativos para que o jovem e sua família se organizem e se dediquem
As discussões acadêmicas que tratam do tema escolarização de jovens atle- ao complexo processo de formação escolar ou profissionalização esportiva
tas ganham espaço no país em função dos grandes eventos. Essas discus- (ROMÃO; COSTA; SOARES, 2010; SOARES; ROCHA; COSTA, 2011; COSTA,
sões surgem, principalmente, pelo fato de o jovem em idade escolar buscar 2012; ROCHA, 2013).
formação esportiva e ter que dividir seu tempo de dedicação entre essas Neste estudo, os jovens com idade entre 17 e 19 anos faziam parte da
duas atividades. O afunilado mercado esportivo exigirá desse jovem uma denominada elite do basquetebol brasileiro, por serem os escolhidos para
formação corporal muito específica que, em caso de insucesso, dificilmente representar a seleção nacional.1 Outro fator importante que motivou a esco-
será convertido em capital no mercado de trabalho ordinário (SACK, lha desses jovens foi o fato de eles estarem próximos de uma possível profis-
THIEL, 1979; SACK, 1987; WATT; MOORE III, 1993; PARKER, 2000; METSA- sionalização esportiva e grande parte deles já receberem salários e/ou incen-
TOKILA, 2002; MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006, HICKEY; KELLY, 2008; tivos financeiros provenientes de programas federais de fomento ao esporte
MELO, 2010; SOARES et al., 2011; SOARES; ROCHA; COSTA, 2011). de rendimento. Nesse contexto, surge uma dúvida que se torna nosso objeto
Apesar de reconhecerem as dificuldades de se tornarem profissionais de investigação nesse artigo: qual o entendimento desses jovens atletas de
no meio esportivo, muitos estudantes atletas assumem essa possibilidade elite em relação ao contexto de formação esportiva e escolar?
como seu projeto individual (ROCHA, 2013; CORREIA, 2014), sujeitando-se Nossa hipótese se embasa no fato de, assim como apontado por Barros
aos rigores e sacrifícios exigidos pela carga de trabalho corporal (treinos (2001), os atletas já serem capazes de perceber que a continuidade do
físicos, técnicos e táticos) e mudança de hábitos sociais cotidianos para sucesso na modalidade esportiva independe dos saberes ofertados, hoje,
atender às rotinas da preparação física (DAMO, 2005; RIAL, 2006; PAOLI, pelas instituições escolares. Percebem também que seus ganhos financei-
2007). Salientamos que, numa perspectiva de formação esportiva para o ros, neste momento, são obtidos por meio de suas qualidades atléticas,
alto rendimento, os atletas são recrutados cada mais novos, num momento que precisam ser constantemente aprimoradas, mantendo-os assim entre
da vida em que tradicionalmente será exigido rendimento acadêmico e a os convocados para a seleção nacional. Esses fatores poderiam se tornar
possibilidade de inserção no ensino superior (SCHWARTZMAN, COSSIO, influenciadores em uma possível hierarquização da formação esportiva em
2007; ARAÚJO; BARBOSA, 2008; NÉRI, 2009b).
Esta precocidade na iniciação esportiva gera um ambiente de tensão 1 Outros atletas que serviram a seleções brasileiras de base de futebol e de futsal, respectiva-
mente, foram encontrados nos estudos de Melo (2010) e Costa (2012), mas em um momento
que, muitas vezes, se reflete na diferença de notas entre estudantes atletas em que estavam a serviço de seus clubes.

110 111
relação à escolar. É justamente nas tensões destes debates que objetivamos, O critério para a escolha das palavras indutoras se deu mediante a
neste texto, analisar os sentidos atribuídos por jovens atletas da seleção bra- rotina diária dos atletas, dos ambientes frequentados e da relação com a
sileira de basquetebol à escola e à formação esportiva. perspectiva de profissionalização esportiva. Assim, entendemos que o
“treino” e a “escola” se constituem como locais provedores para aquisição
metodologia das credenciais necessárias para posterior profissionalização, assim como
“estudar” e a “competir” são atribuições cotidianas desses estudantes atle-
A amostra, por conveniência, constituiu-se por 31 atletas das seleções bra- tas, sendo o significado atribuído a essas palavras também um facilitador
sileiras de basquetebol masculinas, 17 deles pertencentes à Sub-19 (S19)2 e de análise dessas questões.
14 à Sub-17 (S17),3 que atuavam em clubes brasileiros e que se apresentaram As respostas atribuídas às palavras indutoras (treinar, estudar, ir à
em São Sebastião do Paraíso (MG) e em Campinas (SP) para a primeira escola e competir) foram categorizadas e agrupadas, observando-se a apro-
fase de treinamentos visando à disputa do Campeonato Mundial, em julho ximação de seus conteúdos.
de 2013, na República Tcheca (S19), e o Campeonato Sul-Americano no A participação dos atletas foi previamente consentida pela
Uruguai (S17), no mesmo ano. Confederação Brasileira de Basquetebol (CBB) e pelos próprios atletas, por
Nesse contexto, aplicamos um questionário, com questões abertas e meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. No caso de atle-
fechadas, usando uma metodologia de livre associação de termos direcio- tas menores de 18 anos, a participação foi possível mediante assinatura do
nados com base em quatro palavras indutoras (estruturas semânticas), a Termo de Assentimento por parte do administrador-geral da seleção bra-
saber: “treinar”, “estudar”, “ir à escola” e “competir”. Essa associação livre sileira Sub-19 e da Seleção Brasileira Sub-17. A pesquisa foi autorizada pelo
é usualmente utilizada como suporte teórico/metodológico em pesquisas Comitê de Ética Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo
que investigam representação social (ACOSTA, 2005). (UFES) sob o Parecer n° 222.628, de 4 de março de 2013.
Nesse método de pesquisa, os entrevistados devem responder o que
“primeiro lhes vier à mente”, sem buscar uma recordação específica e, resultados
assim, foram orientados a fazer. Assim, as respostas nos permitiram perce-
ber associações, sentimentos e/ou pensamentos presentes no ambiente de De início, até como ação diagnóstica, investigamos a posição dos estudan-
atletas de elite e sujeitos às demandas que envolvem conciliar a formação tes atletas quando questionados se os saberes da formação escolar cola-
escolar e a esportiva. boravam para que se tornassem melhores atletas. Dos 31 entrevistados, 17
Os diversos tipos de resposta compuseram um conjunto diferente de deles afirmaram que sim, 9 não reconheceram esta condição e 5 respon-
unidades semânticas, como nos mostra Bardin (1977), demandando um deram que a formação escolar talvez influenciasse. Para os que admitem a
trabalho de classificação que nos permitisse entender e explicar melhor as influência da formação escolar na esportiva, os principais motivos seriam
análises descritivas e explicativas. ficar “com o raciocínio mais rápido” ou “entendo melhor as coisas”. Por
outro lado, nenhum desses atletas associou qualquer ligação em relação ao
conteúdo escolar apresentado pelas disciplinas que compõem o currículo
2 Na Sub-19, dos 20 atletas convocados, três não estavam presentes quando da visita dos pes-
quisadores, por diferentes motivos: um deles havia retornado à sua cidade de origem para tra- formal e suas utilizações na carreira esportiva.
tamento de uma contusão; o segundo disputava com a equipe principal de seu clube os Play Todavia, quando questionados quanto ao caminho inverso, ou se a for-
Offs do Novo Basquete Brasil 12/13, e o terceiro representava o Brasil no Nike HoopSummit,
espécie de acampamento de basquetebol promovido anualmente pela empresa de materiais
mação esportiva os auxiliava na escolar, a maioria (25) afirmou que sim.
esportivos com jovens talentos de vários países, o que nos possibilitou 17 entrevistas com a Três deles disseram que não e outros três demonstraram dúvidas quanto
seleção Sub-19 que,somadas às 14 realizadas com a Sub-17, totalizaram 31 entrevistas.
à questão. Esses números nos mostram uma capacidade maior, por parte
3 Na Sub-17, quando da visita do pesquisador, dois atletas haviam sido desligados do grupo no
dia anterior. Já outro atleta pediu dispensa e não se apresentou à seleção Sub-17. dos atletas, de apropriação das particularidades das formações no “trajeto”

112 113
basquete-escola, tendo questões psicológicas e atitudinais como principais com atletas do futsal feminino catarinense. O treinamento também foi
respostas. Essas foram sinalizadas como “concentração”, “sinto menos pres- associado a questões de “futuro/carreira”, “futuro/trabalho”, “esperança de
são para as provas”, “convivência com os colegas” ou, ainda, “disciplina”, algo melhor” e “caminho para o sucesso”.
comportamentos valorizados no esporte de rendimento. Treinar também está associado, para esses atletas de elite, a “prazer”,
Percebemos que a convivência com um ambiente exigente de “concen- “fazer o que gosto” e “diversão”, que representam 16% das respostas. Em tra-
tração”, com a “pressão” de um jogo ou competição e a “disciplina” para se balho anterior, Romão, Costa e Soares (2010), pesquisando o vôlei feminino,
alcançar objetivos esportivos são fatores para o sucesso no meio competi- obtiveram 23% das respostas nessa mesma direção, demonstrando uma
tivo e que são incorporados pelos estudantes atletas, preparando-os para conotação maior de lazer atribuída pelas atletas voleibolistas à formação
novas situações que possam surgir e, a partir daí, serem utilizadas a favor esportiva. Essa condição minoritária na Seleção de Basquete pode ser expli-
deles (talvez o comportamento perante uma prova na escola seja o maior cada pelo nível de cobrança e carga de treinamento a que esses atletas são
exemplo disso). submetidos, fazendo com que, como nos mostram as respostas da primeira
Em relação à resposta “convivência com os colegas”, condição também opção, o treino se transforme em um tempo de aprimoramento nos clubes
preponderante em um bom relacionamento em equipe, lembrando que tra- das capacidades e habilidades necessárias para um desempenho de exce-
tamos de jovens a partir de 17 anos e que, em uma trajetória escolar regular, lência que os credenciem para continuarem na Seleção Brasileira. Assim, o
estariam inseridos na porção final do ensino médio, a resposta é comum em treino assume um papel funcionalista, preparando-os para um destaque no
estudos que abordam a juventude e a escola (SCHNEIDER; BUENO, 2005; mercado de trabalho, independentemente do prazer que proporcione. Melo
SANTOS et al., 2014). Essa relação com aspecto de convivência em grupo (2010), pesquisando o futebol, mostra que apenas 3% dos estudantes atletas
ressalta o papel da escola como ambiente para socialização de maneira geral entrevistados, que enxergam a modalidade com forte viés de profissionali-
e indica que as opiniões desses jovens atletas sobre as relações sociais no zação, citam aspectos ligados à “diversão” em suas respostas.
esporte e na escola não são diferentes das de jovens não ligados ao esporte. No basquetebol, os atletas de elite assumem o esporte com forte expec-
Nesse sentido, Charlot (2001) mostra que esses jovens consideram um tativa de profissionalização, referindo-se ao treino como um tempo de apri-
conjunto de saberes ligados à convivência com os colegas no ambiente moramento do capital físico. Essa condição está atrelada, em um primeiro
escolar denominado pelo autor como saberes de natureza ético-moral. momento, ao fato de buscarem condições para se manterem nas convocações
Esses saberes estariam caracterizados por uma boa conduta moral e pela para a Seleção Brasileira, consequentemente, criando condições para conti-
relação com o coletivo. Assim, na escola, os jovens “[...] aprenderiam a não nuar inseridos nesse contexto profissional em seus clubes, mesmo após exce-
maltratar ninguém, respeitar o próximo, não roubar, não mentir, ouvir derem a idade-limite de pertencimento às categorias de base. Consequência
quem está falando e a ser amigo, tornando-a também um ‘espaço de vida’” destes resultados obtidos pelos atletas de basquetebol está nos incentivos
(CHARLOT, 2000, p. 38). financeiros ofertados pelas leis de incentivo ao esporte e que contemplavam
Passado esse momento diagnóstico, prosseguimos a nossa pesquisa a 11 de um total de 31 participantes desse estudo. Ainda em tempo, se levarmos
partir do estudo da primeira palavra indutora: em consideração remunerações (salários) pagas pelos próprios clubes, esse
número aumenta para 22 atletas recebendo alguma forma de remuneração.
a) Treinar
Todavia, embora desejassem seguir trabalhando para o alcance de uma
Quando desafiados a produzir uma resposta referente a “treinar”, a profissionalização esportiva efetiva, que aconteceria quando fosse ultrapas-
maioria dos jovens fez menção a questões de aprimoramento no esporte. sada a idade-limite para pertencimento às categorias de base, o tópico a
Respostas utilizando as palavras “melhorar”, “aprimorar”, “evoluir”, “desen- seguir demonstra que reconheciam que poucos alcançariam esse propó-
volver” e “progredir” foram utilizadas por 55% dos atletas, número muito sito, já que as referências a “futuro” foram citadas por uma porcentagem
próximo ao do encontrado, por exemplo, por Costa (2012) em pesquisa maior de atletas quando induzidos pela palavra “estudar”.

114 115
b) Estudar do mercado profissional de cada modalidade, como também percebemos que
estão inseridos em contextos sociais estruturados – tanto econômico como
Para esta categoria, 35% dos atletas de elite ligados às Seleções Brasileiras familiar. (COSTA, 2012, p. 72)
identificam estudar ligado a questões de futuro. Parece que mesmo em se
tratando de atletas de elite, eles reconhecem que se aproxima um momento O fato dos atletas de basquetebol estarem na Seleção Brasileira faz com
de decisão em suas vidas e que se, porventura, não obtiverem sucesso na que projetem uma condição real de inserção no mercado de trabalho em seus
carreira esportiva, credenciais acadêmicas serão necessárias para o trans- clubes, reflexo do “espaço” conquistado em seus times profissionais. Esse
correr de suas carreiras laborais. Respostas como “correr atrás”, “abrir portas contexto favorece para os atletas colocarem a formação escolar em segundo
para a vida”, “caminho, caso não consiga virar jogador”, “plantar” e “futuro lugar, entendendo a escola e suas demandas temporais como concorrentes
melhor” foram as mais citadas. Ainda como forma de parâmetro de compa- para o alcance de seus planos de profissionalização no basquetebol.
ração, esse percentual encontrado é menor do que os citados por jogadores Reforçando essa posição, 13% dos atletas entendiam estudar como
de vôlei estudados que atuam em níveis clubísticos, sendo 50% (homens) e “chato”, expondo outra transversalidade dessa relação, que é a maneira como
54% (mulheres), conforme pesquisa de Romão, Costa e Soares (2011). a escola tem se apresentado atualmente para essa juventude. Nesse sentido,
Entendemos que esta diferença percentual a favor dos atletas inseri- o pouco interesse em estar nos ambientes escolares não nos parece ser uma
dos no voleibol pode ser vista por meio de alguns fatores. O primeiro está fala apenas dessa juventude esportiva. Dayrell (2003) expõe essa condição
ligado ao fato de os sujeitos deste estudo, mesmo reconhecendo as dificul- pesquisando outros grupos de jovens (aspirantes a rappers e funkeiros) que,
dades de profissionalização esportiva, estarem “quase lá”, já pertencendo às necessariamente, não precisariam das credenciais escolares para continuar
Seleções Brasileiras e, estando muito próximos de uma efetiva profissiona- a exercer suas profissões. Fica claro, para o autor, que a escola não conse-
lização, priorizarem nesse momento, a formação esportiva. Somado a isso, gue envolver o jovem, tornando-se apenas uma obrigação necessária a qual
a prevalência dessa condição ligada ao voleibol reflete a pouca preocupação ele apenas suporta, não se mostrando sensível à realidade vivenciada por
por parte dos pesquisados no estudo de profissionalização no esporte. Na eles fora de seus muros. Essa ambiguidade que caracteriza a escola por se
modalidade, apenas 7% dos homens referiram treinar como opção para constituir em um ambiente que se apresenta como uma forma de garantir
um possível futuro laboral e nenhuma das mulheres indicou essa condição, um futuro melhor, ou um mínimo de credencial para posterior inserção
apontando, consequentemente, uma valorização do “estudar” como preo- no mercado de trabalho e, muitas vezes, a falta de sentido em frequentá-la,
cupação em favorecer uma futura carreira no mercado de trabalho formal, percebida por jovens que buscam afirmação em profissões que independem
como ressaltam Romão, Costa e Soares (2011). de títulos e diplomas por ela fornecidos, pode ser um dos motivos que con-
Por outro lado, quase 10% dos atletas de elite do basquete assumiram, tribuam para que a escola seja um lugar secundarizado na formação.
em suas respostas, a secundarização da formação escolar, entendendo que No caso de nosso estudo, os atletas das Seleções Brasileiras de base não
reconhecem na escola, como visto em nosso diagnóstico no início deste
as demandas provocadas por ela os afastariam de seus objetivos profis-
tópico, algo que vá auxiliá-los em seus afazeres e necessidades esportivas.
sionais. Essa posição é caracterizada por respostas como “no momento é
Spósito e Galvão (2004) escrevem a respeito dessa condição de reconheci-
perda de tempo”, “segundo plano hoje...” e “sem importância agora”. Esses
mento afirmando que, no momento de vida em que esses jovens se encon-
números se aproximam dos encontrados por Melo (2010) para atletas de
tram, eles imprimem sentidos diversos a suas práticas, além de interagir
futebol. Vale ressaltar que não percebemos esse tipo de postura nas respos-
com várias instituições que estabelecem contatos e significâncias simbóli-
tas dos atletas de voleibol e futsal.
cas, como a família, a escola e o trabalho. Essas instituições reconhecidas
Costa, a respeito dessa particularidade, conclui:
como socializadoras devem estar atentas às suas relações com os jovens,
Podemos afirmar que os atletas que se dedicam ao vôlei e ao futsal apresen- pois são capazes de estabelecer em seu interior conflitos e solidariedade.
tam expectativas de formação esportiva que acompanham as particularidades Nesse caso, percebe-se que a escola não tem acompanhado os anseios

116 117
desses jovens atletas, posicionando-se de maneira conflitante na forma Apesar das considerações de insatisfação com o modelo adotado pelas
como tem se apresentado atualmente em relação aos interesses laborais escolas nos dias atuais, talvez por estar envolta por um valor socialmente
desses estudantes. Buscando compreender melhor essa condição, passare- disseminado e estabelecido, jovens atletas ainda a reconhecem como uma
mos à análise da terceira palavra indutora, a saber, ir à escola. instituição indispensável em termos práticos para seus futuros. Assim, “Ir
à escola” assume também um significado de melhor possibilidade futura
c) Ir à escola de emprego. Respostas como “aprender”, “necessidade”, “responsabilidade”,
Entendemos a escola como um espaço institucional que se apresenta “comprometimento”, “preparar para mercado de trabalho”, “adquirir conhe-
para permitir que os alunos tenham contato com diferentes tipos de cimento”, “local de aprendizagem”, “futuro” e “faculdade” foram referidas
conhecimento para, assim, desenvolver diversas capacidades consideradas por 48% dos atletas. Esse número é maior ainda do que o valor atribuído a
importantes para o aprendizado e o desenvolvimento social (COSTA, 2012), “estudar” por esses mesmos atletas, se aproximando dos 42% encontrados
além de cumprir responsabilidades ligadas ao aprender a “estar junto” e ao por Costa (2012) no futsal feminino e bem acima dos percentuais encon-
“viver com” (SPÓSITO; GALVÃO, 2004). trados no futebol, em que aspectos ligados a relacionamento foram os mais
Quando avaliamos as respostas, notamos que elas reforçam as con- evidentes, chegando a 20 % das respostas.
siderações feitas a respeito de “estudar”. Respostas como “chato”, “monó- Nessas respostas, percebemos, mais uma vez, a ambiguidade desem-
tono”, “desânimo”, “cansativo”, “obrigação” e “sacrifício” representam 32% penhada pelo ambiente escolar na vida dos jovens ou, em outras palavras,
do que foi relatado sobre “ir à escola”. Quase 10% desses jovens atletas se apresenta-se como uma tarefa desanimadora, mas que pode permitir um
referem a questões de socialização citando “amigos”, “professores e colegas”. futuro melhor em relação às suas responsabilidades no mercado de trabalho.
Chamou-nos a atenção a resposta de um atleta da S19, citando “pertur- Interessante assim é perceber que, mesmo inseridos na elite esportiva
bar os professores” como a primeira coisa que vinha à sua cabeça quando de sua modalidade, a uma curta distância de seus objetivos profissionais,
ouvia “ir à escola”, denotando desinteresse pela instituição. Aproveitando esses jovens reconhecem o papel social da escola; porém, assim como apre-
esta situação de insatisfação exposta, percebemos que as estratégias utili- sentado em outros estudos citados, engrossa o coro quanto à maneira como
zadas na relação escola/professor/aluno muitas vezes não têm dado conta ela se apresenta concorrente ao seu projeto individual da profissionalização
de colaborar para a construção de um ambiente escolar de valor para esses esportiva.
jovens. Charlot (2001) aponta críticas de alunos quanto ao ambiente esco-
lar relacionadas com diretoras extremamente rígidas, violência entre os d) Competir
alunos, formação de grupinhos e isolamento na sala de aula. Quanto aos A maior parte dos atletas (26%) relatou uma associação dessa pala-
professores, as críticas se aproximam do “modo” como eles se portam, tra- vra indutora a aspectos ligados a um sentimento de prazer. Palavras como
balhando o conhecimento de maneira monótona, sem repetir a explicação “melhor coisa”, “gratificante”, “prazer”, “privilégio”, “paixão” e “essencial”
caso seja necessário, levando os alunos a se sentirem como “máquinas de foram citadas. Sabemos que o sentimento de competição faz parte da rotina
xerox”. Esses fatores contribuem para que respostas como as que encontra- desses atletas. Competições internas nas equipes por espaço, tempo de qua-
mos sejam externadas. dra e condição de titularidade são comuns para esses atletas de elite, fazendo
Além disso, evidenciam o distanciamento entre os contextos de forma- com que os que lidam melhor com essa situação se sobressaiam, o que pode
ção escolar e esportivo. A contribuição de dois projetos distintos que não explicar essa supremacia de respostas ligadas ao “prazer” em competir.
dialogam fortalece o processo de hierarquização de um sobre o outro em Outros 16% associaram competir a “ganhar”. Também entendemos essa
um modelo de concorrência. Ir à escola significa menos tempo dedicado condição como a preponderante naquilo a que esses atletas se propõem,
ao treino, assim como ir ao treino requer dedicação menor aos afazeres uma vez que resultados positivos em suas partidas e campeonatos os apro-
escolares (estudar em casa, fazer trabalho etc.). ximam de um maior sucesso na carreira. A mesma porcentagem associou

118 119
competir a uma possibilidade de demonstrar evolução. As respostas neste (METSA-TOKILA, 2002). Além disso, não podemos desconsiderar o modo
quesito foram expressas utilizando “executar o que treinou”, “colocar treino como a formação esportiva está organizada nos Estados Unidos. Vemos,
em prática”, “demonstrar competência”, “mostrar o que aprendeu” e “avaliar nesse caso, uma formação que acontece dentro do espaço escolar, por meio
minha capacidade”. de atividades extracurriculares que atravessam o elementary, middle e o
Interessante notar que, mesmo buscando alcançar credenciais para se high school,5 bem como a universidade.
tornar profissionais no esporte, apenas 6% dos atletas relacionaram a pala- Se tomarmos como exemplo o basquetebol, para se ter direito
vra com trabalho. Essa condição ficou exposta nos usos de “exercer profis- à profissionalização esportiva por meio da Associação Nacional de
são” e “algo sério”. Entendemos que todas as respostas aqui encontradas se Basquetebol (NBA), o atleta americano deve ter, no mínimo, 19 anos e um
associam, em algum momento, ao que esses atletas representam hoje e ao ano de conclusão do high school. Esse movimento evidencia as tensões entre
que aspiram. Notamos que eles assumem também uma postura “profissio- a NBA e a NCAA, bem como entre as formações esportiva e escolar, pois os
nal” do “competir”, entendendo-o como parte inerente àquilo que querem atletas podem se inserir nas universidades para jogar um ano na NCAA e,
desempenhar. no próximo ano, serem levados para a NBA, sem que precisem concluir as
respectivas formações acadêmicas. Mesmo com características distintas os
discussão dilemas da dedicação à escola e/ou ao esporte estão presente nos dois países.
O “sonho da profissionalização esportiva” tem apresentado também
Socialmente, a escola é aceita de maneira muito forte como local de desen- como resultado uma iniciação esportiva cada vez mais precoce, acarretando
volvimento do capital cultural que será exigido pelo mercado de trabalho; aumento na concorrência de tempo entre essa formação e a formação
logo, o jovem deve frequentar o ambiente escolar para buscar melhores escolar. Bartholo et al. (2011), em estudo referente ao tempo destinado à
condições laborais (SCHWARTZMAN; COSSIO, 2007; ARAÚJO; BARBOSA, escola e ao futebol na Espanha e no Brasil, constataram que a destinação
2008; NÉRI, 2009b). Por outro lado, Lee (1983) mostra que muitos estudan- de tempo à prática esportiva no Brasil corresponde a 52% das atividades de
tes atletas estão considerando as carreiras esportivas em uma perspectiva jovens entre 14 e 20 anos, enquanto, no país europeu, esse tempo é de 27%, o
profissional influenciados pelo aumento da exposição na mídia das moda- que sugeriria, na visão dos autores, uma inversão de prioridades no Brasil.6
lidades esportivas e incentivados pelo status econômico oferecido aos que As grandes demandas temporais envolvidas em ambas as formações
conseguem êxito nessa proposta. Pesquisas da NCAA, por exemplo, uma (DAMO, 2005; MELO, 2010) geraram um ambiente de tensão entre as
das associações reguladoras do desporto escolar americano, mostram que a mesmas, influenciando o surgimento de experiências que visavam a uma
porcentagem de aproveitamento de atletas universitários em ligas esporti- melhor “convivência” entre elas, buscando minimizar os impactos de uma
vas profissionais americanas é de 1,2% no basquetebol masculino e 0,9% no formação acadêmica deficitária no futuro desses jovens estudantes atletas
feminino. Mostram, ainda, que a maior probabilidade de profissionalização (METSA-TOKILA, 2002; AGERGAAD; SORENSEN, 2009; CHRISTENSEN;
esportiva para estudantes atletas americanos está na modalidade baseball, SORENSEN, 2009)7 ou particular (MELO, 2010; BARRETO, 2012; COSTA,
com um aproveitamento de 9,4%. Todas as outras modalidades estudadas 2012, CORREIA, 2014)
(futebol americano, hockey no gelo e futebol masculino) apresentam por-
centagens de aproveitamento abaixo de 2%.4 5 Refere-se ao ensino elementar, médio e secundário.
6 Damo (2005) e Melo (2010) apontam a destinação de tempo de aspirantes a futebolistas
Estes números reforçam a tese da necessidade de os atletas se dedicarem nacionais em dois grandes centros: Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Em ambos os casos,
à formação escolar, visto que, em caso de insucesso na tentativa da foi constatado que um atleta que inicia sua trajetória esportiva na categoria mirim aos 12 anos
de idade (idade equivalente ao 6.º ano escolar) e termina no ensino médio aos 17 anos (último
profissionalização esportiva, suas credenciais esportivas não representarão
ano da categoria Sub-17) terá sido submetido a uma carga horária de 4.800 horas na escola e
qualificação em um mercado laboral que exige outros tipos de formação a mais de 4.150 horas de treinamento no futebol.
7 Na Dinamarca, o Team Danmark é a instituição responsável pelo desenvolvimento do esporte
4 Disponivel em: <http://goo.gl/iN62VZ>. Acesso em: 18 jan. 2016. de elite.

120 121
Uma análise das experiências de conciliação realizadas por diferentes Diante do contexto apresentado, parece-nos que, mesmo diante das
países nos sinaliza, pelo menos, três formas utilizadas para tratar o tema: incertezas da profissionalização esportiva e dos indicativos positivos na
a) as que privilegiam a formação esportiva; b) as que privilegiam a for- relação escola – credenciais acadêmicas – empregabilidade, as respostas
mação escolar; c) as que objetivam produzir uma conciliação, mantendo obtidas nesse estudo indicam que os jovens estudantes atletas de elite hoje
o equilíbrio entre a escolar e a esportiva. Isso não significa que algum país legitimam a escola pela necessidade de obterem títulos e diplomas que só
não valoriza a formação escolar, mas, em suas formas de conciliação, essas ela pode conferir, sendo indispensáveis caso, no futuro, não obtenham
experiências revelam os sentidos/valores diferentes para ela. sucesso na carreira esportiva. Fato é que o modelo como a escola vem
As flexibilizações produzidas na Dinamarca (CHRISTENSEN; se apresentando nos dias atuais, assumindo uma posição de instituição
SORENSEN, 2009, AGERGAARD; SORENSEN, 2009) e no Brasil (MELO, preparatória para o mercado de trabalho, de certa maneira, é antagônico e
2010; BARRETO, 2012; COSTA, 2012, CORREIA, 2014), na nossa compreen- concorrente àquilo que almejam como profissão.
são, são formas encontradas para privilegiar a formação esportiva, com Ainda assim, reconhecemos que, mesmo diante de tantos questiona-
diminuição de tempo de aula, abono de faltas, reposição de provas e matrí- mentos em relação à importância da escola quando comparada ao que que-
cula no ensino noturno. Uma tentativa de minimizar os problemas da con- rem desempenhar profissionalmente, ela se apresenta relevante para esses
ciliação está na implementação de albergamentos realizados, por exemplo, indivíduos. Vale salientar que talvez essa posição se justifique por um bom
por clubes como de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Encontramos, nesse background familiar8 (NÉRI, 2009) desses estudantes atletas em relação à for-
caso, a formação escolar oferecida pelo clube ou oportunizada por ele nas mação escolar, que apresenta grande influência na maneira como serão con-
redes de ensino pública e privada. sideradas as estratégias de conciliação entre as formações escolar e esportiva.
Temos uma diferenciação importante quando se analisam os acha- Ilustrando essa condição, nas Seleções Brasileiras estudadas, constata-
dos das pesquisas realizadas no Brasil e as que falam das experiências mos que 67,8% das mães possuem, no mínimo, ensino médio completo,
dos Estados Unidos (SACK; THIEL, 1979; LEE, 1983; WATT; MOORE III, considerando que foram encontradas mães com ensino superior incom-
1993; CARODINE; ALMOND; GRATTO, 1993; SACK, 1987; GOLDBERG; pleto (6,5%) e completo (25,8%) e com pós-graduação concluída (12,9%).
CHANDLER, 1995; SINGER; MAY, 2011, e da Suécia, (METSA-TOKILA, 2002). Quanto aos pais, esses números chegam a 64,6%, observando os mesmos
Em ambos os países, as experiências de formação esportiva são feitas no critérios, ou seja, com no mínimo a formação de ensino médio completo,
contexto escolar, e não no clubístico. O fato de ser realizada na escola faci- considerando ainda que encontramos pais com curso superior incompleto
lita a organização dos tempos e do currículo escolar. Não estamos, com (9,7%) e completo (22,6%) e com pós-graduação (9,7%). Esse contexto por
isso, defendendo a esportivização da educação física escolar para a forma- parte dos pais dos atletas envolvidos mostra uma média de formação aca-
ção de atletas, embora, nos Estados Unidos, esse movimento seja realizado dêmica maior do que as médias nacionais em todos os níveis de ensino.9
em atividades extracurriculares, mas objetivamos mostrar as saídas encon- Assim, a formação dos pais acaba influenciando na importância atribuída
tradas pelos países para que se mantenha um equilíbrio na conciliação. pela família à escola, resultando, para seus filhos, considerar melhor a ideia
Por fim, temos a experiência da Finlândia (METSA-TOKILA, 2002), de continuar seus estudos, mesmo praticando esportes.
que organizou sua flexibilização com o intuito de potencializar a formação Além do background familiar, uma outra condição permeia essa situa-
escolar, ampliando a escolarização por mais um ano no ensino secundário ção de importância de finalização de etapas escolares. No caso desses atle-
para os estudantes atletas. tas, suas habilidades esportivas diferenciadas podem oportunizar bolsas de
As experiências evidenciadas pelos autores dos diferentes países mos- estudo em renomadas instituições de ensino, desde o nível fundamental
tram a complexidade do tema e a sua relevância, já que encontramos várias
8 Entendido como a relação de características sociais e intelectuais da família da qual o jovem
sociedades preocupadas com a conciliação e suas implicações para o futuro faz parte e que se torna responsável por 80% da proficiência escolar do aluno.
dos jovens. 9 Disponível em: <http://goo.gl/VF63lh>. Acesso em: 11 fev. 2013.

122 123
até o ensino superior. Todavia, esse benefício está relacionado à aquisição ligação desses atletas com a escola tem se apresentado como uma questão
a priori das respectivas credenciais acadêmicas entendidas como pré-re- “de futuro” ou “de diploma”.
quisitos. Por exemplo, um atleta que receba uma proposta para defender Parece-nos que se justifica o fato de 32% dos atletas se referirem a “ir à
determinada instituição de ensino superior nos jogos universitários só escola” como uma ação sacrificante, uma vez que eles não reconhecem nas
poderá fazê-lo caso tenha concluído o ensino médio, reforçando para esses disciplinas escolares conexão com o que “precisariam” para trabalhar. A
atletas de elite a necessidade de inserção e continuidade de sua trajetória escola se torna, então, sem sentido e, assim, “[...] talvez o pouco valor que
no ambiente escolar. No caso dos atletas envolvidos nesse estudo, 12 dos 15 os jovens conferem ao valor dos conteúdos curriculares não seja resultante
atletas que estudavam em escolas particulares recebiam bolsas de estudos do seu desinteresse, e sim da sua dificuldade de encontrar um sentido para
para defender instituições de ensino. aquilo que os professores ensinam” (CHARLOT, 2001, p. 47).
Outro fator que deve ser salientado é que o pertencimento à Seleção Correia (2014) aponta algumas estratégias utilizadas na Escola Vasco
Brasileira favorece a busca de uma inserção internacional desses atletas da Gama, no Rio de Janeiro, que, de certa maneira, vieram ao encontro
inclusive em ambientes escolares estrangeiros. Durante nossas entrevistas, dessa questão de dar sentido àquilo que o professor ensina. Existia na escola
encontramos dois atletas que, apesar de terem concluído o ensino médio, uma tentativa, por parte das professoras, de adequar suas aulas valorizando
optaram por se dedicar naquele momento ao aperfeiçoamento do domínio a relação teoria e prática com base nas atividades esportivas realizadas
da língua inglesa, visando serem capazes de obter aprovação nos testes de pelos alunos atletas. Assim, por exemplo, o estudo do corpo humano se dá
ingresso em universidades americanas, abrindo mão de uma inserção ime- mediante a análise do esforço de um atleta de futebol ou de um remador
diata em faculdades brasileiras. Interessante que, muitas vezes, essa opção em suas atividades. Se o conteúdo focalizasse história do Brasil, aborda-
já se apresenta a partir de um convite dos treinadores responsáveis por ria a compreensão dos primeiros esportes existentes no País. As aulas de
essas instituições de ensino americanas que os viram jogar em competições matemática e física usavam, em seus conteúdos de força, atrito, ângulos e
internacionais. Fato é que esse tipo de convite vai ao encontro do projeto cálculos as vivências esportivas desses atletas. Além disso, eles tentavam se
individual de muitos deles, que é a tentativa de profissionalização na Liga descolar do espaço tradicional da sala de aula para explanação dos conteú-
Profissional de Basquete Americana (NBA), já “desbravada” por vários bra- dos, caminhando pelo clube para tratar de questões de geografia em seus
sileiros como Anderson Varejão, Nenê Hilário, Tiago Splitter e Leandro aspectos naturais e urbanos.
Barbosa. Esse contexto desconsidera ser uma utopia para esses meninos A falta de sentido atribuído pelo jovem à escola contribui para que esta
pensar no sucesso em terras estadunidenses. seja considerada como um local de poucas referências positivas, a não ser
Fato é que não podemos desconsiderar a ambiguidade das situações quando, como dito, é encarada de maneira utilitária como caminho para
de conciliação entre as formações. Se por um lado as demandas temporais obtenção de uma profissão. No caso desses atletas, existe ainda o fato de
requisitadas por ambas dificultam essa relação, por outro, como vimos nas eles já notarem que sua valorização independe dos títulos obtidos na escola
duas situações acima, as qualidades atléticas desses atletas de elite favorecem e do que a escola vem ensinando em seu currículo. São as suas aptidões
posteriormente inserção em melhores instituições de ensino a custo zero e, atléticas para a inserção na modalidade o principal índice de avaliação de
muitas vezes, proporciona situações internacionais de estudo e graduação. desempenho rumo à profissionalização esportiva.
Nesse contexto, podemos considerar que a adoção, por parte da maio- Reforça-se assim, para esses estudantes atletas de basquetebol, a visão
ria dos atletas, de uma posição pragmática em relação à escola se apresenta de escola como “[...] um universo de cultura escrita” (LAHIRE, 1997, p. 20), o
também na busca da identificação das transversalidades de conhecimen- que a distancia cada vez mais de valorizar aquilo que eles apresentam como
tos entre a formação escolar e a esportiva. Percebemos que, em nenhum melhor qualidade, que são seus “saberes de domínio”10 (CHARLOT, 2000),
momento, as disciplinas ou conteúdos especificamente escolares foram
assumidos como necessários para um sucesso esportivo futuro. Assim, a 10 Entendidos como saberes que se inscrevem no corpo por meio do domínio de uma atividade.

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entendidos, nesse caso, como um domínio prático de uma atividade ou suas internacionais, os expõem constantemente a possibilidades de aquisição de
qualidades atléticas. No modo como se apresenta a escola, os saberes estão saberes (muitos deles propostos pelos currículos escolares), que não per-
formalizados e objetivados em práticas de escrita (SCHNEIDER; BUENO, corre o modelo tradicional de obtenção de conteúdos escolares.
2005), fazendo com que, mais uma vez, os estudantes não enxerguem nela Concordamos que, muitas vezes, as cargas de trabalho nessas oportu-
significados para a sua prática. Essa somatória de fatores levaria o jovem nidades fazem com que sejam grandes as demandas temporais ligadas ao
a deixar de investir em um processo que o educaria “formalmente”, de circuito treino-jogo-hotel, mas entendemos também que o fato de precisar
maneira institucionalizada, fazendo com que não se “mobilize” para apren- deslocar-se em novas cidades proporciona, mesmo que pelo vidro das jane-
der e, consequentemente, valorize esse ambiente de aprendizagem, tornan- las dos ônibus, a esses atletas acesso a informações culturais de diferentes
do-o, a não ser pela questão da obtenção de seus “certificados de conclusão locais, muitas vezes expressas por monumentos, praças, avenidas etc. que,
de etapas escolares”, sem significado nesse momento de sua trajetória. em outras situações, não seriam possíveis. Diante desse quadro, esses atle-
Essa falta de reconhecimento em relação ao uso do que se aprende na tas se diferenciam dos alunos regulares por terem acesso a oportunidades
escola abre espaço para uma segunda utilização, enxergando-a como um de aquisição de saberes que não podem ser desconsideradas.11
espaço de socialização. Essa condição foi referida por 10% dos atletas de Parece-nos que, assim, eles estariam sujeitos a uma condição de avan-
elite. Esse é o entendimento que justificaria, no caso desses atletas, esse çar do estágio “aprender a respeito de algum lugar” para uma condição de
caráter de pouca utilidade da escola, que se apresenta quando o aluno a “aprender a respeito de algum lugar em algum lugar”.
associa a uma possibilidade de “[...] aprender a compreender o mundo, se Neste ponto, ratificamos a condição de entendimento a respeito da
compreender e a compreender os outros [...]” (CHARLOT, 2000), valori- necessidade de pensarmos diferentes abordagens e estratégias metodo-
zando aspectos relacionais com os colegas e professores. Mas, como visto, lógicas que possam, no ambiente escolar, valorizar os saberes adquiridos
essa visão, no caso desses sujeitos, apresenta-se em escala menor. fora da escola por esse grupo especial de jovens, tornando-a mais praze-
Fato é que, de certa maneira, esses atletas vivem uma realidade de anta- rosa e atraente, bem como adequada à rotina desses jovens. Afinal de con-
gonismo. De um lado, a pressão exercida pela sociedade (embora, muitas tas, parece-nos que o modelo adotado atualmente, com suas formalidades
vezes, acordos familiares permitam essa opção), que computa o sucesso curriculares presenciais, não estaria dando conta de motivar e mobilizar
individual aos saberes inerentes dos currículos escolares e a sua posição no não só esse grupo de atletas de elite, como uma juventude que sonha em
mercado de trabalho formal; de outro, eles buscam “tornar-se alguém” por se utilizar de habilidades específicas para atingir o mercado de trabalho e
meio de diferentes aptidões, habilidades esportivas. Estas tensões pode- que, hoje, não são observadas nem valorizadas no ambiente escolar. Muitas
riam ser atenuadas caso, como nos mostra Dayrell (2007), a escola e seus vezes, são até discriminadas e relevadas a dimensões menores de importân-
profissionais reconhecessem a necessidade de se perceber que os alunos cia, já que não “caem no vestibular”.
que ali chegam trazem consigo experiências sociais, demandas e necessi- Essas condições aproximariam a realidade de uma escola mais justa se,
dades próprias, afastando-se, assim, de parâmetros consagrados de cultura “[...] levasse em conta as desigualdades reais, e procurasse, em certa medida,
escolar construídos em outros contextos. compensá-las” (DUBET, 2004, p. 545). Ainda de acordo com o autor, uma
Pode ser que tenhamos, a partir deste contexto de aquisição de sabe- lógica puramente igualitária não atende às necessidades de variados gru-
res adquiridos extramuros escolares, a oportunidade de compreendermos pos sociais e às particularidades de seus pretendidos mercados de trabalho:
ainda melhor o contexto desses estudantes atletas de elite e suas relações “[...] A melhor maneira de resistir a esse fenômeno incompatível com uma
com o ambiente escolar. É necessário ressaltar que eles chegam ao ambiente lógica puramente igualitária é a introdução de mecanismos compensatórios
escolar com experiências sociais próprias, além de demandas e necessida-
11 Durante o tempo em que servi a seleção brasileira de basquete de base à adulta, tive a opor-
des particulares. O desenvolvimento de aptidões atléticas e qualidades téc- tunidade de conhecer diferentes países, línguas e culturas que colaboraram substancialmente
nico-esportivas diferenciadas, bem como as constantes viagens nacionais e para que eu aumentasse meu capital cultural.

