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Sumário

Lista de imagens
Agradecimentos
Abreviações
Capítulo 1 - Uma (re)introdução à África
Definindo “África”
A centralidade da África
Capítulo 2 - A vida e os tempos dos primeiros mártires
Ideias-chave
Por que os oficiais do governo romano queriam matar cristãos?
Onde e quando os cristãos foram mortos?
Entendendo o contexto
Capítulo 3 - Perpétua e Felicidade: Modelos de devoção cristã
Ideias-chave
As heroínas
A história de Perpétua e Felicidade
Perpétua como modelo de discipulado
Uma fé acima da família
Uma fé acima da vida
Capítulo 4 - Perpétua: Liderança e controvérsia
Ideias-chave
O surgimento da Nova Profecia
A Nova Profecia e Perpétua?
Visões diretas de Deus como a fonte primária de orientação e
autoridade
Autoridade espiritual distribuída entre muitas pessoas
A difusão do carisma colocou as mulheres em papéis de
destaque
O legado de Perpétua e Felicidade
Capítulo 5 - A vida e os tempos de Tertuliano
Ideias-chave
Tertuliano, o montanista?
Tertuliano como apologeta e teólogo
Capítulo 6 - Tertuliano defendendo a fé: Apologética e hereges
Ideias-chave
A Apologia de Tertuliano
A filosofia leva à heresia
Tertuliano e filosofia?
Capítulo 7 - Tertuliano definindo a fé: A plenitude da Trindade
Ideias-chave
Contra Práxeas
Tertuliano sobre a Trindade
Tertuliano e os concílios da Igreja Primitiva
A importância de Tertuliano
Capítulo 8 - A vida e os tempos de Cipriano
Ideias-chave
A crise do século III
Décio e “aquela antiga religião”
Valeriano e a intensificação da perseguição
Capítulo 9 - Cipriano: Sobre perdão e unidade
Ideias-chave
Diferentes respostas à perseguição
Unidade cristã?
Os lapsos
O que é a Igreja?
Capítulo 10 - Cipriano: A controvérsia do rebatismo
Ideias-chave
Bispos rivais
A reunificação e a questão do rebatismo
Conflito com Roma
Legados do debate sobre o rebatismo
Capítulo 11 - A vida e os tempos dos mártires tardios
Ideias-chave
A ascensão de Diocleciano e Galério
A Grande Perseguição
De volta aos livros
Capítulo 12 - Cecilianistas versus donatistas: Igrejas rivais
Ideias-chave
O retorno de velhas questões
A erupção da controvérsia
Bispos rivais, igrejas rivais
Um século de divisão
Capítulo 13 - Donatistas versus cecilianistas: mártires rivais
Ideias-chave
Mártires no cristianismo do norte da África
Nos passos do apóstolo Paulo
Verdadeiros e falsos mártires: vozes donatistas
Verdadeiros e falsos mártires: a resposta cecilianista
A igreja verdadeira?
Capítulo 14 - A vida e os tempos de Agostinho
Ideias-chave
O jovem Agostinho
O desafio das experiências da vida
A transformação em Milão
Agostinho, o cristão
Sombras de Agostinho
Capítulo 15 - Agostinho: Teólogo do Ocidente
Ideias-chave
Diferentes razões para escrever
Pecado original
A Trindade relacional
O reino de Deus é celestial, não terreno
Capítulo 16 - Agostinho: O debate com Pelágio sobre graça e vontade
Ideias-chave
As raízes da autodisciplina
Agostinho se envolve no debate
Perguntas e respostas
Qual é o estado natural dos seres humanos?
Por que algumas pessoas creem, mas outras não?
O que é graça e como ela opera?
De Agostinho e Pelágio até o presente
Conclusão
Temas-chave
Pensamentos conclusivos para reflexão
Bibliografia selecionada
Poslúdio à edição em português
Lista de imagens

Imagem 1.1: Mapa do norte da África Romana


Imagem 2.1: Pessoa condenada às feras (El Djem)
Imagem 3.1: Mosaico retratando Perpétua (Ravena)
Imagem 4.1: Santa cidade montanista de Pepouza
Imagem 5.1: Restos de uma basílica cristã
em Cartago (Damous el Karita)
Imagem 6.1: Anfiteatro romano de Cartago
Imagem 7.1: A metáfora legal de Tertuliano para a Trindade
Imagem 8.1: Imperador romano fazendo uma
oferenda aos deuses em homenagem
aos três animais sagrados: porco,
ovelha e touro
Imagem 9.1: Mosaico retratando Cipriano (Ravena)
Imagem 10.1: Batistério em Tipasa
Imagem 11.1: Pessoa condenada às feras (Trípoli)
Imagem 12.1: Bispos cecilianos e donatistas de Cartago
Imagem 12.2: Batistério donatista em Timgad
Imagem 13.1: Linhas de sucessão de mártires
cecilianistas e donatistas
Imagem 13.2: Mosaico de Uppenna vinculando
os mártires abitinianos aos apóstolos
Imagem 14.1: Batistério de Santa Tecla (Milão)
Imagem 14.2: Basílica de Agostinho (Hipona)
Imagem 14.3: Batistério de Agostinho (Hipona)
Imagem 15.1: Mosaico retratando Agostinho (Palermo)
Imagem 15.2: Modelo relacional da Trindade, por Agostinho
Imagem 16.1: Cátedra da igreja de Agostinho (Hipona)
Agradecimentos

Este livro é baseado em um curso que ministrei no Cairo nos verões de 2014 e 2015:
“Readings in Early African Christianity: Carthage and Its Vicinity” (Leituras no cristianismo
primitivo africano: Cartago e seus arredores. O curso foi ministrado pelo Center for Early
African Christianity [Centro de estudos do cristianismo primitivo africano] (CEAC) sob a
direção do Dr. Michael Glerup e organizado pelo Rev. Dr. Jos Strengholt. Os alunos deste curso
deram um retorno inestimável, e o CEAC continuou a fornecer apoio generoso durante a
produção desta obra. Também gostaria de expressar minha gratidão ao saudoso Thomas C. Oden,
que foi o diretor-fundador do CEAC e que tanto fez para aumentar a conscientização sobre a
história cristã primitiva da África, particularmente para leitores de fora do âmbito acadêmico.
Kiersten Payne foi minha assistente de pesquisa na Ohio Wesleyan University nos estágios
iniciais da transição deste projeto de palestras para texto. Seus comentários também contribuíram
muito para preparar o material para um público leitor mais amplo.
Também me beneficiei de interações com colegas da Universidade de Regensburg, na
Alemanha, como parte do grupo de pesquisa colaborativa da German Research Foundation
[Fundação de pesquisa alemã] (DFG), “Beyond Canon: Heterotopias of Religious Authority in
Ancient Christianity” (Além do cânone: Heterotopias da autoridade religiosa no cristianismo
antigo). Este grupo internacional estuda a recepção das tradições canônicas no cristianismo
primitivo. Minhas interações com eles deram o devido estofo às discussões deste livro sobre a
interpretação e recepção da vida e das epístolas do apóstolo Paulo.
Finalmente, gostaria de agradecer aos meus queridos amigos e colegas David Wilhite, Chris de
Wet, Young Kim e James Papandrea pelas discussões frutíferas de grandes ideias em espaços
liminares.
Abreviações

1 Apol. Justino, Primeira apologia


Acta Cypr. Atos de Cipriano
Acta mart. Scillit. Atos dos mártires cilitanos
Adv. Donat. Optato de Milevo,
Contra os donatistas
Apol. Tertuliano, Apologia
Civ. Agostinho, A cidade de Deus
Coll. João Cassiano, Conferências
Comm. Jer. Jerônimo, Comentário
de Jeremias em seis livros
Conf. Agostinho, Confissões
CPD Agostinho, Aos donatistas
após a conferência
Dies nat. Pet. Paul. Agostinho, Sermão por ocasião do
aniversário dos apóstolos
Pedro e Paulo
Enchir. Agostinho, Enchiridion
(Fé, esperança e amor)
Ep. Epístola
Grat. Chr. Agostinho, Sobre a graça de
Cristo e o pecado original
Haer. Agostinho, Heresias
Hist. eccl. Eusébio, História Eclesiástica
Inst. João Calvino, Institutas
da religião cristã
Jejun. Tertuliano, Sobre o jejum:
Contra os crentes carnais
Laps. Cipriano, Os lapsos
Mort. Lactâncio, Sobre a morte
dos perseguidores
Nupt. Agostinho, Casamento
e concupiscência
Oboed. Agostinho, Obediência
Orat. Gregório de Nazianzo, Discursos
Pass. Dat. Saturn. Atos dos mártires abitinianos
Pass. Perp. A paixão de Perpétua e Felicidade
Praescr. Tertuliano, Prescrição
contra os hereges
Prax. Tertuliano, Contra Práxeas
Trin. Agostinho, Trindade
Vir. ill. Jerônimo, Sobre homens ilustres
Vit. Cypr. Pôncio, A vida de Cipriano
Capítulo
1