126 127
eficazes e centrados nos alunos e em seu trabalho [...]” (DUBET, 2004, p. COSTA, F. R. da. A escola, o esporte e a concorrência entre estes mercados para
545). Esses fatores reforçam a necessidade de uma descentralização da jovens atletas mulheres no futsal de Santa Catarina. 2012. Tese (Doutorado
em Educação Física) – Programa de Pós-Graduação em Educação Física,
maneira como se apresenta a escola nos dias atuais e uma maior atenção às
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2012.
características das diferentes juventudes que a frequentam.
DAMO, A. Do dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir de
Ainda em tempo, frisamos que, no modelo atual, o atleta de elite per- formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 434 f. Tese (Doutorado em
cebe que é a partir de seu capital físico que passa a ter acesso a outros tipos Antropologia Social) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
de capital cultural, entendendo que, por meio dele, pode, de maneira mais Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005.
rápida, adquirir capital financeiro. Assim, em virtude de cifras que vêm DAYRELL, J. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juve-
sendo praticadas no mercado esportivo para aqueles que “vencem” nessa nil. Educação & Sociedade, Campinas, v. 28, n. 100, p. 1.105-1.128, out. 2007.
proposta de profissionalização, o retorno financeiro pode se apresentar (Edição especial). Disponível em: <http://goo.gl/uAXUQU>. Acesso em: 23
nov. 2015.
mais rápido do que em uma eventual trajetória acadêmica tradicional.
DUBET, F. O que é uma escola justa?. Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 123, p. 539-555,
Não desconsideramos a carreira esportiva como meio laboral, mas, set./dez. 2004.
como percebemos, ela é muito seletiva e influenciada por vários fatores.
HICKEY, C.; KELLY, P. Preparing to not be a footballer: higher education and pro-
Assim, sugerimos continuidade e ampliação dos estudos desse tema, bus- fessional sport. Sport, Education and Society, v. 13, n. 4, p. 477-494, 2008.
cando melhor compreensão em relação às expectativas dos estudantes atle- FERREIRA JÚNIOR, R. NBA, CBB e NLB: relações de poder no universo organizacio-
tas no que tange à escola e aos seus saberes e fazeres. nal do basquetebol brasileiro. 2008. 211 f. Dissertação (Mestrado em Educação
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130
capítulo 5
A escola dos jóqueis: entre o acadêmico e o profissional
Hugo Paula Almeida da Rocha
Antonio Jorge Gonçalves Soares

introdução
O presente texto tem como intuito relatar um pouco da história de jovens
atletas que se dedicavam simultaneamente ao campo esportivo e às obriga-
ções escolares. O cenário dessa investigação teve seu ponto de partida no
Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, local este que vem empreendendo pesquisas
sobre a escolarização de jovens atletas desde o ano de 2007. Os estudos
preliminares apontaram um contexto de escolhas a serem realizadas pelos
jovens atletas que se viam em uma rota de vida paralela e conflitante com
a rotina escolar. Assim, a apresentação em tela descreverá pontos nodais
sobre o cotidiano de jovens atletas do turfe, as experiências de vida e as
renúncias que esses jovens realizaram ao longo da sua trajetória de vida e
de formação profissional no esporte.
A pesquisa foi realizada no Jockey Club Brasileiro, principal clube
esportivo para a prática do turfe no Brasil. O clube em questão mantém
uma instituição para a formação profissional de jovens, seja para se tor-
nar um jóquei ou outras profissões que compõem o universo do turfe. A
instituição para a formação profissional desses jovens se chama Escola de
Profissionais do Turfe e tem sua sede localizada nas instalações onde tam-
bém acontecem as competições turfísticas. A Escola de Profissionais do
Turfe conta com um dormitório para os atletas em formação profissional,
cozinha, refeitório, secretaria, cocheiras para alguns cavalos, entre outras
instalações que podem ser utilizadas para as atividades associadas ao turfe
ou passatempo dos atletas. Esse local onde convivem múltiplas identidades
faz parte do cotidiano do jovem que pretende iniciar sua carreira no turfe.
O turfe, ou corrida de cavalos, é um esporte em que o atleta deve se
preparar para ser o condutor do cavalo, assim como treinar seu próprio

133
corpo. Por essa razão, a estratégia de seleção de talentos para essa prática rotina do jovem atleta do turfe. Com a possibilidade de gerar renda e acu-
esportiva não se resume à habilidade do jovem pretendente, mas, soma-se mular capital financeiro, o jóquei-aprendiz intensifica os treinamentos e
a isso, as suas características corporais. Um jovem para se candidatar ao não quer perder um dia sequer de competição.
posto de atleta em formação para o turfe passa por um processo seletivo As competições turfísticas, no Rio de Janeiro, acontecem em quatro
e que leva em consideração a altura, o peso, a idade e a escolarização do dias da semana: sextas-feiras, sábados, domingos e segundas-feiras. Sendo
jovem pretendente. O corpo não deve ultrapassar 1,57 metros de altura; a nas segundas e sextas-feiras, as corridas começam às 17 horas. Aos sábados
massa corporal não deve ser superior a 48 quilogramas; a idade mínima é e domingos, o início das corridas acontece por volta das 14 horas. Esses
de 16 anos e o jovem deve estar no 5º ano escolar, no mínimo.1 horários nada revelariam se apenas estivéssemos considerando que o
As categorias de base no turfe exigem critérios rígidos para a pro- jovem atleta se dedicasse somente ao turfe. Todavia, quando nos depara-
gressão do jovem atleta. Quando inicia, o jovem atleta é conhecido como mos com as rotinas paralelas desses atletas é que identificamos os obstácu-
“Aluno” – nome adequado, uma vez que se trata de uma escola para a for- los enfrentados pelos mesmos para conciliar esse esporte com o processo
mação de profissionais para o turfe – e, como tal, ele necessita incorpo- de escolarização.
rar as habilidades de montaria requeridas para exercer a futura função de A escola torna-se uma entidade que limita os planos de ser atleta. Por
jóquei. Nesse estágio da formação, o atleta pode passar por um período de outro lado, o projeto escolar, fortemente marcado como ideal normativo,
3 meses a 1,5 anos, dependendo da aquisição e incorporação das habilida- gera dúvidas quanto ao grau de investimento e dedicação do atleta ao
des de montaria. Após esse tempo, o jovem pretendente a profissional do esporte. Foi nesse contexto que embarcamos e realizamos uma pesquisa
turfe passa a ser classificado como “Jóquei-aprendiz”. Essa fase da forma- intitulada “A Escola dos Jóqueis: a escolha da carreira do aluno atleta” no
ção profissional do jovem atleta é dividida em quatro etapas evolutivas, a Programa de Pós-graduação em Educação, da Universidade Federal do Rio
saber: o jóquei-aprendiz de 4ª categoria, o jóquei-aprendiz de 3ª categoria, de Janeiro (ROCHA, 2013).
o jóquei-aprendiz de 2ª categoria, e o jóquei-aprendiz de 1ª categoria. A O objetivo do presente texto é justamente chamar a atenção para este
progressão nessas etapas depende do tempo de permanência em cada uma cenário de formação de atletas do turfe: as rotinas de treinamento, compe-
delas e também do número de vitórias conquistadas pelos atletas nas com- tições e a rotina escolar; os projetos de vida2 e as escolhas dos atletas entre a
petições oficiais. Destaque-se que o jovem atleta, antes de ser congraçado escola e o esporte e as consequências da conciliação dos processos de esco-
como um profissional do turfe, passa a participar das competições oficiais larização e o de profissionalização no esporte. O estudo foi realizado com 11
– o que inclui a possibilidade de geração de renda – quando atinge o estágio jovens atletas nas categorias de base do turfe, no Rio de Janeiro. As entrevis-
de jóquei-aprendiz. tas foram feitas no ano de 20123 e se buscou remontar o projeto individual
Com isso, nos dias de competição, os jóqueis-aprendizes podem fazer de carreira dos atletas em formação profissional no turfe. Os eixos temáticos
montaria em qualquer páreo, exceto aqueles conhecidos como “Grande para a realização das entrevistas semiestruturadas foram: a história e o pro-
Prêmio”. É nesse momento em que pode haver uma mudança radical na jeto individual do atleta o turfe e a escola e a história familiar. As entrevistas
foram categorizadas e analisadas a partir dos eixos temáticos.
1 As características físicas do atleta de turfe são ressaltadas e permanecem quase invariáveis
desde o século XIX. Conhecido como “jóquei”, o condutor do cavalo nas corridas de turfe
deveria ser baixo em estatura e pesar pouco, pois, caso contrário, poderia atrapalhar o desem- 2 O conceito de projeto de vida ou projeto individual de carreira que adotamos aqui diz res-
penho do cavalo. A figura dos jóqueis, recrutados principalmente nas camadas populares,o- peito ao modo como o indivíduo pode traçar planos, formular objetivos, antecipar algo que
cupava, no século XIX, um lugar de destaque na sociedasde. Isto porque ficavam em evidên- pretende alcançar dentro de um tempo e espaço específicos (como o meio em que vive ou
cia nas competições de que participavam e por receberem quantias altas pelas corridas que seu habitat). Além de tramar objetivos, a ideia de projeto pressupõe ainda que esse indivíduo
venciam. Com isso, ser jóquei representava uma possibilidade de mobilidade econômica já interpõe um conjunto de ações e tomada de decisões, muitas vezes conscientes e individuais,
naquela época. Ainda hoje os candidatos a profissionais do turfe são recrutados nas camadas que o conduzam para o fim pretendido (VELHO, 1997, 2003, 2010).
populares e tanto suas características corporais e de origem social estão mantidas como no 3 Agradecemos o apoio técnico de Adriana Souza e Erika Loureiro para a realização e transcri-
século XIX (MELO, 2001). ção das entrevistas com os jóqueis no ano de 2012.

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Levantamos dados que nos levaram a responder às seguintes ques- do atleta do turfe se inicia antes mesmo do nascer do sol. Por volta das
tões: a) como os jovens atletas estruturaram seu projeto individual de car- 5h30 da manhã de cada dia, de segunda a sábado, os atletas acordam, fazem
reira? b) Como os atletas atuaram diante das oportunidades educacionais e um desjejum e marcham para o campo de treinamento. Os treinadores os
esportivas? c) Quais as consequências das escolhas realizadas pelos atletas aguardam ansiosos, pois a estrela do espetáculo turfista – o cavalo – precisa
em seus projetos de vida? estar bem treinado para competir. Entre as 6h e as 9h da manhã, os jovens
Imaginamos que a escolha desses atletas estaria orientada pelas opor- atletas montam e desmontam de dezenas de cavalos, conversam com vários
tunidades de geração de renda, definindo como objetivo de vida a profis- treinadores, aguardam uma decisão. A montaria em uma prova no turfe é
sionalização no turfe e, consequentemente, tornando a escola um projeto decidida, muitas vezes, nesses momentos de treino matinal. O treinador
secundário. Dessa forma, para ilustrar os resultados dessa pesquisa, apre- dos cavalos identifica qual jóquei conduziu melhor o seu animal e o con-
sentaremos apenas uma das histórias, mas que destaca algo em comum voca para montar em um dos páreos no dia de competição.
a todos os outros jovens atletas pesquisados. O jovem atleta em destaque Encerrado o período de treino com os cavalos, inicia-se a segunda parte
era imigrante na cidade do Rio de Janeiro. Vindo do interior do estado do começo do dia. Os atletas voltam para o refeitório e tomam o café da
do Rio de Janeiro, da cidade de Vassouras, ele ficava alojado nas depen- manhã com pão, queijo, presunto e café com leite. Essa rotina é modificada
dências do clube de turfe. É importante destacar que esse menino já havia ou retardada na quinta-feira, que é dia de pesagem para a competição. O
iniciado alguma atividade com o trabalho ainda quando residia na cidade atleta do turfe precisa estar leve para não atrapalhar o desempenho do cavalo.
do interior do estado do Rio de Janeiro. Antes mesmo dos 16 anos de idade, Se na seleção para ingressar na Escola de Profissionais do Turfe (EPT) eles
o jovem em tela já cuidava de alguns cavalos em um haras em sua cidade precisavam pesar até 48 quilogramas, como alunos ou jóqueis-aprendizes
natal. Encaramos essa atividade como um meio de iniciação ao trabalho, precisam manter-se com até 51 quilogramas. A punição para quem não atin-
mas o próprio atleta comentou que, para ele, as atividades exercidas no gir essa meta é a suspensão do direito de correr na competição do final de
haras eram apenas mais um momento de lazer em sua vida. semana. A reincidência nessa infração pode gerar um afastamento provisó-
Pensemos que esse trajeto migratório era comum aos jovens atletas do rio ou desligamento definitivo do clube.
turfe. Uns vieram do interior do estado do Rio de Janeiro, outros saíram Superado o desafio da pesagem, os jovens atletas têm mais uma tarefa
de outros estados – como Rio Grande do Sul e Pernambuco – para tentar a que antecede o almoço: cuidar da cocheira e dos cavalos da Escola de
profissionalização no turfe no Rio de Janeiro. Esses deslocamentos sugerem Profissionais do Turfe. Faz parte da rotina diária do jovem atleta preten-
um potencial de atração e investimento alto para quem se candidata a pro- dente à profissionalização no turfe fazer a limpeza, preparar o dormitó-
fissional do turfe. Ademais, também realçamos que as atividades laborais rio dos cavalos e colocar água e comida para os animais. Além dos cuida-
também faziam parte do horizonte dos atletas antes mesmo de eles come- dos com os cavalos, os jovens alojados no clube ainda precisam manter o
çarem a profissionalização no turfe. Alguns mantiveram essas atividades de seu próprio dormitório limpo e arrumado. Ao meio-dia chega a hora do
trabalho em sítios, haras e locais mais próximos da realidade que encaravam almoço. Isso significa que eles realizam tarefas por sete horas, com o inter-
no mundo do turfe. Outros já haviam exercido trabalhos como ajudante de valo para o café da manhã, antes do almoço. A alimentação é regulada com
pedreiro, ajudante de oficina mecânica, entre outras atividades. um tipo de dieta específica planejada por nutricionistas. Em geral, os pratos
são compostos por salada, arroz, feijão e frango ou outra proteína. Ao fim
resultados do almoço, eles possuem tempo para descansar.
Após uma ou duas horas de sono após o almoço, os atletas acordam. À
A pesquisa realizada com os jovens atletas em processo de profissionaliza- tarde, eles têm tempo livre e podem fazer o que desejarem. Alguns conti-
ção no turfe identificou e revelou um cotidiano marcado por renúncias e nuam dormindo. Outros precisam baixar o peso. Vestem uma roupa pesada
trajetórias de vida repletas de experiências intensas. A rotina de treinamento e sem muita respiração corporal e correm ao redor da Lagoa Rodrigo de

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Freitas, nas proximidades do Jockey Club. Alguns ainda marcam um fute- O cenário exposto ilustra como os jovens candidatos a profissional do
bol de várzea – conhecido como “pelada” – com outros colegas do alo- turfe são exigidos no dia a dia de treinamento e competições. Assim, pode-
jamento e os próprios jóqueis profissionais. Outros realizam mais treinos mos imaginar um pouco da forma como esses jovens podem estruturar
com os cavalos para aumentar suas habilidades e chances de correr no final seu projeto de carreira. O cotidiano é preenchido por várias atividades e
de semana. A corrida é o coroamento de uma rotina diária extenuante, com se tornou comum a escolha entre uma ou outra obrigação. Dessa forma, o
rigor disciplinar exagerado, mas que tem a intenção de minimizar compor- atleta em formação para o turfe também se vê diante das renúncias a cada
tamentos inadequados e prejudiciais à saúde dos próprios atletas. O con- oportunidade apresentada. A rotina escolar acaba sendo afetada pela rotina
trole do peso é necessário para melhor desempenho nas competições e, de treinamento. Diante desse contexto, veremos como um dos atletas can-
antes, segundo relatos dos atletas, era comum ingerirem diuréticos e faze- didatos a profissional do turfe – à época da pesquisa – encarava a escola e
rem sauna para desidratar e, consequentemente, estarem de acordo com o o treinamento.
peso ideal durante a pesagem semanal. Diante desses problemas e dessas
Entrevistador: Por exemplo, na segunda e na sexta você tem aula também,
práticas, o clube passou a contar com nutricionistas e adotou uma rotina
mas também tem corrida.
disciplinar rigorosa para que os jovens aspirantes a jóqueis não precisem
Jóquei-aprendiz: Aí eu não vou [para a escola]. Eu só vou terça, quarta e quinta.
seguir as práticas tradicionais para perda de peso que os antigos profissio-
Entrevistador: Você só vai pra aula terça, quarta e quinta. E você sabe quais
nais do turfe adotavam.4 matérias você perde segunda e sexta? Quais disciplinas?
Sexta-feira é o primeiro dia de competição da semana. A rotina é a
Jóquei-aprendiz: É geografia, português, física...
mesma: acorda, desjejum, treino, café da manhã, arruma cocheira, dormi-
Entrevistador: E o que os professores fazem pra compensar essa ausência...
tório, almoço, descanso, pesagem e corrida. Sexta-feira não é dia de escola
Jóquei-aprendiz: É... pega matéria com os outros que vão, quando tem prova,
para os atletas do turfe. Em dia de competição, os atletas que já estão na trabalho, teste, assim. Aí pegam e dão segunda chamada [...]. Tem vez que fica
categoria em que é permitido participar das competições não vão à escola. reprovado por causa de falta. Não vai segunda e sexta, né? Aí falta muito, aí ele
Na segunda-feira, os jovens atletas do turfe também estão fora da escola. reprova por causa de falta.
Isso representa 40% das aulas na semana. Por estudarem à noite, há a coli- Entrevistador: Aí reprova por causa de falta, mas compensa? Ele sabe que
são de horários entre as competições e os estudos. Eles se veem obriga- você trabalha, né, tem algum tipo de negociação?
dos a escolher entre a oportunidade de correr com cavalo ou ir à escola. Jóquei-aprendiz: Eles falam que: “Ah, tem que mostrar um comprovante de
Destacamos que, a cada montaria de que o atleta participava, na época do trabalho”. Mas tu leva e não adianta nada, leva falta assim mesmo.
estudo, ele recebia r$ 40, independentemente de ter se classificado entre os Entrevistador: A direção da escola não...
cinco primeiros colocados ou não. Se ficassem posicionados entre as cinco Jóquei-aprendiz: Não tira as faltas, falam que vão abonar e não abonam.
primeiras colocações no páreo, o atleta recebia como prêmio 10% do valor
Estar matriculado é requisito essencial para a permanência do atleta
da bolsa oferecida para cada posição no páreo.
no clube esportivo. Assim, o clube orienta o atleta para qual escola ele será
4 O romance Seabiscuit: uma lenda americana, que trata da relação de paixão entre um jóquei direcionado e comunica à direção da escola que esse jovem não poderá fre-
e um cavalo na década de 1930, mostrou os sacrifícios que um atleta do turfe tinha que quentar dois dias na semana. Todavia, fica a critério da escola decidir como
fazer para se manter no peso exigido para a prática esportiva. Hillenbrand (2002) destacou
que, naquela época, quanto mais leve fosse o jóquei, maior era o número de cavalos que esse aluno permanecerá nos seus bancos. Pelo relato do jóquei-aprendiz,
poderia montar. Em virtude dessa exigência do esporte, muitos atletas adotavam medidas não havia nenhum tipo de afrouxamento das normas regulares da escola
exageradas para permanecer leves e ter maiores possibilidades de montarias nas corridas. Os
atletas costumavam fazer dietas com baixíssimas calorias, não beber água para não acumular
para que ele conciliasse de uma forma melhor as rotinas escolares com a
líquido, forçar o vômito após as refeições, usar indiscriminadamente laxantes e diuréticos profissionalização no esporte. Por outro lado, o clube também não abre
e, frequentemente, vestir roupas pesadas ou emborrachadas para praticar exercícios físicos mão das exigências que faz ao atleta. Nesse arranjo, o atleta revelou que aca-
aeróbios, de preferência sob forte calor. Além disso, ainda faziam sauna para a desidratação
e perda rápida de peso. bou por tomar a decisão de se ausentar da escola nos dias de competição.

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A escolha do atleta por priorizar a competição em detrimento dos O jóquei-aprendiz, que antes poderia ir a pé para a escola, passou, obri-
bancos escolares não pode ser encarada como um tipo de ação ou escolha gatoriamente, a pegar ônibus para chegar à nova escola. O trajeto que ele
irracional. Devemos pensar em toda a estrutura de oportunidades reco- percorria em dez minutos passou a levar meia hora. Mas, a escolha pela
nhecida por esse jovem que o levou a optar pelo esporte. A trajetória desse nova escola foi uma decisão estratégica: a mãe do jóquei-aprendiz traba-
atleta do turfe aponta para um número relevante de troca de instituições de lhava próximo à nova instituição escolar. Essa decisão facilitou o acom-
ensino por motivos variados. Na próxima seção, acompanharemos a traje- panhamento do filho na escola, uma vez que, quando sentia necessidade,
tória desse jovem pelas escolas que frequentou. Podemos adiantar que esse a mãe fazia uma visita à instituição. O acompanhamento escolar passou a
jovem teve sua trajetória interrompida em várias escolas por onde passou. ser feito com maior frequência, rigor e regularidade pela mãe do menino.
Os motivos que o levaram a trocar de escolas variaram desde a sua indisci- A nova escola também deixou boas impressões no imaginário do jóquei-
plina, passando pelos desejos de sua mãe em manter maior controle sobre -aprendiz. Os professores eram mais cuidadosos, zelosos, acompanhavam
sua vida escolar, até a mudança de cidade. mais de perto as atividades direcionadas aos alunos. E a estratégia da mãe
também surtiu efeito no comportamento do filho. Saber que sua mãe poderia
Experiências escolares: mudanças e quebra de vínculos aparecer a qualquer momento na escola fez com que o jóquei-aprendiz con-
A primeira instituição escolar onde o jóquei-aprendiz foi matriculado trolasse melhor o seu comportamento. Embora as mudanças tenham surtido
se localizava próximo à sua residência, em uma cidade do interior do estado efeito satisfatório em relação ao comportamento, segundo o próprio jovem, o
do Rio de Janeiro. A rota que seguia para a escola era facilmente percorrida mesmo não pôde ser dito em relação ao seu desempenho acadêmico.
pelo menino. A pé, poderia levar aproximadamente dez minutos, segundo Entrevistador: Não? Suas notas melhoraram?
seu próprio relato. Mas ainda havia a possibilidade de seguir caminho com Jóquei-aprendiz: É... mais ou menos. Tinha, assim... que a minha mãe tam-
o transporte público oferecido pela instituição de ensino. As lembranças bém trabalhava do lado da escola, ela trabalhava, entendeu? Na escola que eu
do jóquei-aprendiz em relação a sua primeira escola eram boas. O jovem estudava antes era difícil ela ir na escola, que ela trabalhava, aí eu mudei pra
escola que era do lado do trabalho dela. Acontece alguma coisa, a diretora era
indicou que a escola tinha muitos professores, era uma escola grande, com
muito amiga dela, o pessoal da escola conhecia ela, entendeu? Aí foi... alguma
muitos alunos. O dia escolar se iniciava às 7h da manhã e, após cinco horas coisa acontecia, aí já falavam com ela, já tava ali do lado. Aí não fazia muita
de estudos, tocava o sinal da saída, às 12h. Apesar das boas vivências nessa bagunça porque ela tava perto.
instituição, a vida do jóquei-aprendiz nessa escola foi interrompida quando
ele frequentava a 6ª série/7º ano. Sua mãe não estava satisfeita com o envol- Aparentemente, o vínculo do jóquei-aprendiz e a relação dele com essa
vimento do filho com um grupo de escolares estigmatizados como “bagun- escola eram melhores que com a anterior, mesmo que não tenha obtido
ceiros” ou “indisciplinados”. Essa foi a razão pela qual sua mãe decidiu que melhoria no seu desempenho acadêmico. Todavia, um relato chamou a
ele deveria mudar de escola, conforme relatou: nossa atenção: essa segunda escola permitia o acesso livre à biblioteca e,
de acordo com o próprio jóquei-aprendiz, ele gostava de frequentar aquele
Entrevistador: Aí então foi pra mais longe. E você estava fazendo muita espaço. Essa escola estimulava, ainda, aulas de reforço de leitura, em que
bagunça na 6ª série ou...
os alunos mais velhos liam livros para os mais novos. Essa atividade da
Jóquei-aprendiz: Ah, eu nem tava... uma turma lá, e todo mundo é conhe-
escola despertou a atenção do entrevistador, pois o jóquei-aprendiz mani-
cido, estudava comigo e morava tudo perto, nascido e criado junto, aí ia lá pra
zoar. Tinha um que era até meu primo, que só fazia bagunça e só briga, briga, festou sua apreciação pela atividade e revelou ser um frequentador assíduo
tinha muita briga. E todo dia arrumava confusão, aí direto arrumava confusão da biblioteca. Ainda que possamos supor que o jóquei-aprendiz havia sido
comigo, aí foi [minha mãe] me tirar pra não dar problema. Minha mãe foi lá selecionado pelo professor para participar das atividades de reforço de lei-
falar que eu tava certo um dia, aí a diretora não gostou, aí então tá bom, me tura, o jovem relatou que essa frequência à biblioteca acontecia por livre e
mudou de escola. espontânea vontade. O envolvimento com as atividades de leitura mostra

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um expressivo ganho como a cultura material objetiva e o ambiente escolar Jóquei-aprendiz: É, eu passava em casa, comia, e ia pro haras. Tinha dias que
o auxiliaria a mudar, em parte, sua relação com a escola e a leitura. Vejamos nem ia, precisava ficar em casa, tava cansado, aí nem ia.
seu depoimento: Entrevistador: Mas aí quando você não ia lá pro haras...
Jóquei-aprendiz: É, eu ficava mexendo meus pau aqui de casa, não ia pro
Entrevistador: Tinha biblioteca na escola? haras, mas ficava o dia inteiro mexendo em cavalo. Não ia pro haras, mas
Jóquei-aprendiz: Tinha, tinha. pegava o meu. Saía de manhã e voltava à tarde, quando não tinha aula, final de
Entrevistador: E você costumava ir na biblioteca? semana, quando não ia pra exposição. Pegava o cavalo de manhã, seis horas da
manhã, chegava em casa duas, três horas da tarde.
Jóquei-aprendiz: Ah, muito pouco.
Entrevistador: Ia muito pouco? A 8ª série/9º ano foi o último ano como aluno em sua cidade natal
Jóquei-aprendiz: É, aí tinha um dia na semana que eu ia lá na biblioteca, tinha (Vassouras-RJ). A partir de então, sua vida escolar mudou para o Rio de
tipo uma aula de reforço, de leitura, que pegava, assim, e contava história pros
Janeiro, com a entrada na Escola de Profissionais do Turfe. Houve mais
pequenininhos.
uma mudança de escola. Aos 16 anos de idade, quando chegou à Escola de
Entrevistador: Então, você ia por vontade ou porque era obrigado a ir?
Profissionais do Turfe, o jóquei-aprendiz frequentava o 1º ano do ensino
Jóquei-aprendiz: Não, alguns iam por vontade, outros eram obrigados, tinha
dificuldade assim na matéria. Mas, assim, fui porque gostava de ir mesmo. médio. Com a mudança de rotina, passou a estudar à noite e a treinar pela
manhã. Mais uma troca de instituição de ensino, mais uma adaptação,
A permanência nessa escola durou até a 8ªsérie/9º ano. Nesse período novas oportunidades, novas escolhas, novas renúncias.
de sua vida, o seu cotidiano já estava dividido entre as atividades escola-
res e as tarefas no haras onde trabalhava. A conciliação entre as atividades Experiências no esporte: entusiasmo, aventuras e o turfe
escolares e as laborais era tranquila, segundo o próprio atleta, uma vez que Aos 19 anos de idade, o jóquei-aprendiz já estava no último estágio
ele estudava pela manhã e organizava suas tarefas no haras no período da de formação profissional no esporte. Apenas aguardava o tempo da cate-
tarde. As suas obrigações eram limitadas e as competições de que partici- goria para conquistar a sua carteirinha de jóquei-profissional.5 Durante a
pava aconteciam nos fins de semana, ou seja, não interferiam nas atividades entrevista, mostrou-se conhecedor da história da cidade onde nasceu, no
escolares. Assim, mesmo quando passou a estudar em outro local, mais interior do estado do Rio de Janeiro. No quintal onde residia, moravam
distante de sua casa, as tarefas no haras não o prejudicaram na escola. A também seus avós, seus pais e a família do seu tio. O pai, como um bom
organização dos horários do seu dia foi descrita pelo atleta: entusiasta do esporte, motivou o filho a praticar o caratê por algum tempo,
mas nada superava o prazer que esse jovem tinha em estar em contato com
Entrevistador: E como é que era? Você entrava que horas nessa escola nova?
Jóquei-aprendiz: É, entrava 6h40, saía 11h40. os animais. A sua família tinha alguns animais de estimação e o gosto pelo
Entrevistador: Entrava 6h40, saía 11h40. Que horas você saía de casa pra ir
trato com os bichos foi desenvolvido em sua socialização primária, segundo
pra essa escola? o jóquei-aprendiz, porque desde criança ele fora estimulado a cuidar dos
Jóquei-aprendiz: Eu tava fora 10 pras 6h. animais de seus familiares, como veremos na fala a seguir:
Entrevistador: Dez pras seis. Então você acordava às 5h.
5 A progressão nas categorias de base do turfe acontece por tempo de permanência nas catego-
Jóquei-aprendiz: Cinco. Cinco e dez. rias e pelo volume de vitórias conquistadas em cada etapa de profissionalização. Desse modo,
Entrevistador: Cinco e dez. E aí como é que era a sua rotina? Assim, você o jóquei-aprendiz de 4ª categoria tem até seis meses para conseguir cinco vitórias; assim, ele
muda para jóquei-aprendiz de 3ª categoria; o jóquei-aprendiz de 3ª categoria tem até sete
tomava café... meses para aumentar o número de vitórias para vinte, para subir para jóquei-aprendiz de 2ª
Jóquei-aprendiz: Tomava café, acabava de tomar café, me arrumava e ia pra categoria; o jóquei-aprendiz de 2ª categoria permanece nessa posição por sete meses, sendo
escola. Ia, estudava e quando voltava... alçado a jóquei-aprendiz de 1ª categoria; e como jóquei-aprendiz de 1ª categoria, o jovem pode
permanecer por quatro meses; e para chegar a jóquei-profissional, nas duas últimas categorias
Entrevistador: Aí ia direto pro haras... de base, o jovem deve atingir um total de sessenta vitórias.

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Jóquei-aprendiz: Ah, eu mexia em cavalo desde pequeno, sempre tive cavalo; Entrevistador: E você fez qual... você fez alguma promessa?
minha família toda, meus tios, meus primos, mexem com cavalo, manga larga; Jóquei-aprendiz: Não, eu só fui mesmo pra... Bom, me chamaram, falei: “Ah,
sempre mexi com cavalo, sempre gostei, meu tio sempre teve cavalo, aí eu, Vambora!”. Pra mim era tudo diversão.
desde pequeno, assim, acostumado a mexer em bicho e tal...
Seu rosto estampava entusiasmo enquanto relembrava essa façanha.
Desde a chegada do jovem em tela ao clube até o momento da entre- Essa viagem parecia loucura de adolescente, mas para ele não passou de um
vista já haviam passado três anos. Mas o contato com os cavalos era ante- entretenimento. Os riscos de se fazer essa verdadeira procissão pela rodovia
rior a isso. Começou com os cavalos de seus familiares. Juntamente com movimentada – onde passavam carros, caminhões e todo tipo de veículos
seu tio e primos, ele saía para cavalgar. Essas interações familiares permi- automotores – sequer teriam passado pela cabeça dele, pois, na sua percep-
tiram que o jovem experimentasse situações que poucos na sua idade têm ção, era tudo diversão. Um adolescente de 14 anos, em geral, tem verdadeiro
condições de experimentar. Uma aventura aqui, outra acolá, sempre com a apreço por aventuras. Essa viagem só foi possível porque ele cuidava dos
permissão dos pais. Talvez a maior de suas empreitadas tenha acontecido cavalos de um haras em sua cidade. Desde os 12 anos de idade (sem muita
aos 14 anos de idade, quando saiu da cidade onde morava – Vassouras, no precisão na informação), ele e seus primos frequentavam esse haras e rea-
Rio de Janeiro – para Aparecida do Norte, em São Paulo. lizavam atividades com cavalos por cerca de duas horas ou duas horas e
meia por dia, seja montando, treinando os cavalos ou cuidando deles. Ele
Jóquei-aprendiz: [...] E tinha final de semana assim, que viajava pra tal lugar,
era recompensado financeiramente por esse trabalho, mas ainda que não
por exemplo, de Vassouras até Aparecida do Norte, foi nove dias de viagem de
cavalo. fosse, o faria da mesma forma, segundo relatou. O dinheiro recebido era
Entrevistador: Sério? Vocês iam de cavalo, cara? apenas uma consequência, talvez um agrado dado pelo dono do haras.
Jóquei-aprendiz: De cavalo. Fomos de Vassouras até Aparecida do Norte. Não havia qualquer contrato de trabalho, era apenas acordo verbal. Para o
menino, o interesse maior era a possibilidade de montar e se divertir com
Entrevistador: Conta como é que foi essa viagem aí. Como é que você passou,
quantos anos você tinha e tal... os cavalos. Além disso, a vivência nesse haras lhe permitia conhecer outros
Jóquei-aprendiz: Eu tinha 14 anos. Nós fomos, saímos de Vassouras, aí tinha lugares, para os quais viajava para participar de exposições e competições
o posto de parada. Primeiro posto de parada, saímos de lá era 5 horas da com aqueles animais. Competições essas que tinham um caráter mais infor-
manhã, saímos todo mundo. Chegamos no segundo posto de parada era 8 mal e em nada se parecia com o turfe profissional. Eram “festas do interior”,
horas da noite, paramos, tomamos banho, comemos, ficamos comendo, coisa dos produtores rurais, onde faziam apresentações, competições, apos-
depois descansamos. Raiou a luz do dia, seguimos de novo, vambora (sic), aí tas ou negócios. A motivação para participar desses eventos era para ele,
já tinha os pontos de parada e onde ficava pra dormir. Aí, na boa, diversão,
justamente, a possibilidade de competir, como veremos no relato a seguir:
todo mundo zoando.
Entrevistador: Vocês iam pela estrada mesmo? Entrevistador: Você cuidava dos cavalos desse haras?
Jóquei-aprendiz: Pela estrada, a gente ia pela BR... Jóquei-aprendiz: É, alguns eu gostava. Chegava lá, aí eu ficava, tratava deles,
Entrevistador: Pegava a BR? E quantas pessoas, assim, nessa viagem? cuidava dos cavalos. Chegava lá, não tinha nada pra fazer, eu ia lá treinar.
Depois tinha dia que chegava lá e não fazia nada, não treinava, ia lá visitar,
Jóquei-aprendiz: Pô, foi uns 30.
ajudava a dar ração lá... [sobre uma das falas frequentes que ouvia do dono do
Entrevistador: Umas 30 pessoas? Algum parente seu tava junto também? haras] “Ah, vamos descansar ele [o cavalo] hoje, tá? Que semana que vem ele
Jóquei-aprendiz: Tinha dois primos meus que trabalhava lá. vai ter que competir”, entendeu?
Entrevistador: E fizeram o que lá?
Em uma fala anterior ele descreveu como eram as competições:
Jóquei-aprendiz: Fomos lá e foi mesmo pra fazer promessa, fazer promessa,
entendeu... Faz a promessa pra conseguir um negócio, tu consegue, tem que Jóquei-aprendiz: Assim, eu trabalhava num haras de um amigo meu, tinha o
cumprir a promessa. manga larga... várias raças [de cavalo]. Aí eu tinha todo, todo mês tinha um

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lugar pra ir. Fui pra Minas, São Paulo, vários lugares... Todo mês tinha um muito pela TV, claro. Lá [em Vassouras-RJ] tem parabólica, então via muito
lugar pra gente ir, então, assim, no final do mês [ele recebia uma recompensa pela TV e ficava olhando, pô, achava maneiro, maneiro. Aí meu avô me falou:
em dinheiro, mas não soube ou não quis dizer quanto]... “Pô, espera tu completar 14 anos”. Na época, quando eu vim aqui ‒ antes era
Entrevistador: E você lembra quanto você recebia? Você pode falar quanto 14 ‒, aí eu vim aqui e não era 14 mais, agora é com 16. Aí eu esperei completar
você recebia mais ou menos, por dia de evento? a idade, aí vim na escolinha. Vim em dezembro, em 2008, 20 de dezembro de
Jóquei-aprendiz: É, tinha dias, depende de como montava os cavalos, trezen- 2008, primeira vez que eu vim aqui, quando tinha 15, ia fazer 16 em janeiro. Aí
tos, quatrocentos [reais], se montasse uns dez cavalos, fora os prêmios que eu vim, falaram: “Não, espera completar 16 anos, no dia do aniversário dele ou
ganhava o cavalo. Primeiro até terceiro tinha um prêmio, se ganhava, ganhava logo depois, traz ele aqui. Aí um dia depois do meu aniversário eu vim aqui
com a minha avó, mãe do meu pai. Aí eu tava aqui, que eu tinha passado Natal
troféu, tinha mais um dinheiro e tal.
e o ano novo aqui no Rio, aí fiquei direto, aí vim aqui. Aí o seu [administrador
Entrevistador: E como é que era essa competição, assim, era tipo uma com- da EPT] falou: “Pô, por enquanto não tem a vaga, mas quando tiver a vaga já tá
petição, é isso? certo dele vir”. Aí pegou os documento “tudo” e levou no cartório pra auten-
Jóquei-aprendiz: É, era competição, tambor e baliza. Tem três tambores, tem ticar tudo, aí já tava com os documento tudo. Aí foi dia 30 de junho de 2009,
um aqui, um aqui e fica um aqui [ele apontou na mesa a posição dos tam- eu entrei na escolinha. Aí eu peguei e fiquei, com nove meses na escolinha. Aí
bores]. Aí tem que vir empurrando o cavalo [montado nele contornando os depois eu fui pra raia, fiquei um mês trabalhando com os treinadores. Depois
tambores], passar por esse, passar por esse, fazer o final desse e faz voltar pro desse mês peguei a matrícula, comecei a montar, aí comecei a montar e no dia
meio. Baliza tem cinco estacas, assim, no espaço, tem que passar no meio sem 20 de junho de 2010 peguei e comecei a montar...
derrubar, se derrubar tem penalidade, entendeu?
Além disso, não foi apenas um convite para se tornar jóquei, foi uma
O destaque é dado aos ganhos financeiros e ao tipo de relação de tra- insistência por parte do padrasto do seu pai, conforme o próprio atleta
balho, que o jovem encarava como um momento de lazer. Ele não encarava declarou:
aquilo como obrigação. O valor recebido não era o principal atrativo. Foi
notório o prazer que relatou por ter trabalhado com o que gostava, somado Entrevistador: Só um minuto, depois a gente vai retomar essa história aqui do
à sensação de prestígio que aquelas competições proporcionavam em seu Jockey. Então você tem, já tem um parente, digamos assim, que foi jóquei, né?
Jóquei-aprendiz: É, foi jóquei.
círculo de convivência. Desde muito cedo, a rotina diária desse atleta foi
Entrevistador: E foi ele quem te incentivou a vir pra cá?
permeada pelos pilares do trabalho e da escola. Vimos como suas falas
Jóquei-aprendiz: Não. Ele, quando eu vim pra cá, ele já tava doente, já não
denotam prazer ao falar do cotidiano naquele trabalho no haras. Para ele, tava trabalhando aqui. Mas aí o meu avô, que vem muito com ele, padrasto do
a rotina no haras não era um emprego, porque, além de se tratar de meia meu pai, considero, me viu nascer, considero meu avô, é... vinha muito com
jornada diária, ela estava intrinsecamente associada ao seu gosto pelos ani- ele, ele que me incentivou: “Vamo, vamo!” Mas aí meu pai, meu pai queria que
mais e às experiências com as viagens e as competições. Observemos que eu “vim”, minha mãe: “Não, não, vai ficar longe de casa”. Sempre meus pais...
um tipo de experiência prazerosa pode contribuir para reforçar a preferên- meu pai, meu avô que me apoiaram. Falou: “Vamo! Vamo!” Ele que me trouxe,
o padrasto do meu pai. Insistiu pra “mim vir”.
cia por uma atividade com relação a outra menos prazerosa no momento
da vida em que alguém se vê obrigado a fazer escolhas. Observamos que a trajetória de vida desse atleta foi permeada por
O apreço pelos animais, a experiência no haras e as interações familia- experiências associadas a cavalos, montarias e competições. Além disso,
res levaram-no à escola de turfe. Ele foi incentivado pelo padrasto de seu o apoio familiar foi imprescindível para que este menino começasse sua
pai, que tinha o costume de frequentar o clube de turfe no Rio de Janeiro. profissionalização no turfe. As vivências no haras, nas competições e as
Entrevistador: Como é que você conseguiu, assim, o contato pra vir aqui pro interações familiares levaram o jóquei-aprendiz a participar do processo
Jockey? seletivo para ingressar na Escola de Profissionais do Turfe. Paralelo a isso,
Jóquei-aprendiz: O padrasto do meu pai vinha muito aqui com o ex-cunhado a mudança de cidade implicou também a mudança de escola. As rotinas
dele, que foi jóquei, [...] o famoso Risadinha, que foi jóquei. Também eu vi foram alteradas consideravelmente. O jovem que antes conseguia estudar

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e trabalhar, no ano da entrevista já encontrava dificuldades para conciliar seu cotidiano, mesmo estando fora do clube. O jóquei-aprendiz comentou
as duas atividades. Às segundas e sextas-feiras não frequentava a escola. como foi o acidente que o deixou sem poder trabalhar por três meses:
Para um jovem que sempre frequentou o turno matutino, viu-se obrigado a
passar para o ensino noturno em função dos horários de treino. Jóquei-aprendiz: Tem alguns, ano passado eu fiquei três meses parado por-
que eu sofri um acidente. Vinha um na frente e eu vinha em segundo, aí [o
As expressões ao relatar suas histórias de vida também mudavam. cavalo] quebrou a mão. Aí eu caí, caí por cima de mim. Aí eu quebrei a claví-
Notava-se certa angústia para falar das escolas, embora também se esforçasse cula esquerda, tive fratura na vértebra. Fiquei três meses parado sem trabalhar.
para demonstrar afeição por elas. Aparecia algum carinho, mas o incômodo Então eu fui pra casa, fiquei em casa, depois eu voltei quando tava bem. Voltei,
estava presente. Talvez porque estivesse falando sobre um ideal normativo comecei a trabalhar e consegui voltar.
fortemente marcado em nossa sociedade ou realizando um acordo de fala Entrevistador: E esse foi o único acidente que você teve?
com o pesquisador. A escola, talvez, não tivesse lhe trazido tantas experiên- Jóquei-aprendiz: Acidente grave foi esse, mas eu já tive vários, caí, me
cias favoráveis a ponto de manifestar expressões de alegria, mas essa insti- machuquei.
tuição e sua frequência se tornou, em nosso tempo, numa imposição social. Entrevistador: Você caiu naquela entrevista, né, do Esporte Espetacular?
A escolha desse jovem por investir no campo esportivo com mais ênfase Jóquei-aprendiz: Esse aí não foi eu não, foi o outro.
tem um viés alusivo ao prazer, à nostalgia, às vontades de reviver aventu- Entrevistador: Ah, foi o outro. Então, assim, você já teve outros acidentes, mas
ras de outrora. Embora isso tenha sido destacado não só em suas falas, esse foi o mais grave, né? O que você ficou mais tempo parado, quebrou uma
como também nas suas expressões de entusiasmo estampadas em sua face, vértebra, quebrou a clavícula...
a relação do jóquei-aprendiz com o esporte também mudou. O processo de Jóquei-aprendiz: É. Fiquei parado.
profissionalização trouxe também a responsabilidade de cumprir horários, Entrevistador: E como é que foi esse tempo de recuperação pra você? Três
acordar cedo, disciplinar o corpo, seguir dieta, manter o peso e treinar... meses para um cara que acorda que horas?
treinar muito. Delinear o seu projeto de vida em torno do esporte o colocou Jóquei-aprendiz: Eram, os primeiros meses foram muito ruins porque eu já
numa posição de progressivo distanciamento da escola. Entretanto, talvez tava habituado, assim. Quando tava em casa não fazia nada, só ficava dentro
de casa vendo TV, ou ficava andando lá sem fazer nada. Daí quando dava 4h
o mais penoso que tenha relatado em relação ao esporte tenha sido o forte
e meia da manhã, o horário de acordar aqui [no clube], eu acordava, e não
controle disciplinar do clube. conseguia dormir. Só conseguia cochilar de novo 6 horas da manhã. E ficava
acordado, acordava todo dia, tava acostumado.
A consequência de uma rotina rígida e extenuante
Os horários da rotina diária dos atletas são elaborados e esquadrinha- O rigor na rotina dos jovens atletas do turfe lhes afeta não somente
dos pelo clube esportivo para que haja um forte controle disciplinar sobre os enquanto estão no período de trabalho. O corpo reage ao disciplinamento
alunos e jóqueis-aprendizes. Mas essa rotina altera também a forma como e às exigências para uma maior força de produção. Os hábitos adquiridos
o corpo do jovem atleta reage quando não está em período de trabalho. são levados para o dia a dia. A dieta a ser seguida, fruto de uma exigência
O jóquei-aprendiz que trazemos na pesquisa, por exemplo, acidentou-se do turfe, é uma dessas variantes que têm grande impacto sobre os dese-
durante uma corrida e ficou impossibilitado de participar dos treinamen- jos dos jovens em processo de profissionalização. Eles devem permanecer
tos e competições. Assim, com o afastamento forçado, o jóquei-aprendiz leves para poder conseguir as montarias que renderão vitórias e prêmios,
voltou para a casa dos pais para passar o período de recuperação com seus embora isso não deva ser entendido como um incentivo à perda de peso a
familiares. A sua rotina na casa dos pais, no interior do estado do Rio de qualquer custo. O clube, na época da pesquisa, incentivava hábitos alimen-
Janeiro, foi afetada pelo tédio. Acordar cedo, o que já fazia parte do seu tares mais controlados para a manutenção do peso do atleta. Apesar disso,
hábito, foi mantido durante o período de recuperação da lesão. Isso mostra é inegável a pressão psicológica a que esses atletas estão sujeitos, haja vista a
que os hábitos exigidos e adquiridos no trabalho foram incorporados ao preservação dos hábitos incorporados mesmo quando não são necessários.

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Além de cuidar da alimentação, os atletas têm que cumprir uma série de escolha do sujeito (ELSTER, 1994, 2009). Ainda que a verbalização dessa
de compromissos dentro do clube. Os jovens que competem, sofrem. A memória possa estar afetada por desejos e preferências do presente, é ine-
razão do sofrimento se justifica porque, além de acordar muito cedo e trei- gável que a rememoração dessas experiências fornece significados para o
nar bastante, nos dias de competições eles podem chegar a montar vários estágio da vida ou carreira em que o indivíduo se encontra.
cavalos consecutivamente. A rotina de um jovem que pretende a profissio- As relações construídas ao longo da vida fizeram com que o turfe apa-
nalização no turfe é muito severa. É preciso ter uma paixão enorme e uma recesse no campo de possibilidades desse atleta. Mas a decisão de seguir
perseverança ímpar para permanecer com o foco voltado ao objetivo de carreira depende de como ele vê este esporte. O maior indício de que a prio-
profissionalizar-se no esporte. ridade passou a ser o turfe e não a escola foi o fato de que o atleta escolheu,
primeiramente, trocar de cidade e, a posteriori, mudar de turno escolar. O
discussão jóquei-aprendiz percebeu o turfe como uma maneira de continuar tendo as
experiências e aventuras que teve quando criança e, além disso, ter a pos-
Tratar do tema sobre projeto individual de carreira surgiu a partir de uma sibilidade de profissionalizar-se num esporte que vai ao encontro de seus
leitura aprofundada na antropologia urbana. Esse conceito carrega consigo gostos. Para ele, o trabalho com os cavalos foi uma paixão despertada na
uma ampla gama de significados, mas que podemos resumir – sinteticamente infância e um modo de estar no mundo e integrado à experiência familiar.
– como sendo a intenção de mapear os objetivos que um indivíduo traçou Por outro lado, vimos que a escola pode ter até sido encarada como
ao longo de sua vida, a partir de suas vivências e expectativas pregressas e importante em sua vida, mas suas experiências escolares não foram sufi-
atuais. A reconstituição do projeto individual do atleta requer uma análise cientes para tornar essa instituição como caminho possível e exequível para
minuciosa sobre suas representações e expectativas dentro do seu campo de a concretização do seu projeto de vida. Na sua fala sobre a primeira insti-
possibilidades (VELHO, 1997, 2003, 2010). Observamos que as mudanças em tuição escolar, ele relatou a sua relação indisciplinada com a escola, o que
sua vida o colocaram em diferentes configurações sociais, variados grupos, levou sua mãe a tomar a decisão de trocá-lo de escola. Mas, também foi
experiências diversas. Devo identificá-lo como membro integrante de uma possível perceber o sentimento de injustiça vivenciado pelo jóquei-apren-
sociedade complexa, na qual ele fez alianças e admitiu compartilhar as opor- diz quando comentou que a direção da primeira escola não deu ouvidos
tunidades adjacentes aos grupos sociais em que se inseriu ao longo de sua aos apelos de sua mãe, quando sua mãe saiu em sua defesa diante de algum
vida. O sujeito é um agente que assumiu o desafio da metrópole de Simmel evento ocorrido na escola. Isso nos leva a pensar que a escola, de um
(1973) em busca da conquista dos seus objetivos pessoais. modo geral, estigmatiza os alunos indisciplinados e procura não atender
O convívio em sociedade desenvolve no indivíduo reações em resposta às reivindicações de defesa desses alunos. Essa atitude que estigmatiza o
aos constantes estímulos presentes nela (VIANNA, 1999). É essa excitação aluno compromete também a prática de ensino-aprendizagem do profes-
que molda o imaginário do indivíduo. Desde o círculo familiar nosso per- sor e, consequentemente, reflete no desempenho do aluno (CHRISTOVÃO;
sonagem é submetido a experiências de vida que resultarão nas suas prefe- SANTOS, 2010).
rências, desejos, crenças, medos, vontades etc. Ao mesmo tempo, o quadro Outro efeito que pode resultar em desinteresse do aluno pela escola é
social de sua família também fará parte desse conjunto de representações o viés acadêmico da instituição escolar (SCHWARTZMAN, 2011). A escola
e expectativas. A memória pessoal é uma importante evidência de como possui um único caminho de formação para a população atendida por essa
o campo de possibilidades (ou conjunto de oportunidades) foi percebido instituição. Ao ser empurrado, ano a ano, pelas séries escolares, o aluno no
ao longo de uma vida. Através das lembranças, podemos verificar como fragmentado sistema nacional brasileiro se vê pressionado contra o “gar-
os jovens atletas chegaram a conhecer suas oportunidades e reconhecê-las galo” na transição do ensino fundamental para o médio, por exemplo. Claro
como possíveis de serem atingidas. Afinal, é o entendimento sobre a via- que não podemos atribuir somente a um menor número de vagas no ensino
bilidade de uma determinada oportunidade que a torna parte das opções médio – comparado ao ensino fundamental – toda a responsabilidade pelo

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desinteresse e evasão dos alunos do sistema de educação. Porém, é plausí- seu cálculo racional. A decisão de investir no turfe é uma ação criteriosa-
vel pensar que essa limitação no número de vagas é uma variável que pode mente analisada diante das oportunidades que ele encara como possíveis
pesar na decisão de progredir pelas vias educacionais. (BOUDON, 1973, 1981, 1995).
A fragmentação do sistema educacional brasileiro de fato aponta para O esporte, ainda, tem uma dimensão, predominantemente, associada
uma gradativa redução do número de vagas nos níveis mais elevados de ao lazer e ao prazer para esse jovem e para boa parte da população juvenil.
educação. Todavia, em pesquisa realizada, Neri (2009) comentou sobre as Este prazer não foi percebido quando o assunto era a escola. Pelo contrário,
razões que levavam jovens entre 15 e 17 anos a abandonarem a escola. A a escola era vista como obrigação, peso e tarefa, às vezes sem muito signi-
oferta de vagas no ensino médio foi citada como um dos motivos que levava ficado. Ainda que o turfe, para esse atleta, seja uma profissão e, de certa
à evasão escolar – que chegava a 17,8% do total de jovens nessa faixa etária. forma, envolva obrigações, ele relatou sentimentos de satisfação, mesmo
Todavia, os dados evidenciaram que apenas 10,9% dos jovens que estavam quando a rotina de treinamento e competições se tornou extenuante.
fora da escola usaram o argumento da falta de oferta de vagas como justifi- Podemos ainda refletir sobre os processos de socialização e disciplina-
cativa para se evadir ou desistir dos campos escolares. Neri (2009) informou mento do corpo nas instituições escolares e esportivas. Estudar exige dis-
que a maior parte dos respondentes (67,4%) explicaram o abandono escolar ciplina, dedicação e superação de desafios e, às vezes, do tédio que pode
por causas associadas à falta de demanda por educação, como o desinte- envolver essa atividade. A questão é que a escola parece não provocar, para
boa parte dos alunos, costumes apropriados à formação de hábitos que
resse no modelo escolar (40,3%) e a necessidade de trabalhar e gerar renda
gerem desafios e sentimentos de pertença àquela instituição (NERI, 2009;
para a família (27,1%). Pensemos que essas duas razões tenham força maior
SCHWARTZMAN, 2011; ALVES, 2009; CORROCHANO; NAKANO, 2002). A
para explicar uma possível desvinculação do jóquei-aprendiz das atividades
linguagem normativa da escola, que por vezes exclui o gosto e o desafio,
escolares. O jovem atleta mostrou que suas experiências escolares, apesar de
talvez a torne uma instituição de fácil descarte para aqueles que não sofrem
agradáveis, não faziam parte do seu horizonte de expectativa, seja porque
as pressões familiares e/ou de classe social. Assim, a escola parece não ter
não se ajustava ao modelo disciplinar da escola, seja porque almejava uma
o potencial de atração e desafio que outras atividades apresentam para as
garantia financeira através da profissionalização no turfe.
camadas populares e, no caso de nosso personagem, esse argumento se
No caso do jovem atleta, os meandros enfrentados nas vias educacio-
encaixa perfeitamente.
nais para atingir um patamar satisfatório do seu projeto de vida concorrem Estudar à noite é outro entrave na vida do atleta do turfe. Como ocorre
com todo o potencial de geração imediata de renda que o esporte poderia com muitos trabalhadores que estudam à noite, o estudo mostrou que isso
lhe proporcionar – ainda mais em se tratando do turfe. O atleta do turfe, também traz prejuízos à rotina escolar dos atletas do turfe na medida em
em três anos de formação como jóquei-aprendiz, pode acumular uma pou- que a escola é a última atividade do dia. Assim, mesmo que existam vivên-
pança de cerca de R$50.000,00. Aos 19 anos de idade, o jóquei-aprendiz já cias positivas ou que a escola possa vir a desenvolver nesses jovens o inte-
havia acumulado uma cifra próxima a esse valor. Torna-se racional pensar resse por suas atividades, o cansaço físico desses atletas se torna um obs-
que as oportunidades escolares estão muito distantes de gerar esse mon- táculo. Sabemos que o ensino noturno no Brasil – e, particularmente, no
tante em tão pouco tempo para jovens das camadas populares, ainda mais Rio de Janeiro – carece de infraestrutura e de uma seleção de conteúdo que
para um jovem de 19 anos. As oportunidades apresentadas no turfe não são atenda às necessidades de uma população trabalhadora. Alguns dos pro-
só mais atrativas que os caminhos da escola, mas também são imediatas. blemas que podem ser constatados são o currículo escolar sobrecarregado
Além disso, na perspectiva do jovem atleta, as desigualdades escolares são de disciplinas e uma didática ineficiente para o tipo de aluno que frequenta
reconhecidas nas falas dos representantes das instituições escolares – dire- o ensino noturno (ALVES, 2009; CORROCHANO; NAKANO, 2002).
tores e professores. O jovem atleta identifica que seu caminho escolar é Priorizar o turfe em detrimento da escola foi uma decisão dependente
mais acidentado e sinuoso; enxerga que para obter o sucesso escolar terá das relações de prazer que o jóquei-aprendiz estabeleceu ao longo de sua
mais dificuldades que outros alunos; essas variáveis também compõem vida. A trajetória com o esporte e a vivência e habilidade com os animais

152 153
de haras fez com que ele criasse um laço afetivo que o levou ao clube de alimentação é uma forma de educação alimentar e do corpo para que eles
turfe. Claro que a oportunidade de realizar o projeto de vida, gerar renda não precisem adotar táticas nocivas à saúde.
e ainda continuar exercendo uma atividade prazerosa e nostálgica fez com O corpo desses atletas está condicionado a cumprir com toda a sua
que ele optasse por investir mais esforços na formação esportiva. A prin- rotina de treinamento. Mesmo quando não estão no clube, eles acabam
cipal reclamação de nosso personagem foi a rigidez disciplinar do esporte, repetindo quase as mesmas práticas que fazem na escola de turfe. O jóquei-
principalmente no que tange ao controle da alimentação e do peso, mesmo -aprendiz, por exemplo, citou um período em que sofreu um acidente e
isso não o afastou de seu projeto de vida no turfe. precisou ficar três meses longe dos páreos. Embora tenha ficado em casa,
O ascetismo corporal e também alimentar faz parte do ethos dessa ele não conseguia acordar mais tarde. Levantava por volta das 4h30 da
modalidade esportiva. Enquanto jóquei-aprendiz, ele não podia ultrapas- manhã, ficava na cama e cochilava novamente, voltava a despertar por volta
sar os 51 quilogramas, sob o risco de ser punido com suspensão ou, em caso das 6h da manhã. O próprio atleta reconheceu que estava reproduzindo
de reincidência, desligamento do clube. Para manter o peso ideal para a um hábito adquirido dentro do clube, pois, os jovens acordam muito cedo
prática do turfe, ele acabava fazendo muitos sacrifícios. Embora sua dieta para realizar os trabalhos com os cavalos.
fosse acompanhada por uma equipe de nutricionistas, ele costumava se Toda pesquisa tem seus limites e esta não poderia ser diferente.
desviar das refeições oferecidas diariamente. É comum que os atletas em Acreditamos que esta iniciativa abriu questões para novas pesquisas na
formação no turfe comam algo fora da dieta. Ademais, o chefe da equipe de área. Primeiro, ela permitiu entender a autonomia do atleta ao traçar seus
nutricionistas destacou que fugir da dieta é algo comum e esperado, pois projetos de vida. Não podemos generalizar os achados desse estudo para
isso faz parte do comportamento juvenil e, podemos acrescentar, daqueles outras modalidades e nem foi essa a intenção. O que esta pesquisa pode nos
que são submetidos à dieta. Uma vez ou outra eles sentem necessidade de fornecer são ferramentas para explicar como atletas de outras modalidades
comer algo que é comum à dieta de outros jovens da mesma faixa etária, esportivas formam seu projeto de vida, que pode ser voltado ou não para
como hambúrgueres, chocolate etc. o esporte que praticam. Para isso, será necessário compreender as redes de
Esse rígido controle disciplinar sobre a dieta dos atletas tem a função relações que os indivíduos construíram ao longo da vida e quais as moti-
de melhorar rendimento do atleta pelo controle do peso corporal. A disci- vações e expectativas que os sujeitos têm em relação ao esporte e à escola.
plina forja hábitos para atingir maior potencial de produção e menor pos- Por fim, no turfe, podemos pensar em outras estratégias. Como o
sibilidade de resistência dos sujeitos (FOUCAULT, 1977). Não podemos ser esporte exige que esses jovens deixem de frequentar a escola pelo menos
ingênuos e acreditar que não há interesse do clube em uma maior força de dois dias na semana, talvez seja necessária outra tática educacional para
produção dos jovens atletas. Todavia, no caso do turfe, não devemos enten- que não haja prejuízo na escolarização dos jovens que pleiteiam essa for-
der esse projeto de poder instituído pelo clube como meio exclusivo para mação profissional. Embora não possamos afirmar que essa deficiência
uma maior sujeição do indivíduo frente ao rigor do esporte. Nesse caso, escolar seja decorrente da dedicação ao esporte, cremos que o turfe con-
podemos encarar como algo positivo nessa relação de poder entre clube e tribui – mesmo que minimamente – para que o projeto escolar seja um
atleta. Ao ser submetido a esse rigor disciplinar sobre sua alimentação, o objetivo secundário na vida do atleta.
atleta pode deixar de adotar hábitos nocivos a sua saúde para incorporar
costumes mais saudáveis em sua dieta. Por exemplo, o jóquei-aprendiz de referências bibliográficas
nossa história informou que também utilizou medicamentos, segundo ele
ALVES, F. Qualidade na educação fundamental pública nas capitais brasileiras: ten-
somente uma vez. Essa medida é proibida dentro do clube. Os alunos ou dências, contextos e desafios. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009.
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contemporânea. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. lidade em todo o país, culminando com o aumento dos praticantes e inte-
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VIANNA, H. Ternura e atitude blasé na Lisboa de Pessoa e na metrópole de Simmel. ALMEIDA; MARCHI JUNIOR, 2008, p. 10).
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Portugal. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 109-120.
tria – de financiar o voleibol, rápidas mudanças ocorreram com essa

1 Que estão inscritos ou possuem registro na Federação de Voleibol do Estado Rio de Janeiro.

156 157
modalidade no mercado dos esportes no Brasil. Importantes investimen- A tensão produzida entre as demandas da escolarização e da formação
tos proporcionaram melhoria em infraestrutura e em capacitação técnica esportiva coloca os jovens numa situação de operarem conciliações entre
de jogadores, treinadores e gestores desse esporte. Esse financiamento do essas instituições de referência ou escolhas que podem impactar negati-
voleibol proporcionou o reposicionamento da modalidade no mercado vamente numa dessas carreiras. Destacamos aqui que o conceito de dupla
esportivo e contribuiu para a criação de equipes que levassem o nome das carreira é fundamental para entendermos que, nesse período da vida, os
empresas patrocinadoras. Com as modificações das regras e da dinâmica jovens podem ter uma carreira a trilhar para além da escola (CHRISTENSEN;
do jogo para ajustar-se os enquadramentos de um espetáculo televisivo SØRENSEN, 2009).
para uma massa de espectadores, a exposição do voleibol aumentou. O
contexto apresentado fez com que o voleibol passasse a ter importância no metodologia
cenário esportivo nacional, conquistando espaço nos meios de comunica-
ção esportiva e aceitação popular (MARCHI JUNIOR, 2005). O Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC – UFRJ) vem
As transformações apontadas elevaram o vôlei à condição de oferecer desenvolvendo pesquisas relacionadas ao tema escolarização de jovens
aos seus atletas salários atrativos, competitivos em relação ao cenário inter- atletas a partir do estudo de diversas modalidades, como exemplo, a pes-
nacional, chamando atenção de jovens que passaram a considerá-lo como quisa que apresentaremos com o voleibol. O questionário utilizado nesta
opção de mercado profissional. Para isso, a formação desses jovens seria coleta de dados foi aprimorado a partir da experiência do estudo realizado
também reorganizada. por Melo (2010), que pesquisou como os jovens atletas de futebol concilia-
A rotina diária de iniciação e formação esportiva exige dedicação vam o esporte com a rotina da escola. Neste estudo, devemos pontuar que,
daqueles que buscam a profissionalização, envolvendo horas de treina- para além dos questionários que aplicamos, foram realizadas anotações em
mento técnico, tático, deslocamentos aos locais das atividades (variável diário de campo, com intuito de enriquecer as análises quantitativas a par-
importante em grandes centros urbanos), viagens, tratamento fisioterápi- tir de outras informações obtidas com atletas, treinadores e familiares.
cos etc. Esses aspectos são pontuais dentro da carreira esportiva e consti- Os jovens que responderam aos questionários são atletas das catego-
tuem o cenário das dificuldades de inserção em um campo tão concorrido rias mirim, infantil, infanto-juvenil e juvenil. A permissão da aplicação
– sem falar em aspectos empresariais e na distribuição de oportunidades do questionário foi concedida mediante autorização prévia dos responsá-
para jogar nas equipes disponíveis. Apesar das dificuldades oriundas desse veis das categorias de esporte amador de cada clube. Compõem a amostra
campo de formação esportiva, muitos jovens permanecem na busca pela desta pesquisa 151 atletas na faixa etária de 9 a 20 anos das quatro categorias
profissionalização e caminham na tentativa de conseguir um posto de tra- existentes no cenário pesquisado. Os questionários2 foram aplicados no
balho nesse concorrido e limitado mercado dessa modalidade esportiva. próprio local de treinamento, antes e após o período de treinamento que
A formação de jovens para o mercado do vôlei de alto rendimento, e tinha duração de aproximadamente de duas horas. As categorias realiza-
da maioria dos esportes, ocorre no mesmo momento em que esses mesmos vam os treinamentos uma após a outra, sempre respeitando a faixa etária,
jovens necessitam trilhar o processo da escolarização básica. A escolari- primeiramente as categorias dos menores e, posteriormente, as categorias
zação básica fornece a credencial mínima para que os indivíduos possam dos maiores.
ocupar postos de trabalho no mercado ordinário das profissões que não
2 A coleta de dados foi realizada sempre com autorização prévia dos responsáveis pelo
exigem nível superior. Dessa forma, os jovens sofrem a pressão de uma Departamento do Esporte Amador de cada clube. Os instrumentos foram aplicados por
sociedade que valoriza a certificação fornecida pela escola e a pressão do pesquisadores treinados para o preenchimento do mesmo. A aplicação de cada instrumento
durou aproximadamente dez minutos por atleta. Durante a espera para aplicação dos ques-
campo esportivo, que valoriza a excelência (máximo rendimento) e a dedi- tionários foram realizadas conversas com os familiares dos atletas, com alguns atletas e mem-
cação exigidas para o trabalho corporal (CHRISTENSEN; SØRENSEN, 2009). bros da comissão técnica. Tais observações contribuíram para o desenvolvimento e interpre-
tação dos dados da pesquisa.

158 159
quadro 1: amostra Analisando os dados, verificamos que, dos vinte atletas que foram
reprovados uma vez, nove estavam na categoria infantil, quatro na cate-
Número de Clubes Número de Clubes Média de Atletas Questionários
Categoria goria mirim, cinco na categoria infanto-juvenil e dois na categoria juvenil.
(Feminino) (Masculino) inscritos Aplicados
Dialogando com a seção anterior (distorção idade – série), podemos
Mirim 9 6 12 48
constatar que os atletas de voleibol apresentam uma taxa de repetência
Infantil 7 8 12 56 escolar baixa, correspondendo a 13,24%, e de atraso escolar correspondente
Infanto 6 8 12 39 a 2,7% (quadro 2).
Juvenil 5 6 12 8
quadro 2: modalidade de ensino e repetência
Total 27 28 630 151
Repetência

resultados Modalidade Nunca 1 vez 2 vezes 3 vezes 5 vezes


Regular 127 20 2 1 1
Distorção idade por série
A partir da definição gerada pela sociologia da educação, consideramos
Podemos atribuir isso a um conjunto de fatores, destacando: harmoni-
como atraso escolar a diferença de dois anos entre a idade do aluno e a idade
zação4 entre os horários de treino e o horário escolar, além do entendimento
considerada ideal para a série em que o aluno se encontra (SCHWARTZMAN;
por parte dos pais de que as credenciais escolares são fundamentais para
COSSIO, 2007).
inserção no mercado e na sociedade. A certificação na educação básica pos-
Observando o quadro 2, visualizamos que apenas quatro atletas dos 151
sibilita ao atleta a continuação da vida acadêmica, independentemente do
participantes apresentam ocorrência de reprovação por mais de duas vezes.
sucesso que venha a ter no esporte. Observamos que os atletas valorizam em
Assim, a relação entre a escolaridade ideal e idade em que o atleta se encon-
seus discursos a escolarização como meio de ascensão no plano individual
tra a partir da definição que apresentamos acima é 97,3%. A distribuição de
e social. Todavia, essa percepção dos atletas está ajustada aos valores e perfil
repetência que produz esse cenário foi de um atleta infanto-juvenil com
dos seus pais na medida em que boa parte deles concluiu o ensino superior,
três reprovações; no infantil, com uma reprovação, aparecem dois atletas,
alguns possuem curso de especialização e também posição estável do ponto
outro com duas reprovações e outro com cinco reprovações; na categoria
de vista econômico. Reafirmamos que o núcleo familiar estável é fundamen-
juvenil, um atleta com duas reprovações. Na categoria mirim, identifica-
tal para o êxito no processo de formação dos atletas (KAY, 2000).
mos que quatro atletas foram reprovados ao menos uma vez, sendo três
meninas e um menino. Nenhum atleta da categoria mirim apresentou índi- Categoria e tipo de escola
ces de reprovação que indicasse a existência de atraso escolar.
Em nosso levantamento realizado com 151 atletas do voleibol, apenas
Modalidade de ensino e repetência um, no momento da aplicação do questionário, não estava estudando.
Sua situação, após terminar o ensino médio, era de expectativa sobre a
No que diz respeito à relação entre a modalidade de ensino e o índice
confirmação de uma bolsa de estudo no curso de educação física de uma
de repetência, constatamos que todos estudam ou estudaram na moda-
lidade de ensino regular, não precisando utilizar outras modalidades de
4 Entendemos como harmonização quando o clube se adequa aos horários da escola, aten-
ensino3 para dar continuidade ao processo de escolarização devido a sua dendo ao que está preconizado no artigo 29 da Lei 9.615/98, que atribui às instituições espor-
atuação no esporte. tivas formadoras a responsabilidade de garantir a matrícula do jovem na escola, ajustar o
tempo de treinamento aos horários do currículo escolar e exigir sua frequência e aproveita-
3 Seja o ensino para jovens e adultos (EJA) sejam cursos a distância. mento satisfatório (COSTA, 2012).

160 161
instituição particular de ensino. Outro atleta, além da rotina de treina- quadro 4: turno e escola
mento e competições, frequentava duas instituições de ensino públicas
Turno
(uma federal e a outra estadual), ou seja, se dividia entre a rotina de atleta
Categoria Manhã Tarde Noite Manhã e Tarde
e de estudante em dois cursos diferentes vinculados ao ensino médio.
Questionado sobre a razão dessa longa jornada, o jovem informou que Mirim 48 0 0 0

sua família percebia na educação um papel significativo para seu desen- Infantil 55 0 0 1
volvimento, na perspectiva de um futuro com possibilidade de mobilidade Infanto 30 0 0 9
ascendente de sua posição social. Juvenil 5 1 1 1

quadro 3: categoria e tipo de escola5


Escolaridade dos pais
Escola Observamos, ao longo do período de obtenção dos dados para rea-
Categoria Federal Estadual Municipal5 Particular lização dessa pesquisa, que o assunto da importância da escolarização se
Mirim 6 4 5 33 colocava de forma constante na fala dos jovens. Além disso, percebemos
a valorização da escola nos discursos dos jovens enquanto respondiam ao
Infantil 5 4 3 44
questionário, seja pela sua importância em fornecer condições para acessar
Infanto 5 5 – 30
o mercado de trabalho, seja pelo posicionamento da família em relação à
Juvenil 1 1 – 5
escolarização.
Para tanto, lançamos uma análise sobre os dados relacionados à esco-
Foram aplicados 48 questionários para a categoria mirim, 56 para a laridade dos pais com o intuito de entendermos a transferência do valor da
categoria infantil, 40 para a categoria infanto e sete questionários para a escolarização para os atletas investigados. Abaixo, apresentamos o quadro
categoria juvenil. Conforme observamos no quadro 3, há um alto número com os dados relacionados à escolarização dos pais dos atletas.
de alunos inscritos na rede particular de educação.
quadro 5: escolarização dos pais
Turno escolhido
Escolaridade Mãe Pai
O quadro 4 mostra que os atletas das quatro categorias iniciantes do Ensino Fundamental 5 8
voleibol realizam suas atividades relacionadas ao processo educacional,
Ensino Médio 35 25
predominantemente, pela manhã. Isso pode ocorrer pelo fato de as agre-
Ensino Superior 67 78
miações esportivas concentrarem suas práticas de iniciação e formação
pelo turno vespertino e o treinamento dos mais velhos no turno da noite.
Dessa maneira, os clubes se adequam à realidade escolhida pelas famílias Em relação à formação superior, 67 mães e 78 pais concluíram esse
em relação aos períodos de escolarização dos filhos. nível de ensino, o que corresponde a 43,3% e 52,6%, respectivamente, do
Alguns atletas realizam suas atividades escolares no período integral total de 151 atletas. No ensino médio, 35 mães e 25 pais pararam no terceiro
(matutino e vespertino), seja pelo número de disciplinas, seja por um ano ou concluíram essa etapa de ensino, o que corresponde a 28,5% e 16,6%.
período de estágios.
Tempo de escola versus tempo de treinamento
5 O ensino municipal da cidade do Rio de Janeiro oferece o nível fundamental, por isso,
Analisando o quadro 6, observamos que o tempo relacionado às ati-
nenhum atleta das categorias “infanto” e “juvenil” aparecem nessa rede de ensino. vidades acadêmicas é significativamente maior que o tempo dedicado ao

162 163
treinamento em todas as categorias pesquisadas. Apenas na categoria juve- Superliga B. Além disso, os altos salários que estão sendo oferecidos são
nil o tempo de treinamento se aproxima da metade do tempo que é direcio- atrativos para os jovens atletas. No voleibol, assim como nos principais
nado aos estudos. Nesta categoria, os atletas já estavam cursando o ensino esportes coletivos, o salário de maior valor recai sobre aquele que se destaca
superior; assim, pela flexibilidade da grade de horários, o aluno consegue em uma determinada posição. Considerando sua qualidade técnica e a difi-
organizar sua rotina. Além disso, identificamos que os alunos do ensino culdade em encontrar atletas para determinadas posições, um jogador de
superior estudavam em instituições privadas, tendo que arcar com os cus- alto nível, atuando no voleibol brasileiro, pode receber aproximadamente
tos da sua educação, o que poderia influenciar o tempo de permanência na 80 mil reais ao mês.9 Esse dado explica, em parte, a atual demanda pela
universidade. profissionalização no esporte.
Na categoria infanto-juvenil, aparece um aumento do tempo escolar, O voleibol profissional brasileiro, devido as suas inúmeras conquistas
que poderia representar um momento de dedicação à formação e obtenção nas últimas três décadas, à presença de grandes estrelas nos campeonatos
das credenciais acadêmicas importante. O mesmo fenômeno aparece no nacionais e à mudança da maneira de ser jogado, se tornou um esporte que
tempo de treino. Significa dizer que, nessa fase da vida, o jovem deverá atrai admiradores e grandes investimentos. Marchi Junior (2005) aponta que
decidir sobre suas chances de inserção no mercado laboral formal ou sua a parceria firmada entre grandes empresas e as equipes esportivas contribuiu
inserção no mercado esportivo. para que se investisse em contratações de grandes jogadores e para desper-
As categorias mirim e infantil seguem um padrão entre o tempo de tar o interesse mídia. Podemos citar, como exemplo, equipes da Superliga
escola e tempo de treinamento. 2015/2016: Sada Cruzeiro Vôlei, SESI-SP, Vôlei Brasil Kirin e Copel Telecom
Maringá Vôlei, no masculino; Rexona/Ades, Vôlei Nestlé, Camponesa Minas,
quadro 6: tempo de escola versus tempo de treinamento Terracap/Brasília Vôlei, no feminino. Marchi Junior (2005) aponta, ainda, a
Categoria Tempo de escola (h) Tempo de treino (h) importância da televisão no início desse processo de desenvolvimento atra-
vés da mídia, demonstrando este meio de comunicação como um alicerce no
Mirim 24,2 6,8
processo de ascensão do voleibol na década de 1980.10
Infantil 25,3 7,1
Com a expansão da modalidade e o fortalecimento de um mercado
Infanto 30,5 11,1 profissional, muitos jovens se interessam e buscam a possibilidade de pro-
Juvenil 20,9 10,1 fissionalização no voleibol. Assim, crianças e jovens iniciam sua formação
esportiva e as etapas de avaliação exigidas. Os processos de seleção buscam
discussão observar as potencialidades de cada candidato a atleta que, aprovado, passa
a participar dos períodos de treinamento e competições.
No balanço patrimonial6 apresentado pela CBV referente aos anos de No voleibol, correm duas etapas de seleção. Um primeiro processo de
2013/2014, consta que o lucro desta entidade foi de R$ 12.434.999. Com esses seleção logo no início da temporada (fevereiro e março) e outro processo
números, compreende-se a importância que o voleibol representa, sendo seletivo após o período de férias escolares do meio do ano (junho e julho).
um potente gerador de empregos diretos e indiretos. O voleibol profissio- Assim, busca-se selecionar os mais aptos ao esporte, levando-se em consi-
nal brasileiro possui, na sua principal competição, um total de 24 equipes,7 deração, também, características individuais como altura e força.
gerando aproximadamente 600 postos de trabalho8 entre jogadores, trei- Tanto para os atletas que estão debutando no cenário esportivo quanto
nadores, fisioterapeutas. Isso sem incluirmos as equipes que compõem a para aqueles que já estão inseridos no cenário do voleibol, a rotina de uma
6 Disponível em: <http://goo.gl/2dwJq0>. Acesso em: 14 out. 2015. 9 Disponível em: <http://goo.gl/6RgC9i>. Acesso em: 30 set. 2015.
7 Superliga edição 2015/2016, com 12 equipes femininas e 12 masculinas. 10 Segundo o IBGE (2008), 95,1% dos domicílios do país possuem aparelhos televisivos; logo, este
8 Considerando 25 profissionais por equipe, entre atletas e comissão técnica. meio de comunicação continua sendo um importante canal midiático.