Uma (re)introdução à África


Definindo “África”
Este livro se concentra na África cristã primitiva, mas precisamos esclarecer o que queremos
dizer com “África”. Se dissermos “África” hoje, muitas pessoas pensam em todo o continente.
Isso pode gerar mal-entendidos, porque quando os meios de comunicação se referem aos
problemas da “África”, eles mascaram a grande variedade entre as diferentes nações desse
enorme e belo continente. O Egito é muito diferente do Quênia, e ambos os lugares são bem
diferentes da África do Sul.
Como estamos estudando o mundo antigo, neste livro vamos definir a África por seus antigos
limites. Em nosso período de estudo, a costa norte do continente estava sob o controle do
Império Romano, e os romanos chamavam essa área específica de “África”. A África para os
romanos não incluía o Egito (que eles chamavam de Egito — Aegyptus) ou qualquer lugar ao sul
do Saara. Assim, neste livro, a África não se refere a todo o continente, mas a uma parte muito
particular da costa norte do continente.
Por uma questão de clareza, muitos estudiosos do cristianismo primitivo se referem a essa
região como “norte da África”. Eles querem ser mais específicos sobre o que está e o que não
está incluído.
O mapa da Imagem 1.1 mostra a área da África Romana. Ela se estendia desde a atual Líbia até
a costa noroeste do continente no atual Marrocos.
Vejamos agora com mais detalhes o mapa desta região. No Império Romano, a África foi
realmente dividida em quatro regiões menores com fins administrativos. A África Proconsular
cobria grande parte da atual Tunísia e trechos do norte da Líbia. Incluía Cartago, a maior e mais
importante cidade de toda essa região (Chamava-se África Proconsular porque era onde residia o
procônsul, ou governador regional.)
Por um longo período de tempo antes do domínio romano, Cartago controlava esta parte do
mundo, incluindo até a Sicília. Cartago era uma antiga superpotência econômica e militar. Como
os romanos e os cartagineses continuaram se enfrentando, uma série de três guerras, chamadas de
Guerras Púnicas, finalmente eclodiu entre esses dois impérios. Roma finalmente alcançou a
vitória, mas apenas por uma margem estreita. O famoso general cartaginês Aníbal, que marchou
com seu exército pelos Alpes no inverno (incluindo seus elefantes de guerra), quase conquistou
Roma em certo ponto.
Mas Roma por fim venceu e assumiu a região, e Cartago permaneceu uma cidade-chave. Isso
era verdade antes de o cristianismo chegar ali, e permaneceu assim após ter se espalhado por
todo o Império Romano. Cartago tornou-se uma das cidades mais relevantes do cristianismo
primitivo, e a relação entre ela e Roma permaneceu importante, e foi — como veremos neste
livro — algumas vezes tensa.
Mais a oeste, incluindo parte da moderna Argélia, estava a Numídia. Essa região também
incluiu uma série de cidades importantes. Hippo Regius (“Hipona Real”, a moderna Annaba) é
provavelmente a mais famosa. “Hippo” era uma forma latinizada do nome mais antigo da cidade
na língua púnica, e “Regius” designa que os antigos reis da Numídia costumavam residir lá.
Na história cristã, o nativo mais famoso de Hipona foi um bispo chamado Agostinho (Santo
Agostinho) — que será o foco da parte 5 deste livro. Ele serviu como bispo da cidade de 395
d.C. ou 396 d.C. até sua morte em 430. Ele também nasceu na Numídia em um lugar chamado
Tagaste (atual Souk Ahras, Argélia) e estudou em Madauro (distrito moderno de M’Daourouch),
um centro de aprendizado que foi a cidade natal do famoso autor romano Apuleio. No geral, a
Numídia era menos urbana do que a África Proconsular, e as duas regiões nem sempre
concordavam em assuntos eclesiásticos, como veremos.
Em seguida vem a região da Mauritânia, originalmente subdividida em duas partes. A
Mauritânia Cesariense foi governada a partir de uma cidade chamada Cesareia na costa do
Mediterrâneo, e a Mauritânia Tingitana foi governada a partir da cidade de Tingis (atual Tânger)
no Estreito de Gibraltar. Diocleciano criou uma terceira divisão em 293 d.C., a Mauritânia
Sitifensis (governada a partir da cidade interior de Setifis, que é a moderna Sétif).
As regiões da Mauritânia eram menos densamente povoadas do que outras partes do norte da
África, mas ainda abrigavam cidades grandes e impressionantes. As ruínas dessas cidades
costumam estar bem preservadas no clima quente e seco da região, mas são muito menos
visitadas do que outras partes do antigo Império Romano (viajar de forma particular para a
Argélia exige muito planejamento e documentação, mas por experiência própria posso dizer que
os sítios lá valem o esforço. Você também terá a maioria dos sítios arqueológicos e museus só
para você).
A centralidade da África
Quando falamos da História neste período, devemos ser claros sobre outra coisa: a África
estava no centro da ação e não era uma região secundária ou posteriormente considerada.
Na época do Império Romano, a população de Roma havia aumentado para cerca de um
milhão de pessoas, segundo estimativas de historiadores. Segundo o historiador judeu Josefo,
que escreveu no final do século I d.C., cerca de dois terços do trigo consumido em Roma vinham
da África (o outro terço vinha do Egito). Mesmo que sua matemática não fosse perfeitamente
precisa (a Sicília e a Sardenha também produziam trigo para Roma), seu argumento era claro: a
África era fundamental para a sobrevivência das pessoas que viviam em Roma.
Como já mencionei, Cartago tinha sido uma superpotência completa do mundo antigo, tal qual
Roma no Ocidente. Mesmo depois que Roma conquistou Cartago, a cidade não desapareceu. Ela
continuou a florescer por muitos séculos depois, e outras grandes cidades da África (como
Hipona, Tipasa, Curculum/Djemila, Thamugadi/Timgad e Sitifis/Sétif) também prosperaram,
muitas como centros comerciais.
Mais uma prova da centralidade da África é o nome do mar com o qual faz fronteira: o Mar
Mediterrâneo.1 “Mediterrâneo” em latim significa “no meio da terra”. Esse mar está no meio de
tudo: Roma estava no lado norte do mar que estava no meio de tudo, e Cartago estava no lado sul
do mar, no meio de tudo. Mesmo conceitualmente, a África não estava no limite do mundo
romano: ela se estabeleceu em seu centro.
A África também estava no coração do mundo cristão primitivo. Para convencê-lo disso, talvez
precise primeiro corrigir uma ideia comum, mas incorreta.
Ao pensar sobre a relação histórica geral entre o cristianismo e a África, precisamos estar
cientes do impacto do período colonial. Não há como negar que as potências coloniais europeias
fizeram coisas horríveis em outras partes do mundo, inclusive no continente africano, em sua
busca por influência e riqueza militares. Também é verdade que em alguns contextos as
potências coloniais tentaram impor seus valores culturais, tradições e religião às pessoas que
controlavam. Qualquer historiador honesto — incluindo historiadores da igreja — deve
reconhecer isso.
No entanto, uma suposição adicional às vezes é feita: porque os missionários europeus
trouxeram o cristianismo com eles, o cristianismo representa a opressão colonial e não é
autenticamente africano.
Essa suposição é categoricamente falsa. O cristianismo está na África desde o início. De fato,
é muito provável que houvesse cristãos na África antes de haver cristãos na Europa. O homem
que ajudou Jesus a carregar a cruz, Simão de Cirene, era da costa norte da África. Tradições
muito antigas afirmam que o apóstolo Mateus viajou até o sul da Etiópia, e Marcos, o autor do
Evangelho, é conhecido como o apóstolo do Egito. Quando se trata de cristianismo, a África não
ficou para trás. Ela estava lá desde o início.
O atual crescimento do cristianismo no continente, portanto, não é algo novo. É um retorno às
próprias raízes da região.
A África pertence ao centro da história cristã, começando na igreja primitiva. Esse é um dos
principais temas deste livro. Nos capítulos que se seguem, tentarei expor o seguinte:
1. A igreja africana, tanto quanto em qualquer outra região, teve que lidar com a maior
ameaça à sobrevivência da igreja primitiva: perseguição e martírio.
2. Teólogos e líderes africanos, sem dúvida, moldaram o desenvolvimento da doutrina cristã
em questões centrais.
3. Algumas questões enfrentadas pela antiga igreja africana ainda estão presentes em partes
do mundo cristão hoje, mesmo que de formas diferentes.
Não discutirei todas as questões e todas as figuras importantes da igreja africana primitiva. Isso
está além do escopo deste projeto. Aqui estamos examinando apenas alguns pontos de virada —
mas pontos de inflexão que são críticos para a compreensão do desenvolvimento da igreja
primitiva como um todo.
Dividi este livro em cinco partes: Perpétua e Felicidade, Tertuliano, Cipriano de Cartago, a
controvérsia donatista e Agostinho de Hipona. Cada parte tem três capítulos. Assim, começo
com um capítulo apresentando o contexto histórico (“A vida e os tempos”) da pessoa ou pessoas
envolvidas. Os dois capítulos seguintes mergulham mais profundamente em assuntos ou questões
específicas. Cada capítulo é apresentado com uma declaração das ideias-chave que são discutidas
nele.
Às vezes, o livro explorará a história de algumas questões teológicas profundas, mas escrevi de
uma maneira que, espero, apresentará claramente os pontos principais. Outros teólogos e
historiadores talvez quisessem que eu entrasse nas nuances de todos esses pontos, mas essa não é
a intenção deste livro. Aqueles que estiverem interessados em ler mais (e mais profundamente)
sobre vários tópicos encontrarão uma lista de recursos adicionais no final do livro.
Obrigado por se juntar a mim nesta jornada através do nosso passado. Estou animado em
apresentá-lo a algumas figuras-chave que lutaram, sacrificaram e até morreram para preservar a
antiga fé que chegou até nós.

1 Durante o império, os romanos costumavam se referir a essa região como “Nosso Mar”, mas o nome “Mediterrâneo” ainda se
desenvolveu a partir de uma compreensão da importância da área ao seu redor.
Capítulo
2

A vida e os tempos
dos primeiros mártires
Ideias-chave
• Os romanos mataram os cristãos porque estes se recusavam a adorar os deuses tradicionais,
e eram vistos como uma ameaça ao estilo de vida romano.
• Espalharam-se outros rumores que acusavam os cristãos de serem canibais e de cometerem
incesto.
• Os primeiros períodos de perseguição eram locais e esporádicos, não constantes e
generalizados.