164 165
dupla jornada, nesse caso, entre o esporte e a escola se torna difícil e cansa- prepará-los para as oportunidades. Os clubes administram seus horários de
tiva, caracterizando um desafio para os estudantes/atletas essa conciliação. acordo com o potencial contingente que pode integrar seus quadros.
Para percorrer os caminhos entre o campo esportivo e o campo educacio- Este é um mecanismo utilizado por todos os clubes pesquisados, fun-
nal é preciso ter uma estrutura que, normalmente, envolve o apoio familiar cionando como forma de possibilitar ao atleta um horário escolar que não
em aspectos como transporte, alimentação e ajuda financeira. comprometa as etapas de treino. As equipes mirim e infantil treinam no
O campo esportivo exige longas horas de dedicação e treinamento na horário da tarde e os atletas das categorias infanto-juvenil e juvenil rea-
formação do atleta de alto nível. No caso do voleibol, na categoria infan- lizam suas atividades de treinamento no horário noturno. Os atletas das
to-juvenil os atletas realizam aproximadamente 11,1 horas de treino sema- categorias infanto-juvenil e juvenil que estão cursando o ensino médio ou
nais. Já na categoria mirim, os atletas treinam aproximadamente 6,8 horas. superior, em alguns casos, devem cumprir horários que vão além do horá-
Segundo Gonçalves, Turelli e Vaz (2012, p. 146), o sentido do treinamento rio de escolar e de treinamento, como, por exemplo, horário de estágio pro-
no alto rendimento é construir corpos cada vez mais adaptados a vencer fissional como requisito dos níveis de ensino que estão cursando. Nesses
a dor, e assim resistir a uma dura e longa carga sistemática de trabalho casos, os atletas deveriam informar antecipadamente ao técnico os motivos
(estresse) que seja capaz de provocar as adaptações e melhorias necessárias da ausência ou do atraso. A princípio, atrasos motivados por razões relacio-
ao desempenho. A partir desta dinâmica, o corpo de um atleta só descansa nadas aos estudos não significaria problemas. Ao chegar, o atleta atrasado
para poder adaptar-se e preparar-se para receber novo estímulo, tendo em deveria comunicar ao treinador, que avaliaria se sua participação seria per-
vista a melhoria de desempenho. mitida para aquele horário ou com o próximo grupo, ou ainda realizar um
A escolarização é, em tese, um importante momento de assimilação treino físico a parte.
de conteúdos e conhecimentos valorizados socialmente. Segundo Cury O horário de treinamento que os atletas cumprem em início de car-
(2002), a educação escolar é uma dimensão fundante da cidadania, e tal reira corresponde, em média, a duas horas diárias, em média três dias por
princípio indispensável para o desenvolvimento de políticas que visam à semana. Em virtude do sucesso esportivo, serão aumentados o volume e a
participação de todos nos espaços sociais e, mesmo, para (re) inserção no intensidade dos treinamentos. O aumento na carga de treinamento ocorre,
mundo profissional. Para o autor, o acesso à educação é também um meio em especial, nas categorias infanto-juvenil e juvenil, além das atividades
de abertura que dá ao indivíduo uma chave de autoconstrução e de se reco- propostas: os exercícios das categorias iniciais de formação buscam, através
nhecer como capaz de opções. O direito à educação, nesta medida, é uma de repetições, a construção de uma técnica corporal voltada para o voleibol.
oportunidade de crescimento cidadão, um caminho de opções diferencia- Já as categorias finais buscam trabalhar o condicionamento físico dos atletas
das e uma chave de crescente estima de si. através do trabalho de força e explosão muscular.11 Um atleta fez o seguinte
Assim, para facilitar a conciliação dessas carreiras, observamos que a comentário sobre o treinamento que foi anotado no diário de campo:
maioria dos atletas pesquisados concentra sua rotina acadêmica no turno
O treinamento aqui é pesado, treino quatro dias na semana. Tenho aula pela
da manhã (conforme quadro 4). Os clubes realizam suas atividades de trei- manhã, vou para casa e venho treinar. Normalmente, chego antes do meu
namento no período vespertino e noturno; assim, não há o confronto com treino, faço musculação, troco uma ideia com a galera da equipe que vai che-
o horário escolar, permitindo que o atleta cumpra a obrigatoriedade exis- gando, então, começa o treino. O treino dura umas duas horas. Alguns atletas
tente em lei de jovens cursarem o ensino fundamental e médio (BRASIL, do infanto estão treinando com a gente, para pegar ritmo, vão subir ano que
1988; BRASIL, 1996). vem (DIÁRIO DE CAMPO, 9/5/2011, atleta juvenil, equipe 1).
Devemos ter em conta que esse tipo de esporte recebe um contingente Como discutimos, clube e escola são duas instituições formadoras que
oriundo em geral das classes médias, que visualizam a educação de seus filhos atuam de forma independente, mas que deveriam dialogar constantemente,
como prioridade. No voleibol, um número significativo de famílias investe
na formação dos seus filhos, inserindo-os nas instituições de ensino, a fim de 11 Um trabalho muscular intenso é realizado em menor intervalo de descanso.

166 167
a fim de amenizar tensões para que o jovem, envolvido com a gestão de estratégias para garantir a qualidade de ensino para si, por meio da priva-
uma dupla carreira, desenvolva suas capacidades de maneira harmônica na tização do ensino.
escola e no esporte (BRASIL, 1998). O espaço escolar deveria ofertar boas Nogueira (2013) apresenta um olhar sobre outros aspectos que, de
condições de funcionamento para atender a esse tipo de demanda, em ter- maneira, estão também relacionados ao que os pais entendem como
mos de pessoal, material, recursos financeiros e um projeto pedagógico de importantes para a escolarização dos filhos. Os pais matriculam seus filhos
qualidade como direito de todos os cidadãos (ARELARO, 2005). em instituições particulares de ensino visando não apenas uma “boa” edu-
Apesar do investimento do governo em educação, e do discurso de que cação, pois os pais levam em considerações aspectos relacionados a “ele-
o cenário educacional brasileiro tem demonstrado avanços e melhorias, no mentos como a preocupação com a segurança dos filhos, com o público
cenário do voleibol, a partir dessa pesquisa, constatamos que há um alto atendido, com as condições disciplinares e com o tratamento dispensado
índice de estudantes em instituições particulares de ensino em função da ao aluno” (p. 127).
família acreditar que nessas instituições é ofertado o melhor ensino para Percebemos também que as reprovações são pouco frequentes entre os
seus filhos (conforme quadro 3). Dos 151 atletas que participaram da pes- participantes da modalidade estudada (conforme quadro 4). Ao questio-
quisa, 75,6% estudavam em instituições particulares de ensino, o que indica narmos os atletas sobre o motivo da repetência, a resposta mais recorrente
também um corte de classe social. Além da crença de que instituições par- foi o deslocamento da família de uma cidade para outra em virtude do
ticulares possuem melhores condições para estudar, como currículo, pro- trabalho dos pais. Segundo Alves, Ortigão e Franco (2007), a repetência
fessores e infraestrutura, essas instituições contemplam, com bolsas de escolar é um fenômeno social complexo, na qual interagem características
estudo, alunos que se destacam no esporte. Assim, os estudantes passam da escola, do aluno e dos parentes próximos. Considerando a importân-
também a ser atletas que representam essas instituições de ensino particu- cia social da formação escolar e a obtenção das credenciais acadêmicas,
lares em campeonatos. Sobre essa situação, anotamos no diário de campo bem como o entendimento da certificação para a inserção no mercado
a fala de um atleta que reflete a preocupação do seu pai em relação ao seu de trabalho, a família opta por investir no campo educacional tendo em
futuro, em relação aos estudos: vista diminuir ao máximo a possibilidade de que a repetência aconteça.
[...] minha escola é boa (particular), é aqui no bairro mesmo (Tijuca). Tem Destacamos que a reprovação no grupo investigado não é em função da
todas as disciplinas e tenho aulas de inglês e espanhol, a escola oferece prepa- origem social dos atletas, pois a origem social, em especial dos pais, exerce
ratório, mas ano que vem meus pais querem que eu faça um preparatório por um forte impacto positivo no sucesso escolar e dá forma a como os atletas
fora, eles acham que é melhor do projeto que a escola oferece, talvez eu tenha entendem a importância dos estudos nas suas vidas (BOURDIEU, 2011). As
que parar de vir pra cá, ou talvez venha menos vezes (DIÁRIO DE CAMPO,
razões apresentadas sobre os motivos das reprovações estavam ligadas à
1/6/2011, atleta, equipe 1).
mudança de cidade. Normalmente pela mudança de emprego ou empresa
Nessa fala, percebemos que o atleta estuda em uma instituição que ele do pai, toda a família mudava-se de cidade e assim, os filhos tinham que dar
denomina como sendo “boa”, como provavelmente seu pai também deve continuidade aos estudos em outra instituição escolar.
crer, já que paga um valor mensal para que seu filho estude em uma escola Tanto o baixo índice de reprovação quanto a escolha pela instituição
que oferta duas línguas estrangeiras e que, além de ofertar as disciplinas do privada dão significado ao valor que a educação tem para as famílias dos
currículo escolar, oferece um projeto que funciona com um curso prepara- atletas no voleibol. Glória (2005) entende que cada classe social tem uma
tório para o vestibular. Mas, os pais, não acreditando na qualidade do curso forma de transmissão para o entendimento da importância da escola.
preparatório, pretendem pagar um curso que tem como finalidade princi- Assim, a família é responsável por “apresentar disposições específicas rela-
pal e exclusivamente preparar para o vestibular. Akkari (2001) considera tivas aos investimentos escolares que são transmitidas aos seus membros,
que a fragilidade do ensino público nos primeiros anos pós-Constituição pode-se dizer que cada família 'transmite' a seus filhos um modo próprio
de 1988 fez com que as famílias e os grupos sociais dominantes elaborassem de relação com a escola” (GLÓRIA, 2005, p. 9).

168 169
As famílias investem na educação de seus filhos matriculando-os em Quando rola viajar, levo os deveres de casa e faço. O vôlei é legal, mas não me
instituições que acreditam ofertar um ensino de qualidade, em cursos de vejo sendo atleta profissional, acho que eu vou ganhar mais dinheiro se eu
estudar. Uma galera aqui pensa em conseguir, mas eu não. Ano que vem (2012)
línguas (29,8%) e, se necessário, pagam reforço escolar.
vou para o terceiro ano, vou ter que parar ou diminuir a frequência de treinos
Observamos que a grande maioria dos pais desses atletas possui for- se não quiser parar, mas, provavelmente, vou parar. Além da escola, vou entrar
mação superior (quadro 5) – um dos fatores determinantes para que seus em um preparatório (DIÁRIO DE CAMPO, 1/6/2011, atleta, equipe 1).
filhos percebam o valor e o significado da escolaridade e também sejam
influenciados em relação à importância da educação. Durante a aplicação Os jovens dão preferência às ações educativas e não às ações ligadas ao
dos questionários, era comum observarmos no discurso da maioria dos esporte, entendem a escola como local que oferta conhecimentos que serão
atletas que tanto os treinamentos quanto as competições eram entendidas importantes para serem utilizados em suas vidas e na inserção no mercado
como um momento de lazer, de interação com os companheiros de equipe; de trabalho ou na universidade. Não existe, por parte dos clubes, nenhuma
porém, uma parcela menor acreditava na possibilidade de profissionaliza- exigência que faça com que os atletas saiam antes da escola para chegarem no
ção e visualizava no esporte uma oportunidade de conquista de uma bolsa horário correto de treinamento, mas, observamos que os atletas saíam antes
de estudo, em especial, para acessar o ensino superior. do fim do período de treinamento para participar de alguma atividade rela-
cionada à formação acadêmica, por exemplo, curso de língua estrangeira.
Eu vejo uma oportunidade de entrar ano que vem na faculdade, se esse ano Percebemos que esses atletas de voleibol valorizam a formação esco-
eu continuar indo bem, alguns atletas daqui conseguiram ir para a Castelo e
Universo.12 Como sou atleta, vou tentar uma bolsa, quero fazer educação física
lar tanto em função da origem social quanto pelas oportunidades que a
e ser técnico de vôlei (DIÁRIO DE CAMPO, atleta juvenil, 4/5/2011, equipe 1). certificação escolar pode gerar para suas trajetórias para além do mercado
esportivo. Porém, reconhecemos a existência de atletas que tendem a visua-
Segundo Honda (2006), os pais preocupam-se com o desenvolvimento lizar essa modalidade como possibilidade de ascensão social ou, ao menos,
das capacidades de seus filhos com a intenção de prepará-los para que pos- veem o voleibol como mecanismo de conseguir avançar nos estudos em
sam atingir sucesso econômico. As escolhas feitas pelos pais, a partir de instituições universitárias que os apoiem com bolsas de estudo e, assim,
suas próprias características e condições, interferem de forma direta e indi- tenham pela titulação do ensino superior, alguma oportunidade pelo viés
reta na formação do filho. Em conversa com os pais durante o período de educacional de melhoria.
aplicação do questionário, era comum ouvirmos que estes respeitavam a
vontade dos filhos de estarem envolvidos com o voleibol, apoiavam no que referências bibliográficas
fosse preciso; contudo, os pais e alguns atletas deixavam claro que o volei-
bol era um momento compreendido como de lazer naquela fase da vida. AKKARI, A. J. Desigualdades educativas estruturais no Brasil: entre estado, priva-
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Sobre esse contexto de o esporte ser entendido como um momento de 163-189, 2001.
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Rio de Janeiro: raça-capital econômico. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 130, p. 161-
180, abr. 2007.
Minha família me apoia sempre, cobra bastante em relação aos estudos.
Quando decidi jogar vôlei, meus pais conversaram sobre o horário dos trei- ARELARO, L. R. G. O ensino fundamental no Brasil: avanços, perplexidades e ten-
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12 A Universidade Castelo Branco e a Universidade Salgado de Oliveira são centro universitários de Queiroz Piacentini. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011.
no estado do Rio de Janeiro que possuem equipes de diversas modalidades esportivas. São BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
reconhecidas por contemplar atletas com bolsas integrais ou com descontos nas mensalida-
des de atletas que se destacam em modalidades. Assim, esses atletas passam a defender essas ______. Lei n. 9.394, de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação
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170 171
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172 173
capítulo 7 A responsabilidade da educação das novas gerações está expressa
no art. 205, quando afirma que: “A educação, direito de todos e dever do
Esporte vs escola: conciliação esporte e escola Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
de jovens alunos/atletas beneficiados pelo sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para
o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).
Programa Bolsa-Atleta no Brasil Na esteira da educação, nossa legislação também destaca o esporte
André Luiz da Costa e Silva como um o direito. A Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, que institui o
Hugo Paula Almeida da Rocha Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios
Marcio Gabriel Romão e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de
Leonardo Bernardes Silva de Melo Juventude (SINAJUV), em sua Seção II, que trata de Diretrizes Gerais, diz,
em seu art. 3o, que os agentes públicos ou privados envolvidos com políticas
públicas de juventude devem observar as seguintes diretrizes:
V – garantir meios e equipamentos públicos que promovam o acesso à produ-
ção cultural, à prática esportiva, à mobilidade territorial e à fruição do tempo
introdução livre. Sendo mais específica na sua Seção VIII que trata do Direito ao Desporto
e o Lazer diz:
A Lei nº 12.796 de 4 de abril de 2013, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezem- Art. 28. O jovem tem direito à prática desportiva destinada a seu pleno desen-
bro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, obriga volvimento, com prioridade para o desporto de participação.
que crianças de 4 a 17 anos de idade estejam regularmente matriculadas e Parágrafo único. O direito à prática desportiva dos adolescentes deverá consi-
frequentando a escola (BRASIL, 2013). Sabemos da importância da escola, derar sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
para além da obrigatoriedade da força da lei e da funcionalidade de forma- Art. 29. A política pública de desporto e lazer destinada ao jovem deverá
ção de capital humano para o mundo do trabalho. A escola é um espaço de considerar:
I – a realização de diagnóstico e estudos estatísticos oficiais acerca da educação
socialização das novas gerações para adentrarem a esfera da vida pública
física e dos desportos e dos equipamentos de lazer no Brasil;
(ARENDT, 2005). A escolarização, como se diz comumente, deve formar o
II – a adoção de lei de incentivo fiscal para o esporte, com critérios que priori-
cidadão autônomo para atuar no espaço público e buscar sua autorrealização.
zem a juventude e promovam a equidade;
Não menos importante do que a escola, certamente alternando com
III – a valorização do desporto e do paradesporto educacional;
esta os momentos de protagonismo no desenvolvimento do indivíduo, está
IV – a oferta de equipamentos comunitários que permitam a prática despor-
a família. Segundo Kreppner (2000), a família é vista como um sistema tiva, cultural e de lazer.
social responsável pela transmissão de valores, crenças, ideias e signifi- Art. 30. Todas as escolas deverão buscar pelo menos um local apropriado para
cados que estão presentes nas sociedades. É no ambiente familiar que os a prática de atividades poliesportivas (BRASIL, 2013).
primeiros pilares da formação de um indivíduo são construídos e finca-
dos. No ambiente familiar, a criança aprende a resolver conflitos e a mediá- Não obstante a força da lei, outros tantos argumentos de igual peso e
-los, a expressar diferentes sentimentos e a controlar emoções, lidar com potência vêm se somar ao aspecto legal, fundamentando a opção que mui-
diversidades e adversidades apresentadas no dia a dia (WAGNER; RIBEIRO, tos estudantes fazem por ter uma carreira esportiva caminhando ao lado da
ARTECHE; BORNHOLDT, 1999). A educação dos indivíduos se constrói na carreira da escola. Essa opção se torna uma carreira que deve ser conciliada
constante negociação entre a escola, a família e a comunidade, seja tensa com a escolarização obrigatória, para jovens em idade escolar. Esse fato
ou consensual. tem sido problematizado pela literatura especializada como dupla carreira,

174 175
na medida em o jovem atleta deve conciliar o desempenho esportivo com O programa Bolsa-Atleta é uma política setorial que atende a um grupo
a escola (BORGGREFE; CACHAY, 2012; RYBA; SELANNE, STAMBULOVA; especial na sociedade brasileira (Lei nº 10.891, de 09 de julho de 2004 e
RONKAINEN; BUNDGAARD, 2014). pelo Decreto-Lei nº 5.342, de 14 de janeiro de 2005 – BRASIL, 2004), que
O conceito de dupla carreira é explicado como a combinação de duas tem por finalidade dar apoio aos atletas de diferentes modalidades, de alto
carreiras, sejam elas no esporte, trabalho ou escola. Responder de forma rendimento, que apresentam bons resultados nas competições nacionais.
eficiente às exigências escolares e do esporte de alto desempenho é uma Esse programa pode ser encarado como um programa de manutenção/
tarefa desafiadora para os jovens que optam por trilhar esse tipo de cami- transferência de renda para atletas que ainda não possuem nenhum ganho
nho. As exigências crescentes de desempenho atlético em esportes de alto pecuniário dos clubes ou de outras formas de financiamento da atividade
desempenho colocam sobre esses jovens atletas um tipo de dilema entre esportiva. O objetivo do programa é apoiar talentos esportivos ainda não
escolher a maximização do potencial atlético e, ao mesmo tempo, ter acesso absorvidos pelo mercado do esporte espetáculo, o que demonstra que é
a um tipo de educação acadêmica satisfatória para uma carreira pós-atlé- intenção do programa criar meios para manutenção ou formação do atleta
tica (LAVALLEE; WYLLEMAN, 2000). no esporte de alto rendimento. Os valores das bolsas são diferenciados por
Um dado da realidade sobre esse tipo de dilema pode ser retratado categoria e desempenho do atleta. A bolsa se divide em cinco categorias:
pelos Jogos da Juventude1 (realizado entre os dias 8 e 15 de novembro de Atleta de Base, Atleta Estudantil, Atleta Nacional, Atleta Internacional e
2014), categoria 15 a 17 anos, que aconteceram na mesma data do Exame Atleta Olímpico e Paralímpico. Poder-se-ia pensar tal programa como um
Nacional do Ensino Médio (Enem), exame que, entre outras funções, tam- apoio governamental de fixação do atleta até que consiga sua inserção e
bém dá acesso ao ensino superior. Essa concomitância de datas obrigou os sobrevivência através do esporte. Destaque-se que quase todas as modali-
jovens atletas a escolherem entre a competição e o Enem. Os problemas de dades de bolsa não exigem que os beneficiados possuam matrícula escolar
conciliação do sistema escolar com o esportivo não são exclusividade do ou universitária; a única modalidade de bolsa que faz essa exigência é a
Brasil; todavia, na Europa, algumas propostas e ações foram implementa- modalidade Atleta Estudantil. O objetivo deste texto foi estudar como os
das com políticas e programas para equacionar as dificuldades que envol- beneficiários do Programa Bolsa-Atleta, do Ministério do Esporte, na cate-
vem a dupla carreira. Os Estados Unidos, no cenário mundial, representam goria estudantil, conciliam as demandas do esporte com as da escolarização.
uma exceção, na medida em que o sistema esportivo é gerenciado no inte-
rior do sistema escolar. métodos
No Brasil, algumas tentativas de conciliação da dupla carreira têm sido
realizadas através de programas que incentivam o desenvolvimento do Esse tipo de investigação visa compreender como se dá a formação escolar
esporte de alto nível e a permanência na escola. Nesse sentido, o Ministério e esportiva simultânea de jovens que são atletas beneficiários do programa
do Esporte (ME) tem o programa Bolsa-Atleta, desde 2004, que inclui uma Bolsa Atleta do Ministério do Esporte e, portanto, colocados entre os três
modalidade que visa ao desempenho esportivo e à permanência escolar.
em junho de 2014, o programa Bolsa-Atleta Corumbá, que se destina a conceder, a título
Outras variações desse tipo de programa estão presentes em estados e de incentivo, auxílio financeiro aos atletas e equipes do município, praticantes do desporto
municípios brasileiros.2 escolar ou de rendimento, que se destacarem em competições nos âmbitos estadual, nacional
e internacional”. O estado da Bahia, através da SUDESB (Superintendência dos Desportos do
Estado da Bahia) fomenta o Bolsa Esporte, que tem como “objetivo de incentivar os atle-
1 Maior competição estudantil do Brasil, os Jogos Escolares da Juventude reúnem jovens de 12 tas e paratletas residentes no estado da Bahia à prática de esportes e oferecer suporte para
a 14 anos e de 15 a 17 anos, de escolas públicas e privadas de todo o país, em 14 modalidades. o treinamento e participação em competições regionais, nacionais e internacionais, através
A competição foi criada pelo Comitê Olímpico do Brasil em 2005 e conta com o apoio do do Programa Estadual para Apoio à Prática do Esporte”. Com os mesmos objetivos, pode-
Ministério do Esporte. mos citar ainda o Bolsa Talento Esportivo, do governo do estado de São Paulo e o Programa
2 No município do Rio de Janeiro foi lançado, em junho de 2011, o Programa Ginásio Bolsa-Atleta da Prefeitura de Guarujá-SP, entre outros projetos vinculados à educação espor-
Experimental Olímpico (GEO), que “é uma escola em tempo integral vocacionada para o tiva e de lazer (GUARUJÁ, 2014; CORUMBÁ, 2014; GINÁSIO EXPERIMENTAL OLÍMPICO, s/d;
esporte, que integra formação acadêmica e esportiva”. Em Corumbá-MS a prefeitura instituiu BAHIA, 2009; SÃO PAULO, 2013).

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melhores do país em sua categoria e modalidade. O público beneficiado em função de serem as mais contempladas por esse tipo de modalidade
pelo Bolsa-Atleta na categoria Atleta Estudantil foi formado em 2011 por 245 de bolsa no programa. As entrevistas foram transcritas, carregadas num
jovens – entre 14 e 20 anos – que atuavam nas seguintes modalidades: bocha programa de análise de conteúdo e tabuladas a partir das categorias que
paraolímpica, goalball, basquetebol, voleibol, futebol de 7, futsal, handebol, respondem à questão central da pesquisa: como se dá a conciliação entre
futebol de 5, atletismo, judô, judô de cegos, natação, tênis de mesa e xadrez. o esporte e a escolarização dos atletas. As entrevistas se concentraram na
O valor da bolsa para o atleta dessa categoria era de R$ 370 na época. Para região Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país, pois nessas regiões o número de
se inscrever como candidato ao benefício, o atleta deve cumprir alguns pré- beneficiados pelo programa era maior na época do estudo. Quanto à distri-
-requisitos, entre eles, estar matriculado em instituição de ensino pública ou buição, 1/3 destes alunos/atletas reside na região Sul, 1/3 na região Sudeste e
privada e ter o desempenho esportivo determinado para obter o benefício. 1/3 na região Centro-Oeste. Os nomes aqui listados são fictícios.
A coleta de dados se iniciou a partir do envio de uma carta de apresen-
tação para cada atleta beneficiado e seu respectivo responsável, no dia 6 Escolaridade
Nome fictício Modalidade Sexo UF
de dezembro de 2012. Na referida carta, apresentamos aos destinatários o AlAt Mãe Pai
intuito da pesquisa e frisamos a importância da participação. Informamos 1 Gabriel Nadador Natação M SP M F2 F2
que o contato para a aplicação do questionário poderia ser realizado via 2 Danilo Corredor Atletismo M SP M F1 D
contato telefônico ou contato via Skype com os referidos atletas benefi- 3 Felipe Nadador Natação M SC M M S
ciados pelo Programa Bolsa-Atleta na categoria estudantil. Criamos uma 4 Lilian Judoca Judô F GO M F2 M
conta de e-mail para que os atletas pudessem entrar em contato conosco, 5 Nei Judoca Judô M MG M S M
além de criarmos uma página na rede social Facebook, que permitiu o con- 6 Henrique Tenista (P) Vôlei sentado e Tênis M DF M S M
tato de forma direta com os atletas, seus familiares e treinadores que estão
7 Betina Nadadora Natação F MG S S S
adicionados. Todas essas informações estavam contidas na carta. Apenas
8 Sandra Ciclista Ciclismo F PR M S S
quatro cartas foram devolvidas pelos Correios, alegando endereço insufi-
9 Andreia Judoca Judô F MG S M S
ciente do destinatário. Atentamos que o endereço utilizado para envio era
10 Nelson Corredor Atletismo M SC M S M
o mesmo que constava na relação fornecida pelo Ministério do Esporte.
11 Jorge Corredor Atletismo M SC S F1 F2
A aplicação da entrevista estruturada durou aproximadamente de 15 a 20
12 Sebastião Judoca Judô M GO F2 M F2
minutos. Foram realizadas 165 entrevistas estruturadas em diversos estados
13 Pedro Ciclista Ciclismo M GO M M S
via Skype. Após essa fase de realização das entrevistas estruturadas, ini-
ciou-se a realização das entrevistas semiestruturadas com os atletas benefi- 14 Teresa Tenista (P) Tênis F GO M F2 F2

ciados pelo programa, para captar as percepções desses atletas sobre a con- 15 Lucas Ciclista Ciclismo M PR S S S
ciliação das carreiras esportiva e escolar. Para essa fase, foram selecionados 16 Helena Ciclista Ciclismo F PR M S S
20 atletas de acordo com a disponibilidade apresentada para realização 17 Cesar Nadador Natação M SP S S M
das entrevistas (período de junho a agosto de 2013) e a modalidade espor- 18 Aurélio Judoca Judô M DF M S M
tiva. Dos 20 atletas selecionados, conseguimos realizar 18 entrevistas, duas Legenda: AlAt= Aluno/atleta; D= desconhece; F1= Ensino Fundamental 1; F2= Ensino
dessas entrevistas não ocorreram em função de os atletas desmarcarem Fundamental 2; M= Ensino Médio; P= Paratleta; S= Ensino Superior.
no momento em que os entrevistadores estavam em campo. Agendamos
com cada atleta uma determinada data para a realização das entrevistas Apesar de realizarmos as 18 entrevistas, observamos que o ponto de
em profundidade em suas cidades. As entrevistas foram realizadas apenas saturação dos conteúdos ou informações geradas a partir das entrevistas
com atletas de modalidades individuais. Escolhemos essas modalidades se deu já na décima entrevista. Essas entrevistas foram filmadas com a

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autorização prévia dos atletas e dos seus responsáveis. O material das entre- Ter bolsa permite que o aluno/atleta continue treinando, porque em
vistas foi codificado e analisado, tendo por base o cruzamento entre os obje- algumas situações, esses jovens precisam gerar renda para sustento da ativi-
tivos da pesquisa, expressos por meio das questões orientadoras, e os temas dade esportiva ou para complementar a renda familiar. Esse último tipo de
que surgiram a partir da interação entrevistador e entrevistado. Utilizamos necessidade pode fazer com que o mundo do trabalho venha a concorrer
a técnica de análise de conteúdo temática. Neste texto, trabalhamos com o com a trajetória esportiva. De fato, em alguns casos, a bolsa significa manu-
foco as percepções dos atletas sobre a relação entre escola e esporte. tenção do atleta para além das despesas pessoais e da prática do esporte.
Para organizar os dados coletados nas entrevistas escolhidas, foi usado Para além dos programas de governo destinados aos atletas, temos, de
o software de análise qualitativa de dados webQDA. A codificação foi rea- forma assistemática, instituições de ensino privado que concedem bolsas
lizada a partir das seguintes palavras que surgiram na entrevista semies- aos atletas que podem ser incorporados às equipes esportivas das referidas
truturada: lazer, carreira, estudo, escola, deslocamento, tempo, professor, escolas. Esse tipo de benefício, em geral, isenta o atleta totalmente ou par-
prova, avaliação, nota, promoção, trabalho, idade, calendário, treino, esco- cialmente das taxas escolares. Para atletas com baixos recursos financeiros,
laridade, desgaste, tarefas, tarefa, aprovação, reprovação, lesão, recupera- esse tipo de benefício pode aumentar as oportunidades escolares, tendo
ção, cansaço, família, incentivo, incentiva, viajar, atletas, gastos, investi- em vista o ingresso em instituições de maior prestígio em suas regiões. No
mento e viagem. Brasil, as bolsas de estudo para estudantes atletas em instituições privadas
Para estruturar a tabulação das falas dos entrevistados, criamos 14 temas ocorrem nas poucas escolas que participam de algum circuito de competi-
na categoria codificação “Nós Livres”: Carreira no esporte, Carreira depois ções esportivas escolares. Temos, no Brasil, um precário sistema de esporte
do esporte, Escola, Estudo, Lazer, A Bolsa, Escola vs Esporte, Incentivo, escolar que é desconectado do sistema de esporte clubístico (ROCHA, 2013;
Família, Recuperação, Rotina de treinos e estudos, Tarefa, Deslocamento e MELO, 2010; SOARES, ROCHA, COSTA, 2011). Em contraposição, no sistema
Formação pelo esporte. Neste estudo, como já dito, nos concentraremos em norte-americano, a formação do atleta se dá na escola e isto possibilita for-
analisar as falas sobre esporte vs escola, rotinas de treino e estudo, escola e mas mais diretas e reconhecidas de conciliação entre a carreira esportiva
como a família representa a escola e o esporte na vida de seus filhos. e escolar. Esse modelo oportuniza que o atleta talentoso na escola básica
Aspectos éticos: Neste projeto, em toda entrevista ou aplicação de for-
amplie suas possibilidades de ter acesso à universidade e isenção de taxas
mulário utilizamos o termo de consentimento livre e esclarecido. O anoni-
acadêmicas. Todavia, a literatura indica que existem problemas de gestão
mato será assegurado aos participantes e às instituições em publicações e
mesmo nesse modelo de desenvolvimento do esporte de alto rendimento
apresentações públicas do estudo.
no interior do sistema escolar e universitário. Como exemplo, podemos
destacar a diferença de orçamento entre a divisão I e a divisão II da NCAA.
resultados
A divisão II, com orçamento menor, não pode fazer um forte investimento
A manutenção do benefício Bolsa-Atleta, modalidade estudantil, exige que em tutores e orientadores acadêmicos para seus alunos/atletas. Estes, no
o atleta obtenha resultados expressivos na modalidade esportiva, em níveis entanto, apesar da falta deste apoio para compensar as perdas com treinos
nacional ou internacional, e matrícula escolar e/ou universitária. e competições esportivas, devem manter o mesmo desempenho acadêmico
Descobrimos que os beneficiários do programa Bolsa-Atleta do governo dos alunos/atletas que fazem parte da divisão I, para continuar fazendo jus
federal podem receber bolsas de incentivo ao desempenho esportivo por aos benefícios que a carreira no esporte garante àqueles que, além de atle-
outros entes federativos. Esse dado indica que o programa do governo tas, são também alunos (BOOTHE, 2015).
federal não possui restrições de exclusividade no financiamento dos atletas. Neste texto, trabalharemos com as falas dos alunos/atletas nas codi-
Apenas para destacar um dos exemplos, entrevistamos uma aluna/atleta de ficações Escola vs Esporte, Rotina de Treinos e Estudos, Família e Escola.
Maringá/PR que tinha bolsa do governo municipal, do governo estadual e Ao abordarmos a codificação Escola, usaremos também falas da codifi-
também do governo federal. cação Carreira depois do Esporte por perceber que nestas falas podemos

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entender as expectativas dos alunos/atletas com relação às possibilidades Dois entrevistados apontaram que o grande obstáculo a ser vencido era o
que a escola lhes oferta. cansaço. Após uma dupla jornada com escola e treino, o estudo, que deveria
acontecer na parte da noite, ficava prejudicado. Um aluno/atleta de natação,
Escola vs esporte residente em Santa Catarina, ao ser perguntado sobre o que acarretava difi-
Na conciliação esporte vs escola, os alunos/atletas apresentaram argu- culdades para a conciliação entre esporte e escola, nos fez o seguinte relato:
mentos que variavam entre a flexibilização das rotinas e as dificuldades
Felipe Nadador: Às vezes, pelo próprio cansaço que os treinos proporcionam,
para gerir a dupla carreira no esporte e na escola. Um dos entrevistados acaba diminuindo a carga de estudo, porque a gente acaba ficando muito can-
assume ter abandonado o esporte – mesmo ainda recebendo a bolsa-atleta sado e vai acumulando demais, e o estudo acaba decaindo um pouco.
na modalidade estudantil na época – pela dificuldade de conciliar o esporte
com a escola; outro diz conciliar parcialmente a dupla carreira, pois teria A conciliação entre essas carreiras parece ser melhor equacionada
interrompido o esporte no segundo semestre do 3º ano do ensino médio quando a escola possui investimentos no esporte e participa de compe-
e retomou os treinos no ano seguinte, tendo se tornado aluno/atleta de tições estudantis. Esses alunos/atletas ainda podem ser beneficiados com
um curso superior. Os demais entrevistados (16) afirmaram que logra- bolsas de estudo e receberem preparo acadêmico na escola que represen-
ram sucesso na conciliação dos estudos com treinos e competições; apesar tam. Para ilustrar esta ponderação, trazemos a fala de um aluno/atleta de
disso, uma parte desses entrevistados não percebem problemas e outros atletismo, residente na cidade de Santo André, São Paulo:
destacam algumas dificuldades. Danilo Corredor: [...] a escola é praticamente feita só de atleta – no período de
Um aluno/atleta de judô, residente em Brasília, quando perguntado Jogos Escolares, que é num período de provas da escola e também nos Jogos
sobre como a escola lidava com as avaliações no caso das viagens para par- Escolares de Santo André, eles fazem até outro calendário pros desportistas.
ticipar das competições, relatou o seguinte: Fazem outro calendário de provas pra quem pratica esportes; a coordenação
consegue manejar bem essa, esses calendários de provas, de atividades, eles,
Aurélio Judoca: Então, ela remarcava [avaliações], o coordenador [da escola] eles batalham bastante para conseguir que todos os atletas façam a prova, as
ajudava bastante, o coordenador era bem compreensível com relação a isso, atividades que foram pedidas pelo professor, e eles apoiam bastante, o profes-
ele remarcava prova, às vezes até recuperação mesmo, não tinha problema... sor ajuda também. Se tiver alguma coisa, alguma dúvida também, eles tiram
conversava com os professores e os professores entendiam também, ajudavam. a dúvida, eles param a aula e sentam na mesa deles para ajudar, para explicar
Às vezes, o próprio professor mesmo, adiantava um pouco a prova, fazia uma uma matéria que você perdeu, são bem compreensivos mesmo.
prova diferenciada.
O que está em jogo para esses alunos/atletas é o conflito entre as deman-
Dois alunos/atletas entrevistados disseram que, ao consultarem seus das criadas pelas duas carreiras. Essa conciliação se dá de forma oficiosa,
técnicos quanto à liberação dos treinos para cumprirem tarefas escolares, completamente baseada no esforço pessoal de cada aluno/atleta e/ou na
que seus técnicos os liberavam, e ainda reforçaram a importância de fre- compreensão daquele que representa a escola, pois pode ser o diretor, o
quentarem a escola. Para ilustrar a questão colocada, a fala de uma atleta de coordenador ou o professor. Em alguns casos, a conciliação fica definitiva-
judô, residente em Goiás, é exemplar: mente ou temporariamente muito difícil, obrigando o aluno/atleta a optar
por uma ou outra carreira, caso não esteja mais em idade de frequentar
Lílian Judoca: Não, não. Eles cedem, se eu falasse assim: Sensei,3 não vou treinar
hoje porque tenho que fazer trabalho, tô atolada de trabalho, tem que entregar a escola obrigatoriamente por força de lei. O beneficiário do Bolsa-Atleta
porque senão vou ficar para recuperação, eles dizem: não, vai, faz o dever, faz o na categoria estudantil não poderia, em tese, abandonar a escola. Todavia,
trabalho. Qualquer coisa, se tem que estudar, eles me liberam de tudo. como já dito, 16 dos atletas entrevistados indicaram não apresentar dificul-
dades de conciliação entre o esporte e a escola. Se observarmos esses atletas
diretamente, veremos que foram entrevistados alunos/atletas nas regiões
3 Instrutor de arte marcial.

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Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país. Por coincidência a quantidade de Sandra Ciclista: Eu penso que seria mais certo eu levar o esporte agora, estu-
entrevistados é a mesma em cada uma das regiões, 33,3%. Entre os alunos/ dar eu posso depois. Por isso que parei esse ano. Eu estava numa fase boa,
então preferi evoluir essa fase do ciclismo, e mais tarde pensar em estudar.
atletas entrevistados, temos 5,5% estavam no ensino fundamental I, 66% no
ensino médio e 27,5% no ensino superior. Estes números indicam que os Percebemos, baseados nestes dois últimos depoimentos, que o momento
estudantes de ensino médio podem ter menos dificuldade para conciliar esportivo em que estes alunos/atletas se encontram também indica uma
escola e esporte, face ao fato de não precisarem, ou precisarem em menor possível escolha por parar com o esporte ou parar com o estudo. Embora as
escala, gastar tempo na busca por suporte financeiro, podendo assim usar o duas alunas/atletas representassem o Brasil em competições internacionais,
tempo economizado na busca por suporte financeiro com atividades esco- a ciclista entendia que, com os bons resultados que tinha, a carreira esportiva
lares e/ou do esporte. Outro dado importante é que 49,5% das mães e 38,5% deveria ser priorizada, pois suas perspectivas de resultados esportivos eram
dos pais dos alunos/atletas entrevistados têm formação universitária, o que bastante estimulantes e o espaço para crescer em sua modalidade espor-
pode indicar a valorização da carreira escolar no cenário dessas famílias. tiva era significativo. Assim, parou de estudar ao completar o ensino médio,
As pesquisas realizadas pelo LABEC mostram que os atletas que ocupam deixando o resto da sua carreira escolar para depois de terminada a carreira
modalidades esportivas com menor custo de materiais (como o atletismo esportiva. Já a aluna/atleta de natação, apesar de também ser uma nadadora
e o turfe, por exemplo) são oriundos de famílias populares, com pais com da seleção brasileira da sua categoria, preferiu apostar nos estudos, uma
menor escolaridade e com atraso escolar mais significativo. Todavia, diante vez que seus resultados no esporte não apontavam para grandes momentos
dos dados expostos, não podemos correlacionar a escolaridade dos pais e esportivos no futuro. Assim, esta nadadora opta por se dedicar aos estudos
o tipo de modalidade esportiva defendida pelo atleta. Talvez isso se deva à para entrar no curso superior, acreditando que assim consolidaria de forma
seleção amostral. Mas, por isso, não podemos inferir qualquer fala sobre o mais consistente seu futuro. Uma vez aluna do ensino superior, retoma suas
tipo de modalidade esportiva e o investimento escolar das famílias e dos atividades esportivas, porém em ritmo bem mais fraco, mesmo assim sufi-
atletas beneficiados pelo Programa Bolsa-Atleta na categoria estudantil. ciente para garantir o beneficio do Bolsa-Atleta estudantil por conta dos
O projeto de ser atleta pode entrar em conflito com a escola. Na fase resultados de sua participação nos Jogos Universitários Brasileiros.
escolar do ensino médio, momento de maior quantidade e profundidade Outro dado importante é que tanto a aluna/atleta que interrompe os
dos conteúdos na escola e de aumento da intensidade nos treinos, o aluno/ treinamentos esportivos para se dedicar aos estudos como o aluno atleta
atleta pode decidir, temporariamente, parar com uma das carreiras para que abandona definitivamente o esporte são da modalidade natação. É
investir naquela que julga prioritária naquele momento. Os depoimentos a sabido que nesta modalidade esportiva é comum o fato de atletas de alto
seguir ilustram esse tipo de conflito: nível terem que treinar em dois períodos. Tal fato pode indicar que essa
Betina Nadadora: Então... eu parei. Eu parei na metade do terceiro ano. Foi necessidade de dedicar, diariamente, muito tempo ao esporte, torna a con-
aquela época que aconteceu... eu treinava de madrugada, ia pra escola, aí ciliação com os estudos ainda mais difícil.
inglês na hora do almoço, voltava pra escola, já almoçava por lá... É... aí tinha Esta escolha também pode ser definitiva quando o jovem avalia não ser
musculação à noite, então foi uma época em que eu comecei a engordar muito, possível conciliar as duas carreiras. Claro que esse tipo de decisão envolve
então tive que fazer aquelas aulas de redação, então eu não estava conseguindo
todo um processo de negociação do jovem com seus familiares e com as
cumprir tudo. Aí eu parei de uma vez [o esporte].
relações sociais que trava em sua trajetória. Um aluno/atleta de natação jus-
Outras motivações também podem levar o aluno/atleta a interromper tificou assim a decisão de interromper em definitivo a carreira no esporte:
temporariamente os estudos. Um expoente do ciclismo nacional declarou:
Felipe Nadador: É assim vendo, tendo em visão meu último ano de natação,
eu percebi que tava difícil conciliar o estudo com a natação, fazia os dois pela
metade, ou eu estudava... tive que faltar treino para estudar para as provas e
tive que faltar na escola pra ir para as competições e pros treinos. Daí eu achei

184 185
que estava realmente ficando muito complicado, sendo que esse ano tenderia à tarde vou “pro” curso e a noite eu fico livre. Sexta-feira de manhã eu vou pra
a piorar mais ainda. escola, a tarde vou “pro” treino e a noite fico livre.