Nesta primeira seção do livro, vamos estudar A paixão de Perpétua e Felicidade, um relato da
morte de um grupo de cristãos em Cartago, em 202 d.C. ou 203 d.C. A fim de definir o contexto
dessa história, precisamos entender a situação histórica que levou à perseguição dos cristãos. Ao
longo do caminho, também abordaremos alguns mitos sobre esse período da história.
Estruturarei a discussão neste capítulo em torno de duas questões: (1) Por que os oficiais do
governo romano iriam querer matar os cristãos? e (2) Onde e quando os cristãos foram mortos?
Uma vez que entendemos essas questões, seremos capazes de apreciar mais plenamente A paixão
de Perpétua e Felicidade (e muitos outros textos de mártires cristãos primitivos).
Por que os oficiais do governo romano queriam matar cristãos?
A desconfiança romana e o tratamento costumeiramente violento contra os cristãos eram
teologicamente arraigados, mas não da maneira como poderíamos pensar. O problema não era no
que os cristãos criam, mas o que eles faziam e eram acusados de fazer ou não fazer.
A religião romana era fundamentalmente conservadora e contava com uma relação de troca
entre os deuses e o povo. Baseava-se no que você fazia, e não em suas crenças. Vindo de uma
perspectiva cristã, podemos pensar em “religião” como um conjunto de crenças, mas os romanos
não.
O acordo era simples: se os romanos honrassem os deuses com os sacrifícios adequados, então
os deuses os abençoariam e permitiriam que Roma sobrevivesse e prosperasse. A relação com os
deuses foi descrita na expressão “eu dou para que você dê” (Do ut des). Em outras palavras, faço
uma oferta a um deus para que ele me dê algo em troca. De uma perspectiva romana, sempre foi
assim, e sempre funcionou. A pergunta não era: “Você crê em Júpiter?” nem “Como é seu
relacionamento pessoal com Vênus?”. Essas perguntas não fariam sentido para eles. A pergunta
era: “Você honra os deuses com os sacrifícios certos feitos da maneira certa?”.
Deixar de honrar os deuses era perigoso para todos. Isso irritaria os deuses, e isso poderia
significar um desastre para o Império Romano. Sempre que Roma sofria uma grande derrota
militar ou um desastre natural, a pergunta era: “Qual deus ofendemos e como podemos corrigir
isso?”.
É aqui que os cristãos entram em cena. O problema não era que os cristãos adoravam o Deus
de Israel e Jesus Cristo como Senhor. O problema era que eles se recusavam a honrar os deuses
romanos oferecendo sacrifícios e participando de festivais públicos para honrá-los. Os romanos
criam em muitos deuses diferentes, de modo que uma pessoa podia adorar a Deus ou a qualquer
outro deus de sua escolha. Eles apenas tinham que continuar honrando os deuses romanos
tradicionais também.
A principal acusação contra os cristãos, portanto, era o ateísmo. Ateísmo? Isso pode soar
estranho aos nossos ouvidos porque os cristãos modernos pensariam nos antigos romanos como
aqueles que falharam em crer no Deus verdadeiro. Mas para os romanos, os cristãos eram ateus
porque ignoravam os deuses romanos.
Uma das minhas cenas favoritas de qualquer texto de martírio ilustra esse argumento. Ela
remonta ao Martírio de Policarpo, um relato da morte de Policarpo — o bispo de Esmirna (atual
Izmir, Turquia) que tinha 86 anos de idade na época. Enquanto Policarpo estava na arena, o
governador lhe disse que ele poderia se salvar dizendo: “Fora com os ateus”. Com isso, o
governador quis dizer: “Fora com os cristãos”. Mas Policarpo apontou para a multidão pagã e
gritou: “Fora com os ateus!” Ele teve uma morte horrível, mas antes pronunciou uma frase
memorável.
Para os romanos, os cristãos eram ateus e grandes ameaças à segurança. Porque se recusavam a
honrar os deuses, eles podiam enfurecê-los. E irritar os deuses colocaria todo o império em risco.
Portanto, os cristãos eram perigosos por causa de sua falta de patriotismo.
Em meados do século I d.C., a situação para os cristãos tornou-se mais complicada, pois o
Senado romano começou a declarar oficialmente que alguns imperadores que haviam morrido
eram agora deuses. Não há evidências de que os membros do Senado realmente acreditassem
nisso, mas era uma forma cerimonial de homenagear os imperadores mortos — pelo menos
aqueles de quem eles gostavam. Imperadores vivos eram futuros deuses em potencial, então
honrar o imperador com sacrifícios também se tornou uma prática na religião romana. O
sacrifício era muito simples. Envolvia pegar uma pitada de incenso, jogá-lo no fogo e dizer algo
como: “César é o senhor”. Não era uma declaração de convicção teológica. Era principalmente
uma declaração de patriotismo ao estado romano. Deixar de oferecer esse sacrifício passou a ser
visto como um ato de traição.
Tudo isso pode nos parecer estranho. Nos Estados Unidos em particular, a crença em Deus é
muitas vezes ligada ao patriotismo de forma positiva. Muitas igrejas têm bandeiras americanas
exibidas com destaque em seus espaços de culto.
O apoio aos militares é assumido em muitos ambientes cristãos.
Mas nos primeiros séculos do cristianismo a dinâmica era bem diferente. Honrar a Cristo e não
Júpiter ou o imperador era considerado um perigo para o Estado. (E do lado cristão, em alguns
períodos da história, os membros do exército romano não podiam ser batizados porque haviam
jurado fidelidade ao rei César, não ao rei Jesus.) Os “cristãos ateus” eram vistos como uma
ameaça ao público. Mesmo hospedá-los poderia trazer a ira dos deuses sobre o Império Romano.
Por causa dessa suspeita geral e desconfiança para com os cristãos, outros tipos de rumores se
espalharam rapidamente sobre eles. Sabemos quais foram alguns deles graças a um grupo de
autores do século II que chamamos de apologetas. “Apologia” (apologia) em grego não
significava primeiramente uma expressão de pesar, tristeza ou justificação diante de um erro.
Oferecer uma apologia significava dar uma explicação ou justificativa; logo, os apologetas eram
autores cristãos que escreviam para defender e explicar as crenças e ações dos cristãos.
Em seus escritos, os apologetas frequentemente declaram as acusações contra os cristãos e
depois explicam por que eram mal-entendidos ou simplesmente mentiras. Aqui estão algumas
das outras acusações populares que conhecemos:
Os cristãos tinham reuniões secretas sinistras. Os romanos como um todo desconfiavam de
qualquer coisa feita em segredo. O que acontecia em segredo, a não ser coisas que as pessoas
estavam tentando esconder? Fontes da igreja primitiva nos dizem que uma parte do culto cristão
era aberta a todos, mas antes da celebração da Ceia do Senhor, ou Eucaristia, os não batizados
eram obrigados a sair. Nessas reuniões secretas, as pessoas pensavam que os cristãos estavam
planejando derrubar o governo ou fazendo outra coisa ameaçadora.
Cristãos não eram o único grupo no império que tinha reuniões privadas. O Império Romano
tinha uma categoria legal para associações privadas, mas todas as associações — inclusive as
religiosas — precisavam ser registradas no Estado. Os romanos queriam saber quem eram e o
que faziam. Os cristãos não se registraram e assim se abriram para ainda mais suspeitas,
especialmente durante períodos de agitação ou catástrofe.
Os cristãos eram canibais. Seus próprios textos sagrados registram que seu fundador disse a
seus seguidores que comessem sua carne e bebessem seu sangue. Que melhor prova poderia
haver? Claro, isso foi um mal-entendido da linguagem de Jesus na última Ceia, mas se as pessoas
já acreditavam que esse grupo era perigoso, então era mais fácil crer em outras coisas ruins sobre
eles.
Pior ainda: esse canibalismo envolvia comer bebês. Abaixo está uma descrição do que algumas
pessoas pensavam acontecer nessas reuniões “secretas” da Eucaristia. Este texto vem de um
autor chamado Minucius Felix, que muitos historiadores pensam ser da África. Ele estava
escrevendo para um amigo para abordar rumores que ele pode ter ouvido, como este:
Um bebê pequeno é coberto com farinha para que o ingênuo convertido não tenha consciência do que está acontecendo.
Em seguida, é levado perante a pessoa para ser admitido em seus ritos. O novato é instado a golpear com muitos golpes, e
isso parece ser inofensivo por causa da cobertura de farinha. Desta forma, o bebê é morto com feridas que permanecem
invisíveis e escondidas. É o sangue dessa criança — estremeço ao mencionar — que eles lambem com os lábios sedentos.
Estes são os membros que eles distribuem avidamente; esta é a vítima pela qual eles selam sua aliança. (Octavius 9)
Pensava-se que, porque os cristãos não podiam realmente consumir a carne de seu fundador,
eles a substituíam por um bebê. O novo convertido mataria um bebê e todos o comeriam.
Cristãos envolvidos em incesto. Esse boato pode vir do fato de que os cristãos muitas vezes se
cumprimentavam com um ósculo santo — um beijo de saudação que provavelmente lembrava a
saudação ainda comum na França e em outras partes do mundo mediterrâneo. Lemos sobre essa
prática repetidamente nas cartas de Paulo. E os cristãos usavam a linguagem de família —
chamando uns aos outros de irmãos e irmãs — para descrever seu relacionamento uns com os
outros. Mas do ponto de vista externo, os cristãos beijavam seus próprios irmãos e irmãs.
Os cristãos faziam coisas em segredo, eram canibais e incestuosos. Quando somados, esses
rumores levaram a algumas acusações ainda mais repugnantes. Aqui está outra passagem de
Minucius Felix descrevendo um rumor adicional sobre as práticas cristãs:
Em um dia especial, eles se reúnem em um banquete com todos os seus filhos, irmãs, mães — de todos os sexos e de todas
as idades. Ali, impelidos pelo banquete, depois de tanta festa e bebida (depois de terem comido a carne e bebido o sangue
do bebê) eles começam a arder em paixões incestuosas [...] Na escuridão desavergonhada com luxúria indescritível eles se
dão em uniões aleatórias. Todos são igualmente culpados de incesto, alguns por suas ações, mas todos por permitirem que
isso aconteça. (Octavius 9)
Os cristãos foram acusados de atos indescritíveis. Mesmo dissolutos como os romanos eram,
isso ainda estava indo longe demais para eles.
Você pode estar pensando: “Como alguém pode acreditar em histórias tão loucas?”. Tente se
colocar no lugar das pessoas naquele momento. Você está vagamente ciente desse grupo
denominado cristãos, que fazem parte de um novo culto que vem de alguma terra distante. Eles
não creem nos deuses romanos, então colocam a segurança de todos em risco. Eles têm reuniões
secretas. Seus textos lhes dizem para comer carne, beber sangue e beijar seus próprios irmãos e
irmãs. E havia outros rumores além desses.
Se já ouviu tudo isso, essas histórias seriam tão difíceis de acreditar? Como a história nos
ensina repetidamente, o preconceito cego pode fazer com que as pessoas imaginem e acreditem
em muitas coisas ridículas sobre pessoas que são diferentes de nós.
E se você já ouviu todas essas histórias, você gostaria que essas pessoas vivessem no império?
Na sua cidade? Na sua rua? Ou seria melhor para todos se fossem forçados a desistir de seus
maus caminhos ou serem eliminados completamente?
Os romanos eram conhecidos por muitas coisas, mas conseguir lidar com ameaças potenciais
não era uma delas. Nem por demonstrar misericórdia. Se eles viam uma ameaça ao seu poder,
usavam todos os meios necessários para eliminá-la. Eles não hesitaram em usar a violência.
Afinal, estavam defendendo seu modo de vida e seus valores tradicionais.
Onde e quando os cristãos foram mortos?
Enquanto eu crescia, ouvi uma série de coisas que me fizeram pensar que os primeiros cristãos
foram perseguidos em todos os lugares o tempo todo. Ouvi falar das catacumbas, esses lugares
secretos subterrâneos que os cristãos se escondiam para realizar seus cultos. Somente depois do
imperador Constantino os cristãos puderam sair para a luz sem medo de perseguição.
Recentemente, em alguns locais populares, uma história alternativa foi contada. Na verdade, os
cristãos raramente foram perseguidos, se é que o foram. Eles inventaram histórias mais tarde
sobre perseguições anteriores para fazer seus heróis do passado parecerem bons, e depois de
Constantino inventaram ainda mais histórias sobre martírio para controlar as pessoas e oprimir
aqueles que tinham crenças diferentes.
Ambas as posições contêm um núcleo de verdade, mas em geral são muito enganosas. Em
resposta à primeira teoria, sim, houve tempos e lugares em que os cristãos tiveram que se
esconder. Mas a maioria das perseguições nos primeiros séculos foi esporádica e localizada e não
em todo o império até pelo menos meados do século III (mais acerca disso na seção sobre
Cipriano).
Em resposta à segunda teoria, sim, depois de Constantino houve bispos que aparentemente
inventaram os nomes de alguns mártires e histórias sobre eles para aumentar o controle das
igrejas ou obter certas vantagens políticas. Mas a sugestão de que todas as histórias de
perseguição foram inventadas é simplesmente falsa. Muitos cristãos realmente morreram, como
provam as evidências daquela época.
Fora do Novo Testamento, nossa primeira e melhor evidência de perseguição e martírio vem
de fontes romanas, não cristãs. Permita-me repetir isso: nossas primeiras e melhores evidências
de perseguição e martírio vêm de fontes romanas, não cristãs. Por que isso importa? Isso importa
porque aqueles que afirmam que os cristãos não foram perseguidos devem argumentar que esses
historiadores romanos — que muitas vezes eram vigorosamente anticristãos — ou não sabiam do
que estavam falando ou não queriam dizer o que disseram claramente sobre o destino dos
cristãos.
Os cristãos foram perseguidos, mas isso foi principalmente local. Mesmo as primeiras
perseguições imperiais parecem ser principalmente locais. Para demonstrar isso, vejamos talvez a
mais famosa perseguição imperial inicial.
O ano era 64 d.C. e Nero estava sentado no trono do Império Romano. As fontes romanas
concordam que ele era temido e odiado por quase todos porque se tornou cada vez mais
paranoico, violento, imprevisível e egocêntrico. Ele era famoso pela perversão sexual e todos os
tipos de outras ações horríveis, incluindo o assassinato de sua mãe e sua primeira esposa, ambas
populares entre o povo romano.
Nero agora estava de olho na construção de um novo palácio no centro de Roma, sua Casa
Dourada (como ficou conhecida). Mas havia um problema: muitas pessoas já moravam onde ele
queria construir. Na noite de 18 de julho, um grande incêndio irrompeu naquele mesmo bairro e
queimou por nove dias, destruindo mais da metade da cidade. O terreno para a nova casa de Nero
agora estava limpo.
Quase imediatamente, o povo romano começou a desconfiar do imperador, e logo a notícia nas
ruas era que Nero havia ateado fogo de propósito. Agora vou lhe dizer algo chocante. Os
políticos antigos nem sempre assumiam a responsabilidade por suas ações, e às vezes tentavam
culpar outras pessoas por seus próprios atos.

Imagem 2.1: Pessoa condenada às feras (El Djem).


Perpétua e outros teriam morrido em um cenário
semelhante.

Nero empregou ambas as estratégias. Em primeiro lugar, ele fez um grande show de sacrifícios
aos deuses para pedir ajuda a eles após essa grande tragédia. Ó deuses, como isso pôde acontecer
conosco? Em segundo lugar, Nero tentou subornar as pessoas para ficarem quietas. Mas quando
essas estratégias não funcionavam, tinha um plano B. Ele precisava de um bode expiatório para
tirar a culpa de si mesmo, então procurou um alvo fácil.
Os cristãos eram as pessoas perfeitas para o trabalho. Muitas pessoas não sabiam muito sobre
eles, exceto, talvez, que eles eram uma nova seita religiosa de alguma forma associada ao
judaísmo. Muitas pessoas no mundo romano pensavam que o povo judeu era bárbaro e inculto
(por causa de suas práticas de circuncisão e leis alimentares), então os cristãos provavelmente
representavam uma ameaça em algum nível. Nero, portanto, culpou os traidores cristãos pelo
incêndio.
Tudo isso nos foi descrito pelo historiador romano Tácito, que escreveu uma história dos
primeiros imperadores romanos chamada Anais. Em sua seção sobre Nero, ele contou a história e
suas consequências. O relato vale a pena ser citado de forma extensa:
Mas todo esforço humano, todos os presentes generosos do imperador e todas as oferendas aos deuses não subjugaram a
sinistra crença de que o fogo era o resultado de uma ordem. Portanto, para se livrar dessa denúncia, Nero destinou a culpa e
infligiu as mais requintadas torturas a uma classe odiada por suas abominações, chamada de cristãos pelo povo. Christus,
de quem o nome teve origem, sofreu a pena extrema durante o reinado de Tibério nas mãos de um de nossos governadores,
Pôncio Pilatos. Mas uma superstição das mais perniciosas, embora momentaneamente interrompida, irrompeu novamente
não apenas na Judeia, a primeira fonte do mal, mas também em Roma, onde todas as coisas mais horríveis e vergonhosas
de todas as partes do mundo encontram seu centro e se tornam populares. Assim, todos os que se declararam culpados [de
serem cristãos] foram presos. Então, com base em suas informações, uma imensa multidão foi condenada, não tanto pelo
crime de incendiar a cidade, mas por ódio contra a humanidade. Zombaria de todo tipo foi adicionada às suas mortes.
Cobertos com peles de animais, eles foram dilacerados por cães e pereceram, ou foram pregados em cruzes, ou foram
condenados às chamas e queimados vivos para servir de iluminação depois que o sol se pôs. Nero ofereceu seus próprios
jardins para o espetáculo. (Anais 15.44)
Distrações e subornos não estavam funcionando, então Nero culpou os cristãos da cidade e
começou a matá-los para entretenimento público. Suas mortes ocorreram na arena
(provavelmente o Circus Maximus) e ao longo das ruas. Nero estava tentando mostrar aos
romanos o que ele fazia com os inimigos de Roma — mesmo que os cristãos não o fossem .
Tácito afirma que os cristãos foram incriminados pelo incêndio, mas ele ainda os desprezou
por causa de seu “ódio contra a humanidade”. Por que ódio? Porque eles se recusavam a
participar das práticas religiosas romanas tradicionais e, portanto, colocavam todos em risco.
Esse historiador romano, que diz que Nero incriminou e torturou injustamente os cristãos,
também os odiava. Ele não era um apologeta cristão nem tinha interesse em promover a causa
cristã, então não tinha motivos para inventar uma história sobre perseguição. Quando alguém
que lhe odeia diz que você está sendo tratado injustamente, isso é uma boa indicação de que
você está sendo tratado injustamente. Essa foi a história com Tácito descrevendo a tortura e
morte de cristãos por um crime que não cometeram.
Como nota de rodapé dessa discussão, a tradição cristã afirma que Pedro e Paulo morreram
durante o reinado de Nero. Nenhuma das mortes estava diretamente ligada ao incêndio nas
fontes, mas suas histórias de martírio claramente ilustram o reinado de Nero como uma época
perigosa para os cristãos.
Outros surtos de perseguição parecem surgir do nada: em Antioquia, na Síria, e na região do
Mar Negro no início do século II; Esmirna em meados do século II; e África e Lião (França) no
final do século II, para citar alguns. Muitas vezes as fontes não nos dizem por que a perseguição
começou. Talvez nem estivesse claro para eles na época o que desencadeou a perseguição, além
da suspeita e desconfiança geral. É por isso que o trabalho dos apologetas do século II foi
principalmente destruir os mitos que poderiam levar a ações violentas contra os cristãos.
Entendendo o contexto
O que, então, tudo isso significa para o contexto histórico do cristianismo primitivo? Isso
significa que, para os primeiros cristãos, a perseguição pode acontecer a qualquer hora e em
qualquer lugar. Não precisava haver um grande evento para iniciá-la, porque muitas pessoas no
Império Romano já odiavam os cristãos e os viam como uma ameaça.
Nos próximos dois capítulos vamos examinar a história de duas jovens que foram arrastadas
por uma perseguição em Cartago no ano 202 d.C. ou 203 d.C. O único “crime” delas era o fato
de serem cristãs. Mas isso foi o suficiente para lhes condenar à morte.
Capítulo
3

Perpétua e Felicidade:
Modelos de devoção cristã
Ideias-chave
• Perpétua e Felicidade eram jovens mães que morreram porque se recusaram a negar sua fé.
• Essas duas mulheres interpretaram literalmente as palavras de Jesus quando ele disse que a
fé é mais importante que a família.
• Perpétua e Felicidade foram modelos de discipulado cristão porque valorizavam sua fé
mais do que suas próprias vidas.

A paixão (literalmente, sofrimento) de Perpétua e Felicidade é uma das mais famosas de todas
as histórias de mártires. Ela nos dá algumas informações importantes sobre os valores cristãos
neste período, e no próximo capítulo veremos algumas das questões que ela suscitou.
As heroínas
A história de Perpétua e Felicidade diz respeito a duas jovens mortas em Cartago por volta de
202 d.C. ou 203 d.C. O que é especial sobre esse texto e que o tornou tão popular e amado em
toda a história cristã é que ele inclui um longo relato de uma testemunha ocular. Temos as
palavras da própria Perpétua falando sobre suas próprias experiências que a levaram à morte.
O que a levou a chegar ao martírio? No que ela estava pensando enquanto se preparava para o
martírio? Quais foram os desafios que ela enfrentou em termos de martírio? O que estava em
jogo para ela? Em Perpétua, temos uma história pessoal sobre o que essa jovem estava colocando
em risco e desistindo por causa de sua fé.
Começamos olhando brevemente para Perpétua, personagem principal e heroína da história. O
que sabemos sobre ela? A partir do texto, aprendemos duas coisas importantes sobre seu
passado.
Em primeiro lugar, Perpétua era da classe alta e bem educada. O texto a descreve como sendo
da nobreza, e o fato de Perpétua ter escrito tanto desse relato é uma confirmação disso. Em um
período em que a taxa de alfabetização era muito baixa, ter a habilidade de escrever era
incomum. Teria sido particularmente incomum para uma mulher naquela época.
Alguns estudiosos estimam a taxa de alfabetização no mundo antigo em cerca de 10% da
população. Dessa porcentagem, quantas eram mulheres? Esse número era muito baixo por razões
culturais. Não se esperava que as mulheres entrassem na vida pública, então elas não eram
educadas da mesma forma que os homens. Com poucas exceções, as mulheres não podiam ter
carreiras políticas proeminentes, então a alfabetização não era vista como necessária. Perpétua
era, portanto, de uma situação excepcionalmente privilegiada.

Imagem 3.1: Mosaico retratando Perpétua (Ravena).