Nas três falas anteriores, podemos observar que dois nadadores resol- Sete dos onze entrevistados vão à escola pela manhã e treinam no
veram abandonar o esporte para se dedicarem à escola, e a ciclista com período da tarde, com variações de horário de acordo com a modalidade e
alto desempenho no cenário nacional resolveu interromper os estudos o calendário de competições. O 11º aluno/atleta está no curso superior e tem
temporariamente. As decisões desses atletas, para além do corte de classe aulas de manhã e tarde; o treino acontece à noite, duas vezes por semana.
que essas modalidades esportivas possuem, por certo pesaram as chan-
ces que possuíam naquele momento na carreira esportiva e na escolar. A Nei Judoca: É o seguinte. É... na escola eu particularmente estudo de manhã,
assim como eu acredito que a maioria dos atletas, né, aqui estuda de manhã e
ciclista, como já apresentamos, opta pelo esporte, a nadadora interrompeu à tarde treina. Meu treino geralmente é duas horas até três e meia. Depois eu
momentaneamente o esporte e voltou em ritmo mais fraco às piscina, já o tenho parte física que é muito importante né, treino funcional geralmente de
nadador Felipe, ao olhar para o futuro, vê as suas melhores possibilidades uma hora, dura uma hora e à noite tem dia que a gente tem treino técnico tam-
nos estudos, e assim opta em definitivo pela carreira de estudante. Observa bém, assim, treina mais a parte técnica mesmo, questão tática, porque é muito
que, pela sua escolha de instituição de ensino e curso, pretendia estudar importante você saber aliar tudo, né, tática, força, técnica. Final de semana a
gente treina também às vezes.
em uma universidade pública e cursar engenharia, o que o obrigava a uma
dedicação grande, e que seu tempo não poderia estar dividido. O tempo de treinamento semanal variou de 10 a 25 horas, dependendo
A decisão de permanecer no esporte e/ou na escola depende de um do aluno/atleta. Observamos que esse tempo de treinamento, distribuído
conjunto de fatores que são levados em consideração pelo próprio aluno/ por cinco dias na semana, pode variar de 2 horas a 5 horas diárias de dedi-
atleta. As tentativas de conciliação da dupla carreira geram demandas inco-
cação ao esporte. Assim, temos uma média semanal de 14,3 horas por
muns à rotina de jovens estudantes. O cansaço físico e a rotina de competi-
aluno/atleta, ou 2,9 horas por dia de treinamento, não considerando os
ções somam-se às obrigações escolares. Com isso, os alunos/atletas acabam
fins de semana. Se tomarmos um tempo diário de 5 horas gastos na escola,
por negociar as tarefas do esporte e da escola a fim de melhor compatibili-
somando ao tempo de treino e a 8 horas de sono, faz-se um total de 15,9
zar os horários e não deixar de lado as obrigações prioritárias.
horas de tarefas obrigatórias, restando por dia, 8,1 horas para estudos, des-
Rotina de treinos e estudos locamentos e tarefas extraordinárias.

Dos 18 alunos/atletas entrevistados, 11 responderam sobre sua rotina Família


de treinos e estudos. Dois destes 11 são alunos/atletas paralímpicos e têm
O tema família se torna importante para a compreensão de como os
uma carga de treino menor. Os dois treinam duas vezes por semana e um só
alunos/atletas conciliam as rotinas de treinamento, competições e escolar.
treina nas semanas anteriores à competição. Este último é cadeirante, mora
A família acaba fazendo parte das negociações que se apresentam neces-
longe do local de treino e tem que se locomover em transporte público, fato
que complica a rotina de treinos. Os três têm escola todos os dias, no turno sárias para a compatibilização dos horários do aluno/atleta. Em dez famí-
da manhã. lias, encontramos cobrança de notas, mas somente em três famílias tivemos
cobrança de nota e acompanhamento dos estudos. Duas famílias acompa-
Teresa Tenista: Segunda de manhã eu estudo, à tarde eu pratico tênis, ai à noite nham os estudos, mas não cobram notas do aluno/atleta. Três famílias não
eu já tô em casa. Terça... escola, à tarde eu faço curso e a noite eu tô em casa. Na acompanham estudos ou esportes. Três famílias acompanham, além do
quarta eu vou pra escola, à tarde eu fico livre, livre né estudando e à noite eu
desempenho escolar, também o desempenho esportivo, estando duas delas
venho “pro” treino. Quinta-feira é o mesmo jeito, de manhã eu vou pra escola,
organizadas da seguinte forma: o pai acompanha o esporte e a mãe, a escola.

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Jorge Corredor: Meu pai e minha mãe sempre cobraram isso, dever... Sempre A relação com a escola ganha contornos mais detalhados quando os
me passaram para estudar, pois nunca tiveram a oportunidade de estudar atletas comentam sobre a estrutura da instituição de ensino. Sabemos que
quando eram pequenos. Minha mãe parou na quarta série, meu pai fez só a percepção de cada atleta pode variar quanto à organização e infraestru-
o ensino médio, mas depois de grande já me tinha como filho, aí que foi ter-
minar o ensino médio. Mas sempre me incentivaram, “estuda, que é melhor
tura da escola. Os critérios de avaliação são diferentes. Mas, na fala indi-
para você’’, até me apoiaram muito quando entrei na faculdade, “você tem que vidual, podemos filtrar o que pode ou não ser favorável para a conciliação
estudar, tem que se formar...”. da dupla carreira de atleta e estudante. Na fala dos atletas, o que eles aca-
baram considerando como relevantes para classificar a qualidade da escola
A participação da família se torna importante para o aluno/atleta que tangenciavam a estrutura da escola, o corpo docente, as oportunidades
precisa seguir as duas carreiras e dar conta das respectivas obrigações. Em para conciliar a dupla carreira e as relações sociais que travavam no espaço
um dos casos, o aluno/atleta informou como foi o processo que o levou a escolar. A maioria dos entrevistados estudava em escolar particular, mas
trocar de escola e como sua mãe foi determinante para efetuar a transição também houve relato de atletas que cursavam no ensino público. Para os
de uma instituição de ensino para outra. atletas, independentemente do tipo de modalidade de ensino, as escolas
Entrevistador: Quais foram os motivos da troca [de escola]? foram classificadas como boas, em sua maioria. Isso pode mostrar duas
César Nadador: Ah foi mais educacional mesmo, minha mãe ela nunca foi coisas: a) que o ideal normativo, que coloca a escola em primeiro plano,
muito ligada ao esporte então ela priorizou o estudo, então ela teve esse cami- torna obrigatória a classificação dessa instituição como relevante para a
nho assim bem rígida nesse ponto de estudo e tipo, sempre cobrou bastante. vida dos estudantes, mesmo eles tendo que se dividir em duas carreiras; e
Sempre foi decisão dela de eu estar em uma escola melhor, se ela julgava que a b) as oportunidades que esses atletas têm em suas respectivas instituições
escola não foi boa, eu ia pra uma outra escola que ela julgava melhor. Foi isso.
A decisão de mudar de escola foi dela, foi questão educacional mesmo. de ensino permitem-nos percorrer os caminhos que traçaram para os seus
projetos de vida a ponto de não atrapalhá-los de forma significativa; assim,
Observamos que as famílias valorizam de forma razoável os estudos perceber-se-ia que a escola é uma instituição favorável e considerada boa.
e o papel da escola, mas, de uma maneira geral, a ação dos pais só vai até A forma como esses atletas comentavam sobre as disciplinas e alguns
a cobrança das notas. Das dez famílias que cobraram boas notas, só três professores também pode indicar a razão pela qual eles consideravam a
entendem que também devem acompanhar os estudos dos alunos/atletas. escola como um caminho de realização profissional, tanto quanto o esporte.
Fica patente que a participação da família é de suma importância para o Como o estudo foi direcionado aos alunos/atletas, as aulas de educação
bom desempenho do estudante na escola. A dupla carreira exige ainda física4 surgiram quase que espontaneamente nas falas dos entrevistados. Os
mais a participação da família, uma vez que a quantidade de exigências alunos atletas distinguem os professores de educação física que só entregam
relativas às demandas do esporte e da escola aumentam. a bola e outro tipo de professor que, a cada aula, tem uma proposta e cobra
participação efetiva de seus alunos. A distinção entre o tipo de professor e
Escola a relação dele com o projeto de carreira dos atletas pode indicar uma forma
O tema escola aparece na fala dos atletas como se a instituição escolar como os atletas criam apreço pela instituição de ensino. Este professor que
fosse um caminho mais seguro a se seguir na trajetória de vida dos mes- se dedica e prepara a aula de educação física, desafiando os alunos e tendo
mos. Os alunos/atletas apontaram nas entrevistas que almejam atingir o uma proposta clara para o desenvolvimento dos estudantes, em tese, seria
ensino superior. Destaca-se que, dos 18 entrevistados, cinco já estavam cur- mais valorizado pelos atletas. Supõe-se que ele, além de desenvolver a edu-
sando faculdade. Os atletas indicam, com bom senso, que o ensino superior cação física escolar, estimula e orienta seus alunos com potencial esportivo
possibilitará mais oportunidades de inserção no mercado de trabalho após a se tornarem alunos/atletas. Esse tipo de professor foi lembrado quando o
as respectivas carreiras esportivas.
4 Em somente uma escola encontramos o relato do que a educação física escolar era substituída
pelo treinamento esportivo.

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assunto remeteu ao grau de importância dos professores na vida acadêmica do esporte e o caminho que eles apontam para esta segunda carreira é a
e esportiva do entrevistado. formação em educação física. Todos aqueles que fizeram esta escolha gos-
tariam de ser técnicos esportivos na mesma modalidade em que já atuam.
Nelson Corredor: [...] foi o que eu fiquei da primeira até a oitava série me mar-
Um quinto aluno/atleta também pretende cursar educação física, porém
cou bastante, uma que os professores não são aqueles professores que jogam
a bola e fazem o que quiser. Eles faziam, foi por onde eu comecei a competir, não demonstrou interesse em trabalhar com esportes e competição. Uma
representei a escola, ganhei os 800 metros na pista. Os professores me marca- gostaria de cursar administração e fazer concurso para tentar uma carreira
ram, é uma escola que o professor marcou bastante, de educação física. no serviço público, percebendo nesta carreira a oportunidade de ajudar a
família. Temos ainda depoimentos de interesse em engenharia ambiental,
Outra maneira que pode significar a valorização do investimento em psicologia e engenharia mecânica, sendo este último aluno influenciado
uma dupla carreira é o caso da visibilidade que os atletas atingem quando pela construção de uma grande montadora de automóveis em cidade perto
seus resultados são mostrados para a comunidade escolar. Por exemplo, da sua. Um ainda não sabia que carreira tentaria. Dos 18 entrevistados,
um relato significativo de um aluno cadeirante que passa a ser mais popular 27,5% já cursavam o ensino superior e 50% buscavam este mesmo objetivo
na escola a partir da divulgação dos seus resultados como atleta. Tal fato escolar. Assim, podemos observar a importância dada à escola pelos alu-
teria ampliado suas relações sociais. nos/atletas entrevistados. Destaco aqui a fala de um nadador do estado de
Henrique Tenista: O apoio dos alunos assim, eles gostavam, né? Quando eu São Paulo sobre a finitude da vida de atleta.
falava que eu jogava basquete, ia pra seleção, viajava, eles: “pô que massa, hei-
Gabriel Nadador: Eu acho que tem que estudar porque a vida de atleta não
m?”aí gostavam, contava história pra eles, aí falavam: pô! Aí de vez em quando
dura para sempre, eu sei disso, porque muitos atletas aí com 28/30 anos já
eles iam a noite assistir meu treino.
param de nadar e têm que fazer outra coisa da vida, têm que ter o estudo pelo
menos, e eu penso isso.
A popularidade alcançada via desempenho esportivo certamente rees-
trutura as expectativas de qualquer jovem. Se antes esse jovem poderia ser O único caso de repetência escolar apontado numa das entrevistas foi
considerado invisível para os demais membros da comunidade escolar, justificado como resultado da própria desatenção, brincadeira e falta de
após a divulgação dos seus resultados esportivos, ele passou a ter uma valo- empenho na escola. Nunca por impossibilidade de conciliar escola e esporte.
rização dos seus feitos e um reconhecimento imediato por parte de seus Observamos que os aluno/atletas beneficiados pelo Programa
colegas e da própria escola. Esse retorno imediato implica a satisfação do Bolsa-Atleta são acometidos pelas nuances da rotina em dupla carreira
jovem e mexe com a dimensão do prazer e do desejo por realizar mais feitos no esporte e na escola. O cansaço físico, as flexibilizações, as escolhas e as
no campo esportivo que possam colocá-lo em evidência. renúncias às atividades comuns de um jovem em idade escolar se fazem
A forma como os alunos/atletas conciliam as carreiras no esporte e na presentes no cotidiano do aluno/atleta. Ainda que haja um investimento
escola foram tratadas nas entrevistas pelos atletas a partir das formas de intenso no esporte, a escola também aparece como possibilidade de
negociação junto às duas instituições. Existem dois relatos de negociação mudança de status social para alguns dos entrevistados. A universidade
de sucesso entre professor e aluno para reposição de conteúdo e avaliação, começa a fazer parte do campo de possibilidades de alguns dos alunos/atle-
e mais um relato de incentivo à prática esportiva. Quase todas as trocas de tas e o incentivo financeiro dado a esses jovens pode influenciar sua inves-
escola foram por conta da mudança de segmento ou de cidade. Somente tida no ensino superior, na medida em que eles não precisariam se dedicar
duas dessas trocas aconteceram ao recebimento de bolsa de estudos nesses a uma terceira carreira para financiar os custos da vida de aluno/atleta.
casos os alunos/atleta migraram para escola particular. No mesmo sentido, há ainda programas de universidades que oferecem
O resultado das interações travadas com os alunos atletas apontaram bolsa-auxílio para os alunos que se destacam nos esportes de rendimento.
para um quadro em que quatro dos entrevistados pretendem seguir na área

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Assim, a rotina de aluno/atleta se constrói em caminhos sinuosos e depen- ações necessárias para a conciliação serão contempladas. Já no nível macro,
dentes de negociações e flexibilizações de tarefas obrigatórias. ou seja, o das instituições que administram o mundo esportivo, e que deter-
minam calendários, distribuição de dinheiro, responsabilidades dos clubes
discussão e outras ações que determinam os caminhos a serem seguidos por todos os
envolvidos, existe a necessidade de uma regulação legal.
A relação entre a escolarização e a formação profissional de atletas é um Observa-se que a conciliação acontece a partir das iniciativas isoladas
tema abordado amplamente na literatura internacional, mas que ainda de clubes, atletas e escolas. Esta forma de conciliar depende exclusivamente
carece de pauta de pesquisas no âmbito nacional. As pesquisas realiza- do bom senso dos envolvidos, tanto dos agentes da escola quanto dos do
das pelo Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC), da esporte. O Bolsa-Atleta no Brasil, na modalidade estudantil, é uma tenta-
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vêm mostrando que os tiva modesta de permanência no esporte que exige como contrapartida a
jovens atletas que se dedicam a uma dupla carreira, no esporte e na escola, matrícula escolar. Todavia, a permanência na escola não é acompanhada
não adotam estratégias similares quando atuantes nas diferentes modalida- nem administrada por esse tipo de programa. Na Europa existem políticas
des esportivas. Melo (2010) identificou que os jovens atletas das categorias voltadas para o aluno/atleta, algumas bem direcionadas para a conciliação
de base do futebol no Rio de Janeiro tinham o mesmo tempo de escolari- da dupla carreira, e outras híbridas ou frouxas. Segundo Henry (2010), são
dade que jovens da mesma faixa etária e que não jogavam futebol. Aliás, identificados no continente europeu quatro principais tipos de abordagem:
as progressões dos jovens alunos/atletas do futebol pelas séries escolares 1. Sistema centralizado no Estado com obrigação legal definida. Nesta abor-
eram mais regulares que as dos alunos quando foram observados dados da dagem, a instituição de ensino deve, por força da lei, se adaptar às neces-
população do Rio de Janeiro. Em tese, a hipótese inicial de que a rotina de sidades do aluno/atleta. 2. O Estado patrocina um sistema formal estabe-
treinamento no futebol poderia atrapalhar a vida escolar dos jovens atletas lecido com base em uma legislação permissiva. Nesta abordagem, há um
do futebol seria refutada. Todavia, Melo (2010) apontou também que essa sistema formal de reconhecimento das necessidades do aluno/atleta, que,
regularidade na progressão escolar dos atletas era garantida por mecanis- baseado na legislação vigente, autoriza, mas não requer que a instituição de
mos que flexibilizavam as normas regulares da escola. Esse favorecimento ensino atenda de forma especial ao aluno/atleta. 3. Órgãos de representação
aos atletas permitia que eles compatibilizassem melhor os horários de trei- dos interesses educacionais de atletas. Nesta abordagem, as necessidades
namento e estudos, abonando faltas, permitindo atrasos às aulas, remar- para o desenvolvimento do aluno/atleta são atendidas pelas instituições
cando provas etc. esportivas, onde defensores esportivos agem em nome do aluno/atleta para
Na pesquisa produzida junto aos alunos/atletas beneficiados pelo negociar acordos flexíveis com a instituição de ensino. 4. ‘Laissez-faire’ –
Programa Bolsa-Atleta, a negociação entre jovem, escola e esporte acontecia sem estruturas formais. Nesta abordagem, na qual nós, brasileiros, estamos
de formas diferentes. Os mecanismos de flexibilização das normas regulares incluídos, existe pouca ou nenhuma estrutura formal, e todos os acordos
da escola apareciam discretamente. Em alguns casos, o clube incentivava o são negociados individualmente até aonde estes se provarem possíveis.
comparecimento do atleta à escola e o cumprimento das tarefas escolares. Além da sensibilidade dos envolvidos por parte da escola e do clube
Embora ainda haja também uma rigidez nas normas do esporte, no caso para resolver as demandas com base no bom senso, a falta de estruturas
dos beneficiados do Programa Bolsa-Atleta, esses alunos/atletas têm mais formais obriga à participação intensa da família para que essas duas carrei-
oportunidades de conciliação das rotinas do esporte e da escola em com- ras sejam desenvolvidas de forma eficiente e efetiva. Kay (2000) mostra o
paração com os jovens atletas das categorias de base do futebol no estado envolvimento de famílias inglesas, que, assim como as famílias brasileiras
do Rio de Janeiro. Percebemos, assim, que no nível micro, que é aquele que aqui citadas, se envolvem no desenvolver da dupla carreira escolhida pelo
depende da boa vontade dos indivíduos diretamente envolvidos nas deci- seu filho (a), assumindo também o deslocamento do aluno/atleta para que
sões, e que possibilitam ou não a conciliação, seja na escola ou no esporte, as este possa frequentar a escola e chegar a tempo nos treinamentos, o custeio

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de diversas despesas e, por vezes, comprometendo fins de semana e feria- Algumas iniciativas isoladas de escolas que investem na formação de
dos de toda família, incluindo aí filhos que só estudam. equipes para participação em competições escolares facilitam a concilia-
Os conflitos apresentados pelas duas carreiras e a impossibilidade de ção entre esporte e escola. Neste ambiente, o número de alunos/atletas é
continuar conciliando todas as demandas sem o amparo de uma instituição grande, quando comparado a uma escola que não investe em participação
oficial levaram a um impasse que faz os alunos/atletas optarem por uma em competições escolares, e a participação em competições esportivas é
das carreiras como pudemos observar com um aluno/atleta nesse estudo. comum. Comum também é atender às demandas para que este aluno/atleta
Siekańska (2014) aponta que essa combinação de estudos com esporte possa ser contemplado em suas necessidades de conciliação. Conforme o
acontece porque esse aluno/atleta busca, através dos estudos, assegurar um depoimento do aluno/atleta Gabriel, em sua escola existe uma estrutura
futuro profissional ao término da carreira esportiva. Esta carreira esportiva, para reposição de conteúdo, de avaliação e total compreensão e apoio do
que a cada novo estágio é mais intensa, e requer mais tempo do aluno/atleta corpo docente. Mesmo assim, as questões de conciliação têm que ser resol-
para desenvolver suas habilidades, pode ser interrompida prematuramente vidas uma a uma, cada caso tem uma resposta sob medida para aquele
quando os conflitos com os estudos se tornam irreconciliáveis. momento, da mesma forma que acontece na Europa, como nos aponta o
A estrutura forjada para que o atleta perceba o esporte como uma opor- documento “EU Guidelines on Dual Careers of Athletes” (2012), porque cada
tunidade de profissionalização e a escola como outra via possível depende particularidade existente em uma modalidade, como, por exemplo, a dura-
das interações que esses indivíduos estabelecem ao longo da conciliação des- ção da competição, que difere de uma modalidade para a outra, trará uma
sas carreiras. Observemos que as modalidades investigadas não possuem o situação específica a ser atendida. Devemos considerar que, ainda a título
mesmo status que o futebol no Brasil, por exemplo. A estrutura de oportu- de exemplo, em uma mesma sala de aula teremos alunos de modalidades
nidades percebida pelo atleta fica restrita ao apoio oferecido pelo governo diferentes, com calendários de competição diferentes e, assim, com neces-
federal, através do Programa Bolsa-Atleta, ou por iniciativas estaduais e/ou sidades diferentes de reposição de conteúdo e avaliação. Ainda se repor-
de natureza privada. O amparo da modalidade esportiva é limitado. As exi- tando ao mesmo documento, uma abordagem como a existente na Suécia
gências para se manter como beneficiado do programa federal são altas e o seria de grande valia. Lá, 51 escolas de ensino médio distribuídas por todo
retorno financeiro, no caso da modalidade Bolsa-Atleta estudantil, é baixo. o país e patrocinadas pela Confederação Sueca de Esportes são organizadas
O esporte disputa a atenção com o ideal normativo da escola, que tende a para atender às demandas criadas pela necessidade destes alunos/atletas de
apontar que a única via segura para ocupação de um cargo valorizado no conciliarem duas carreiras.
mercado de trabalho é o investimento nas vias escolares. Embora saibamos Sabemos que, no Brasil, os sistemas escola e esporte não interagem ofi-
que a escola não dá conta de escolarizar, cumprir os incisos legais a ela atri- cialmente. Assim como na maioria dos sistemas escolares do mundo, toda
buídos e premiar todos os ingressantes nos sistemas nacionais de educação, tarefa não escolar, estando a pessoa regularmente matriculada em insti-
Neri (2009) comentou que a probabilidade de o indivíduo com pós-gradua- tuição formal e oficial de ensino, deverá acontecer por conta e risco do
ção estar ocupando um posto de trabalho é 433% maior que um analfabeto; estudante. No caso daqueles estudantes, no Brasil, que decidem ter, além
além disso, o salário dos pós-graduados chega a ser 544% maior que o salário da carreira escolar, uma carreira esportiva, não é diferente. Recentemente,
daqueles que não sabem ler e escrever. Isso mostra que investir nas vias edu- pudemos observar claramente um fato concreto que exemplifica esta falta
cacionais aumenta consideravelmente as chances de estar empregado e com de diálogo escola/esporte. A principal competição para os jovens alunos/
um bom salário, futuramente. Porém, esconde que são poucos os afortuna- atletas que aspiram a uma bolsa do Ministério do Esporte – Bolsa-Atleta
dos que alcançam esses patamares, haja vista que cerca de 20% dos jovens Estudantil, são os Jogos Escolares da Juventude – categoria 15 a 17 anos,
entre 15 e 17 anos abandonam a escola, e a maior parte justifica a evasão moti- competição organizada pelo Comitê Olímpico Brasileiro. Para fazer jus à
vada pelo desinteresse no modelo dessa instituição (NERI, 2009). referida bolsa, o aluno/atleta deverá estar classificado até o terceiro lugar
nesta competição. No ano de 2014, a competição aconteceu em João

194 195
Pessoa-PB, entre os dias 5 e 16 de novembro. Outro evento importante distante da nossa, que está organizada em dois sistemas distintos, o exemplo
para os jovens que aspiram a uma vaga nos cursos superiores no Brasil é americano obrigaria a mudanças estruturais inviáveis. Assim, na busca por
o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), exame este que aconteceu soluções para estas situações às vezes de impasse, percebemos que os ajustes
no ano de 2014 nos dias 8 e 9 de novembro. Como as datas coincidiram e sempre deverão ser feitos sob medida para cada situação, conforme aponta
não houve acordo possível entre o Ministério da Educação, organizador do o EU Guidelines on Dual Careers of Athletes Recommended Policy Actions in
Enem, e o COB, organizador dos Jogos Escolares da Juventude, os alunos/ Support of Dual Careers in High-Performance Sport, documento organizado
atletas, tiveram que optar entre o exame e a competição. por um grupo de experts em educação e treinamento esportivo a convite
Este impasse aponta para a necessidade urgente de formulação de uma dos países-membros da comunidade europeia. Mesmo nos Estados Unidos
política intersetorial. Precisamos ter uma agência do governo que faça da América, esses acertos específicos, tais como remarcação de avaliações,
uma ligação, a princípio, entre o Ministério da Educação e o Ministério dispensa dos alunos/atletas para viagens e competições, reposição de con-
do Esporte. Dizemos, a princípio, porque o que neste primeiro momento teúdos escolares perdidos por conta do calendário esportivo e outros even-
é esporte vs escola será, mais à frente, esporte vs trabalho. Assim, órgãos tos provocados pela vida esportiva deverão acontecer para cada momento
do governo responsáveis pelas ações no que diz respeito ao trabalho deve- desses. Embora o esporte aconteça no âmbito escolar, o calendário esportivo
rão ser incluídos nesta política de conciliação de dupla carreira, para que muda de acordo com a modalidade praticada, e, assim, cada aluno/atleta
estes que são responsáveis por decisões a nível macro, e que assim afetam deverá negociar com a escola cada evento especificamente, atendendo ao
a todos, não criem situações em que os jovens tenham que escolher entre que demanda do seu calendário esportivo.
esporte e trabalho. O documento acima citado é inspirador, pois, além de nos fazer per-
A escolarização de jovens no Brasil obedece a uma lógica perigosa, ceber que esta questão não é só nossa, também aponta sugestões impor-
segundo Schwartzman (2011), uma vez que os sistemas educacionais brasi- tantes feitas em nível governamental para a construção de uma política
leiros entendem que as oportunidades serão iguais se tratarem a diversidade de governo voltada para à dupla carreira. O documento elaborado pela
da juventude da mesma maneira. Com isso, Schwartzman (2011) condena Comunidade Europeia que recomenda políticas para orientar ações relati-
o viés acadêmico presente na educação brasileira, que confabula para que vas a dupla carreira para atletas de alta performance deixa claro que nesta
todos os ingressantes nos sistemas educacionais caminhem para a mesma proposta de criação de uma política governamental para a dupla carreira,
direção: o ensino superior acadêmico. Não seria, portanto, irracional pensar além do esporte e da educação, também deverão ser contempladas a saúde,
que os atletas que se dedicam à dupla carreira, conciliando com os estudos, o emprego, o bem-estar e qualidade de vida e as finanças.
invistam tanto tempo no esporte quanto na escola. E, muitas vezes, secun- No dia 17 de abril deste ano o Ministério do Esporte publicou no Diário
darizam uma das duas obrigações. Por exemplo, a escolha também pode Oficial da União a portaria nº 105, de 16 de abril de 2015, que institui um
ser priorizar a carreira esportiva. A aluna/atleta Sandra, que, por não estar Grupo de Trabalho que deverá elaborar Projeto de Lei de Diretrizes e Bases
mais em idade de obrigatoriedade escolar, poderia optar por seguir só no do Sistema Nacional de Esportes. Várias reuniões foram feitas e o ministro
esporte, escolheu esta carreira face ao seu excelente desempenho esportivo de Esporte, Sr. George Hilton, apresentou na quarta-feira, dia 9 de setembro
e financeiro naquele momento, com o argumento de que quando a idade de 2015, durante sua fala no 5º Fórum Nacional do Esporte, em São Paulo,
avançasse e os resultados esportivos e financeiros não mais fossem atraentes um projeto de lei com o produto do trabalho do grupo em questão, que seria
ela poderia, então, se dedicar aos estudos e à busca de uma nova carreira. apresentado ao Congresso Nacional para apreciação. No momento da escri-
Num primeiro momento, estudando outros países e suas demandas tura deste artigo, não sabemos como se desenvolveu essa tentativa.
nesta mesma área, tendemos a acreditar que o sistema utilizado nos Estados Finalizamos destacando a urgente necessidade da elaboração de uma
Unidos da América seria o modelo a ser seguido, uma vez que o esporte política de governo que atenda à demanda de dupla carreira. Acreditamos
e a educação acontecem num sistema único. Por ser uma situação muito que a iniciativa para esta empreitada deve ser do esporte. No caso do Brasil,

196 197
o aluno/atleta terá que estar na escola , por força de lei, até os 17 anos. Caso ______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, Lei nº 9.394 de 20
o aluno/atleta tenha que, na idade citada, fazer uma escolha, será forçosa- de dezembro de 1996. Disponível em: <http://goo.gl/xkNaqB>. Acesso em: 4
ago. 2015.
mente pela escola. Tal escolha seria prejudicial principalmente naquelas
ESCOLHA de Sofia: Atletas de RO são obrigados a “optar” por jogos ou Enem.
modalidades esportivas, como nas ginásticas artística e rítmica desportiva,
Disponível em: <http://goo.gl/IEy2PA> Acesso em: 30 nov. 2014
em que a especialização para o alto nível esportivo acontece muito cedo, e
EU GUIDELINES on Dual Careers of Athletes Recommended Policy Actions in
a conciliação seria, portanto, mais difícil. Support of Dual Careers in High-Performance Sport. Disponível em: <http://
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______. Lei n. 10.891, de 9 de abril de 2004. Institui a Bolsa-Atleta. Disponível em: RN levará quase 200 atletas para os Jogos Escolares da Juventude, realizados na
<http://goo.gl/lD8uNn>. Acesso em: 6 out. 2015. Paraíba. Disponível em: <http://goo.gl/6WwDGj>. Acesso em: 30 nov. 2014.

198 199
ROCHA, H. P. A. da. A escola dos jóqueis: a escolha da carreira do aluno atleta. capítulo 8
2013. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação
em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2013.
Disponível em: <http://www.educacao.ufrj.br/disserhugopaula.pdf>. Acesso
Conciliação entre a formação no futebol e na escola1
em: 7 nov. 2015.
Leonardo Bernardes Silva de Melo
RYBA, T. et al. Dual career pathways of transnational athletes. Psychology of Sport
and Exercise (2014). Disponível em: <http://goo.gl/YB1R1m>. Acesso em 6
Hugo Paula Almeida da Rocha
out. 2015. Antonio Jorge Gonçalves Soares
SCHWARTZMAN, S. O viés acadêmico na educação brasileira. Pensamiento
Educativo – Revista de Investigación Educacional Latinoamericana (PEL),
Santiago de Chile, v. 48, n. 1, 2011. Disponível em: <http://www.schwartzman.
org.br/simon/agenda9.pdf>. Acesso em: 1 dez. 2011.
SIEKAŃSKA, M.; BLECHARZ, J. Dual Career Pathways: Psychological and introdução
Environmental Determinants of Professional Athletes’ Development. Studies
in Sport Humanities, n. 16, Kraków 2014. Esse artigo é um subproduto do projeto mais amplo financiado pela Faperj
SOARES, A. J. G.; ROCHA, H. P. A.; COSTA, F. R. A escola dos jóqueis: a aposta de e pelo CNPq que estuda como se dá a conciliação entre a formação profis-
carreira do aluno-atleta. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA, 15., sional no esporte e a escolarização básica de jovens atletas. Aqui, as análises
2011, Curitiba. Anais... Curitiba, 2011. estão concentradas apenas na formação de atletas de futebol no estado do
WAGNER, Adriana et al. Configuração familiar e o bem-estar psicológico dos ado- Rio de Janeiro.
lescentes. Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 12, n. 1, p. 147-156, 1999.
O interesse dessa linha de investigação problematiza a imagem social-
Disponível em <http://goo.gl/09EQLq>. Acesso em 6 out. 2015.
mente partilhada de que no Brasil os atletas de futebol de alto rendimento
abandonam a escola ou possuem dificuldades de administração de uma
carreira escolar de sucesso em conciliação com o futebol. Essa imagem se
cristalizou em 2006, quando o jogador francês Thierry Henry especulou
que a técnica do jogador brasileiro estava associada ao tipo de socialização
que as crianças aqui tinham, isto é, muita prática de futebol e pouca escola.
Henry disse que, em contrapartida, na França ele tinha que frequentar a
escola das 8h às 17h.2 Na época, a opinião pública no Brasil se incomodou,
talvez porque esse tipo de afirmação fosse ao encontro da representação
social sobre os jogadores de futebol em nosso país.
Todavia, o que disse Henry possui ancoragem na experiência francesa,
na qual a política estatal para formação de jogadores, desde a década de
1970, indica a padronização do tipo de treinamento para diferentes faixas
etárias, a formação especializada de treinadores e assistentes, a avaliação
dos clubes formadores, bem como responsabilização destes com a educação

1 Uma outra versão deste artigo foi publicada na Revista Brasileira de Educação Física e
Esporte, (São Paulo) 2014 Out-Dez; 28(4):617-28.
2 Cf. <http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=389DAC001>. Acesso em:
26 fev. 2010.

200 201
escolar de seus atletas (DAMO, 2005, 2007). A principal preocupação do Algumas questões nos orientaram ao longo do texto: a formação dos
sistema francês de formação é fornecer possibilidades de inserção no mer- atletas para o futebol nas categorias de base cria empecilhos para o pro-
cado de trabalho mais amplas para aqueles que não foram bem-sucedidos cesso de escolarização? Os atletas de futebol das categorias de base pos-
na profissionalização do futebol ou, ao final da curta carreira, possam con- suem atraso escolar em relação à população da mesma idade? Qual a taxa
quistar um lugar no mercado de trabalho ordinário. de repetência e evasão escolar dos atletas em formação no futebol no Rio de
Os estudos internacionais, ao analisarem programas de conciliação da Janeiro? A amostra do estudo foi formada por 417 jogadores estratificados
carreira acadêmica com a carreira esportiva de alto rendimento, apresen- pelas categorias de base no futebol Sub-13, Sub-15, Sub-17 e Sub-20 inscri-
tam a dificuldade que têm os jovens para conciliá-las. Portanto, esse pro- tos nos anos de 2008 e 2009 na Federação de Futebol do estado do Rio de
blema não é só brasileiro. Esse fenômeno na vida dos jovens que se dedicam Janeiro. As 417 entrevistas estruturadas foram registradas por escrito, em
ao esporte no mesmo período da formação acadêmica tem sido nomeado formulário próprio, pela equipe de pesquisadores, em contato direto com
de dupla carreira (dual career). Apesar da preocupação com a dupla car- os atletas, antes ou após os treinamentos nos clubes, com consentimento
reira e de alguns programas voltados para a conciliação, a literatura aponta prévio dos responsáveis. Foi utilizada uma abordagem descritiva com
que os programas para conciliação da dupla carreira não obtiveram muito cálculo de média e desvio-padrão, complementada, quando necessário,
sucesso (BORGGREFE; CACHAY, 2012; CHRISTENSEN; SØRENSEN, 2009; ao cálculo de prevalência. Os indivíduos foram agrupados por categoria
HENRY, 2010; CAPUT-JOGUNICA; ĆURKOVIĆ; BJELIĆ, 2012; AQUILINA, (Sub-13, Sub-15, Sub-17 e Sub-20) e turno escolar (manhã, tarde e noite).
2013). Diante das evidências presentes na literatura que indicam a dificul- Realizamos 30 entrevistas semiestruturadas e também utilizamos sistema-
dade de conciliação entre as carreiras de formação escolar e esportiva, bus- ticamente registros em diário de campo para conversas mais aprofundadas
camos entender se a formação profissional no futebol afasta, dificulta ou com atletas e com os responsáveis dos clubes. Essa dimensão qualitativa do
cria obstáculos para permanência ou dedicação do atleta na escola básica. estudo teve a função de entender o significado das ações dos atletas na con-
Neste artigo, apresentaremos o perfil escolar do atleta de futebol nas ciliação entre futebol e escola ou serviram para exemplificar algum detalhe
diferentes categorias de base no estado do Rio de Janeiro. A escolha deste corroborativo na argumentação e na interpretação dos dados.
estado como campo de estudo se justifica por ser uma das principais capi-
tais brasileiras em termos econômicos e culturais, além de ser um dos resultados
principais centros de formação de jogadores do Brasil e de exportação de
A escolaridade dos atletas é uma variável que poderia indicar suas trajetórias
atletas para o exterior. Nossa hipótese inicial era que a formação esportiva
escolares quando correlacionadas às suas respectivas idades. Observemos
no futebol poderia criar obstáculos para a permanência do atleta na escola,
que, dos 417 jovens atletas da amostra, 345 permanecem estudando em
na medida em que este avançava na carreira. Tal hipótese deve ser relativi-
algum nível de ensino. Da nossa amostra, apenas um atleta (0,3%) aparecem
zada quando encontramos em nossas análises que os jogadores das catego-
cursando o 1º segmento do ensino fundamental. Eram 167 (48,4%) frequen-
rias de base do futebol no Rio de Janeiro possuem índices de escolarização
tando o 2º segmento do ensino fundamental e 170 (49,3%) atletas matricula-
semelhantes ou maior que a população na faixa etária dos 11 aos 20 anos.
dos no médio. Apenas 7 atletas (2,0%) ingressaram no ensino superior.
Por exemplo, a permanência dos atletas na escola, anos de escolaridade e a
Por outro lado, comparamos os anos de escolaridade dos atletas com
adequação idade-ano escolar dos mesmos é superior à população em geral, a população do estado do Rio de Janeiro4 (Figura 2). Podemos ver nesses
inclusive a do Rio de Janeiro.3 dados que os atletas apresentam uma maior média em anos de permanên-
cia na escola. Em algumas faixas etárias, a diferença chega a ser de dois
3 Os atletas pesquisados apresentaram uma média de 9,5 anos de escolaridade, enquanto a
anos a mais para os atletas. No entanto, apesar de os atletas estarem acima
população do estado do Rio de Janeiro apresentou 7,1 anos. Cálculo feito com base nos dados
do IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida do brasileiro, 2009. 4 IBGE, 2009.

202 203
da média da população, estão defasados em relação à idade correta para a Turno de frequência à escola
série. Para exemplificar, os atletas com 14 anos, idade na qual todos, teo- Ao compararmos o turno em que os atletas frequentam as salas de aula
ricamente, deveriam ter concluído o ensino fundamental com nove anos em relação às categorias temos a seguinte distribuição: no Sub-13 todos estu-
de estudo, apresentaram 8,7 anos, uma defasagem ainda pequena. Quando dam pela manhã e isso ocorre porque em todos os clubes que participaram
observamos os atletas com 17 anos, idade em que deveriam ter 12 anos de da amostra realizavam o treinamento dessa categoria no período da tarde. Já
estudo, a média foi de 11,3 anos e a defasagem chegou a 0,7 anos. no Sub-15, são 73 atletas que estudam à tarde, 19 deles estudam pela manhã e
20 à noite. No que diz respeito ao treinamento na categoria Sub-15, em quase
figura 1: distribuição percentual da série todos os clubes essa atividade ocorre pela manhã; somente em alguns poucos
em que estão matriculados clubes os jogadores treinam à tarde. Com os atletas do Sub-17, observamos
um acréscimo no número de atletas estudando no período noturno: são 57
25 dos 113 respondentes; outros 40 estudam à tarde e apenas 16 pela manhã. Os
4a série / 5o ano
5a série / 6o ano
treinamentos dos jogadores da Sub-17 ocorrem de forma semelhante aos da
20
6a série / 7o ano Sub-15, na maioria das vezes ocorre no período da manhã. Entre os atletas
15 7a série / 8o ano da categoria Sub-20 a grande maioria estuda no turno da noite. Os treina-
8a série / 9o ano mentos semanais dessa categoria são, em geral, matutinos o que, todavia,
10 não exclui a possibilidade que sejam marcados treinos à tarde ou viagens.
1o ano ensino médio
2o ano ensino médio
5 figura 3: distribuição percentual do turno
3o ano ensino médio
0 Ensino superior de frequência a escola por categoria

manhã
100
figura 2: distribuição percentual dos anos de escolaridade tarde
de atletas e não atletas do rio de janeiro 80 noite

prevalência (%)
60

Atletas
40
Anos de escolaridade

População
do Rio de Janeiro
20

20
17
13

15

b-
b-
b-

b-

Su
Su
Su

Su
Tipo de escola
12 os
13 os
14 os
15 os
16 os
17 os
18 os
19 os
20 os
os
an
an
an
an
an
an
an
an
an
an

Em nosso levantamento, dos 417 atletas da amostra, 345 atletas declara-


11

Faixa etária ram estar estudando. Observa-se que 60,0% frequentavam a escola pública
e 40,0%, escolas da iniciativa privada – dos quais 7,2% estudavam em uma

204 205
escola particular situada dentro de um grande clube. No atendimento nas figura 4: distribuição percentual da variável
séries finais do ensino fundamental, temos 57,1% dos atletas matriculados repetência por categoria
em escolas públicas, enquanto que, nas particulares encontramos uma por-
centagem de 42,9%. Já no ensino médio, as escolas públicas responderam por 100
65,1% das matrículas, enquanto as da rede privada participaram com 34,9%. nunca repetiu
já repetiu
Se compararmos os dados obtidos dos jogadores com as médias nacio- 80

nais5 e com a do estado do Rio de Janeiro, verifica-se que a média de frequên-

percentual
60
cia à escola privada em todo o Brasil nos anos finais do ensino fundamental é
de apenas 11,7%. A média do estado do Rio de Janeiro no ensino fundamental 40

é de 23,8%; para os atletas essa média sobe para 42,9%. No tocante ao ensino 20
médio, a média nacional de matrículas nas escolas privadas é de 14,6%. Os
estudantes fluminenses apresentam uma média de 25,5%, mas, se conside- 0

rarmos a média encontrada entre os atletas, esse número chega a 34,9%.