Também lemos mais adiante no texto que ela falava mais de um idioma. Em uma visão dada a
outro mártir, Perpétua falou com um bispo e um ancião em grego. O fato de ela falar latim e
grego também sugere um alto nível de educação.
Ela veio da aristocracia, tinha uma vida confortável, riqueza e educação. Em outras palavras,
ela tinha muito a perder por defender sua fé.
Em segundo lugar, Perpétua era uma jovem esposa e mãe. O texto afirma que ela ainda estava
amamentando seu filho recém-nascido e que morreu aos vinte e dois anos de idade. Quando
ensino esse texto para universitários, lembro aos veteranos que ela tinha a idade deles. Ela não
estava lutando com escolhas de carreira ou sua presença nas mídias sociais. Ela estava
enfrentando uma decisão de vida ou morte que envolvia não apenas ela, mas também seu bebê.
Ela ainda diz que seu filho ficou doente enquanto ela estava na prisão. Ela era uma mãe jovem,
seu bebê estava em risco, e presumivelmente estava se afastando de um jovem marido. Em
outras palavras (novamente), ela tinha muito a perder ao defender sua fé.
Permitam-me fazer uma pausa para abordar uma questão que às vezes surge em relação a esse
texto. Como acontece com muitos textos do cristianismo primitivo, há pessoas que leem A
paixão de Perpétua e Felicidade com grande cinismo e desconfiança. Você pode encontrar
alguém na internet ou em um livro alegando que toda essa história foi inventada. Claro, uma
mulher não teria escrito isso. As mulheres não sabiam ler e escrever. Esse não foi um relato de
testemunha ocular. Foi alguém mais tarde inventando uma história para soar como um relato de
testemunha ocular e fazer os cristãos parecerem melhores.
Essa visão existe, mas o texto não nos dá motivos para duvidar da identidade ou autenticidade
do autor. É possível que uma mulher aristocrática soubesse ler e escrever, e que mesmo os
primeiros leitores desse texto (os que mais provavelmente saberiam se o relato era falso) o
aceitassem como palavras de Perpétua. A principal razão pela qual alguns leem esse texto e
duvidam de sua legitimidade é porque querem duvidar dele. Eles chegam ao texto com suspeita e
então projetam suas próprias suposições nele. Mas até esse ponto ninguém levantou argumentos
sólidos contra a veracidade das palavras de Perpétua. E apesar do que alguns podem pensar, o
ceticismo por si só não é um argumento.
Durante a maior parte da história, os historiadores — cristãos ou não — consideraram esse
texto como uma testemunha ocular de um então futuro mártir. A maioria dos estudiosos de hoje
ainda concorda que esse é o caso, e eu compartilho da posição de que estamos olhando pelos
olhos de uma mulher que enfrenta a morte no início do século III.
Sabemos muito menos sobre a outra personagem principal, Felicidade, que aparece bem tarde
na história. Sabemos que ela era uma escrava grávida e acabou dando à luz. Parte do texto diz
que a lei não permitia que uma mulher grávida fosse morta. Ela finalmente deu à luz e ficou feliz
por poder agora ser martirizada. Essa forma de pensar pode nos parecer estranha, mas é assim
que a situação é apresentada no texto.
Em última análise, o que nos chega é a história de duas jovens mães — uma com um bebê que
está amamentando e outra com um bebê recém-nascido. Ambas têm muito a perder, e vão
voluntariamente a caminho da morte por sua fé.
A história de Perpétua e Felicidade
O relato começa com um prefácio no qual a história é descrita como um novo exemplo do
poder sobrenatural de Deus (mais sobre isso no próximo capítulo). Então Perpétua, junto com
alguns outros catecúmenos (pessoas que se preparam para o batismo), são presos.
O pai de Perpétua implora várias vezes para que ela considere sua família, especialmente ele
mesmo e o bebê, e renuncie à sua fé a fim de que possa viver. Ela se recusa e, na prisão, é
batizada e tem uma visão que lhe diz que enfrentará a morte violenta de um mártir. Na verdade,
Perpétua tem uma série de visões ao longo da história. A próxima é de seu irmão, Dinocrates,
que aos sete anos morreu de um câncer que deformou seu rosto. Ela o vê em um sonho sofrendo
e começa a orar por ele todas as noites. Ela finalmente tem outra visão dele saudável e restaurado
na vida após a morte.
Depois de outra visita de seu pai, Perpétua sonha com um diácono martirizado que está vestido
com uma túnica branca (cf. Ap 6.11; 7.9-14) e a chama para se juntar aos outros mártires. De
repente ela está na arena esperando as feras. Mas os animais não vêm. Em vez disso, um enorme
egípcio aparece para enfrentá-la em combate corpo a corpo. Antes do início do combate, ela é
despida para ser lubrificada, como era típico nas antigas lutas. Mas sua modéstia feminina é
sobrenaturalmente (e estranhamente) protegida, porque ela se transforma em homem para a
batalha. Ela derrota o egípcio e depois de acordar percebe que essa batalha representa sua própria
batalha contra o diabo.
Perpétua relata mais uma visão, embora esta seja de alguém chamado Saturus. Ele se vê ao
lado de Perpétua sendo carregado por quatro anjos para o céu, onde eles veem a cena da
adoração do Filho do Homem de Apocalipse 1.14-16. Essa é, na realidade, uma visão do lugar
para onde eles iriam em breve.
Felicidade é então apresentada. Ela não pode se juntar a seus companheiros na arena porque
está grávida. Os outros oram para que ela dê à luz mais cedo, e Deus responde às suas orações.
Felicidade dá à luz uma menina, e outra mulher cristã leva a criança para criar como sua. Os
futuros mártires desfrutam de uma refeição final sob os olhos atentos de curiosos, e Saturus avisa
os incrédulos que eles se verão novamente no dia do julgamento.
No dia seguinte, todos entram no anfiteatro com alegria para enfrentar seus destinos —
Felicidade, para enfrentar seu “segundo batismo”, este em sangue. Vários animais selvagens são
soltos contra os cristãos, e alguns morrem dessa maneira. Outros sobrevivem às feras e
finalmente morrem pela espada. Quanto a Perpétua, seu jovem carrasco hesita em desferir o
golpe mortal, então ela guia sua espada até a própria garganta e, assim, é morta.
Um breve poslúdio reafirma a importância dessa história como um exemplo que deve
fortalecer e encorajar a igreja.
Perpétua como modelo de discipulado
Esse texto introduz uma série de temas que nos dão alguma visão sobre o cristianismo
primitivo. Alguns desses temas foram recebidos positivamente e serão o foco do restante deste
capítulo. Mas outros temas foram mais controversos, e vou discuti-los no próximo capítulo.
Uma fé acima da família
Uma das declarações mais surpreendentes de Jesus é encontrada em Lucas 14.26: “Se alguém
vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua
própria vida, não pode ser meu discípulo”. Jesus realmente quer que odiemos nossa família
biológica?
Mateus 10.34-37 pode ser igualmente chocante: “Não penseis que vim trazer paz à terra; não
vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o homem e seu pai; entre a filha e sua
mãe e entre a nora e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da sua própria casa.
Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem ama seu filho ou
sua filha mais do que a mim não é digno de mim”. Filho contra pai? Filha contra mãe? (Claro, os
comediantes ganham a vida fazendo piadas de noras contra sogras.)
São afirmações fortes, mas em ambos os casos Jesus deixa claro que a luta não é contra a
família biológica. Em vez disso, ele exige que nossa lealdade a ele supere tudo o mais. Isso fica
claro em Lucas se lermos o versículo seguinte: “E qualquer que não tomar a sua cruz e vier após
mim não pode ser meu discípulo” (14.27). O relato de Mateus dá a mesma mensagem de
acompanhamento: “Quem não toma a sua cruz e vem após mim não é digno de mim. Quem acha
a sua vida perdê-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa achá-la-á” (10.38,39).
Jesus pede um compromisso radical que coloca a família de Deus à frente da nossa família de
sangue. Nada menos que isso.
Perpétua modela esse tipo de compromisso no texto. Ao fazer isso, ela desafia o leitor e exibe
uma rejeição flagrante do que naquela época eram considerados “valores familiares tradicionais”.
Como hoje, o mundo romano também tinha valores familiares tradicionais.
As famílias romanas eram lideradas pelo pai da família, o paterfamilias. Ele tinha autoridade
sobre sua esposa, seus filhos e os servos/escravos domésticos. Essa autoridade era completa e
inquestionável. (Como uma nota subsidiária neste ponto, isso significa que os ensinamentos
sobre organização doméstica em Efésios 5-6 e Colossenses 3 eram radicais em seu próprio
tempo, porque exigiam algo do marido/pai/mestre. Ele tinha a responsabilidade de ser justo,
bondoso e amoroso. Essas passagens podem parecer “tradicionais” hoje, mas não se alinham
com o modo de pensar romano. Efésios e Colossenses colocam o paterfamilias sob outra
autoridade superior, para que ele não possa fazer o que quiser.)
Pelos padrões romanos tradicionais, as principais responsabilidades de Perpétua eram os
relacionamentos mais importantes de sua vida: seu pai, seu marido e seu filho. Nesse texto, ela
viola todas essas expectativas. Os relacionamentos primários apresentados são seu pai e seu filho
(o marido está estranhamente ausente da história). O pai fala muito tentando persuadi-la. Ele diz
a ela:
Tenha piedade dos meus cabelos grisalhos, filha [...] Tenha piedade de seu pai — se sou digno de ser chamado de seu pai.
Com minhas próprias mãos cuidei de você como uma flor desabrochando. Eu favoreci você sobre seus dois irmãos.
Portanto, não me deixe de lado agora para ser desprezado pelos homens! Pense em seus irmãos [...] sua mãe [...] sua tia [...]
seu filho! Ele não vai conseguir viver sem você. Não seja tão teimosa, ou você vai destruir a todos nós! (Pass. Perp. 5)2
Observe o que ele faz aqui para tentar persuadi-la. Ele lhe diz claramente: Perpétua, pense em
mim; Eu sou seu pai. Pense na sua mãe, na sua família, no seu filho. Como você pode ir contra
os valores tradicionais? Não coloque sua fé na frente de sua família, porque se você fizer isso,
todos nós vamos sofrer. Na verdade, ele diz em um ponto que o bebê vai morrer sem ela.
A preocupação de seu pai com seu próprio bem-estar não é equivocada. A certa altura da
história, Perpétua novamente se recusa a renunciar à sua fé, e o governador manda espancar seu
pobre pai por esse ultraje, não ela. Ela sente pena do pai, que sofre as consequências diretas de
suas escolhas.
O pai ainda não terminou, no entanto. Perpétua e seus companheiros aparecem novamente
diante do governador, e seu pai aparece com uma munição pesada: “Todos comigo [Perpétua]
confessaram sua fé quando solicitados. Depois foi a minha vez. Nesse ponto, meu pai apareceu lá
com meu bebê”. No momento em que pedem a Perpétua que confirme sua fé e assim se condene
à morte, seu pai aparece segurando seu filho pequeno nos braços. Ele implora que ela ofereça a
pitada de incenso em nome do imperador. Era uma ação simples que teria salvado a vida dela e
de seu filho: “Realize o sacrifício! Tenha piedade do seu bebê!” (Pass. Perp. 6).
Até Hilário, o governador romano, se envolve tentando convencê-la. Ele diz: “Poupe seu velho
pai! Poupe seu bebê! Apenas faça um sacrifício pelo bem-estar do imperador” (Pass. Perp. 6).
Ele honestamente pode não ter desejado ver essa jovem mãe massacrada também. Lembre-se de
que ele provavelmente não se importava com o que ela acreditava. Ele só precisava cumprir seu
dever de fazer o sacrifício dela. Mas ela se recusou a ceder.
Pode ser fácil para nós ler isso e seguir em frente, mas, se pensarmos a respeito, essa é uma
cena carregada de emoção. Nesse momento, Perpétua está decidindo entre sua fé e sua família.
Seu filho recém-nascido está bem na frente dela. Seria demais imaginar que o bebê está
estendendo a mão para sua mãe?
Perpétua, no entanto, não se comove. Ela diz com eficiência: Minha fé é mais importante do
que esses valores familiares tradicionais, e seguirei a Deus a todo custo — e confiarei em Deus
para manter meu bebê vivo. Felicidade, que acaba de dar à luz seu bebê, faz a mesma escolha. Se
formos honestos, essa é uma cena perturbadora, pois também vai contra os valores culturais
modernos sobre a maternidade.
O texto força o público (incluindo a nós) a pensar muito sobre o custo total da perseguição. Do
que os cristãos estão desistindo quando morrem? No período antigo, como nos dias de hoje,
quando ouvimos histórias de cristãos morrendo, temos que lembrar que famílias inteiras estão
sendo afetadas. Gerações inteiras de famílias estão sendo afetadas por isso. A morte de um
cristão nunca é apenas a morte de um cristão. Sempre há famílias e comunidades envolvidas que
também sofrem quando o martírio acontece.
Jesus disse: “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim; quem
ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10.37). Perpétua viveu
esse amor maior por Jesus.
Uma fé acima da vida
Muitas vezes pensamos no martírio como escolher a fé em vez da vida — estar disposto a
desistir de sua própria vida. Perpétua já havia mostrado sua disposição de colocar a fé acima da
família, mas Jesus também disse: “Se alguém vem a mim e não aborrece a seu pai, e mãe, e
mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc
14.26). Perpétua entendeu a verdade dessa passagem e a praticou, preferindo sua fé à própria
vida. Ela pensa sobre isso teologicamente, tendo a visão eterna sobre a visão humana. Ela pensa
na sobrevivência eterna, não apenas na sobrevivência nesta vida.
O governador romano Hilário dá a ela uma última chance de se salvar. Ele lhe faz a pergunta
com a qual ela se salvará ou se condenará: “Você é cristã?”. Essa pergunta aparece em vários
textos de martírio, e Perpétua dá a resposta decisiva: “Sou cristã”. Ela escreve: “Hilário
sentenciou todos nós a enfrentar as feras. Regozijando-nos, descemos ao calabouço” (Pass. Perp.
6). Como muitas figuras em outras histórias da África e de outros lugares, Perpétua declarou:
“Sou cristã”, sabendo que isso selaria seu destino. Sua resposta à sentença de morte não foi
tristeza ou medo, mas alegria.
Aqueles que não são cristãos (e talvez até alguns que são) podem ler textos como esse e pensar
que algo estava errado com Perpétua. Ela tinha perdido seus sentidos? O que a levaria a fazer
isso? Isso não era basicamente cometer um suicídio sem motivo?
Mas dentro da tradição cristã entendemos que Cristo diz: “entregue sua vida”. No relativo
conforto e segurança do mundo ocidental, tendemos a ler isso metaforicamente: Colocar a fé à
frente da minha carreira. Colocar a fé à frente da busca por riqueza e poder. Esses não são
maus instintos.
Mas sabemos que historicamente e ainda em muitas partes do mundo hoje os cristãos
literalmente dão suas vidas — suas vidas físicas.
Perpétua e Felicidade escolheram fazer isso. Ao fazê-lo, como afirma o prefácio, elas fornecem
um exemplo para outros seguirem e encorajamento para outros que enfrentam o fogo da
perseguição.

2 As traduções de Passion of Perpetua and Felicity foram extraídas de Bryan M. Litfin, Early Christian Martyr Stories: An
Evangelical Introduction with New Translations (Grand Rapids: Baker Academic, 2014), 93-109. Publicado no Brasil sob o
título Conhecendo os mártires da igreja primitiva, por Edições Vida Nova.
Capítulo
4

Perpétua:
Liderança e controvérsia
Ideias-chave
• O controverso movimento Nova Profecia (montanismo) se espalhou no final do século II e
pode ter impactado a história de Perpétua e Felicidade.
• A ênfase na orientação divina por meio de visões em Paixão de Perpétua e Felicidade
incomodou alguns porque sugeria uma estrutura de autoridade fora da estrutura oficial da
igreja.
• A história de Perpétua também foi problemática para alguns, pois as mulheres foram
apresentadas como figuras de autoridade.

Como vimos no capítulo anterior, A paixão de Perpétua e Felicidade foi um texto popular que
foi apresentado como exemplo de comportamento cristão. As personagens principais da história
viveram literalmente as palavras de Jesus e seu chamado para o discipulado. O verdadeiro
discipulado significa colocar o reino em primeiro lugar, mesmo à frente de nossas famílias e
nossas vidas. Esses fatores contribuíram para a popularidade contínua do texto por mais de mil e
oitocentos anos.
No entanto, nem todos os aspectos do texto eram tão incontroversos quanto o chamado ao
discipulado obediente. Havia também elementos do texto que causaram controvérsia em sua
época, pois potencialmente ameaçavam o poder de alguns oficiais da igreja e eram vistos como
teologicamente perigosos.
O surgimento da Nova Profecia
Para melhor entender a situação, precisamos voltar alguns anos na história da igreja e visitar
uma parte diferente do Mediterrâneo. Em algum momento entre 150 d.C. e 170 d.C., surgiu um
movimento dentro do cristianismo na região da Frígia, na Ásia Menor (a parte ocidental da
Turquia moderna). Tal movimento foi liderado por Montano, um homem que acreditava estar
recebendo revelações do Espírito Santo. Alguns chamaram o movimento de montanismo, a partir
do nome de seu fundador, ou catafrigianismo (“o movimento da Frígia”), mas eles se
autodenominavam a Nova Profecia.
É difícil reconstruir uma história detalhada do movimento porque muitas fontes estão perdidas
ou abertamente tendenciosas, e algumas foram intencionalmente destruídas por oponentes dentro
do cristianismo. Mas podemos entender algumas das características proeminentes da Nova
Profecia.
Como o nome pode indicar, o grupo colocou uma forte ênfase na revelação direta do Espírito
Santo. Os líderes acreditavam que estavam recebendo visões extáticas como a descrita pelo
apóstolo Paulo em 2Coríntios 12. Deus estava lhes dando uma visão direta do presente e do
futuro, e espalharam a mensagem por meio das palavras que falaram sob a direção do Espírito.
Essa foi uma graça especial — charisma — dada a eles por Deus.

Imagem 4.1: Santa cidade montanista de Pepouza.

Eles criam que a nova Jerusalém descendo do céu em Apocalipse 21 seria um lugar físico na
terra. De fato, em uma grande planície entre suas duas cidades mais sagradas, Pepouza e
Tymion, eles identificaram o lugar onde a nova Jerusalém desceria.
Porém havia mais. Porque seus profetas estavam recebendo visões diretamente do Espírito
Santo, eles não precisavam ceder à autoridade de quaisquer outros oficiais da igreja, incluindo
bispos. A autoridade espiritual foi dada a qualquer um a quem o Espírito Santo escolheu para
receber tais visões. Essa autoridade espiritual não exigia ordenação ou reconhecimento por
nenhuma autoridade humana, pelo menos não na mente dos proponentes da Nova Profecia.
Quando a Nova Profecia entrou em cena, a igreja em todo o mundo mediterrâneo já estava
apelando para a noção de sucessão apostólica. Um bispo tinha autoridade porque havia sido
ordenado por outro bispo que, por sua vez, podia traçar sua linha de ordenação até os apóstolos.
Essa linha de sucessão identificava os bispos como fonte e garantia do verdadeiro ensino e da
continuidade com a igreja do Novo Testamento, mas a Nova Profecia contestava isso. Os
profetas inspirados por Deus foram os verdadeiros sucessores dos apóstolos. Inspiração, não
sucessão, era a marca da continuidade.
Além disso, duas mulheres, Priscila e Maximila, se juntaram a Montano como líderes do
grupo. Essas mulheres também afirmavam receber mensagens proféticas de Deus. Em uma época
em que as mulheres não ocupavam muitos cargos de autoridade na igreja, esse era outro aspecto
controverso do movimento.
Finalmente, a Nova Profecia enfatizou o ascetismo, a negação dos desejos físicos e até mesmo
das necessidades do corpo como disciplina espiritual. A sexualidade era, portanto, um sinal de
inferioridade espiritual, mesmo dentro do casamento. O martírio, no entanto, foi o exemplo
máximo de abnegação por causa do evangelho.
Os opositores do movimento fizeram outras alega-
ções — particularmente adversários olhando para trás em séculos posteriores — que eram ainda
mais extremas e não podem ser confirmadas. Alguns acusaram Montano de alegar que ele
próprio era o Espírito Santo. Alguns diziam que ele era um sacerdote pagão convertido do deus
Apolo e trouxe suas práticas pagãs para o cristianismo. O santuário de Apolo em Delfos, na
Grécia, era uma fonte de oráculos por meio de uma sacerdotisa chamada Pítia. Os opositores da
Nova Profecia alegaram que Montano havia acabado de reproduzir essa prática por meio de suas
duas companheiras, acusando Priscila e Maximila de serem sacerdotisas pagãs posando como
cristãs. Alguns até disseram que o espírito que inspirou os Novos Profetas era o espírito de
Satanás, não o Espírito Santo.
Apesar das objeções ao movimento, ele se espalhou rapidamente. No ano 200 d.C., sua
popularidade havia chegado a Roma, onde alguns oficiais da igreja logo sentiram a necessidade
de combatê-la (mais sobre isso no capítulo 7). Também se espalhou para a África em 202/203
d.C., a época de Perpétua e Felicidade. Autores da época, mesmo críticos, tipicamente
apresentavam o montanismo mais como um cisma (uma divisão da igreja majoritária) do que
uma heresia (um movimento que ensina ideias em conflito direto com o evangelho).
As tentativas cristãs de suprimir a Nova Profecia continuaram por vários séculos e, finalmente,
o montanismo passou a ser tratado mais como uma heresia completa. Por volta de 230 d.C., um
grupo de líderes da igreja no leste da Frígia declarou que os batismos montanistas eram
inválidos, então aqueles que desejavam se juntar à igreja majoritária tinham que ser rebatizados.
Constantino ordenou a destruição dos escritos montanistas no início do século IV e, em 381, o
Concílio de Constantinopla declarou que os montanistas deveriam ser vistos como incrédulos. Se
eles se apresentassem para se juntar à igreja majoritária, tinham que passar por um processo de
catequização (treinamento antes do batismo), exorcismo (presumivelmente de espíritos
malignos) e então serem rebatizados.
Ainda no século IV, o imperador Justiniano demoliu algumas igrejas montanistas
remanescentes. Em 549 ou 550, João, um bispo de Éfeso, encontrou ossos que se acredita serem
os de Montano, Maximila e Priscila. Ele queimou seus restos mortais, punindo-os assim como
hereges.
Aos olhos de alguns autores posteriores, esse movimento divisivo ou possivelmente herético
havia sido devidamente eliminado. A autoridade voltou ao lugar apropriado: os bispos que
faziam parte da hierarquia eclesiástica sancionada. Eles eram a fonte da ortodoxia (“o ensino
correto”) e o elo com a verdade divina, não um grupo de novatos de uma parte atrasada do
mundo que afirmava ouvir diretamente de Deus.
A Nova Profecia e Perpétua?
Agora que sabemos um pouco mais sobre o contexto histórico dos tempos de Perpétua e
Felicidade, principalmente com referência ao movimento Nova Profecia, podemos voltar ao texto
e ver mais do que talvez tenhamos notado antes. Sugiro que o texto revela três fontes potenciais
de controvérsia, todas ligadas umas às outras e ao movimento Nova Profecia.
Visões diretas de Deus como a fonte primária de orientação e autoridade
Ao longo do texto, as personagens buscam revelações na forma de sonhos e visões.
Como mencionado no capítulo anterior, um prefácio foi adicionado ao texto, então, de fato,
lemos esse prefácio antes de começarmos a ler as palavras de Perpétua. O autor do prefácio quer
que o leitor interprete todo o texto com vários temas importantes em mente. No capítulo anterior,
examinamos um desses temas: comportamento cristão exemplar diante da perseguição. Agora
examinaremos o prefácio de maneira mais completa.
A importância da profecia é outro tema do prefácio.
O autor reconhece que alguns podem ver exemplos contemporâneos de poder carismático como
inferiores aos antigos, mas isso não deveria ser o caso. O poder de Deus era tão grande como
sempre, e as obras do Espírito Santo eram tão profundas quanto qualquer coisa que Deus já havia
feito.
O autor parafraseia Atos 2.17, que é em si um eco de Joel 2.28: “Nos últimos dias, diz Deus,
derramarei meu Espírito sobre todas as pessoas. Seus filhos e filhas profetizarão, seus jovens
terão visões, seus velhos terão sonhos”.
Perpétua e seus companheiros estão vivendo naqueles “últimos dias”, então suas vidas são
evidências desse derramamento do Espírito. Isso dá grande importância à história delas: “Nós,
que reconhecemos e respeitamos não apenas essas novas profecias, mas também novas visões
como sendo igualmente prometidas a nós — também consideramos todos os outros poderes do
Espírito Santo como uma provisão para a igreja. Este mesmo Espírito foi enviado para
administrar todos os seus dons a todos, conforme o Senhor os distribuiu a cada um” (Pass. Perp.
prefácio).
Com uma alusão ao ensino de Paulo de que o Espírito dá todos os dons espirituais (1Co 12.11;
cf. Rm 12.6), o autor destaca a obra contínua do Espírito. Essa obra inclui “não apenas essas
novas profecias, mas também novas visões”. Alguns estudiosos leem isso como uma referência
ao movimento Nova Profecia. Se isso estiver correto, então o autor do prefácio quer que os
leitores vejam toda a história de Perpétua através dessa lente. A história de Perpétua, de alguma
forma, deve apoiar e promover as crenças e práticas dos montanistas, e faz isso de várias
maneiras importantes.
As visões desempenham um papel significativo ao longo dessa história. Uma visão na prisão
mostra a Perpétua que ela está prestes a morrer como mártir, não escapando da punição. No meio
de um momento de oração, seu irmão morto vem à mente e ela começa a orar por ele. Naquela
noite, em sonho, ela o vê sofrendo, mas depois de vários dias de intensa oração, ela tem outra
visão dele, agora aliviado e alegre. Sua batalha iminente com Satanás é mostrada a ela em um
sonho sobre uma batalha com um gladiador egípcio. Finalmente, um dos outros mártires,
Saturus, tem uma visão dos dois sendo levados para o céu por quatro anjos. O Espírito Santo,
portanto, revela todos os pontos importantes da trama da história para os mártires por meio de
visões.
Enquanto as visões estão na frente e no centro da narrativa, o que está ausente também é
notável: as Escrituras.
Além da paráfrase de Atos 2 e da alusão à teologia paulina no prefácio, não há outras
referências bíblicas em qualquer parte do texto.
Isso não quer dizer que a Escritura não fosse importante para esses cristãos, mas não era uma
característica proeminente. Isso era diferente de outros relatos de martírio, que normalmente
incluem várias alusões às Escrituras. Muitos apresentam o sofrimento dos mártires como
imitações da história de Jesus (por exemplo, Atos de Pedro e Atos de Paulo) e/ou dos apóstolos
(por exemplo, Martírio de Policarpo e Atos de Cipriano), mas não há nada disso aqui.
O Espírito Santo, por meio de revelação direta, é a fonte de autoridade. Não há necessidade de
nada mais para ficar entre os mártires e Deus. Essa ideia se encaixa bem com as crenças do
movimento Nova Profecia.
Autoridade espiritual distribuída entre muitas pessoas
Porque o Espírito pode revelar coisas diretamente aos cristãos, qualquer um pode agir e falar
em nome de Deus. No contexto de A paixão de Perpétua e Felicidade mais especificamente, isso
significa que todo o poder espiritual não pertence ao clero ordenado. Na verdade, nesse texto, a
maior parte não pertence a eles.
Perpétua menciona dois diáconos, Tertius e Pomponius, que estavam ministrando aos futuros
mártires enquanto estavam na prisão. Pomponius serve como mensageiro entre Perpétua e seu
pai, e em uma de suas visões ele fica com ela na arena — mas como igual a ela, não superior.
Presumivelmente, um desses diáconos batiza Perpétua quando ela está na prisão, mas isso nunca
é descrito. Esse ato de autoridade clerical sobre ela é simplesmente deixado de fora da história.
Apenas um bispo aparece no relato. Um certo Optatus, talvez o bispo de Cartago, aparece no
final do texto na visão de Saturus, mas ele está na visão porque está com problemas. Ele está em
conflito com um presbítero (ancião) chamado Aspasius, que é um “mestre” na igreja local. O
bispo e o ancião pedem aos futuros mártires que ajudem a resolver sua disputa: “Eles se jogaram
aos nossos pés e pediram: ‘Reconcilia-nos! Pois você se foi e nos deixou em estado de divisão’”
(Pass. Perp. 4). A visão não revela a origem específica da controvérsia, mas isso não afeta a
natureza dramática da cena. Em vez da recém-batizada Perpétua e do leigo Saturus se curvarem
diante do bispo, o bispo e o ancião caem a seus pés para implorar por ajuda.
O significado é claro: Perpétua e Saturus, prestes a serem mártires, exercem autoridade
espiritual sobre os membros da hierarquia da igreja porque têm o poder do Espírito Santo. Isso,
porém, não muda a surpresa que os mártires sentem diante da situação: “Vocês não são nosso
bispo e nosso presbítero? Como vocês podem se lançar aos nossos pés?”. Os mártires então se
abaixam ao nível do bispo e do presbítero, e Perpétua começa a falar com eles. O poder reside
nela, pois ela se rebaixa ao nível deles.
Então os anjos, claramente irritados, dizem a Optatus e Aspasius que deixem os mártires em
paz e vão resolver suas diferenças por conta própria. Eles os expulsam e repreendem a Optatus
por não liderar com eficácia. As pessoas são indisciplinadas e divididas por causa de várias
controvérsias — como torcedores discutindo sobre times diferentes (sim, os anjos usam
exatamente essa analogia) — e a culpa é do bispo.
Os mártires são a fonte confiável de influência espiritual. O bispo e o ancião são os que
causam e permitem a divisão (cisma), enquanto os mártires são os que podem restaurar a
unidade.
Uma breve declaração anexada ao final do texto reafirma esse ponto. Os mártires são
“supremamente corajosos e abençoados! Verdadeiramente fostes chamados e escolhidos para a
glória de nosso Senhor Jesus Cristo!” São “histórias exemplares para a edificação da igreja” e
provam que “o mesmo Espírito Santo está sempre em ação, mesmo agora” (Pass. Perp. 6). Esse
texto, portanto, desafia a estrutura de poder oficial e identifica aqueles capacitados pelo Espírito
Santo, quem quer que sejam, como tendo autoridade. Como o vento, o Espírito se move para
onde quer (Jo 3.8).
A difusão do carisma colocou as mulheres em papéis de destaque
Antes de desenvolvermos a questão teológica suscitada no ponto acima, vamos começar
reafirmando uma observação cultural geral. Trata-se de um texto do mundo antigo que trata
principalmente de mulheres e no qual a mulher tem a voz principal, o que era bastante incomum
naquele período. Outros textos com mulheres como personagens importantes existiam, mas um
texto com mulheres nos papéis principais era raro, e era extremamente raro encontrar algo escrito
por uma mulher.
Outros mártires nomeados também aparecem nesse texto. Alguns são até mencionados no
início: Revocatus, Saturninus e Secundulus. As terminações de seus nomes (latim — us) nos
dizem que são do sexo masculino. Mas eles imediatamente desaparecem em segundo plano como
personagens menores, enquanto as duas mulheres da lista inicial do texto (Perpétua e Felicidade)
passam para o centro das atenções. Saturus (outro homem) e alguns outros aparecem mais tarde
como companheiros de Perpétua, mas nunca a ofuscam. Até o bispo Optatus se ajoelha diante
dela.
No final do texto também descobrimos que Perpétua é mais forte e corajosa que seu carrasco.
Depois que os animais selvagens não conseguem matar Perpétua, um gladiador é enviado para
terminar o trabalho com uma espada. No entanto, ele não tem coragem de fazer a ação até que
Perpétua assume: “Então ela mesma guiou a mão vacilante do jovem e inexperiente gladiador até
sua garganta. Talvez possamos dizer que uma mulher tão grande, que era temida pelo demônio
dentro do carrasco, não poderia ser morta a menos que ela mesma o permitisse” (Pass. Perp. 6).
Essa jovem, mãe de uma criança, mostra mais coragem na arena do que um assassino treinado.
Até o demônio dentro de seu carrasco tem medo dela. Essa é certamente uma imagem
contracultural naquela época.
Agora chegamos ao ângulo teológico da ênfase em personagens femininas, particularmente
Perpétua. E isso nos traz de volta à questão da Nova Profecia.
Ainda há debates acalorados sobre a interpretação de certas passagens do Novo Testamento no
que se refere ao papel das mulheres na igreja. Não tenho a intenção de mergulhar no meio desses
debates modernos, então falarei apenas descritivamente sobre o que sabemos a partir desse
período específico da história. Isso aparecia a partir da evidência de que, no tempo de Perpétua,
pelo menos, parecia que os homens normalmente ocupavam as posições de autoridade na igreja.
Novamente, não estou dizendo o que deve ou não acontecer na igreja hoje, mas se não
reconhecermos a realidade do mundo de Perpétua e Felicidade, também deixaremos de
reconhecer a mensagem provocativa desse texto.
O Espírito não apenas capacita outras pessoas além de um bispo ou presbítero; o Espírito
capacita duas jovens, notadamente Perpétua e Felicidade. Lembre-se de que Perpétua é a
personagem principal na cena da tentativa de reconciliação envolvendo Optatus e Aspasius.
Saturus tem a visão, mas Perpétua é quem fala com eles enquanto tentam resolver seu conflito.
Ela exibe autoridade carismática.
Isso sugere ainda uma possível conexão com o movimento Nova Profecia, no qual Priscila e
Maximila afirmam receber visões ao lado de Montano. Os montanistas criam que o Espírito
Santo concede dons no tempo presente tão livremente quanto em qualquer momento no passado,
e o autor do prefácio do texto enfatiza que os dons espirituais nos últimos dias são dados a todos.
Não há distinção ou hierarquia em Atos 2 ou Joel 2 com base em idade, sexo ou condição social.
Perpétua é da classe alta, enquanto Felicidade é uma escrava, mas o Espírito Santo capacita as
duas.
O legado de Perpétua e Felicidade
Não sabemos o que provocou a perseguição aos cristãos na África no início do século III, mas
conhecemos algumas das vítimas. Esses mártires seguiram corajosamente as palavras de Jesus
sobre o custo do discipulado. Eles colocaram sua fé à frente de suas famílias, de suas vidas e
foram voluntariamente para a morte. Por isso, foram apresentados como exemplos de coragem e
a prova de que o Espírito Santo estava tão ativo e poderoso como sempre.
A história de Perpétua e Felicidade também nos conta algumas outras coisas sobre a igreja na
África naquele momento. Nem todos tinham a mesma ideia sobre como a igreja deveria ser
administrada ou quem deveria dirigi-la. Havia pessoas em ofícios nomeados da igreja que
reconhecemos: bispo, presbítero e diácono. Mas os mártires representavam uma fonte de
autoridade espiritual fora da hierarquia da igreja. Eles foram inspirados diretamente pelo Espírito
Santo, então o Espírito era quem decidia quem estava no comando. O carisma (poder espiritual)
poderia ser distribuído a qualquer um, não apenas ao clero ordenado. Perpétua e Felicidade
foram destacadas de um grupo de mártires, mostrando que as mulheres também podiam possuir
essa autoridade.
Sugeri que a discussão sobre autoridade no texto está ligada ao crescimento do movimento
Nova Profecia, que veio da Ásia Menor para a África. Alguns estudiosos contestam esse ponto, e
algumas traduções foram até alteradas para tornar menos óbvio o potencial conflito com o clero
ordenado. Mas não podemos ignorar que, de acordo com o texto, a estrutura de liderança da
igreja na África tinha um problema significativo, pois alguns cristãos da comunidade
argumentavam que os mártires, e não os bispos, possuíam o poder do Espírito de maneira
especial e eram aqueles que poderiam e deveriam restaurar a ordem e a unidade.
Como a história nos ensina, a questão de saber se a autoridade religiosa deve ser baseada na
estrutura da igreja ou no poder carismático nunca foi resolvida. Essa questão surge novamente no
tempo do bispo Cipriano de Cartago, como veremos mais adiante neste livro, e está no centro de
algumas divisões entre os cristãos até hoje.
Na época de Perpétua, esse conflito foi tão vibrante quanto em qualquer período.
Capítulo
5