13

15

17

20
b-

b-

b-

b-
Su

Su

Su

Su
quadro 1: média de frequência por tipo de escola da população
brasileira, do rio de janeiro e dos atletas dessa pesquisa
Observamos, com base na figura 5, que os atletas que estão matricu-
Nível de ensino Ensino fundamental Ensino médio lados na escola pública possuem uma taxa de repetência maior dos que
Tipo de Escola Brasil
Rio de Atletas
Brasil
Rio de Atletas aqueles que frequentam escolas privadas. A diferença entre os alunos da
Janeiro RJ Janeiro RJ escola pública e os da iniciativa privada chega a 21,7%.
Pública 88,30% 76,20% 57,10% 85,40% 74,50% 65,10%
Particular 11.7% 23,80% 42,90% 14,60% 25,50% 34,90% figura 5: taxa de repetência pelo tipo de escola

Repetência escolar 100


sim
Em relação a este item, encontramos 153 atletas que já repetiram pelo 80 não
menos um ano na escola e 264 atletas que nunca repetiram.

percentual
Observamos também, com base nos dados, que a taxa de repetência 60

vai aumentando conforme o atleta se aproxima das categorias de maior 40


idade. Na categoria Sub-13, apenas 10,5% já repetiram pelo menos uma vez.
Quando comparamos com a categoria Sub-20, esse valor sobe para 46,8% 20
de repetentes. Em relação a esta última categoria, quase metade dos atletas 0
chegam com pelo menos um ano de atraso escolar. Esse dado pode sugerir

lar
ic a

clu a
que quanto mais os atletas permanecem nos clubes, mais chances de repro-

be
do col
cu
bl

es
r ti
vação possuem.

pa
tipo de escola

5 Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira – 2007.

206 207
Outro ponto importante para ser analisado é a taxa de repetência dos figura 6: distribuição percentual do atraso escolar
atletas pelo tipo de moradia. Os atletas que moravam nos alojamentos dos dos atletas por nível de ensino
clubes foram os que apresentaram uma maior taxa de repetência. Destes,
52% já tinham repetido pelo menos uma vez, enquanto que os atletas que 50
Ensino fundamental
moravam com os pais apresentaram 34,8% de reprovações, e os que mora- Ensino médio
40
vam em outros tipos de residência, 31,6%. Esses dados indicam que os atle-

Percentual
tas que moram nos alojamentos têm mais dificuldade para obter sucesso 30

escolar. Na observação dos dados de moradia pela categoria do atleta, nota- 20


mos que há um decréscimo na frequência de atletas que moram na casa
10
de seus pais. Do Sub-13 ao Sub-17, cerca de 90% ainda moram com seus
familiares, no Sub-20, apenas 66,1% moram com os pais. 0

Quando observamos a taxa de repetência pelo turno em que os atletas

no
do

et

u e
ais
so od
1a
ta

rr

m
an

co
estavam matriculados, vemos que os atletas que estudavam no turno da

no ras
de
i

e
Ad

2 a At
ad

so
manhã representavam 18,1% dos atletas que já repetiram pelo menos um

Id

ra
At
ano escolar. Com quase o dobro da repetência, aparecem os atletas do turno Idade-série
da tarde: 35,1%. No entanto, o maior índice de repetência foi encontrado
entre os atletas que frequentavam a escola no período noturno: 57,4%, isto
é, mais do que o triplo da taxa apresentada pelos atletas do período matinal.

Atraso escolar figura 7: distribuição percentual da variável até que série


estudou os atletas que abandonaram os estudos
Em relação à taxa de atraso escolar, que cruza os dados da faixa etária
com a da série escolar, é necessário dizer que ela pode ser ocasionada por
diversos motivos na vida do atleta, tais como a repetência, mudanças de 50

estado por conta de eventuais trocas de clube, abandono da escola, entre


40
outros. É considerado atrasado ou em defasagem escolar o aluno que tem
dois ou mais anos atrasados em relação à idade correta para cada série.

Percentual
30
Na figura 6, observa-se que são poucos os atletas que estão adiantados
20
em relação à idade ideal para cada série, um pouco menos da metade apre-
sentam a idade correta para a série. Já em relação ao atraso, 18,6% dos atletas 10
que frequentam o ensino fundamental apresentam dois anos ou mais de
0
atraso, contra 28,35% da população da cidade do Rio de Janeiro.6 No ensino
médio, a diferença entre os estudantes da cidade do Rio de Janeiro e atletas

io

io
an

an

an

an

an

éd

éd
/4 o

/6 o

/7 o

/8 o

/9 o

m
aumenta. Enquanto os últimos possuem 21,7% de atraso, os estudantes da

o
r ie

r ie

r ie

r ie

r ie

sin

sin

en

en
3a

5a

6a

7a

8a
cidade apresentam 53,02%, ou seja, mais de 30% a diferença.

o
an

an
1o

2o
Série
6 Dados da ONG Rio Como Vamos, do ano de 2008. A ONG utilizou como base para seus dados
o Censo Escolar do INEP / Ministério da Educação.

208 209
Evasão escolar processo de escolarização e no retorno que este pode fornecer. Pois, no
São 72 os atletas que não estudam mais; desses, 46 concluíram o ensino esporte, as credenciais escolares não incidem diretamente na remuneração.
médio e 26 abandonaram os estudos. Na figura 7, podemos ver a série na O que vale aqui é o capital esportivo/corporal que o atleta possui.
qual os atletas interromperam seus estudos. Constatamos, portanto, que Percebemos que os jovens atletas adequam o turno escolar e o tipo
60,8% deles desistiram próximo de concluírem o ensino médio, sendo 21,7% de exigência da escola em função do período de treinamento nos clubes.
e 39,1% no 1º e 2º ano do ensino médio, respectivamente. Isso não quer dizer Observemos que a maioria dos atletas frequenta a escola após uma carga
que estes não retornarão à escola, mas devemos observar esse indicador em intensa de esforço corporal. O cansaço motivado pela rotina de treina-
outros estudos nas categorias profissionais. Prosseguindo com a análise, mento pode influenciar no grau de concentração na sala de aula. Por exem-
vemos que 34,7% dos atletas se evadiram ainda no 2º segmento do ensino plo, Souza, Bartholo, Vaz e Soares (2008) relataram que um atleta brasileiro
fundamental, com equilíbrio na distribuição nas séries. Apenas um atleta com 16 anos, ao ser contratado para jogar na Holanda, tinha sua jornada
(4,3%) não passou pelo 1º segmento do ensino fundamental; ele abandonou escolar de sete horas diárias (9h às 16h), além das aulas particulares de
a escola na 3º série/ 4º ano. Esse fato tem relação com a universalização da holandês que teve que tomar compulsoriamente para facilitar sua adap-
escola básica em nosso país a partir da década de 1990. tação à sociedade local. Os treinamentos eram diários e aconteciam após
o horário escolar, sempre ao final da tarde. Em Portugal e na Espanha, a
maioria dos clubes adota o treinamento das categorias de base no turno da
discussão
noite. Esses exemplos sugerem que a prática esportiva profissionalizante
Verificamos nos dados apresentados que, conforme o atleta vai conquis- em países como Holanda, Portugal e Espanha – como exemplo – seguem
tando espaço nas categorias superiores do futebol no estado do Rio de regras rígidas de adequação à rotina escolar. Observemos que o mesmo não
Janeiro, aumenta a tendência a ter uma pequena irregularidade na sua tra- acontece para os jovens atletas da nossa amostra: conforme avançam nas
jetória escolar. Lembremos que a formação do atleta de alto desempenho categorias de base, aqueles que permanecem ou entram nessa faixa etária
exige um rígido regime de treinamento, um projeto familiar e formas de acabam migrando para o ensino noturno devido à carga de treinamento e
conciliação entre a carreira esportiva e a formação escolar (RIAL, 2006; competições, que aumentam de acordo com o avanço nas categorias. Tal
PAOLI, 2007; HICKEY; KELLY, 2008). Por exemplo, a seleção de handebol fato vai de encontro às cláusulas estabelecidas no Decreto-Lei nº 5.452,
brasileira, que foi às Olimpíadas de Atenas, apresentava o seguinte perfil no seu artigo 427, o qual indica que os empregadores devem conceder o
educacional: 93% entraram na universidade, 66% concluíram o ensino tempo que for necessário para a formação escolar dos jovens enquadra-
superior, sendo que, desses, três atletas possuíam curso de pós-graduação dos na categoria de aprendizes (BRASIL, 1943). Embora o esporte ainda não
em nível de especialização.7 Destacamos que o handebol brasileiro não seja considerado uma carreira de jovens aprendizes, devemos destacar que
apresenta um mercado profissional do esporte quando comparado a outras no futebol, a formação, após determinada faixa etária ou de acordo com o
modalidades coletivas. potencial esportivo do atleta, assume as características de um processo de
Os dados anteriores indicam que o investimento escolar para atletas jovens aprendizes. Nesse sentido, algumas modalidades esportivas deve-
pode ser inversamente proporcional às possibilidades de sobrevivência a riam ser reguladas por legislação que se assemelhe à dos jovens aprendizes.
partir do esporte como profissão. No caso do futebol, os atletas com alto A troca de turno escolar pode também ser motivada para que os atle-
potencial podem, desde cedo, obter alguma remuneração financeira e a tas encontrem o tipo de escola que mais se adapte ou que flexibilize suas
profissionalização tornar-se um projeto familiar (RIAL, 2006). Talvez a normas em função das necessidades comuns na formação no esporte, isto
característica desse esporte incida no tipo de foco que o atleta tenha no é, viagens, treinamentos marcados, para além da rotina diária, tratamentos
de lesões etc. Essas estratégias de conciliação não estão restritas às escolas
7 Cf. <http://goo.gl/EQptbD>. Acesso em: 24 nov. 2015. privadas, um atleta da categoria Sub-15, de um dos principais clubes do Rio

210 211
de Janeiro, declarou em entrevista que quando faltava à escola, em função Os jovens atletas revelam, nas entrevistas tratadas qualitativamente, que
dos jogos ou viagens, justificava suas faltas com uma declaração do clube focalizam, em primeiro plano, a carreira profissional no futebol. Assim, a
ou com um atestado médico. Quando perguntado pelo entrevistador, o escola básica se torna uma segunda opção para aqueles que prosseguem
atleta disse existir uma flexibilização da escola por atender a boa parte dos na carreira, sem que, entretanto, se descarte a necessidade de obtenção do
atletas de seu clube: “Não dá problema porque aqui é como se fosse uma certificado escolar. O diploma, representado como o capital cultural insti-
escola do [clube] [...] porque a maioria dos jogadores estuda lá” (Entrevista tucionalizado, é mais valorizado do que os outros tipos de capitais culturais
gravada no dia 19 de abril de 2009). Em outro caso, os atletas de um grande estimulados e difundidos pela escola (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). Esse
clube no Rio de Janeiro afirmaram que frequentavam uma escola privada é um tema caro à nossa educação em geral, pois talvez indique que os atores
onde as aulas ocorriam três vezes por semana em apenas um turno para os sociais vejam a formação escolar (ou universitária) como um processo mais
atletas. Esses mesmos atletas tinham bolsa de estudo e, além de represen- ritualístico para entrar no mercado do que como meio de obterem ferra-
tarem seus clubes em competições, também eram atletas da referida escola mentas e capital cultural que poderão ser convertidos em rotinas de ação
em torneios estudantis (DIÁRIO DE CAMPO, 27/10/2008). Observemos que no mundo do trabalho e do lazer.
os exemplos supracitados mostram que a instituição escolar se torna faci- Os dados indicam que a escola pública reprova mais que a escola pri-
litadora informal do processo de profissionalização dos jovens atletas. A vada. Observando a figura 5, podemos ver que, no ensino fundamental
iniciativa dessas escolas, somada à rigidez dos treinamentos e à alta concor- nas escolas privadas, apenas 4,64% foram reprovados, enquanto que nas
rência para o mercado do futebol contribuem para tornar a escolarização escolas públicas, foram 7,86% . No ensino médio, a diferença na taxa de
um foco secundário na vida desses atletas. Tal fato pode gerar prejuízos reprovação entre público e privado é muito maior, com 30,15% e 10,33%,
na reconversão do capital futebolístico em capital econômico em profis- respectivamente. Talvez esses dados se relacionem com as informações
sões fora do esporte, caso os jovens atletas do futebol não alcancem o tão que indicam que o número de matrículas nas escolas privadas e no ensino
sonhado contrato profissional. Nesse caso, os atletas sem o capital institu- noturno nas escolas públicas aumentam à medida que os atletas chegam
cional da escolarização podem enfrentar dificuldades de inserção no mer- às categorias finais. Assim, a relação entre desempenho e permanência na
cado de trabalho ordinário. escola talvez esteja associada ao tipo de contrato informal que a escola pri-
Os dados sobre a repetência não se diferenciam dos dados básicos cons- vada e as escolas públicas noturnas estabelecem com seus alunos. Não obs-
truídos anos após anos de estudos na sociologia da educação. Entende-se tante, parece-nos que o índice de reprovação é maior no ensino noturno.
que o cabedal de conhecimento acumulado por essa área de estudos propõe Pode-se pensar que os atletas com maior repetência e atraso escolar bus-
que os índices de reprovação e baixo desempenho na escola são maiores nas cam o ensino noturno. Por outro lado, podemos sugerir que a alta carga de
classes populares. Para Schwartzman (2004, p. 7), a repetência funciona, na treinamentos fez com que os atletas perdessem algum ano escolar.
prática, “como um mecanismo de exclusão das crianças que não conse- Os atletas apresentaram uma pequena taxa de evasão. De um modo
guem acompanhar os cursos, e que são, em geral, oriundas de famílias com geral, os atletas permanecem na escola. Para além dos problemas de con-
menos recursos econômicos e com menos educação”. Além do mais, parece ciliação entre escola e formação esportiva, Schwartzman e Cossio (2007)
justo afirmar que o futebol ou, mais precisamente, a tentativa de profissio- indicam que o maior contribuinte para o afastamento e a desistência de
nalização por parte de jovens atletas na carreira futebolística atua como um jovens da escola tem a ver exatamente com a qualidade do ensino das esco-
fator que pode dificultar a dedicação à escola no Brasil e em outros países, las do Brasil, ou seja, não é simplesmente uma dedicação e a chance do
como indica a literatura (MCGILLIVRAY; MCINTOSH, 2006). Tais atletas, futuro promissor que levam os atletas a colocarem a escola em segundo
empenhados em consolidar a carreira, tendem a se descuidar dos estudos, plano ou até mesmo a abandonarem, mas sim a possibilidade de alcançar o
e isso se agrava ainda mais se levarmos em consideração que as suas agen- sucesso profissional através da prática esportiva. As pesquisas sobre evasão
das como atletas pode entrar em conflito com as suas rotinas escolares. escolar também indicam que o principal motivo de abandono escolar até o

212 213
ano de 2006, dentre outros apresentados, é a falta de interesse intrínseco na suas vidas e os acordos tácitos ou explícitos que as instituições escolares
escola, com 43,3% das respostas (NERI, 2009).8 Os argumentos dos autores mantêm com clubes e atletas. Esse é um campo de estudos aberto e que
supracitados indicam que, apesar dos avanços educacionais promovidos merece atenção dos educadores e pesquisadores.
no Brasil nas últimas duas décadas, a escola brasileira é de baixa qualidade
e desinteressante. Os dados de evasão da nossa amostra apresentam que os referências bibliográficas
atletas oriundos de outros estados brasileiros possuem uma taxa de evasão
AQUILINA, D. A study of the relationship between elite athletes educational devel-
muito maior em relação aos nativos. Se pegarmos os dados dos atletas que
opment and sporting performance. The International Journal of the History of
pararam de estudar e não concluíram o ensino médio, teremos 26 atletas; Sport, v. 30, n. 4, p. 374-92, 2013.
analisando a taxa de repetência desses, encontraremos um valor de 65%
BORGGREFE, C.; CACHAY, K. “Dual Careers”: The Structural Coupling of Elite Sport
que repetiram pelo menos uma vez, valor muito acima do que o encon- and School. European Journal for Sport and Society, v. 9, n. 1-2, p. 57-80, 2012.
trado em toda a nossa amostra, que apresentou um número de 36,7% de BRASIL. Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 – Consolidação das Leis do
atletas que já repetiram. Desses 26 atletas que se evadiram da escola, 13 são Trabalho. Disponível em: <http://goo.gl/hceznZ>. Acesso em: 1º mar. 2012.
naturais do Rio de Janeiro e 13 são migrantes. Apesar do número absoluto CAPUT-JOGUNICA R.; ĆURKOVIĆ S.; BJELIĆ G. Comparative analysis: support for-
de evasão do sistema escolar ser igual para nativos e migrantes, em termos student-athletes and the guidelines for the universities in southeast Europe.
percentuais, essas taxas se modificam de sobremaneira. Devemos observar Sport Science, v. 5, n. 1, p. 21‐26, 2012.
que esses 13 atletas migrantes do total de 59 significam 22,0% de evadidos CHRISTENSEN, M. K.; SØRENSEN, J. K. Sport or school? Dreams and dilemmas for
e, em contraposição, os 13 nativos que se evadiram da escola representam talented young Danish football players. European Physical Education Review,
v. 15, p. 115-137, 2009.
3,6% do total de 358. A migração, por si, sugere um investimento acentuado
DAMO, A. Do dom a profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da
na carreira futebolística. Observemos que a saída da cidade ou estado de
formação de jogadores no Brasil e na França. 2005. 434 f. Tese (Doutorado em
origem implica uma série de renúncias da vida do jovem, como o convívio Antropologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa
com a família e os amigos. Isso explicaria, de certa forma, que esses jovens de Pós-Graduação em Antropologia Social. Porto Alegre, 2005.
migrantes no futebol do estado do Rio de Janeiro estão dispostos a vários ______. Do dom a profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a par-
tipos de sacrifícios sociais para alcançar o objetivo prioritário de se tornar tir da formação de jogadores no Brasil e na França. São Paulo: Aderaldo e
um jogador profissional, com altos salários e status. Rothschild; Anpocs, 2007.
No Brasil, são poucos os estudos sobre a relação entre o processo de HENRY, I. Elite Athletes and Higher Education: Lifestyle, Balance and the Managment
formação de atletas e a formação na escola básica. Com os dados obtidos of Sporting and Educational Performance. Brusselles: International Olympic
neste artigo, pudemos traçar um perfil dos atletas de 11 a 20 anos das cate- Committee; University Relation Olympic Studies Centre, 2010.
gorias de base do futebol no estado do Rio de Janeiro. Os dados indicam HICKEY, Christopher; KELLY, Peter. Preparing to not be a footballer: higher educa-
tion and professional sport. Sport, Education and Society, v. 13, n. 4, p. 477-494,
que o investimento escolar para atletas pode ser inversamente proporcional
nov. 2008.
às possibilidades de sobrevivência a partir do esporte como profissão.
IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da popula-
Os dados podem insinuar que quanto mais investimentos o atleta rea- ção brasileira. Rio de Janeiro, 2009.
liza em sua carreira, maior será a probabilidade de secundarizar a escola, MCGILLIVRAY, D.; MCINTOSH, A. Football is my life: Theorizing social practice
mesmo que isso não signifique sucesso no futebol profissional. Todavia, in the scottish professional football field. Sport in Society, v. 9, n. 3, p. 371-387,
esses dados não explicitam a qualidade de formação escolar que esses atle- jul. 2006.
tas recebem em suas respectivas escolas, o impacto que o futebol tem em NERI, M. C. O paradoxo da evasão e as motivações dos sem escola. In: VELOSO, F.
(Org.). Educação básica no Brasil: construindo o país do futuro. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009.
8 Análise a partir da base de dados do PNAD 2004 e 2006.

214 215
NOGUEIRA, C. M. M.; NOGUEIRA, M. A. A sociologia da educação de Pierre
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216
capítulo 9
Educação do corpo e da vontade na ginástica rítmica
Patrícia Luiza Bremer Boaventura
Alexandre Fernandez Vaz

introdução
O esporte, como fenômeno social, histórico e cultural, oferece uma varie-
dade de reflexões significativas que sugerem uma educação do corpo. O
corpo é submetido a normas, regras, costumes que podem revelar a dinâ-
mica de elaboração de códigos, significados, técnicas, pedagogias e instru-
mentos, reafirmados e incorporados por um “meticuloso processo de edu-
cação” (SOARES, 2004, p. 109) presente, entre outras dinâmicas, na lógica
do treinamento esportivo. Essa educação ocorre pelas relações que se esta-
belecem em espaços definidos e delimitados, por atos de conhecimento que
irão se sujeitar a uma intervenção dirigida, tornando o corpo objeto de
constantes cuidados voltados ora para civilizá-lo, ora para ensiná-lo a ser
útil e higiênico, ora ainda para sexualizá-lo e erotizá-lo.
Na tentativa de compreender algo dos lugares do corpo no esporte, tor-
na-se necessário interpretar diversas formas de controle corporal – a admi-
nistração do tempo esportivo, a disciplina alimentar e sexual –, posto que
as práticas esportivas acolhem, simultaneamente, rupturas e continuidades
a partir das quais os modelos corporais e as utilizações do corpo revelam
suas fragilidades, potências, especificidades e generalidades culturais. Pensar
essas formas de intervenção pedagógica específicas de educação do corpo,
orientadas por saberes, critérios, significações e discursos, permite-nos certa
aproximação à constituição e ao desenvolvimento dessas práticas corporais
e esportivas, fazendo conhecer suas particularidades norteadas por seu con-
texto histórico-social.
Considerando esse fio condutor, esta pesquisa se debruça sobre a edu-
cação do corpo no esporte, buscando analisar este espaço social como um
sistema de saberes e significações, nas quais valores, hierarquias, posições
de gênero, entre outros, instrumentalizadas na/pela técnica, expressam, de

219
um modo particular, representações dos corpos – de certa forma, de um sando-as permanentemente. Clifford Geertz (1989) ofereceu alguns cami-
corpo esportivo. Características singulares estão presentes nesse universo nhos metodológicos e auxiliou na compreensão do corpo e suas expressões
esportivo e, para o escopo deste texto, analisaremos a ginástica rítmica (GR), técnicas e artísticas.
esporte que produz e reproduz corpos femininos, como campo de obser-
vação de um tipo de educação do corpo de mulheres em nossa sociedade. uma forma especializada de educação do corpo:
A GR é uma modalidade sobre a qual o discurso nativo costuma dizer ações e gestos precisos
que alia a arte do movimento expressivo do corpo com a utilização ou não
de aparelhos (corda, bola, arco, maças e fitas) e a interpretação de uma Como outras modalidades de expressão corporal e artística, a ginástica
música, no que se supõe formar uma síntese harmoniosa de elementos cor- rítmica sintetiza elementos de várias construções técnicas e estéticas que
porais técnicos e estéticos. A exigência do treinamento deixa observar de lhe são historicamente anteriores, como o balé clássico, a dança, e o circo,
maneira mais eloquente o aperfeiçoamento da técnica que busca a poten- construindo uma estética e uma linguagem, mostrando um corpo portador
cialidade do corpo. As ginastas submetem-se a grandes esforços físicos, de valores sociais e conteúdos simbólicos específicos, explicitados e articu-
sacrifícios, abdicações e obrigações representados por rotinas e rituais nos lados por meio de movimentos e gestos.
ambientes de treinamento e também de competição. Como nos mostra Angheben (2009), é preciso entender a GR não como
Neste trabalho,1 pretende-se problematizar questões relativas à educa- um método ou sistema, mas como o resultado de um movimento renova-
ção do corpo e da vontade na ginástica rítmica. Tal quadro se norteia por dor com dinâmica e ritmos específicos que surgiu da necessidade de um
algumas questões: Qual o processo que permite colocar em prática a edu- conjunto de gestos para o sexo feminino, já que nesta modalidade, oficial-
cação dos corpos? Em que medida as pedagogias corporais da GR ajudam a mente, não há participação masculina,4 demarcando um espaço arraigado
constituir a conformação de corpos e vontades? por características que seriam eminentemente das mulheres. Assim, pode-
Certa inspiração etnográfica foi utilizada na investigação para inves- mos concordar que “a ginástica rítmica é uma modalidade essencialmente
tigar espaço social, práticas, discursos, representações. A pesquisa foi rea- feminina, praticada a mãos livres e com pequenos aparelhos; sua beleza
lizada por meio de observações registradas em diário de campo e entre- plástica, graça e elegância formam um conjunto harmonioso de movi-
vistas com ginastas e treinadoras2 durante o ano de 2010 em uma equipe mento e ritmo” (CRAUSE, 1986, p. 96).
catarinense de GR. As ginastas observadas durante a incursão no campo A GR traz fundamentos e desenhos precisos para definir intensidades,
possuíam entre 6 e 17 anos e dedicavam-se diariamente aos treinamentos espaços e tempos para cada movimento. Na tentativa de tornar o gesto téc-
de GR. nico “ideal” e passível de ser alcançado, é necessário decompor o movimento,
Os dados da pesquisa foram coletados em intensa imersão durante calculá-lo e treiná-lo: “No treino de pivot (giro) passé5 [...] Após o trabalho
cinco semanas, vivenciando o cotidiano de atletas em treinamentos e com- de preparação inicial do movimento e a preparação do movimento junta-
petições, incluindo, neste último caso, os momentos de descanso, sono, mente com o equilíbrio, as ginastas realizaram o pivot (giro) completo.”.
alimentação etc. na rotina dos alojamentos. Encontramos e formamos as (DIÁRIO DE CAMPO – 15/4/2010).
categorias de análises antes, durante e após a incursão no campo,3 repen-
1 O trabalho contou com o apoio do CNPq, no contexto do Programa de Pesquisas teoria crítica,
racionalidades e educação (II, III, IV), na forma de bolsas de mestrado, de produtividade em estaria dotada de lutas próprias, regras próprias correspondentes, princípios, hierarquias,
pesquisa e de apoio técnico à pesquisa, além de financiamento à pesquisa. Especificamente, onde se investe toda uma cultura pertencente dentro de uma lógica específica.
ele tem origem em Boaventura (2008). 4 Prioritariamente um esporte feminino em nível de competição, a GR ganhou uma versão
2 Foram entrevistadas e observadas cotidianamente três treinadoras. Todas são ex-atletas. masculina desenvolvida no Japão durante os anos de 1970; porém, oficialmente, sob a autori-
3 A partir da categoria analítica campo, de Pierre Bourdieu (2008), consideramos a ginástica dade da Federação Internacional de Ginástica (FIG), só é permitida a prática para mulheres.
rítmica um espaço social, no qual as ações individuais e coletivas se dão dentro de uma 5 Equilíbrio passé é uma posição estática em que a ponta do pé da perna de trabalho toca o
normalização, criada e transformada constantemente por essas próprias ações. Assim, a GR joelho da perna de apoio.

220 221
O elemento, por exemplo, do pivot é elucidativo. Ele foi, ao longo Os pontos importantes do desenvolvimento da técnica estão na decom-
da história, minuciosamente trabalhado em diversos movimentos para posição do exercício e em sua repetição. Nessa dinâmica, as prescrições
serem treinados. Observa-se que a GR, assim como faz a ginástica con- seguem uma ordem dos movimentos da coreografia, isto é, a ginasta exe-
forme ensina Soares (2009), utiliza-se de programas de treinamentos que cuta uma determinada sequência e não pode começar um exercício sem
assumem a ideia de decompor o movimento para, em seguida, realizar terminar o outro corretamente. Assim, os exercícios de cada série são trei-
melhores e mais complexas combinações. Alimentam-se, ainda, da ideia nados individualmente e, quando passados com música, são minuciosa-
de repetir para melhor afirmar e reforçar o gesto técnico, como é possível mente executados. Sem a permissão de paradas, como descreve o Código
conferir nos trechos anotados: “Antes de uma ginasta treinar a sua série6 de Pontuação,10 a ligação entre os movimentos é contínua, porém, deve ser
de fita, a treinadora solicitou a execução de movimentos com a fita: ‘quero regulada em momentos exatos.
cinquenta bolinhas7 com cada mão e serpentina8 em relevé’”9 (DIÁRIO DE Uma educação específica do corpo vai dar consistência ao treinamento
CAMPO – 12/4/2010); “Uma ginasta estava com dificuldade em realizar um repetitivo e exaustivo e ensinar a prestar atenção às posturas, à precisão das
movimento de equilíbrio e a treinadora mandou fazer cinco mil vezes esse ações e, principalmente, à ordenação das partes corporais. Os joelhos, os
exercício.” (DIÁRIO DE CAMPO – 24/3/2010). pés e a cabeça passam a ter um lugar importante na aquisição técnica. Em
Para além do treinamento minucioso dos movimentos ginásticos, há a uma descrição observa-se esses aspectos:
necessidade de repeti-los demasiadamente, como se verifica nas anotações
A treinadora olhava para todas as ginastas da quadra e corrigia os seus erros.
acima. Assim, a ginasta, guiada por sua treinadora, executa repetidamente Gritava “pés, joelhos, perna da frente, perna de trás, postura, finaliza, cabeça,
os movimentos até acertá-los, ou mesmo interminavelmente. Na medida mãos, cotovelo.” [...] Ela corrigiu tocando as meninas, principalmente, nos pés
em que há um exercício extremamente complexo, as repetições são ainda e joelhos ou chamava a atenção para as partes do corpo que não estavam cor-
mais exigidas, como é o caso da tarefa da ginasta, repetir cinco mil vezes retas. (DIÁRIO DE CAMPO – 14/4/2010).
um elemento corporal. Percebe-se que o domínio do exercício é adquirido
Uma pedagogia da postura passa a ocupar espaços específicos e amplos
por meio de sua repetição específica, e posteriormente com a junção dos
na GR e, como nos explica Soares (2009), é uma educação específica do
movimentos mais complexos, como quando, por exemplo, “a treinadora
corpo que ensina a prestar atenção a elas, à precisão das ações individuais e
mandou dividir a série em três partes: treinar cinco vezes cada dificuldade,
coletivas, “pois já se tem consciência de que elas interferem naquelas mais
cinco vezes cada lançamento e cinco vezes cada parte da série. Após as
complexas e difíceis” (SOARES, 2009, p. 144). A estrutura do corpo passa a
repetições, as atletas treinaram a série completa” (DIÁRIO DE CAMPO –
ser pensada em detalhes, e a combinação de seus diversos segmentos ganha
24/3/2010). Soares (2009, p. 147) explica que “distribuir com método os
importância a partir de um obstinado e meticuloso trabalho de fortaleci-
lugares e as orientações possíveis de deslocamentos, o lugar e o agencia-
mento muscular e articular que sustenta essa boa e adequada postura.
mento das repetições parece mesmo ser o projeto da pedagogia encarnada
Um corpo conectado que deve ser trabalhado a partir de sua fragmen-
pela Ginástica para educar os corpos”.
tação exige formas de trabalho específicas. Essa maneira de propor os movi-
mentos alimenta as “metáforas da decomposição” (SOARES, 2009, p. 147),
6 Uma série é composta por elementos corporais colocados em uma determinada ordem que formadas por gestos específicos para braços, cabeça, tronco, pernas, qua-
devem, obrigatoriamente, ser executados como previamente estabelecido, sem olvidar o dril, buscando trabalhar, igualmente, cada lado do corpo em movimentos
acompanhamento musical.
7 Bolinhas são movimentos espirais, em forma de círculo, que deverão ser contínuos, unifor-
separados, decompostos e que se projetam para todos os planos do espaço.
mes, com a ponta da fita não podendo tocar o solo.
8 Serpentinas são movimentos em forma de ziguezague, que deverão ser contínuos, uniformes 10 O Código de Pontuação ocupa-se da avaliação dos exercícios, uniões e combinações e dedu-
e a ponta da fita não podendo tocar o solo. ções por falta de execução, além de determinar medidas disciplinares aos treinadores, ginas-
9 O movimento em relevé significa elevar, reerguer, subir para meia-ponta ou ponta. tas e juízes e detalhes gerais da organização e controle de competição.

222 223
É a proposta de uma ordem, de uma sucessão e de sequências de repetições guiado pelas explicações precisas, decodificar, separar e fragmentar as par-
muito bem definidas, distribuídas no tempo preciso de um conjunto de tes, penetrando em todas as dimensões corpóreas. O caminho para a cons-
sessões de treinamento, de aplicação exaustiva e desgastante de exercícios. tituição da técnica corporal é obtido pela precisão dos gestos em formas
Os movimentos são divididos e compartimentados, buscando simetrias específicas de coerção e disciplinamento.
que possam reforçar e aprimorar os equilíbrios musculares, criando, assim, Desse modo, o corpo é alvo de prescrições detalhadas para suas par-
sistemáticas que sejam capazes de prevenir as deformações, fortalecer os tes diversas, de forma que na manutenção da técnica surgem explicações
diversos segmentos corporais e, ao mesmo tempo, enquadrar o movimento acerca da tensão entre as partes do corpo em movimento. A treinadora é
na sua melhor performance. Assim, as formas didáticas relacionadas ao enfática ao afirmar que, dependendo da capacidade física da ginasta, ela
trabalho corporal na GR devem trabalhar todos os planos para que o corpo vai priorizar certas partes do corpo: “‘Se eu tiver uma ginasta superflexível,
esteja em plena simetria bilateral e homogênea: “Uma ginasta fez igual com eu vou usar só coluna e virilha. Se eu tiver uma ginasta de muito manejo
a perna direita e esquerda em todos os exercícios e a treinadora a elogiou” e pouca flex [flexibilidade], eu vou usar mais ondulante, eu vou usar mais
(DIÁRIO DE CAMPO – 14/4/2010). braço, vou usar mais marcação’” (Treinadora, depoimento, 23/05/2010). É
O desenvolvimento das habilidades dos dois hemisférios corporais corrente atentar para o que é adequado para cada ginasta. É preciso saber
é extremamente ressaltado no momento de realizar um exercício, pois, não somente os gestos técnicos, mas também o momento adequado para
dependendo do lugar em que a atleta se posiciona em quadra, o movi- cada uma, de modo que cada parte do corpo deve ser valorizada como tal.
mento pode ser apreciado e visualizado no seu melhor ângulo. É digno Há uma maneira exata para a utilização do corpo priorizando as partes que
de nota quando se observa uma atleta com ambos lados do corpo igual- devem estar mais à mostra e em ação.
mente desenvolvidos, algo dificilmente encontrado nas ginastas, pois há O que deve ser feito é realçar as qualidades e suprimir os defeitos e os
geralmente uma predominância de um lado e uma limitação do outro. erros que a ginasta tem: “A treinadora falou para uma ginasta ‘Vou te limpar
Preferencialmente, a atleta executa os exercícios em direção ao seu lado hoje’. [...] (DIÁRIO DE CAMPO – 21/5/2010). “Limpar”, no discurso nativo,
que apresenta melhor performance, entretanto, o treinamento sempre é refere-se à correção de defeitos dos movimentos, requisito para obtenção
exercido para ambas as direções. de uma nota alta em execução.11 Assim, a exposição corporal prioriza os
Como forma didática, é interessante observar que o conhecimento movimentos “limpos”, nos quais a finalização do movimento, sem quais-
dos corpos pela anatomia descritiva e a fisiologia, assentadas na mecânica quer desequilíbrios, é essencial.
corporal e na bioenergética, permitiram a descrição e a classificação dos Diferentes pedagogias são desenvolvidas para intervir e educar em
órgãos por suas características morfológicas, explica Gleyse (2007). Desse nome da retidão das formas e dos costumes, com destaque para a siste-
modo, o saber anatômico, construído a partir do modelo do cadáver, trans- matização e regulação dos movimentos. Essa organização sistemática
forma o corpo em objeto de conhecimento que se dispõe à ciência, como é elaborada por um trabalho individual na correção das performances.
matéria a ser manipulada, inclusive em partes isoladas, e explicada a partir Observa-se que cada ginasta treina seus exercícios individualmente, porém
de uma lógica mecanicista, segundo a qual o corpo se organiza em vários as intervenções se valem, também, de movimentos coletivos que causam
sistemas autônomos. Assim disposto, permite, por meio de sua objetivi- múltiplas transformações. À medida que mais pessoas sintonizam sua con-
dade, estabelecer parâmetros de normalidade, a partir dos quais se ditam duta com a de outras, a teia de ações teria que se organizar de forma sempre
modos de tratá-lo e educá-lo. mais rigorosa e precisa, a fim de que cada ação individual desempenhasse
Um olhar milimétrico sobre o ato de mover o corpo é capaz de pres-
crever, perscrutar, nomear os volumes e intensidades, identifica erros, 11 As ginastas são avaliadas por uma banca examinadora por dois quesitos básicos da modali-
dade: (1) Dificuldades (avalia os elementos corporais [pivots, equilíbrios, saltos] e as maestrias
encontra acertos e soluciona deformações. É a descrição rica em detalhes e com os aparelhos [corda, bola, arco, maças e fita]); (2) Execução (avalia a técnica, as falhas e
a elaboração de correções que tornam a técnica do corpo eficaz. É possível, faltas cometidas).

224 225
uma função conjunta. Abaixo, o trecho retirado do diário de campo sobre a tarefas sociais muito precisas, dentre as quais figura também a determina-
realização dos movimentos individuais com caráter coletivo: ção dos movimentos dos corpos”.
O relógio passa a ter não apenas eficácia como marcador do tempo
Todas estavam pulando corda [...] A treinadora mandou todas descansarem
trinta segundos para repetirem e comentou “Se não fizerem, vão repetir de
social, mas, sobretudo, na esfera da vida produtiva e no processo de centra-
novo, até ficar bonito”. Quando todas terminaram, as que não executaram cor- lização e sincronização das atividades de distribuição do tempo verificado
retamente precisaram continuar. A treinadora mandou quatro ginastas faze- por meio desse instrumento. Nesse sentido, a atenção destinava-se a uma
rem de novo. Fizeram mais 30 segundos que as outras. Estas ficaram olhando, “administração eficiente” e essa necessidade e função do controle do tempo
mas estavam proibidas de sentar. (DIÁRIO DE CAMPO – 14/4/2010) eliminam as possíveis irregularidades e provam a severidade das regras.
Aqui, as meninas que executaram os movimentos errados continuaram A precisão dos gestos e o seu tempo exato de duração condicionam a
o exercício e as outras que os fizeram corretamente não puderam se sentar preparação da atleta, a qual visa, entre outros, à máxima rentabilidade no
porque era preciso esperar as demais para que, então, o grupo progredisse tempo regulamentar de um treinamento, e à máxima produção nesse mesmo
na programação. Todo o mérito de uma conquista individual adquirida por tempo. Cada segundo passa a ser determinante para a aquisição técnica:
meio de uma aprendizagem metódica e sancionada foi obtido por sacrifí- Se você for colocar no papel trinta minutos hoje, trinta minutos amanhã,
cios coletivos. Nesse sentido, as intervenções propostas valeram-se de tra- trinta minutos depois de amanhã, dá muito tempo. Muita gente pensa, “ah, é
balhos organizados a partir de movimentos individuais, mas que causaram tão pouco, só meia horinha”, mas, pra elas, trinta minutos são muita coisa, por-
efeitos coletivos. Desta forma, as ginastas precisaram executar as tarefas em que os individuais12 delas são de um minuto e quinze a um minuto e trinta...
decorrência do acerto ou erro do grupo. Observa-se esse aspecto também Nesses trinta minutos, quantas vezes elas podem passar na música? Quantas
repetições elas podem fazer de cada exercício? Então, por isso que é impor-
em outro momento: “A treinadora chamou a atenção de três meninas ‘Eu tante pra elas. Às vezes, elas não sentem, mas o organismo delas fala um pouco
não acredito que vocês não subiram ainda. Vão todas ficar a mais porque mais alto (TREINADORA, depoimento, 20/4/2010).
vocês não subiram no tempo certo’.” (DIÁRIO DE CAMPO – 8/4/2010).
Para Soares (2009, p. 147), “os exercícios ritmados, executados em con- Trinta minutos de treinamento regulamentados e controlados são de
junto e atendendo a uma voz de comando, rompem definitivamente com grande importância para o aperfeiçoamento da técnica e é esse tempo, na
práticas familiares, conhecidas, e são remetidos à razão mecânica, uma vez condução dos modernos métodos de treinamento que é fundamental para
que necessitam explicar e justificar a estranheza que sua aplicação causa”. a obtenção de performances. De forma geral, o tempo cronométrico é para
Parece que esse tipo de trabalho é mais intenso e decisivo no corpo se com- o esporte fator essencial na potencialização da performance e define a dinâ-
parado com qualquer aplicação ou o uso que algum aparelho poderia ter. mica do processo de aquisição técnica, como se lê no diário de campo: “A
Sem dúvida, remete às singularidades do corpo como algo a ser adestrado, treinadora alertava sobre o tempo “Quem ‘matar’ vai ficar dois, três minu-
com práticas executadas de modo particular e voltadas a cada parte dele. tos a mais, até fazer’” (DIÁRIO DE CAMPO 14/4/2010). Na automatização de
Um elemento importante a ser levado em conta no quadro de uma gestos, os exercícios são calculados e determinados pelas treinadoras, que
educação do corpo são os mecanismos de regulação do tempo. Um tempo controlam, durante o treinamento, todos os passos de suas alunas. O tempo
regrado e disciplinado é condicionante das práticas internas dos treina- passa a ser demasiadamente controlado. Com tal característica, o tempo do
mentos, na medida em que é realizado um lento processo de controle do banheiro, o tempo da água, o tempo do lanche, o tempo do sono, são alguns
corpo por meio dele. Segundo Brigatti (2003, p. 04), o tempo para o homem dos tempos controlados e, na maioria deles, permitidos ou proibidos.
contemporâneo se realiza por meio de fatos e tarefas objetivas, o que vem O sono e a hora de dormir são determinados pela crença de que a efi-
reforçar a ideia de racionalização e funcionalidade. Elias (1992, p. 67) reflete ciência é obtida quando o corpo está descansado. Segundo Pinto, Infante e
que “o tempo, ou, mais exatamente, sua determinação, aparece como um
meio de orientação, elaborado pelos homens com vistas a realizar certas 12 A GR pode ser praticada individualmente ou em conjunto de cinco atletas.