A vida e os tempos
de Tertuliano
Ideias-chave
• Tertuliano era um convertido ao cristianismo altamente instruído, cujo pensamento
teológico estava bem à frente de seu tempo.
• Tertuliano foi um defensor e possivelmente um membro do movimento Nova Profecia
depois que ele chegou ao norte da África.
• Os escritos de Tertuliano mostram tanto o foco externo de um apologeta quanto o foco
interno de um teólogo.

Tertuliano é um dos mais importantes teólogos cristãos primitivos, mas muitas pessoas sabem
pouco ou nada sobre ele. Neste capítulo, exploraremos sua vida e contexto e, nos próximos dois
capítulos, aprenderemos mais sobre sua teologia e sua apologética.
Tertuliano viveu aproximadamente de 145 d.C. a 220 d.C. Ele veio de Cartago, mas não
nasceu em uma família cristã. Ele cresceu durante um período em que o cristianismo não era
legalizado. Não foi constantemente reprimido, como vimos, mas houve casos de perseguição
violenta suficientes para que Tertuliano estivesse ciente dessa realidade. Mesmo antes de
Perpétua e Felicidade, cristãos estavam sendo mortos em Cartago, então, quando Tertuliano se
converteu ao cristianismo, ele entendeu os desafios e os riscos.
Eusébio de Cesareia, um historiador da igreja que escreveu no início do século IV, descreve
Tertuliano como “muito hábil no direito romano e um homem de alta posição” (Hist. eccl. 2.2.4).
Elementos das formas de pensar e argumentar de Tertuliano soam como a abordagem de um
advogado (mais sobre isso no capítulo 7), e por isso muitos estudiosos concordam que sua
formação foi em direito. Uma tradição afirma que seu pai era um alto funcionário do governo, o
que teria dado a Tertuliano acesso a uma educação de elite.
Por razões que não sabemos, Tertuliano torna-se cristão. Os historiadores estimam que isso
ocorreu mais tardar em 197 d.C. (apenas cerca de cinco anos antes das mortes de Perpétua e
Felicidade). Em seguida, ele se casa com uma mulher que também é cristã. Isso sinaliza um
grande afastamento do curso anterior de sua vida, mas é assim que ele entende que a fé funciona:
“Os cristãos são feitos, não nascem”, escreveu ele uma vez (Apol. 18).
A vida de Tertuliano é cercada por outros mistérios. Ele já teve uma posição oficial e ordenada
na igreja? Pela maneira como é identificado em seus próprios escritos e nos escritos posteriores
sobre ele (incluindo Eusébio), sabemos que ele não era um bispo. Ele é simplesmente chamado
de Tertuliano, não “Tertuliano de…”. Podemos comparar essa designação com a de outras
figuras cristãs famosas. Mais adiante neste livro discutirei Cipriano de Cartago e Agostinho de
Hipona, ambos bispos. Outros importantes teólogos cristãos primitivos incluíam Clemente de
Alexandria, Irineu de Lião, Atanásio de Alexandria e Ambrósio de Milão, todos bispos.

Imagem 5.1: Restos de uma basílica cristã em Cartago (Damous el Karita).