226 227
Oliveira (2005), o padrão de sono, o estilo e as condições de vida do indiví- como detalhado em seguida: “As ginastas não tomaram banho porque não
duo influenciam diretamente no desempenho físico. Assim, os sujeitos do havia chuveiros nos alojamentos. Havia, apenas, banheiros nos ginásios e
campo necessitam destinar os seus tempos para a prática e o descanso em reclamaram que não se aguentavam mais porque estavam fedidas.” (DIÁRIO
função do rendimento. Entretanto, o descanso não deve ser excessivo, por- DE CAMPO – 22/5/2010).
que o tempo inutilizado será fonte de condutas inapropriadas e não produ- Deve-se fazer referência aos banhos e aos usos do banheiro. Este é um
tivas. Sobre isso, lê-se um comentário: “[...] tem que ter responsabilidade, lugar privilegiado, momento íntimo de abençoados e higiênicos atos. A
saber ‘Não posso dormir tarde porque no outro dia eu tenho treino, eu higienização corporal é corrente e parece ser um ritual essencial. Aliados
tenho que estar bem para o treino e pensar nas outras meninas’.” (Ginasta, às preocupações higiênicas, os inúmeros cuidados com a limpeza do corpo
depoimento, 8/7/2010). também tendem a ser tratados sob o intuito de embelezamento presente,
Na regulamentação do tempo do banheiro e da água encontramos: por exemplo, em ocasião em que todas “foram ao banheiro várias vezes
para se olharem e fazerem poses na frente do espelho” (DIÁRIO DE CAMPO
Enquanto eu estiver falando, ninguém me interrompe na explicação e quando – 14/9/2010).
quiser ir ao banheiro, tomar água, tem que vir falar comigo. Porque às vezes
Não basta apenas cuidar da higiene pessoal, mas, também, da aparên-
elas perdem alguma coisa muito importante nesse vai e vem do banheiro.
Atrapalha, até, as outras. Elas já estão habituadas, tu vistes. Em aqueci- cia. A ginasta deve fazer uso de tratamentos de beleza e ter cuidados diá-
mento elas nem perguntam, só quando acaba “Posso agora?”, “Agora pode”. rios com a exterioridade. O uso de imagens do corpo em certas práticas e
(Treinadora, depoimento, 20/4/2010). produtos de embelezamento desperta o desejo e constitui uma política de
Uma ginasta falou “ai, um gole de água”. A treinadora disse: “Não, ainda não controle das condutas largamente utilizadas nesse campo, no qual é pre-
terminou o aquecimento”. [...] Depois que terminou de saltar falou para sua ciso cuidar da feminilidade a ser revelada, como é detalhado a seguir: “As
amiga “Ai, estou cansada. Preciso beber água”. (Diário de Campo – 7/4/2010) treinadoras olharam para as meninas e falaram ‘Que linda que você está’,
‘Passou brilho? Que querida’. Uma treinadora elogiou a unha pintada de
Há momentos de intervalo permitidos, mas eles não podem prejudicar
rosa de uma ginasta. A outra treinadora abraçou uma ginasta e disse ‘Que
o andamento do treinamento, como explicou a treinadora. Além disso, na
cheirosa’.” (DIÁRIO DE CAMPO – 24/3/2010).
maioria das vezes, as ginastas são autorizadas a beber água quando a trei-
Determinadas tarefas são estimuladas em nome da vaidade. As ginas-
nadora faz uma pausa coletiva, mas, fora isso, a dinâmica é peculiar, pois
tas são orientadas a cuidarem de seus corpos e a reafirmarem, entre elas, as
durante o treinamento as meninas não podem ir juntas, ou seja, a ginasta orientações desejadas. Elas devem fazer uso de cosméticos, produtos e equi-
só vai beber água quando a outra volta: “Uma ginasta saiu para beber água. pamentos destinados ao feminino. Essa construção social do corpo assume
Quando voltou, outra foi e, quando essa última voltou, outra ginasta foi.” uma ação pedagógica explícita e expressa uma forma corporal feminina:
(DIÁRIO DE CAMPO – 12/4/2010). “Então assim, tudo que a gente faz de força, elas fazem com o máximo de
Para além do consumo, os usos da água também atestam outras trans- carga, só que elas sabem que é o corpo feminino que está trabalhando e elas
formações de costumes em relação à educação do corpo, como indica sabem que pra tornar feminino o movimento, elas têm que mostrar alguma
Soares (2003). Seu emprego como elemento fundamental de higiene tem coisa feminina.” (Treinadora, depoimento, 23/05/2010). Os movimentos de
como finalidade revelar os usos dos corpos. As pretensões de limpeza e leveza e característicos da GR conformam uma ideia de gestos femininos
higiene, também aliadas à educação, operam lentamente uma disciplinari- excludentes para os homens, segundo o discurso nativo. Os movimentos,
zação mais abrangente do cotidiano e dos comportamentos, a partir de uma as roupas, a maquiagem, os adornos, os instrumentos sugerem um corpo
compulsão de controlar o corpo. Frequentemente, no campo investigado, que pode ser educado como feminino.13
as atletas mais experientes, antes de irem para a escola e após os treinos,
tomavam banho no ginásio. Essa prática esteve presente nos alojamentos e 13 Não temos espaço para desenvolver essa temática neste trabalho; porém, é importante des-
tacar que esse corpo é considerado feminino e hegemônico dentro do campo da GR. Para
competições, porém, sua falta caracterizava as ginastas como malcheirosas, maiores detalhes, consultar Boaventura e Vaz (2013).

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Além disso, em função da estética corporal, elas precisam controlar o a construção do corpo na gr: entre tradição e feminilidade
peso para que, na hora de verificar constantemente o próprio peso, não
haja diferença no valor da balança. Isso porque as deformidades estão rela- A GR é uma prática corporal que projeta posturas normativas inspiradas na
cionadas ao excesso de peso e a busca da composição corporal equilibrada geometrização dos gestos, nas explicações fisiológicas que permitem uma
está intimamente vinculada ao princípio da retidão do corpo e da magreza análise mais acurada acerca das funções orgânicas, da ordem dos movi-
do porte, tão necessários para o gesto técnico perseguido. A elegância dos mentos e sua eficácia. É considerada um conjunto de técnicas capaz de
movimentos e o espetáculo são produzidos por um corpo que deve atender educar o corpo, reformar, melhorar, aprimorá-lo, além de crer-se que ela é
a um modelo de magreza. A necessidade de controlá-lo está ligada a falhas capaz de intervir no caráter do indivíduo, assim como faz a ginástica, con-
técnicas que podem ocorrer pelo excesso de peso. Portanto, o controle é forme ensina Soares (2009). Ambas as práticas, com formas específicas de
feito tanto pelas comparações dos gestos quanto pela alimentação, quando pedagogia, se utilizam dos corpos em uma relação de alinhamento e ensi-
um rigoroso regime se faz presente. namentos de distâncias necessárias à precisão do movimento, estabelecem
Conforme a atleta acerta os movimentos, a ela é oferecida, por um ritmos comuns e ordens coletivas, adequam o corpo em relação aos objetos
momento, real ou imaginário, permissão de obter elementos proibidos. É e seus usos (SORAES, 2009). Desta forma, a GR ensina e exige técnicas de
como se o corpo fosse premiado quando apresentasse um gesto técnico autogerir-se, maneiras de servir-se do corpo, uma aprendizagem de ensi-
eficaz. Essa recompensa é concedida por algo que é regrado, a comida. namentos técnicos.
Algumas situações mostraram esse controle, como “em um momento [em Em seus conteúdos e modos de organização, a GR encontra-se enrai-
que] a treinadora falou para a atleta que, se ela não fizesse os exercícios, ela zada na lógica do treinamento esportivo, na forma tradicional de seus gestos
não poderia comer o bolo que outra atleta havia trazido para comemorar o mecânicos, na inibição dos medos, na seleção de ritmos e movimentos, no
aniversário” (DIÁRIO DE CAMPO – 12/4/2010). controle do corpo e de recomposição de elementos clássicos: instrumentos,
É importante o modo como a treinadora reforça as condutas das atletas roupas e valores, inscrevendo características e carregando-as de novas signi-
de acordo com a regra geral instituída ao grupo, sem margem para exceção. ficações. Eis, pois, uma técnica específica, uma expressão gímnica e artística,
As alunas aprendem o controle do tempo e das atividades: o tempo das tare- com características que lhe são próprias, portanto, assim como já destacado
fas, da água, da alimentação e da organização, e incorporam essas práticas. para a ginástica em geral, trata-se de “uma técnica de educação do corpo,
Esse modelo orientado pela treinadora preocupa-se com a eficácia do ensinando o comedimento, a contenção, o rigor consigo e com o outro, a
treinamento, do ensino e aprendizagem, visando ao cumprimento da tarefa, igualdade de ritmos e gestos” (SOARES, 2009, p. 136: grifos da autora).
como sugere Becker Jr. (2000). O autor explica que a comunicação do téc- Como expressão da cultura e como forma específica de educação
nico com o atleta pode trazer bons resultados esportivos, mas, para isso, ele do corpo, a ginástica – e aqui ressaltamos que se trata da GR – guardou,
deve especificar o que deseja de seus subordinados. Nesse caso, os atletas em seus conteúdos, relações próximas e mesmo de dependência entre o
devem estar de acordo com as regras de cada esporte. Dessa forma, como esporte e a arte (SOARES, 2009). Em sua estreita imbricação entre espetá-
se vê na GR, o tratamento é regrado e explícito. As ginastas são, constante- culo e performance, em que um exercício físico apresenta-se como regrado
mente, obrigadas a seguir os regulamentos e normas às quais são submeti- e constituído de símbolos, é realizado um conjunto de procedimentos que
das, sob pena de, invariavelmente, sofrerem punições por meio de conten- visa a contribuir para incorporar cuidados de si, construir normalidades,
ções e sacrifícios corporais que fazem parte do trabalho individual e coletivo, gestos precisos, cultuar hierarquias, maneiras de educar o corpo. Os esque-
sendo este racionalizado nas exigências da aprendizagem da técnica. mas musicais e técnicos, os aparelhos e materiais, conferem à GR um lugar
Às ginastas se permite um conjunto de atitudes, ou não, às quais se atri- importante na educação dos corpos, marcada por discursos especializados,
bui símbolos e valores, representados pela postura, fala, silêncio, decompo- de um modo dirigido, com expressiva participação em torno de um ele-
sição do corpo e dos exercícios, castigos, todos altamente disciplinadores. mento comum, a técnica corporal.

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É personagem de um cenário educativo, na formação normativa e dis- O controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez
ciplinar em que o corpo é a superfície de inscrição mais imediata de novos mais instilado no sujeito desde seus primeiros anos de ingresso, como uma
códigos, comportamentos e valores. Conforme a história desse esporte, autocompulsão, se seguirmos os termos propostos por Elias (1994), à qual
apresentada por Toledo (2010, p. 25), sua prática é composta por exercícios ele não poderia resistir, mesmo que desejasse. Os bons modos civilizados
físicos sistemáticos, “visando não à comparação de performance, mas ao estão presentes nos sujeitos e apresentam-se regularmente no campo, como
condicionamento, à disciplina e à estética do corpo, entre outros objetivos”. se ressalta: “Porque às vezes, se tu pedes pra ir ao banheiro ela diz que não
Pode-se inferir que é indispensável um lento, intenso e obstinado tra- precisa avisar que tu vais quando tu queres, mas eu nunca assim, eu nunca
balho de adestramento do corpo para que isso ocorra. A educação do corpo deixo de avisar. Porque vai que ela pergunta ‘Cadê a fulana?’” (GINASTA,
estabelece, prescreve e aplica fórmulas e formas de contenção tanto da fisio- depoimento, 8/7/2010). Assim, as vontades ligam-se e são incorporadas por
logia – contrariando, assim, a “natureza” – quanto dos mais diversos dese- aquilo que foi manifestado de forma perspicaz e frequentemente realçado.
jos. Esta educação duradoura e intermitente é onipresente e manifesta-se em A rotina das meninas parece produzir uma variedade de práticas e con-
tudo o que envolve os sujeitos, nos distintos atos e discursos que a constituem. dutas disciplinadas que buscam rendimento e produtividade: há, por parte
Essa educação é visível por meio de um cauteloso processo de ades- delas, subserviência às regras e à vontade de estarem incluídas dentro da
tramento. Porém, um dos efeitos mais sutis da educação do corpo desti- lógica produzida nos ambientes desse campo e, dessa forma, renunciam
nada à correção ortopédica exige também o desenvolvimento da retidão a muitas atividades diárias. Assim, ausentar-se de um dia no treino e dei-
do caráter, portar-se adequadamente, andar na linha, manter a compostura xar de fazer exercícios físicos “por preguiça” são fatos inaceitáveis. Isso se
(SOARES; FRAGA, 2003), um desenvolvimento moral. Dessa forma, geram- vincula ao que Sabino (2000, p. 90) chama de uma “dedicação quase que
-se prescrições e definições do corpo, impõem-se atitudes e comportamen- monástica” que é exigida daqueles que desejam transformar seus corpos.
tos preponderados, como a organização e disciplina, a regulação de meca- Essa dedicação se aproxima ao que Hansen e Vaz (2004) destacam como
nismos temporais e atitudes íntimas. uma espécie de compulsão que parece acometer muitos frequentadores de
As atletas autocondicionam suas condutas, mesmo que haja certa libe- academias de ginástica.
ração da treinadora. Verificam-se esses aspectos em relação à alimentação:
Esta submissão a privações e a uma árdua rotina de exercícios muitas vezes
“Uma ginasta comentou que está gorda e que precisa perder peso. Uma torna-se algo imprescindível, um “vício” [...] do qual não querem se livrar, a
treinadora disse que ela já estava magra o suficiente, mas a ginasta discor- ponto de relatarem sentimentos de culpa e de frustração tanto pelas falhas rela-
dou.” (DIÁRIO DE CAMPO – 21/05/2010); “Após almoçarem, foram buscar cionadas à regularidade de suas respectivas frequências na academia quanto
a sobremesa. A treinadora liberou, mas algumas meninas não quiseram pela não obtenção dos resultados esperados. (HANSEN; VAZ, 2004, p. 143)
comer sobremesa.” (DIÁRIO DE CAMPO – 21/5/2010).
Podemos dizer que o treinamento é uma espécie de doença produzida,
Para tanto, as atletas fazem uso de remédios, laxantes, indução de vômi-
considerando que o corpo do atleta não pode descansar, pois, para o seu
tos e adoção de regimes alimentares severos para obter o corpo “ideal”.
progresso contínuo, é necessário que receba doses de estresse sob a forma
Caso elas não se adequem ao peso corporal desejado, são imediatamente
de cargas altas e regulares de treinamento. Desse modo, o corpo está sempre
excluídas. Isso porque, como explica Porpino (2004, p. 124),
próximo de um “limite” anunciado por treinadores, e é mantido aí por meio
A busca por uma estética corporal que ao menos se aproxime dos padrões de estresse (treinamento) contínuo (VAZ; GONÇALVES; TURELLI, 2006).
internacionais da modalidade começa desde a escolha das ginastas para com- Assim, as ginastas criam estratégias para suportar o volume de treina-
por as equipes e se mantém durante todo o treinamento com o controle regu-
mento para continuarem na luta em busca de uma boa técnica e estética
lar do peso. A estética corporal pretendida está atrelada aos movimentos que
esse corpo é capaz de realizar na modalidade e repercute também na possibi- dos movimentos. Como os pugilistas estudados por Loïc Wacquant, isso
lidade de manter a elegância, a graça e a exuberância nas execuções das séries. faz com que as atletas busquem melhorar seu preparo por meio de sessões

232 233
de treino dirigidas e, além disso, “devem também aprender a controlar estéticos e ao desenvolvimento de características “tipicamente” femininas,
e a conviver com o desconforto físico, com a dor e com os ferimentos” como quando as atletas elogiam sua melhora na performance ao tornarem-
(WACQUANT, 1999, p. 82). Afinal, segundo o discurso nativo, “o esforço, a -se mais “leves” e delicadas.
dedicação, a dor... lá na frente valem a pena” (TREINADORA, depoimento, As práticas destinadas às mulheres, portanto, são extremamente pre-
20/04/2010). Esse desgaste corporal é, muitas vezes, mitigado pelos usos de sentes e não há como não se tornar vaidosa e feminina, segundo o discurso
diversos medicamentos, analgésicos, pomadas, ataduras, bolsas térmicas, nativo. Trata-se de um espaço em que se legitimam essas práticas, com-
equipamentos de proteção, tratamentos fisioterápicos, enfim, uma série de provando que há interesses em educá-las para um modelo de feminilidade
artifícios cujo propósito não é cessar a fonte da dor, mas permitir, mesmo e que as atletas que não se adequam a ele são criticadas. Assim, o treina-
com ela, que o treinamento e a máxima performance continuem. mento corporal apropria-se das definições de usos legítimos do corpo,
Uma regulação constante e altamente diferenciada do próprio compor- aqueles também elaborados na vida cotidiana das mulheres.
tamento é necessária para cada indivíduo seguir seu caminho. Não há espa- As práticas são naturalizadas e ensinadas na forma de modos de andar,
ços para falta de compromisso e dedicação, “malandragem”, desordens e posturas, gestos e outros, significando que os corpos expressam o que as
rebeldias. O reconhecimento das condutas desejáveis é continuamente reco- sociedades neles prescrevem e escrevem, condicionando o indivíduo,
nhecido. Isso dá uma ideia de como a grande pressão formativa sugere uma como comenta Marcel Mauss (1974, p. 218), “por toda a sua educação, por
constituição de um corpo que pode ser educado, controlado e produzido. toda a sociedade da qual ele faz parte, no lugar que ele nela ocupa”. Assim,
Logo, as pedagogias do corpo presentes na ginástica rítmica revelam o corpo frequentemente é considerado harmônico quando expressa as for-
significações que criam nos corpos identidades e apropriações, mudan- mas naturalizadas no meio social.
ças de comportamento, desenvolvimento de hábitos, vontades e padrões Entender a dinâmica do trabalho corporal deve tomar acento defini-
sociais. Por ser uma modalidade oficialmente feminina, há uma preocupa- tivo desde o início do processo educacional. É por meio da prática que a
ção em ensinar modos e técnicas para cuidar do corpo como atitude consi- educação se torna completa; por isso, quanto mais cedo iniciá-la, mais efi-
derada “natural” e necessariamente feminina. As estratégias para o aprimo- cientes serão seus resultados (SOARES, 2003). O controle do corpo precisa
ramento técnico e artístico fundamentam os discursos sobre uma educação ser constantemente ensinado e encarnado pelos sujeitos, desde o início da
do corpo feminino. Deseja-se criar uma cultura própria ao corpo da mulher carreira gímnica, que, geralmente, acontece a partir dos 5 anos de idade.
que ao mesmo tempo deve ser firme e forte, mas, também, belo e feminino. Devido às praticantes serem ainda muito jovens e não saberem o que deve
Evidencia-se que a eleição do corpo e de conformações específicas como ser feito, é comum não terem consciência do processo,14 mas vão sendo
signos da beleza feminina é algo que se constitui em relação à materialidade educadas em seu interior, como se isso fosse parte da natureza das coisas.
do corpo. Os exercícios prescritos são apresentados como essenciais para Assim, as ginastas produzem e reproduzem práticas por meio do
um padrão de beleza que se delineia. Uma vez que ela é um atributo dado esporte, afeiçoando disposições duráveis e transmissíveis consideradas
como intrínseco ao feminino, conquistá-la por meio da realização de exer- naturais, mas que são frutos de um processo histórico e social. Para tanto,
cícios passa a ser um dever, afirmam Albino e Vaz (2005). Para tudo have- as ginastas apropriam-se dessas características e determinam seu estilo de
ria solução, contanto que fosse feita a correção das falhas técnicas e fosse vida por meio do trabalho corporal, de adequação do movimento a um
salientada a beleza dos gestos por meio do treinamento praticado racional e projeto artístico e de códigos que condicionam o corpo, não somente nas
metodicamente. Disso deriva um tipo de feminilidade em que o corpo passa formas de movimentos existentes, mas também na valorização artística,
a ser educado por um conjunto de saberes técnicos e estéticos. vinculada a uma tendência de feminilidade.
Os exercícios específicos para o feminino não somente delimitam,
14 Uma outra questão a ser considerada é que a escolha por esse esporte é, em grande parte,
mas também se configuram como instrumentos para reforçar o que lhes é familiar. Como as ginastas iniciam sua carreira atlética precocemente, apesar de suas vontades
esperado socialmente, uma vez que essas atividades estão vinculadas a fins próprias, a escolha e permanência nessa modalidade é também de seus familiares.

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Percebe-se que os movimentos são formados num lugar, numa cultura Logo, a área de educação física surge como uma possibilidade de recon-
e marcados por uma tradição. Um conjunto de gestos revela um saber fazer, versão profissional dessas atletas no campo esportivo, considerando que
uma memória e se inscreve no trabalho corporal e cotidiano. Os movi- elas se tornem treinadoras. Algo semelhante ocorre nos sujeitos estudados
mentos coreográficos estão relacionados à experiência da professora e, sem por Sabino (2000, p. 74), já que, nas academias de musculação, os fisicul-
a necessidade de romper com nenhuma tradição coreográfica, trata-se de turistas “em sua maioria, são praticantes de musculação há muitos anos,
inventar uma nova coreografia, como se observa: “[...] Ao escolher uma o que lhes confere enorme prestígio dentro de sua própria academia e em
música para montar a série de uma ginasta, a treinadora mencionou, ‘essa outras, não apenas devido à sua aparência, mas também ao conhecimento
foi minha música em 1996’” (DIÁRIO DE CAMPO – 24/3/2010). Há um prático de séries de exercícios, remédios, anabolizantes e dietas”.
processo de produção de obras coreográficas que são carregadas de histo- A partir dessa “solução”, dizem Gonçalves e Vaz (2009, p. 14):
ricidade e de tradições. Mas há uma singularidade naquilo que concerne
O que nos parece interessante, nesses casos, é que a incorporação de um pro-
à ginástica em relação à transmissão de conteúdos. “O exercício físico é, jeto de vida esportiva (se é que podemos assim chamá-la) por parte dos sujeitos
assim, [...] normatizado na forma de um saber acumulado por ela mesma pesquisados é tão intensa que, mesmo quando este é frustrado, permanece
(a ginástica) como instituição.” (SOARES, 2009, p. 137, grifos da autora). como uma missão não cumprida, mas que se mantém viva subjetivamente,
Essa transmissão mostra que o conhecimento adquirido durante a expe- ganhando novos contornos e significados.
riência atlética pode ser passado adiante. As treinadoras geralmente são
Nesse “projeto de vida esportiva” (GONÇALVES; VAZ, 2009) a experiên-
ex-ginastas e possuem uma herança técnica e artística que possibilita a repro-
cia atlética é fundamental para que as técnicas e discursos referentes ao
dução de metodologias, movimentos, discursos, músicas e técnicas corpo-
corpo – feminino – sejam validados e reconhecidos, mas, também, para a
rais, desenvolvendo uma simbologia específica e articulada a uma tradição.
recolocação dos sujeitos nesse contexto.
Essa permanência no campo existe devido às escolhas profissionais. Essa construção do corpo gímnico que vimos no decorrer das últimas
Mesmo após encerrar a carreira atlética, muitas ginastas optam pela car- páginas visa à transformação dos hábitos e costumes. O mecanismo de
reira de professora de educação física para continuar trabalhando com esse adequação das práticas previne transgressões do comportamento mediante
esporte ou na mesma área profissional. Isso possivelmente ocorre quando a uma muralha de medos profundamente arraigados, mas, precisamente,
atleta chega a uma determinada idade e não consegue obter mais os melho- porque opera cegamente pelo hábito. É aqui que se instauram mecanis-
res resultados e continuar treinando durante os seus estudos. mos de controle que tornam os corpos, os desejos e as vontades educados e
A solução buscada parece, então, ser um curso superior que se apro- naturalizados dentro deste campo.
xime do esporte, no interior do qual a experiência esportiva tenha algum
significado, como nos dizem Gonçalves e Vaz (2009) ao estudar o atle-
referências bibliográficas
tismo. Assim, “parece que a escolha por uma carreira que possibilite a
manutenção do contato com o esporte pode estar relacionada às biogra- ALBINO, B.; VAZ, A. “Mulher como deves ser”: um estudo sobre a educação do
fias esportivas destes sujeitos” (GONÇALVES; VAZ, 2009, p. 13). Há uma corpo feminino no jornal Dia e Noite. Temas & Matizes, Cascavel, v. 4, n. 7,
p. 63-73, 2005.
grande relação com a identidade das professoras, que vão ensinar “aquilo
ANGHEBEN, V. O corpo, a ginástica rítmica e a corporeidade: relações entre o pen-
que supostamente sabem praticar” (VIEIRA; VAZ, 2006, p. 27). Portanto, sar, o falar e o agir com o corpo. Porto Alegre: Nova Prova, 2009.
é possível identificar um ciclo em que as atletas passam a ser treinadoras BECKER Jr., B. Manual de psicologia do esporte e exercício. Porto Alegre: Nova
e, assim, mantém-se certa tradição dentro do próprio campo, legitimando prova, 2000.
todo conhecimento prático. Todas as treinadoras analisadas foram atletas BOAVENTURA, P. Feminilidade, corpo e técnica: sobre a produção da beleza na
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238 239
capítulo 10 a sua geometrização, assim como será a do espaço em que acontecerão os
movimentos que o caracterizam (ZUR LIPPE, 1988). Em plano mais extenso,
Dor e educação do corpo: atletismo e balé1 o balé é expressão de um contínuo processo de dominação do corpo, de
disciplinamento de seus movimentos, que se encontra em vários âmbitos
Michelle Carreirão Gonçalves histórico-sociais, como é o caso também das práticas esportivas. No balé,
Alexandre Fernandez Vaz a expectativa, em geral cumprida, é que esse domínio corporal seja capaz
de produzir expressão artística. O esporte, por sua vez, representa uma das
formas privilegiadas de disciplinamento, domínio e potencialização do
corpo, por meio de um conjunto de técnicas cientificamente elaborado,
processo que conhecemos como treinamento esportivo. Trata-se de uma
introdução forma de educação do corpo que implica necessária instrumentalização,
exigência tanto do treinamento quanto da performance competitiva.
Deparamo-nos contemporaneamente com um sem-número de experiên-
Seguindo essa direção, o presente trabalho apresenta análises de como
cias corporais que visam a maior disciplinamento e mais potencialidade do
se processam alguns elementos da construção de uma pedagogia corporal
corpo com vistas a torná-lo mais produtivo. Dentre elas, há um conjunto
na dança – mais especificamente no balé – e no esporte – especialmente
de práticas corporais pedagogizadas denominado educação física, que tem
no atletismo –, a partir de uma pesquisa sobre a dinâmica destas práticas.
tratado de diferentes práticas corporais, como jogo, esporte, dança, ginás-
Um possível ponto de encontro entre ambas diz respeito a uma questão
tica, entre outras expressões. No entanto, não é apenas no momento da
mais ampla, que encontra no domínio da natureza seu desiderato. Um dos
educação física que se dá a educação do corpo,2 visto ela estar presente em
elementos que está em jogo é o domínio do próprio corpo como instância
diferentes esferas sociais – como escolas, hospitais, penitenciárias, equipes
necessária para o processo da cultura que, por sua vez, encontra naquelas
esportivas, academias de balé –, produzindo pedagogias corporais. Se atual-
formas culturais um ponto de culminância. Para tanto, a disciplina cor-
mente o corpo se apresenta como um importante conformador de identi-
poral se apresenta como característica importante na busca constante da
dades, delineando uma sensibilidade que rompe com aquilo que Foucault
perfeição técnica, requisito para o desempenho artístico e esportivo, alcan-
(1984) denominou controle-repressão, passando para a esfera do controle-es-
çada, ao menos potencialmente, por meio da repetição diária de movimen-
timulação, pensamos ser importante perguntar pela educação do corpo em
tos durante longas horas de aulas, ensaios, sessões de musculação ou trei-
distintas práticas corporais. Neste trabalho, nossa atenção se volta a duas
namento. As práticas sistematizadas do balé e do esporte compõem o plano
delas, a saber: o balé e o esporte.
geral de domínio do corpo e produção da subjetividade, tal como o esbo-
O balé, como expressão artístico-cultural, preserva uma forma pecu-
çam Horkheimer e Adorno (1985): produção dialética de um sujeito que
liar de educação do corpo oriunda do Quattrocento Italiano, estruturado
domina a si mesmo e que tem de suportar as consequências desse intuito
em torno de um conjunto de práticas de domínio corporal que pressupõe
que é, em suas pretensões, finalmente malogrado.
1 O presente texto reúne, em uma redação algo modificada, artigos anteriormente publicados
Neste contexto, o sacrifício de si é elemento constituinte dessa expe-
(GONÇALVES; VAZ, 2011; GONÇALVES; VAZ, 2012), além de conter resultados presentes em riência que contribui para a composição de uma pedagogia das práticas
outros trabalhos (GONÇALVES; VAZ, 2009; GONÇALVES; TURELLI; VAZ, 2012). A pesquisa
corporais ao promover, por um lado, a crença no progresso infinito (ou
da qual este trabalho se origina (GONÇALVES, 2004; GONÇALVES, 2007) contou com apoio
financeiro do CNPq (edital Universal), no âmbito do Programa de Pesquisas Teoria Crítica da seja, no corpo que rende sempre mais e melhor) e, por outro, certo culto
Sociedade, Racionalidades e Educação (III e IV). à dor como algo em si moralmente positivo. Essa relação, mediada pelas
2 Como o corpo é, contemporaneamente, um portador e conformador de identidades, faz-se
necessário um maior cuidado com o mesmo por meio de “um conjunto de técnicas cada vez
técnicas de aprimoramento com vistas ao rendimento, e organizada social-
mais refinado, para redimensioná-lo, defini-lo, potencializá-lo” (VAZ, 2002, p. 86). mente e historicamente pelas práticas esportivas, especialmente, parece ser

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determinada, em grande medida, pelo movimento de redução do corpo à Na entrada, há um corredor com sofás e a mesa da secretária, sendo que esse
mera naturalidade e/ou à condição de máquina. Autores de tradições algo corredor circunda a sala onde acontecem as aulas. A sala é grande, com espe-
lhos e barras nas paredes, sendo que, numa delas, há várias janelas pelas quais
distintas, como o historiador Peter Gay ou o filósofo Theodor W. Adorno,
as pessoas que entram na academia veem tudo o que acontece ali. Além disso,
convergem nessa direção. Enquanto o primeiro mostra como o esporte se há mais uma sala de dança que fica no segundo andar, um vestiário feminino e
desenvolve como retentor das pulsões violentas no contexto repressivo e um banheiro masculino (muito menor que o feminino). (DIÁRIO DE CAMPO,
modelador da Inglaterra vitoriana (GAY, 1993), o segundo sugere que ao mai. 2004)
esporte corresponde uma educação pela dureza e pela severidade, expressão
dos processos reificadores da sociedade contemporânea (ADORNO, 1970). Havia ainda mais dois espaços importantes: uma sala de dança desati-
Considerando esse quadro, apresentamos, a seguir, resultados de uma vada, que funcionava como local para a exibição de vídeos,5 além de servir
pesquisa realizada em 2004 e 2005 em dois campos: uma academia de balé de depósito de alguns figurinos e de um piano, o qual fazia lembrar a tradi-
e uma pista de atletismo, ambos localizados na cidade de Florianópolis/SC. ção do acompanhamento de um pianista nas aulas de balé,6 e um pequeno
Para a produção dos dados, fizeram-se incursões etnográficas em ambos os espaço próximo ao banheiro feminino, onde se encontravam alguns armá-
espaços, perfazendo algo em torno de dois meses em cada um deles, tota- rios e bancos nos quais as alunas podiam guardar suas coisas ou até mesmo
lizando 15 incursões na academia (entre aulas e ensaios) e 18 na pista (de trocar de roupa.
treinos e competições), todas devidamente registradas em diário de campo. Iniciamos as observações na turma Básico 3/Intermediário 1, logo após
Além disso, realizamos entrevistas semiestruturadas com sujeitos de cada passando para o Corpo de Baile, a turma mais avançada da academia e que
um dos cenários investigados, computando 11 delas no total, 6 no balé e era assim intitulada porque formava uma espécie de companhia de dança,
5 do atletismo. Todos os informantes foram selecionados considerando a representando a instituição em eventos e festivais.
forma como se organizava cada campo e a relevância de seus personagens. O grupo de informantes foi assim composto: 2 ex-bailarinas, 3 bai-
Nas páginas a seguir, depois de apresentarmos os espaços e os sujeitos larinas e 1 professora. Tomamos o relato de ex-bailarinas considerando
investigados, tratamos de algumas questões referentes à dinâmica do balé o início precoce e os longos anos dedicados ao balé. No caso especial de
e do atletismo, tendo como enfoque formas de subjetivação dessas práti- uma delas, Lívia, sua experiência na Escola do Teatro Bolshoi, situada na
cas. Analisaremos, em especial, como a dor e o sofrimento, frequentemente cidade de Joinville/SC, apresentou-se como importante componente para
emoldurados pelo sacrifício, compõem a rotina e os rituais, encontrando melhor entender o cotidiano de formação de bailarinas em plano profissio-
lugar central no cotidiano dos atletas e bailarinas pesquisados. nalizante. As bailarinas em atividade, por sua vez, eram responsáveis pelos
papéis principais dos espetáculos da academia, os quais eram revezados
os campos e seus atores 5 Como muitas vezes a academia fazia remontagens e adaptações de clássicos do balé, como
Dom Quixote, La Bayadere, entre outros, era comum que as bailarinas assistissem a vídeos
A academia e as bailarinas 3
de grandes companhias que haviam encenado esses espetáculos, como mais um método de
apreensão e aprendizado da coreografia.
A academia de dança pesquisada era a mais antiga4 e tradicional da cidade
6 No balé, as turmas são definidas pelo nível técnico dos praticantes e por seus anos de prá-
de Florianópolis até então. Localizava-se no centro da cidade, podendo ser tica. A faixa etária não é um elemento importante para sua construção, sendo apenas o caso
seu espaço interno descrito da seguinte forma: da turma Pré-Balé (exclusiva para crianças muito pequenas, entre 3 e 4 anos de idade, já
que é comum iniciar-se precocemente, principalmente as meninas), uma exceção. As tur-
mas recebem as seguintes denominações: Pré-Balé (para a faixa-etária indicada acima); Baby
3 Quando tratamos das personagens do balé, utilizamos o termo sempre no feminino, pois Class (também para crianças); Básico 1; Básico 2; Básico 3; Intermediário 1; Intermediário
a academia, assim como a própria prática, é um espaço predominantemente assim, pouco 2; Intermediário 3; Avançado. Isso pode variar conforme a academia, mas geralmente este
frequentado por homens, cujo papel nesta dança é, no Brasil, ainda secundarizado. padrão é seguido. No caso por nós pesquisado, as denominações eram essas, com pequenas
4 A academia, fundada em 1950 por uma bailarina russa radicada no Brasil, já não existe mais. modificações; por exemplo, a turma chamada Corpo de Baile, que representava o Avançado.
Professores, pais e alunos fundaram outro espaço de dança em que fosse possível manter a No caso da turma Básico 3/Intermediário 1, ela também representava uma particularidade
tradição formativa da antiga academia. surgida da necessidade de agrupar dois níveis em uma turma só.

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entre quatro solistas, as mais experientes e com mais elevado nível técnico. Sete atletas (três homens e quatro mulheres) que treinavam para dis-
Somou-se a professora e coreógrafa da turma observada. Assim, tem-se: putar os Jogos Abertos de Santa Catarina (JASC)10 geraram as fontes da
pesquisa. Todos treinavam no mesmo lugar e sob a mesma orientação téc-
* Lívia:7 22 anos, ex-bailarina e estudante, começara a dançar aos 10 anos e
estudou balé durante oito, fez parte das primeiras turmas da Escola do Teatro nica, ainda que representassem municípios diferentes –, situação possível
Bolshoi em Joinville, Santa Catarina, e sonhava em ser bailarina profissional, por causa do caráter predominantemente individual da modalidade – o
mas desistiu de sê-lo, pois, segundo ela, não suportou as exigências corporais que fazia com que uma “visão de equipe” fosse relativizada naquele espaço
impostas por essa prática. e momento. Essa é uma condição fluida, já que os contratos de trabalho
* Carla: 23 anos, ex-bailarina e estudante, começou a dançar aos 4 anos e fez mudam anualmente, o que faz com que os adversários de hoje possam ser
balé durante 12; parou de dançar por problemas no joelho e no pé.
colegas de equipe amanhã.
* Laura: 28 anos, bailarina, formou-se em letras/francês, mas, no momento da
O critério de escolha da equipe pesquisada e dos atletas entrevistados foi
pesquisa, atuava como professora de balé para iniciantes na mesma academia
em que praticava; começou a dançar aos 6 anos e nunca havia pensado no balé determinado pelo nível competitivo. Quer dizer, só foram considerados para
como opção de carreira (bailarina profissional), sempre como um hobby mas, a pesquisa aqueles atletas que tinham como principal competição anual os
mesmo assim, acabou se tornando professora. JASC,11 evento esportivo mais importante do estado de Santa Catarina. Neste
* Joana: 18 anos, bailarina e estudante, começou a dançar aos 5 anos e nunca cenário, selecionamos cinco personagens como informantes. São eles:
vislumbrara no balé uma carreira, mas um hobby.
* Carol: 22 anos, bailarina e estudante de fisioterapia, começou a dançar aos * Juliana: 23 anos; ex-atleta;12 começou a treinar com apenas 9 anos de idade,
12 anos e via no balé uma possibilidade de trabalho, mas não para atuar como iniciando nas competições de rua, passando depois para as de pista, compe-
bailarina profissional, nem como professora, e sim como fisioterapeuta em tindo no meio-fundo (800m, 1.500m e 3.000m), fundo (10.000m), velocidade
alguma companhia. com barreiras (100m e 400m) e heptatlo (combinação de sete provas dispu-
tadas em dois dias consecutivos) e eventualmente compondo os revezamen-
* Beatriz: 42 anos, professora de balé, única estrangeira entrevistada; nasceu
tos (4x100m e 4x400m); professora de educação física, foi atleta de atletismo
na Argentina e começou a dançar no Teatro Colón aos 10 anos, com 23 anos
durante 11 anos; sonhava em ser profissional, mas, segundo ela, nunca teve
veio para o Brasil e fez um curso para lecionar balé;8 sonhava em ser bailarina
profissional, mas seu pai não permitiu; ministrava aulas havia quase 20 anos,
sendo 18 deles na mesma academia. referentes às diferentes modalidades esportivas, como atletismo, voleibol, basquetebol, fute-
bol, handebol, natação, entre outras.
A pista e os atletas 10 Os Jogos Abertos de Santa Catarina são realizados desde 1960 e compunham-se, quando a
pesquisa foi feita, por 12 etapas classificatórias, 4 regionais e 1 estadual. As duas primeiras
As sessões de treinamento observadas ocorreram no espaço de uma servem para selecionar os municípios que participarão em cada modalidade na etapa final.
Os JASC representam o “suprassumo” do esporte amador catarinense, pois apenas os melho-
universidade pública, na pista de atletismo localizada em seu centro espor-
res municípios e atletas (no caso dos esportes individuais como o atletismo) do estado são
tivo. A pista é aberta à comunidade, não sendo rara a presença de não-atle- selecionados para competir. Há investimentos vultuosos dos municípios (alguns mais, outros
tas que realizam caminhadas e até mesmo corridas no local. Além disso, há menos) nessa competição, sendo a contratação de atletas de destaque até mesmo internacio-
nal um exemplo disso.
ainda os estudantes de educação física da instituição que utilizam o espaço
11 É importante dizer que dentro de uma mesma equipe existem atletas de diferentes idades e,
para a realização de aulas práticas referentes à disciplina de atletismo,9 consequentemente, distintas categorias competitivas. Por isso, nos concentramos nos atletas
componente curricular daquele curso. mais experientes, que têm como foco os Jogos Abertos de Santa Catarina, por considerarmos
que esses atletas adultos já treinam há mais tempo e que, por isso, já haveriam possivelmente
incorporado a rotina e a lógica do treinamento esportivo.
7 Todos os nomes foram modificados, com intuito de preservar a identidade dos informantes
12 Juliana foi a única entrevistada que já havia abandonado a modalidade quando o trabalho de
de ambos os campos pesquisados.
campo iniciou, dedicando-se a outro esporte naquele momento. No entanto, consideramo-la
8 Oferecido por uma extinta escola de dança de Florianópolis, o curso era específico para a for- uma importante fonte para o trabalho, por conta do início precoce e dos longos anos dedi-
mação de professoras de balé e nele eram ministradas aulas de anatomia e didática, além das de cados à prática da modalidade. Vale destacar sua ligação ao campo observado, já que sempre
dança. Ao concluí-lo, as professoras recebiam um diploma que as legitimava para ministrar aulas. treinara na pista onde realizamos as observações e sob a orientação do treinador que também
9 O curso de educação física da universidade citada conta, em seu currículo, com disciplinas foi fonte da pesquisa.

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o talento necessário e isso teria sido um dos motivos que lhe fez parar de se mostra a tradição que remonta a Nietzsche (2000) e Freud (1975), che-
dedicar a este esporte. gando à sociologia de Norbert Elias (1988). Se o que chamamos de cultura
* Eduardo: 29 anos; atleta; competia nas provas de 100m e 200m, além dos e de civilização supõe a autorregulação corporal, um controle das emoções
revezamentos (4x100m e 4x400m); estudante de educação física, iniciou os e uma tentativa de domar o aparato pulsional, é na lógica estrutural do trei-
treinos com 15 anos; sonhava em ser atleta profissional, mas por ocasião da
pesquisa, dizia saber que isso já não era possível; entretanto, mantinha uma namento esportivo que isso alcança um plano que talvez só se compare, em
relação (semi)profissional com o atletismo.13 força e extensão, às práticas da dieta (VAZ, 1999) ou ainda a certas práticas
* Letícia: 24 anos; atleta; competia em provas de 400m e 400m com barrei- laborais. Sem que o corpo seja tomado como objeto que pode (e deve) ser
ras, além dos revezamentos (4x100m e 4x400m); formada em educação física, controlado e manipulado, não há treinamento possível e não há, portanto,
começara a treinar com 18 anos; afirmou nunca haver pensado em ser atleta rendimento alcançado.
profissional, mas, no momento da pesquisa, recebia remuneração para repre- A dor, “experiência sensitiva e emocional desagradável [...] [sendo]
sentar um município nos JASC.
uma das informações aferentes mais importantes para a preservação da
* Jean: 21 anos; atleta; competia nas provas de 400m e 400m com barreiras,
vida.” (RUBIO; MOREIRA, 2007, p. 927), não é apenas uma companheira
além dos revezamentos (4x100m e 4x400m); estudante,14 iniciou os treinos
com 16 anos e tampouco avaliara a possibilidade de ser atleta profissional, diária, mas uma sensação que deve ser superada a cada momento. De certa
embora recebesse remuneração para ser atleta. forma, precisa ser esquecida, mesmo que dela os atletas e as bailarinas
* Jairo: 51 anos; técnico; ex-atleta em provas de 110m com barreiras, 200m, aprendam a gostar ao considerá-la expressão moral do dever cumprido a
400m e 400m com barreiras (suas especialidades), além dos revezamentos cada treino, aula ou ensaio, de que o limite foi alcançado em cada sessão.
(4x100m e 4x400m); professor universitário na área de educação física, come- Afinal, “Ao esporte pertence não apenas o impulso à violência, mas tam-
çou no atletismo aos 15 anos e treinou na modalidade durante 18; participou bém a suportá-la e tolerá-la.” (ADORNO, 1997, p. 79-80).15
de competições em nível nacional e internacional; afirma ter abandonado as
competições devido ao trabalho e aos estudos de pós-graduação.
Ritual e o esquema sacrificial do esporte e da dança
A dor proveniente do treinamento remete ao sacrifício feito em nome
treinamento corporal: controle e organização da dor
do rendimento esportivo. Como ensinam Mauss e Hubert, “o sacrifício é
Uma das questões de destaque nos campos pesquisados se relaciona a um um ato religioso que, mediante a consagração de uma vítima, modifica o
aspecto presente na dinâmica de práticas corporais como o atletismo, mas estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos quais ela se
também como o balé: a dor tomada como imprescindível para a apreensão interessa.” (2005, p.19). Seu esquema é composto pelo sacrificante (aquele
da condição somática, o que inclui a incorporação técnica e a importância que sacrifica a si mesmo para poder sacrificar um outro, a vítima, reco-
de sua superação para que haja uma performance mais elevada, artística ou lhendo os benefícios do processo), o sacrificador (o intermediário entre
esportiva. o sagrado e o profano, uma espécie de guia do sacrifício), o lugar e os ins-
Dominar e mesmo esquecer a dor fazem parte da dinâmica do trei- trumentos do sacrifício (que são também sagrados, pois o sacrifício, como
namento corporal, característica que é não mais que uma expressão do todo ritual, não pode ocorrer em qualquer lugar, nem de qualquer maneira,
processo geral de formação do sujeito, da civilização e da cultura, como sob pena de perder seu efeito).
No caso do esporte, podemos dizer, a partir da análise do rito sacrificial
13 Ser atleta profissional significa, para os atletas entrevistados, que o atletismo é um trabalho, realizado pelos autores acima citados, que o próprio treinamento representa
na medida em que são contratados por municípios e que são pagos para representá-los nas
competições. Ser atleta profissional significa (para os nativos, praticantes desse esporte) ser um sacrifício, na medida em que o atleta é o sacrificante que oferece seu
atleta de alto nível, que participa de competições internacionais e que, para isso, vive apenas
do atletismo (e para o atletismo). 15 Os documentários sobre atletas brasileiros em treinamento pré-olímpico, Travessia da dor e
14 Vale dizer que Jean, depois de encerrado o trabalho de campo, também ingressou no curso de Travessia do ar, ambos de Dorrit Harazim, apresentam de forma bastante precisa e detalhada
educação física, assim como seus colegas. esse processo.

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próprio corpo ao sacrifício (o que vai gerar uma postura ascética), dilaceran- os passos indicados pela professora, sendo que esses exercícios são repetidos
do-o em nome dos benefícios futuros, ou seja, a vitória e o bom rendimento; mais de uma vez, considerando que há um rodízio no posicionamento das
o técnico é o sacrificador, aquele que guia o sacrificante até o resultado espe- colunas para que todas dancem à frente. Para finalizar, os últimos exercí-
rado, pois detém o conhecimento das técnicas necessárias para tal, evitando cios são realizados em duplas e enfatizam saltos e giros com deslocamento
que o atleta faça algo de errado durante o treinamento (sacrifício), o que em diagonal. São também determinados pela professora. Essa dinâmica das
resultaria na não concretização do objetivo pretendido, a alta performance. aulas supõe que é necessário um aquecimento corporal, sendo realizados
A pista de atletismo e o conjunto de técnicas cientificamente elaboradas que primeiro os exercícios mais leves, para depois se intensificar o trabalho.
constituem o treinamento esportivo são o lugar e os instrumentos sagrados Além disso, há também aí uma dinâmica referente ao espetáculo, principal-
que oportunizam a efetivação do sacrifício em forma de ritual. Algo similar mente no que diz respeito ao segundo e ao terceiro momento das aulas, pois
pode ser pensado em relação ao balé, pois o esquema se mantém, mudando centro e diagonal demarcam a movimentação coreográfica no palco, bem
apenas os atores e espaços: bailarinas como sacrificantes, professora como como indicam o alinhamento do corpo, das pernas e dos braços durante a
sacrificador e sala de aula como lugar sagrado. execução dessa dança. E, assim como a própria aula, a execução dos passos
Vale destacar aqui o caráter ritualístico do treinamento esportivo, ou também segue uma rotina bem demarcada, como nos relatou Lívia:
seja, o treinamento, assim como outros ritos, é uma sequência de atos for-
Tu fazes uma série de exercícios na barra, aí tu vais para o centro... Porque tem
malizados cuja ordem não pode ser quebrada. Se o for, o objetivo não será
uma sequência de aula. Tu fazes aquecimento, uma sequência de aquecimento,
alcançado. No treinamento, a delimitação de uma ordenação das sessões depois uma sequência de plié, tendeu, jeté, fondue, rond de jambé, depende
– a saber: aquecimento, desenvolvimento e volta à calma – e dos chamados da aula. Aí vem frappé, vem adágio, rond de jambé em l’air... [...] Depois vem
princípios básicos ou científicos (DANTAS, 1998) – da individualidade bio- petit battement, grand battement. Depois um aquecimentozinho: “pezinho na
lógica, da adaptação, da sobrecarga, da continuidade, da interdependência barra”, como eles falam. Colocar o pé na barra, fazer um alongamento só para
volume-intensidade e da especificidade – parece demarcar essa questão. compensar o esforço. Depois vai para o centro. Aí faz todas essas sequências
no centro também, para depois começar os pequenos saltos, os grandes saltos,
Como em todos os rituais, o procedimento deve ser respeitado e cumprido, já diagonais.
podendo ser, inclusive, idêntico, mesmo quando utilizado para finalida-
des diferentes (MAUSS; HUBERT, 2005) – algo exemplar no caso do treina- Observamos uma aproximação entre as duas práticas corporais aqui
mento, que tem sua lógica reproduzida para diferentes fins, como emagre- analisadas, no que diz respeito à forma ritualística em que se apresentam,
cimento e embelezamento (no caso das academias de ginástica). inclusive no que se refere a uma organização em três partes, tanto nas ses-
Também o balé se configura como uma prática permeada de rituais, sões de treinamento na pista quanto nas aulas na academia: no primeiro
ritual entendido aqui como um conjunto de ações individuais ou coletivas, caso, temos aquecimento, desenvolvimento e volta à calma, no segundo,
que tem um caráter repetitivo e simbólico que perpassa a esfera corporal barra, centro e diagonal. Mas voltemos à questão sacrificial e seu esquema.
por meio da fala, dos gestos e da postura (SEGALEN, 2002) que ordenam a Aqui nos interessa, sobretudo, a figura do sacrificante que, no caso do
rotina das aulas e mantêm a tradição desta dança. Tal rotina é caracterizada esporte, bem como do balé, é aquele que é, ao mesmo tempo, a que sacri-
por três momentos: (exercícios de) barra, centro e diagonal.16 No primeiro, fica e a que é sacrificada (algoz e vítima). Atleta e bailarina, assim como o
as bailarinas fazem exercícios de aquecimento e alongamento demonstra- sacrificante dos ritos mágicos, sacrificam seu antigo corpo (aquele corpo
dos pela professora, posicionadas de frente e, posteriormente, de lado, para não atlético/não dançante) para tornar-se um outro (um corpo atlético/dan-
a barra.17 No segundo, dispõem-se em colunas no centro da sala e realizam çante), iniciado, a partir de um processo de separação, de saída de um estado

16 Assim se refere o discurso nativo aos momentos da aula, que são determinados pelo posicio- ser de madeira ou de metal. Geralmente encontra-se afixada nas paredes da sala de aula,
namento na sala. assim como um conjunto de espelhos, que servem como objetos “didáticos” ao propiciarem a
17 A barra é um elemento que tradicionalmente compõe o cenário das salas de dança. Podendo visualização, para si, da postura e da execução dos movimentos das bailarinas.

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comum em direção a outro, mais elevado (seja no âmbito do sagrado, no enfermidades não são raros, como nos mostra o seguinte extrato retirado
caso do religioso, seja no do profano, como no esporte e no balé). Em todo do diário de campo:
sacrifício, afirmam Mauss e Hubert (2005), “há um ato de abnegação, já que o
Eduardo não treina neste dia. Ele me diz que está com uma íngua na virilha
sacrificante se priva e dá. [...] Mas essa abnegação e essa submissão [aos deu- e que nem consegue andar direito por causa disso. Como falta pouco mais de
ses] não suprimem um retorno egoísta. Se o sacrificante dá algo de si, ele não uma semana para os JASC, ele foi ao médico para tentar encontrar uma solu-
se dá: reserva-se prudentemente. Se ele dá, é em parte para receber” (p. 106). ção rápida para o problema: “Eu falei pro médico ‘minha perna pode tá infes-
Desta forma, o ato sacrificial apresenta-se, para esses autores, sob um duplo tada, mas eu quero um remédio que não faça eu sentir dor quando levantar a
aspecto, sendo não apenas útil, mas também obrigação. Desprendimento e perna, porque eu preciso correr o JASC’”. Ele reclama que mal se recuperou de
uma lesão e já apareceu outro problema em sua perna, mas mesmo assim vai
interesse misturam-se, ganhando forma contratual, na medida em que as
competir (DIÁRIO DE CAMPO, out. 2005).
duas partes envolvidas intercambiam serviços e recebem vantagens.
E eu nesses 20 anos [de balé] nunca tive problema nenhum e nesse ano come-
Figura exemplar que se submete ao esquema sacrifical, segundo uma
cei a sentir problema no tornozelo esquerdo [...] Acabei tendo que fazer fisio-
interpretação frankfurtiana (ADORNO; HORKHEIMER, 1985), é a do herói terapia durante um tempo, o pé não ficou bom, não vai ficar bom e aí eu tenho
Ulisses, personagem central da Odisseia, que corresponde ao protótipo do tomado mais cuidado com isso [...] Não foi nenhum passo específico, mas é...
indivíduo burguês, aquele que sai do mundo mítico em direção ao escla- repetição do movimento, desgaste. Na verdade o médico até falou que [fazer]
recido. Ulisses reconhece sua debilidade frente à natureza e é por isso que uma cirurgia seria bom porque tem um pedacinho de osso solto dentro do
meu pé... Só que eu não encaro de jeito nenhum. [...] A gente até fica tentando
se torna forte. É sua astúcia que o faz sair vencedor de todas as disputas
se enganar, achando que não tá sentindo nada: “Não, não, não tô sentindo
travadas contra a natureza, na medida em que a ludibria por meio da subs- nada!”. Mas é bem agoniado. Não me aconteceu mais desde julho, mas antes
tituição do sacrifício pelo sacrifício. Ulisses, ao invés de ser sacrificado pela eu tava tendo até que parar no meio da aula. E isso é bem agoniado. Porque a
natureza externa, mitológica, para vencer os mitos que pretendem enredar- gente tem um espetáculo marcado, a Beatriz me olhava com aquela cara de...
-lhe em suas malhas, sacrifica a si mesmo, enganando a natureza e sobre- Sabe?!... Realmente tinha que parar porque eu quase chorava de dor. Mas é
frustrante, porque não é isso que a gente espera na vida de balé. Mas a gente
vivendo a ela. Pois, “ao calcular seu próprio sacrifício, [...] efetua a negação
sabe que é assim com todo o mundo. A gente lê depoimentos e [...] não tem
da potência a que se destina esse sacrifício. Ele recupera a vida que deixara bailarino que não sente dor, não tem bailarino que dança totalmente sem dor.
entregue” (ibid, p. 58). Isto só é possível por meio de uma racionalização [...] Então a gente aprende a conviver com a dor. (LAURA)
do ato sacrificial. “A astúcia nada mais é do que o desdobramento subjetivo
dessa inverdade objetiva do sacrifício que ela vem substituir” (ibid, p. 59). É possível observar nestes dois relatos que a dor causada pelas lesões
Este esquema sacrificial, de privação e recebimento, parece ser o mesmo é algo que molesta tanto os atletas quanto as bailarinas, porém ela não
encontrado na dinâmica das práticas por nós pesquisadas, no interior da deve ser impedimento para a prática da modalidade. As personagens dos
qual atletas e bailarinas oferecem seus corpos em troca de outro, mais campos pesquisados demonstram que esta dor deve ser superada, pois as
potente e performático. Perdem-se, a fim de ganhar a si mesmos, assim lesões são um elemento a mais na rotina de treinamento, um obstáculo a
como o herói Ulisses. Nestes espaços, o sacrifício externo é substituído pelo ser vencido, pois eles, assim como os pugilistas, “devem também aprender
interno, quando o corpo é frequentemente violentado e oferecido em nome a controlar e a conviver com o desconforto físico, com a dor e com os feri-
do rendimento. mentos.” (WACQUANT, 1998, p. 82).
Neste sentido é possível dizer que há no esporte (mas também no balé),
Dor e dilaceramento corporal: o caso das lesões e do sorriso de certa forma, a presença de um aspecto masoquista, se pensarmos em
A dor e o sofrimento derivados do constante desgaste corporal resul- suas características como “excessos tolerados” (ADORNO, 1998, p. 76): vio-
tante do treinamento precisam ser dominados diariamente, nas formas do lência, sofrimento e um forte discurso (e prática) disciplinador, quando
sacrifício. Nessa dinâmica exaustiva e dilacerante, relatos sobre lesões e autoritarismo e obediência se encontram na aceitação frequentemente

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sem reservas das regras. Assim, o esporte é, ainda que não só, expressão Jean fica ali mesmo na pista. Ele conversa com Jairo e com Gustavo (uma espé-
da agressividade, da crueldade e do espírito predatório, conectando-se cie de ajudante do técnico, que trabalha com a iniciação)18 sobre sua lesão. É
interessante observar que essa conversa lhes é muito familiar. Todos falam de
diretamente às manifestações arcaicas do humano não civilizado. Vale
suas próprias lesões com um aparente orgulho. (DIÁRIO DE CAMPO, set. 2005)
dizer, neste contexto, que a técnica pode ser vista não apenas como uma
maneira de incrementar o rendimento e diminuir o esforço para o alcance Entretanto, por outro lado, a lesão é tomada como empecilho, algo que
do mesmo resultado, mas como forma de organizar a dor e o sofrimento, atrapalha a performance e, muitas vezes, frustra as expectativas dos atletas.
levando o corpo a suportar e erigir o sacrifício de maneira mais aguda. Mas, como é, de certa maneira, inevitável, deve-se conviver com ela (assim
No entanto, esse processo não necessariamente aproxima mais o como com a dor derivada do próprio treinamento).
homem da natureza e de sua humanização. A promessa do esporte moderno
de “restituir ao corpo uma parte das funções que lhe foram retiradas pelas Estava mal no ranking estadual, porque eu tive muita lesão. Muita lesão. [...]
E eu machuquei meu joelho no meio da prova dos Jogos Abertos, no salto em
máquinas” (ADORNO, 1998, p. 76) pela industrialização cai por terra a par-
distância. Tive uma lesão... Não foi grave a lesão. Foi uma luxação no menisco.
tir do momento em que o corpo se assemelha à máquina, colocando-se Algo assim. Só que eu não conseguia nem andar. No meio do salto em distân-
a seu serviço e à mercê de sua dinâmica, numa espécie de adaptação ao cia (JULIANA).
modelo industrial. Organismo e máquina se confundem em relação pato-
lógica, o que acaba por refletir numa violência sobre o corpo, acarretando Nesse relato, encontramos uma perspectiva de normalidade no que
sua transformação em objeto manipulável, coisa morta, cadáver. diz respeito ao dilaceramento corporal, pois mesmo deixando-a sem poder
caminhar, a lesão não foi considerada grave pela informante. Os atletas de
Não podemos nos livrar do corpo e nós o louvamos quando não podemos gol- atletismo, outra vez como os pugilistas,
peá-lo. [...] Os que na Alemanha louvavam o corpo, os ginastas e os excursio-
nistas, sempre tiveram com o homicídio a mais íntima afinidade, assim como têm a sua disposição um rico “vocabulário de motivo” que lhes permite
os amantes da natureza com a caça. Eles veem o corpo como um mecanismo enfrentar a dor [...] não por meio da denegação silenciosa, mas pela valoriza-
móvel, em suas articulações as diferentes peças desse mecanismo, e na carne ção pessoal e pela solenização coletiva. Para o lutador profissional, a dor é um
o simples revestimento do esqueleto. Eles lidam com o corpo, manejam seus correlato inevitável do exercício profissional adequado, e um meio indispensá-
membros como se estes já estivessem separados. A tradição judia conservou a vel para atingir os fins perseguidos. (WACQUANT, 1998, p. 82)
aversão de medir as pessoas com um metro, porque é do morto que se tomam
as medidas – para o caixão. É nisso que encontram prazer os manipuladores É digno de destaque que, no caso das bailarinas, a dor sentida por
do corpo. Eles medem o outro, sem saber, com o olhar do fabricante de cai- conta do desgaste corporal, cansaço ou mesmo gerada pela dificuldade em
xões, e se traem quando anunciam o resultado, dizendo, por exemplo, que a
pessoa é comprida, pequena, gorda, pesada. Eles estão interessados na doença,
apreender tecnicamente os elementos da dança, como é o caso da dolorosa
à mesa já estão à espreita da morte do comensal, e seu interesse por tudo isso é experiência de dançar sobre as pontas dos pés,19 deve não apenas ser inter-
só muito superficialmente racionalizado como interesse pela saúde. A lingua- nalizada e superada, mas escondida por trás de um sorriso, como mostra o
gem acerta o passo com eles. Ela transformou o passeio em movimento e os seguinte extrato retirado do diário de campo:
alimentos em calorias [...] Com as taxas de mortalidade, a sociedade degrada a
vida a um processo químico (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 219). 18 “Iniciação” corresponde ao processo de introdução de crianças no esporte. No caso do campo
estudado, existia um projeto de extensão (da universidade, já que a pista está localizada no cam-
Essa valorização da dor e do sofrimento em práticas corporais como o pus e o principal técnico da equipe é professor da instituição), em que acadêmicos do curso de
atletismo e o balé fez-se presente também na relação tensa com as lesões, educação física atuavam, trabalhando numa “escolinha de atletismo”, onde eram transmitidas
práticas básicas do treinamento e das provas desse esporte para os iniciantes. Na maioria dos
algo especialmente presente no caso do primeiro. Por um lado, tem-se um casos, os acadêmicos que trabalhavam nesse projeto já foram ou ainda eram atletas de atletismo.
certo culto às lesões, quando as machucaduras aparecem como motivo de 19 Sobre isso, disse-nos Laura: “mas ponta dói muito! Volta e meia eu vejo os da minha geração...
orgulho para seus praticantes, que valorizam as marcas deixadas pelo cons- não tem ninguém aqui com a minha idade. As meninas que começaram comigo, todas já para-
ram [...] E elas, às vezes, me encontram e assim: ‘Meu Deus, tu consegue colocar uma ponta
tante e duro treinamento corporal, prêmio pelo trabalho realizado. ainda?!’ . Porque é uma desgraça, né?! [...] E fica aquela coisa de dor mesmo, calo e tudo.”

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Durante a execução das sequências, é interessante perceber a diferença no sem- pois demonstra uma fraqueza muitas vezes relacionada com o despreparo,
blante das meninas. Enquanto estão dançando, elas têm um ar sereno, chegam com pouco haver se preparado nos treinamentos, por sua escassez ou a má
a esboçar um sorriso. Já quando param de dançar, surge um olhar, uma aparên-
qualidade. No entanto, como nos diz uma informante, mesmo que seja dor
cia de cansaço. Elas realmente se transformam. (DIÁRIO DE CAMPO, out. 2005)
psicológica, “não quer dizer que eu não sinta dor” (Juliana).
Assim, os resultados apontam que este outro tipo de dor, chamada de
Nesse caso, não seria exagero afirmar que o sorriso que mascara a dor
“psicológica”, geralmente se manifesta na competição (muitas vezes sob a
é mais um componente técnico do balé, que surge da necessidade de tudo
pressão de vencer), mas também nos momentos pré-competitivos, ou até
“ser concebido logicamente para dar a impressão de leveza, o que faz a
mesmo nos treinos. A dor aparece, neste caso, como um dispositivo que
beleza do gesto” (BOURCIER, 2001, p. 117). Mas essa leveza é, paradoxal-
dificulta ainda mais a relação entre competidor e competição, pois preju-
mente, construída por meio da força, o que exige muito fisicamente das
dica a performance, resultando em rendimento abaixo do esperado. A ten-
bailarinas. Entretanto, nenhum esforço pode ser notado, nenhum des-
são gerada frente à competição traz consigo alterações subjetivas represen-
conforto pode transparecer, pois a bailarina deve ser aquela figura etérea,
tadas, principalmente, pelo “medo de perder”. Mais uma vez, cabe então ao
feminina e límpida que sorri no momento exato, não apenas no palco, mas
atleta aprender, como sugere a psicologia do esporte, disciplina comprome-
também na sala de aula.
tida com o rendimento competitivo, a “superar obstáculos, a cooperar com
os companheiros, a desenvolver autocontrole e persistir diante da derrota,
No balé clássico era aquela loucura de buscar a técnica mesmo. Eles brigavam
com a gente por causa da cara feia. Só que é supercomplicado, tu estás ali tornando-se por isso, em muitos casos, um referencial de projeção de iden-
fazendo força, se matando mesmo. [...] É trabalho mesmo. É uma coisa bem tidade” (RUBIO, 2006, p. 88).
cansativa, bem cansativa. (LÍVIA) Esse autocontrole exigido aos atletas aproxima-se novamente da figura
de Ulisses, daquele que precisa, para se tornar sujeito, sacrificar sua própria
Tipologias da dor: o exemplo do atletismo natureza, o corpo, reprimindo suas pulsões e desejos em nome da raciona-
Encontramos ainda, no que diz respeito à dor, uma diferenciação, ou lidade, premissa fundamental para a civilização ocidental. Como já assina-
ainda, uma tipologia, algo relatado especificamente no campo do atletismo. lado, talvez o esporte leve esse processo a planos muito elevados, já que nele
Segundo os atletas nossos informantes, há dois tipos de dor: a psicológica o domínio de si é exigência para sua concretização, tanto na esfera orgâ-
e a somática. Parece ser que a do primeiro tipo é uma expressão da covar- nica, como subjetiva, já que os sentimentos (sejam eles dores, medo, nervo-
dia, do medo do embate,20 diferentemente da física, que surgiria como uma sismo, euforia etc.) devem ser suplantados em nome da performance e do
resultante do próprio treinamento, já que o estresse empregado no corpo é resultado. O atleta que se deixa dominar por suas paixões indeterminadas
muito maior do que aquele que se poderia chamar de moderado. O medo, torna-se fraco e, no esporte, não há lugar para a debilidade, uma vez que é
o “amarelar”21 – segundo o discurso nativo –, não é visto com bons olhos, espaço de construção de uma identidade rígida, guerreira e sempre pronta
para o desafio, para o combate. O aprendizado para suportar e mesmo para
20 É conhecida a relação entre esporte e guerra, o primeiro sendo uma dramatização da gozar com a dor se dá nos treinamentos.
segunda, algo visível, entre outros elementos, no vocabulário empregado por atletas, espec-
tadores e comentaristas. Um outro elemento a compor esse quadro é aquele destacado por
Mas não esqueçamos da dor física, que pode ser também de dois tipos:
Virilio (1996), segundo o qual diversas técnicas de guerra são antecipação do que será visto no a cotidiana, resultante do treinamento, e a derivada das lesões. Esta dife-
esporte e no treinamento corporal. O exemplo das respostas fisiológicas em grandes altitudes
renciação, apontada pelo campo, só vai sendo percebida e aprendida com a
é bastante eloquente. Lembremos também que vários centros de treinamento estão vincula-
dos a instituições militares, como é o caso, no Brasil, do Centro de Educação Física Almirante experiência, depois de conviver longos períodos com a dor.
Alberto Nunes (CEFAN), da Marinha.
21 “Amarelar” significa sentir medo no momento da competição e, por isso, ter um rendimento
abaixo do possível. Sobre isso, diz uma informante: “É uma coisa impressionante! É que tu medo de correr, treinou mal. Não!. Tem tanta coisa que acontece! Primeira coisa que todo
vais entrar na prova e uma coisa que eu não gosto é que as pessoas ficam julgando: está com atleta fala mal sobre o outro é: ‘Ficou com medo. Amarelou.’.” (LETÍCIA).

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Tu vais aprendendo. Tu vais te conhecendo. Tu sabes que depois dessa dor... detrimento de artificialismos como o uso, por exemplo, de drogas. Esta pers-
Agora eu sei quando é dor de treino, quando é dor de lesão. Depois que tu vais pectiva acompanha as contemporâneas discussões sobre o uso de doping e
aprendendo, mas depois de se machucar mil vezes. Sentir dor, te machucar, daí ajuda a mascarar o fato de que a construção de corpo (inclusive o espor-
que tu vais aprendendo. (LETÍCIA)
tista) se dá como obra do homo faber,23 que, ao diferenciar-se do organismo
Neste contexto, vê-se também, relacionado à dor, o discurso do “mal e dominar a natureza interna, requisito para a civilização, torna-se, sempre,
necessário”, ou ainda, que ela aparece como sinal de comprovação de que artifício. A opção não se coloca, portanto, entre natureza e cultura, ou entre
o treino “rendeu”. Essa característica também é observada em outras prá- natural e artificial, mas, simplesmente, entre ser ou não humano.
ticas corporais que não o esporte, como a musculação e as lutas.22 Nesses
casos, assim como no esporte, a dor é “o inimigo a ser combatido, superado, uma nota final
suportado, ignorado – ou ainda, num registro mais fronteiriço, a experiên-
Ao tomarmos como objeto de pesquisa um grupo de atletas e outro de bai-
cia a ser glorificada, desejada, certificação de que de fato se está indo além
larinas, encontramos particularidades, mas também aproximações entre
dos limites e que, portanto, há mérito na dilaceração do próprio corpo.”
ambas as práticas, especialmente no que diz respeito às formas de se rela-
(HANSEN; VAZ, 2004, p. 141). A dor que passa a ser vista como normal e
cionar com o corpo e seu treinamento, ou, ainda, às formas de educação do
também prazerosa é tomada, como já assinalado, como indicação de que
corpo engendradas no interior destas atividades.
o trabalho foi bem-sucedido e que, para se alcançar o ideal almejado (este-
No caso do balé, destacam-se o adestramento corporal, o domínio da
ticamente ou performaticamente), seria preciso merecê-lo, o sofrimento
própria natureza, a geometrização do espaço e do corpo, num movimento
simbolizando o “preço a ser pago” (ibid., p. 144) por isso.
que o instrumentaliza com vistas a torná-lo expressivo. Compõe esse qua-
É em meio à convivência e combate às dores e lesões que surge o pro-
dro a convivência com a dor, inseparável da tentativa de superá-la, domá-la,
blema referente à ingestão de remédios. Seja para suportar a dor durante os
esquecê-la. De componente irrenunciável da experiência corporal, mostra
treinos e, em casos mais extremos, para poder competir, os atletas tomam
de que há vida, desejo, mas que, neste mesmo contexto, compõe-se de sofri-
anti-inflamatórios e analgésicos. Mas, mesmo utilizando esse recurso e
mento, o balé não deixa de levar o sacrifício a um lugar de destaque no coti-
sabendo da sua funcionalidade no combate à dor (algumas vezes elas são
diano. Ele passa a compor, se podemos recorrer novamente a Horkheimer
extremas, por causa das lesões, e se faz necessário ingerir algum fármaco),
e Adorno (1985), uma espécie de laboratório na construção do sujeito, não
muitas vezes os remédios parecem assumir, paradoxalmente, um cará-
apenas esclarecido, e, portanto, senhor de si, com todos os limites que
ter negativo, no sentido de não ser algo “natural”, uma espécie de intruso
isso carrega, mas capaz de transformar seu corpo em objeto de domínio
no corpo, negando os ideais de fair play e de igualdade formal de chances,
extremo, reduzindo-o à condição de matéria orgânica a ser manejada pelos
presentes no esporte. Segundo esta perspectiva, caberia somente ao corpo,
procedimentos técnicos.
naturalmente, adaptar-se, assim como ao sujeito sacrificar-se, suportando as
Daí se depreende que, para que o domínio estético se manifeste, uma
dificuldades do treinamento. Surge então outro movimento, que vai contra
pedagogia corporal que valoriza a dor e o sofrimento como etapas de sua
a ingestão de medicamentos, valorizando apenas os recursos fisioterapêuti-
consecução não é apenas valorizada, mas fomentada na forma de um
cos. Recoloca-se aqui a noção romântica de que ao esporte corresponde uma
amor-ódio (HORKHEIMER; ADORNO, 1985) pelo corpo. Restaria saber das
aproximação com a natureza, que aquele reata uma relação perdida com esta,
de forma que seriam valorizados nele as dimensões tidas como “naturais”, em 23 Inspiramo-nos aqui na tripartição da vida ativa apresentada por Hannah Arendt em seu A
condição humana (2010), a saber: trabalho, obra e ação. O primeiro elemento configura-se
22 Hansen e Vaz (2004) mostram como isso ocorre em academias de ginástica e musculação. pela produção daquilo que é necessário para manter o organismo humano vivo, sendo a ati-
Os trabalhos de Rial (1998), Turelli (2008) e Turelli e Vaz (2006) fazem ver como a dor e o vidade do animal laborans. O segundo, pela fabricação da variedade infinita das coisas que
sofrimento são elementos importantes na configuração de artes marciais como o judô e o dão moldura ao mundo em que vivemos, algo que é realizado pelo homo faber. No terceiro se
caratê, principalmente no que concerne à conformação de uma identidade viril, combatente, encontra a organização da vida em comum dos muitos seres humanos, a política, que fica a
destemida, mesmo no caso das mulheres. cargo do homem de ação.

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consequências disso, como faz Adorno (1995) a respeito da reificação da ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
consciência e do véu tecnológico em suas relações com o corpo, perscru- BOURCIER, P. História da dança no Ocidente. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
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forja do ego. A separação entre corpo e uma esfera não corporal (mente, GONÇALVES, M. C. Corpo e cultura erudita: paradoxos do balé na sociedade admi-
espírito, alma etc.), causa e resultado desse processo, traz à tona a neces- nistrada. 2004. Dissertação (Graduação em Educação Física) – Universidade
sidade de um extremado controle corporal, processo correspondente à Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2004.
autoconservação do sujeito. Assim como o herói Ulisses, o atleta precisa ______. Corpos e subjetivações: o domínio de si e suas representações em atletas
e bailarinas. Florianópolis, 2007. 126 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
sacrificar-se, dedicando-se plenamente ao esporte e aceitando as regras do
– Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa
treinamento (dores, lesões, abdicações, entre outras) a fim de experimen- Catarina. Florianópolis, 2007.
tar, depois de muita renúncia, algum tipo de gozo e mesmo prazer (repre- GONÇALVES, M. C.; TURELLI, F. C.; VAZ, A. F. Corpos, dores, subjetivações: notas
sentado, geralmente, pela vitória). de pesquisa no esporte, na luta, no balé. Movimento, Porto Alegre, v. 18, n. 3,
A violência sobre si termina por subjetivar-se nos atletas, o que faz com p. 141-158, jul./set. 2012.
que eles valorizem características como a disciplina e a agressão, podendo GONÇALVES, M. C.; VAZ, A. F. Corpo, dor, estilo de vida: um estudo com compe-
gerar certa compulsão à crueldade contra si mesmo, um gozo associado a tidores de atletismo. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL (CD),
ela. Além disso, a escassez do aspecto lúdico, no caso do atletismo, em que 8., 2009, Buenos Aires. Anais... Buenos Aires, 2009.
a dimensão de jogo é restrita, tende a ampliar ainda mais o sentido de sofri- ______. Dor, domínio do corpo, conformações subjetivas: um estudo sobre o balé.
mento para os atletas, já que o trabalho é sempre muito repetitivo, instru- Impulso, Piracicaba, v. 21, n. 51, p. 85-95, jan./jun. 2011.
mental e solitário. É por isso que, talvez, seus praticantes frequentemente ______. Educação do corpo, dor, sacrifício: um estudo com competidores de atle-
tismo. Revista Ibero-Americana de Educação, n. 58/1, p. 1-10, jan. 2012.
apresentem uma postura ascética, no interior da qual disciplina e domínio
HANSEN, R.; VAZ, A. F. Treino, culto e embelezamento do corpo: um estudo
do corpo são muito valorizados, fazendo com que a dor seja vivida, trans-
em academias de ginástica e musculação. Revista Brasileira de Ciências do
formando o sofrimento em experiência. Os atletas, assim como as bailari- Esporte, Campinas, v. 26, n. 1, 2004. p. 135-152.
nas, parecem ressignificar o ideal ascético de canalização da dor e entendi- HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosó-
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e formação de professores: reflexões sobre a prática de ensino de educação Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba. Professor
física. Florianópolis: Ed. UFSC, 2002. p. 85-107. Titular da Universidade Federal do Espírito Santo (CEFD/UFES). Líder do
VIRILIO, P. A arte do motor. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física (PROTEORIA/UFES).
ZUR LIPPE, R. Vom Leib zum Körper. Naturbeherrschung am Menschen in der
Renaissance. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1988.
ANDRÉ LUIZ DA COSTA E SILVA
Professor do Instituto Nacional de Educação de Surdos. Mestre em Edu-
cação Física pelo Centro de Educação Física e Desportos da Universidade
Federal do Espírito Santo (CEFD/UFES). Membro do Laboratório de Pes-
quisas em Educação do Corpo (LABEC/UFRJ).

ANTONIO JORGE GONÇALVES SOARES


Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho. Professor da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação
(UFRJ). Pesquisador do CNPq/área Educação. Líder do Laboratório de
Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC/UFRJ).

CARLUS AUGUSTUS JOURAND CORREIA


Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação
da UFRJ (PPGE-UFRJ), pesquisador membro do Laboratório de Pesquisa em
Educação do Corpo e professor da rede estadual de ensino (SEEDUC-RJ).

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DANIEL MACHADO DA CONCEIÇÃO Clube. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Contemporânea.
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGE/UFSC), bacharel e licen- MÁRCIO FARIA DE AZEVEDO
ciado em Ciências Sociais (UFSC). Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo.
Professor do Curso de Educação Física, Esporte e Lazer da Universidade
FELIPE RODRIGUES DA COSTA Vila Velha. Membro do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação
Doutor em Educação Física pela Universidade Gama Filho. Professor da Física (PROTEORIA/UFES).
Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (FEF/UnB).
Membro pesquisador do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação MARCIO GABRIEL ROMÃO
Física (PROTEORIA/UFES), e do Laboratório de Pesquisa em Educação do Mestrando em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito
Corpo (LABEC/UFRJ). Santo. Membro do Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo
(LABEC/UFRJ) e do Instituto de Pesquisa em Educação e Educação Física
HUGO PAULA ALMEIDA DA ROCHA (PROTEORIA).
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE/UFRJ),
membro do Laboratório de Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC/ MICHELLE CARREIRÃO GONÇALVES
UFRJ) e professor do Colégio Pedro II. Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professora do Departamento de Didática da Universidade Federal do Rio de
JAISON JOSÉ BASSANI Janeiro. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Contemporânea/NEPESC (UFSC/CNPq) e do Laboratório de Pesquisas em
Professor adjunto II do Departamento de Educação Física e dos Programas Educação do Corpo/LABEC (UFRJ/FAPERJ/CNPq).
de Pós-Graduação em Educação e Educação Física da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). E vice líder do Núcleo de Estudos e Pesquisa PATRÍCIA LUIZA BREMER BOAVENTURA
Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CNPq). Doutoranda do Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Santa Catarina, bolsista CNPq e membro do
LEONARDO BERNARDES SILVA DE MELO Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea
Doutorando em Educação Física do Centro de Educação Física e Desportos (CED/UFSC/CNPq).
da Universidade Federal do Espírito Santo (CEFD/UFES). Professor das
redes estadual e municipal do Rio de Janeiro. Membro do Laboratório de WAGNER DOS SANTOS
Pesquisas em Educação do Corpo (LABEC/UFRJ). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professor
do Programa de Pós-Graduação em Educação Física da Universidade
LUCAS BARRETO KLEIN Federal do Espírito Santo. Pesquisador do CNPq. Líder do Instituto de
Mestre em Educação pela UFSC e Licenciado em Educação Física tam- Pesquisa em Educação e Educação Física (PROTEORIA/UFES).
bém pela UFSC. Professor de Educação Física na rede municipal de São
José (Educação Infantil); treinador das categorias de base do Avaí Futebol

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primeira edição impressa
na gráfica walprint
para viveiros de castro editora
em julho de 2016.

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