Tertuliano foi ministro ou presbítero? Alguns, a julgar pelos comentários de outros autores,
como Jerônimo (Vir. III. 53.4), especulam que ele era, mas não há evidências claras de qualquer
maneira. Talvez ele fosse um leigo educado com alguma responsabilidade de liderança na igreja
local, uma categoria que sabemos que existia na igreja africana naquela época.
Tertuliano também não é chamado de santo. Nem a igreja ocidental nem a igreja oriental o
reconhecem como santo. O apóstolo Paulo usa o termo “santo” para descrever todos os crentes
(por exemplo, Rm 1.7; 1Co 1.2; 2Co 1.1), mas com o tempo alguns começaram a aplicar o termo
apenas a certos crentes que foram especiais por sua importância teológica ou institucional, ou
talvez porque morreram como mártires. Tertuliano aparentemente não se enquadra em nenhuma
dessas categorias.
As razões pelas quais Tertuliano nunca foi elevado à condição de santo não são totalmente
claras, mas existem algumas pistas. Discutirei mais essas questões nos dois capítulos seguintes,
de modo que apresentarei aqui apenas algumas reflexões introdutórias. As igrejas orientais de
língua grega desconheciam Tertuliano ou optaram por ignorar seu trabalho, então ele não era
ninguém especial para elas. Isso é lamentável, porque se tivessem lido seu trabalho, poderiam ter
economizado muito tempo e problemas nos concílios da igreja. (Aliás, sabemos que Tertuliano
sabia grego porque produziu versões gregas de várias de suas obras.)
Como aprenderemos no capítulo 7, a fórmula teológica sobre Cristo que a igreja grega lutou
para criar, defender e adaptar entre 325 e 381 (no Credo Niceno) é notavelmente semelhante ao
que Tertuliano desenvolveu antes de 220 d.C. Assim, a igreja grega estava mais de um século
atrás de Tertuliano em alguns assuntos de teologia, mas suas contribuições nunca foram
reconhecidas no Oriente.
No Ocidente, a percepção de Tertuliano foi influenciada pelo fato de ele criticar a igreja em
Roma. No capítulo 6 veremos que Tertuliano pode até ter acusado o bispo romano na época de
ser um herege. Tertuliano não era amigo de Roma, e a igreja romana nunca fez dele um santo. De
fato, a Enciclopédia Católica do início do século XX acusa Tertuliano de “escrever de forma
mais virulenta contra a Igreja do que mesmo contra pagãos e perseguidores”.3
Suas críticas à igreja romana são o resultado de interações puramente literárias ou do tempo
passado em Roma? Mais uma vez, os historiadores podem apenas especular. Pequenas pistas nos
escritos de Tertuliano sugerem que ele pode ter estado em Roma em algum momento. Talvez sua
antipatia por alguns elementos da igreja romana venha da experiência pessoal na cidade. Não
sabemos ao certo. Infelizmente, Tertuliano nunca nos conta essa parte de sua autobiografia.
Tertuliano, o montanista?
O que tornou Tertuliano tão negativo em relação à igreja em Roma? Uma das principais teorias
é que Tertuliano não gostava de Roma e de seus bispos porque a igreja romana se opunha à Nova
Profecia, um movimento ao qual o próprio Tertuliano pertenceria mais tarde. Devemos dizer de
antemão que essa teoria está aberta ao debate, então isso de forma alguma é um caso sem
complicações. (Você deve estar percebendo agora que muitas teorias sobre o cristianismo
primitivo estão abertas ao debate, principalmente porque as fontes nas quais confiamos estavam
abordando as questões e assuntos de seu tempo, não do nosso.) As fontes que você encontra
podem falar sobre Tertuliano “deixando a igreja” e juntando-se aos montanistas, mas não havia
membros da igreja naqueles dias — pelo menos não da maneira que pensamos sobre isso agora.
Muitos cristãos da época viam o movimento da Nova Profecia como parte da igreja, mesmo
que fosse um pouco diferente de outras expressões. Por exemplo, Irineu, o bispo de Lião e um
defensor da teologia ortodoxa, defendeu a Nova Profecia como uma expressão legítima do
cristianismo. Irineu é conhecido como um dos teólogos mais importantes do cristianismo
primitivo. Ele lutou contra as heresias no final do século II e defendeu a autoridade de quase
todos os textos que temos no Novo Testamento. (Alguns estudiosos modernos argumentam que
não havia uma única ortodoxia [“ensino correto”] no cristianismo primitivo. No entanto, eles têm
que lidar com Irineu.)
Da mesma forma, Cipriano de Cartago, o bispo mais amado e importante da igreja africana
primitiva, falou de Tertuliano em termos brilhantes em meados do século III. Ele não hesitou em
relação à ortodoxia de Tertuliano ou sua conexão com a Nova Profecia.
Portanto, não acho que houvesse realmente algum problema com Tertuliano “deixando a
igreja”. No entanto, vale a pena considerar sua possível conexão com a Nova Profecia, pois isso
pode nos ajudar a entender melhor sua teologia, além de poder tê-lo levado, de fato, a estar bem
à frente de seu tempo em sua pneumatologia.
Devemos explorar por alguns momentos a conexão entre Tertuliano e a Nova Profecia — e
possivelmente até entre Tertuliano e A paixão de Perpétua e Felicidade.
No capítulo 4 examinamos o movimento da Nova Profecia, cujos adeptos eram chamados de
montanistas. Sua teologia e práticas eram controversas porque seus líderes acreditavam que sua
autoridade vinha de revelações diretas do Espírito Santo. Montano, Priscila e Maximila não
faziam parte da hierarquia da igreja estabelecida, e eles não achavam que precisavam. Entendiam
que seu direito de ensinar vinha diretamente do Espírito, não do reconhecimento por outro
mestre humano. Além disso, os montanistas tinham mulheres ensinando e liderando, o que não
era popular entre outros cristãos, e encorajavam formas de ascetismo (autonegação) que outros
achavam muito extremas.
A Nova Profecia estava ganhando força no norte da África na mesma época em que Tertuliano
se converteu ao cristianismo, e aparentemente o rigor do montanismo o atraiu. Tertuliano
expressou preocupação de que outros na igreja fossem muito brandos em questões morais. Sobre
a questão do novo casamento, que ele discute em Sobre a monogamia e Sobre a modéstia, ele
ensina que a nova lei de Cristo elimina as disposições do Antigo Testamento para o divórcio. Ele
rejeita qualquer noção de novo casamento para um cristão, mesmo que o primeiro cônjuge tenha
morrido. Ele argumenta que mesmo algumas mulheres pagãs honram seus maridos mortos
permanecendo celibatárias, então os cristãos deveriam poder fazer o mesmo. A única maneira de
se casar novamente é se o casamento anterior terminou antes de a pessoa se tornar cristã. (Como
uma pessoa é uma nova criação na conversão, ela efetivamente começa de novo quando se trata
de casamento.) Aqueles que acreditam no contrário são culpados de adultério. Seus pontos de
vista sobre isso diferem daqueles sustentados por muitos outros, incluindo líderes da igreja
romana. O rigor ascético do montanismo claramente atraiu Tertuliano.
Em alguns de seus escritos, Tertuliano menciona explicitamente a Nova Profecia e suas visões.
Sua defesa mais direta do movimento — uma obra chamada Sobre o êxtase — não sobreviveu.
Talvez não tenha sido preservada por causa de sentimentos antimontanistas entre muitos na
igreja. Mas outras fontes também refletem sua postura pró-montanista. Em Sobre o jejum:
Contra os crentes carnais, Tertuliano sai com as duas armas apontadas contra cristãos
preguiçosos e indisciplinados. Eles não apenas se casam livremente, mas também não jejuam.
Ele explicitamente vincula o novo casamento à gula porque ambos se concentram em satisfazer
os desejos da carne.
Ainda pior do que isso, escreve Tertuliano, seus oponentes cristãos criticam aqueles que
seguem os mandamentos das Escrituras sobre negar a carne. Esse é o verdadeiro cerne de sua
crítica aos montanistas. Esses cristãos carnais, diz ele:
causam polêmica sobre o Paráclito.4 É por isso que as Novas Profecias são rejeitadas. Não é que Montano, Priscila e
Maximila preguem outro Deus, ou que de alguma forma desconectem Jesus Cristo [de Deus], ou que minem qualquer
ensinamento sobre nossa fé e esperança. O problema é que eles ensinam claramente que se deve jejuar com mais
frequência do que se deve casar. (Jejun. 1)
As acusações contra a teologia da Nova Profecia, argumenta Tertuliano, não têm mérito. São
acusações forjadas para mascarar a real motivação dos críticos. Esses críticos são fracos em suas
disciplinas espirituais, então a dedicação dos montanistas os faz parecer ruins, como deveria.
Esses pseudocristãos autoindulgentes reagem tentando minar os montanistas como podem, até o
ponto de acusar os montanistas de serem inspirados pelo espírito de Satanás, não pelo Espírito
Santo.
Tertuliano responde com uma pergunta perspicaz: “Como é possível que ele [o espírito de
Satanás] possa convencer as pessoas a ações dignas de nosso Deus e ordenar que elas sejam
oferecidas a ninguém menos que nosso Deus?”. Ele então ataca os críticos: “Ou você deve
argumentar que o diabo trabalha com nosso Deus, ou você deve dizer que o Paráclito é Satanás”
(Jejun. 11). Claramente, ninguém quer dizer nenhuma dessas coisas, então a acusação de que os
montanistas são inspirados por um espírito imundo deve ser posta de lado. Tertuliano encerra seu
argumento voltando à questão do autocontrole. Os mesmos bispos que acusaram os montanistas
de heresia se envolvem em “porções dobradas” de carne e bebida. Assim, eles são culpados de
gula e, portanto, não estão em posição de criticar ninguém por motivos morais.
Em Sobre o jejum e em vários outros textos, Tertuliano defende a Nova Profecia. Em
particular, ele está irritado com o que ele pensa serem ataques não apenas a Montano e outros,
mas, mais seriamente, ao Espírito Santo. Como a citação acima afirma, na mente de Tertuliano
qualquer ataque à Nova Profecia é um ataque a Deus. O Espírito Santo por meio dos profetas do
passado e do presente tem a tarefa de conduzir as pessoas a Deus. Dizer que a Nova Profecia está
afastando as pessoas de Deus é, na verdade, dizer que o Espírito Santo está afastando as pessoas
de Deus.
Tertuliano acreditava estar defendendo a honra do Espírito Santo quando defendeu os
montanistas. A preguiça e a frouxidão dos críticos mostravam que eles não estavam em posição
de julgar os outros.
Anteriormente mencionei uma possível conexão entre Tertuliano e Perpétua, então terminarei
este capítulo com uma nota de rodapé histórica e uma provocação. Como vimos nos capítulos
sobre Perpétua, um editor anônimo acrescentou uma introdução e conclusão teológica à Paixão
de Perpétua e Felicidade. Esses acréscimos declaram que as mártires foram inspirados por
“novas profecias” e devem ser modelos de abnegação para os outros. Essas seções não têm um
autor nomeado, mas uma teoria sugere que elas foram escritas por ninguém menos que o próprio
Tertuliano.
Tertuliano como apologeta e teólogo
Tertuliano é praticamente inigualável na história cristã porque é um dos apologetas mais
importantes de seu tempo e um de seus teólogos mais importantes.
Nos próximos dois capítulos vamos vê-lo em ambos os papéis. Mas antes de mergulharmos
nesses detalhes, faremos uma pausa e consideraremos o trabalho de um apologeta versus a
função de um teólogo. Esses papéis exigem dois tipos diferentes de escrita com objetivos e
abordagens diferentes. Para essa discussão, tomo emprestado ideias do trabalho de James
Papandrea, que escreveu extensivamente sobre o desenvolvimento da teologia cristã primitiva.5
Mencionei brevemente os apologetas no capítulo 2, e aqui voltaremos a eles com mais
profundidade. A apologética ainda é um assunto de estudo em muitas escolas, faculdades e
seminários cristãos, por isso é útil saber mais sobre suas raízes antigas.
Os apologetas tinham um público externo em mente. Eles não estavam escrevendo para
cristãos, pelo menos não principalmente. Os cristãos podem se beneficiar da escrita e se sentirem
confirmados em sua fé, mas os apologetas estavam falando principalmente aos não cristãos sobre
o cristianismo.
Uma das tarefas mais importantes para um apologeta é estabelecer uma conexão com o
público, e isso requer uma certa maneira de falar e o uso de determinadas estratégias. Um
apologeta não pode ser combativo logo de cara. Em vez disso, os apologetas primeiro procuram
um fundamento ou entendimento comum, que podem então usar como ponto de partida para a
conversa.
Um apologeta tem que concordar em jogar pelas regras do público. O que quer que eles
valorizem é o que o apologeta deve valorizar, pelo menos no início. O apologeta pode esperar
mudar alguns dos valores, suposições e perspectivas do público — mudar as regras do jogo, se
você quiser — mas isso não pode acontecer no início. Se o apologeta ofender o público no início,
então a causa pode ser perdida.
Considere o exemplo do apóstolo Paulo quando ele vai a Atenas em Atos 17.16-34. Ele vai à
cidade e não começa imediatamente a ensinar teologia cristã. Em vez disso, ele primeiro passa
muito tempo observando os muitos templos e santuários para deuses e deusas. Ele procura um
ponto de conexão e o encontra em um santuário dedicado a um Deus desconhecido. Ele afirma a
devoção religiosa dos atenienses, mas depois diz que pode contar a eles sobre esse Deus
desconhecido. Paulo pega o que eles já aceitaram e tenta transformar isso em uma oportunidade
para o evangelismo.
Em termos dos primeiros apologetas cristãos, isso muitas vezes significa apelar à filosofia para
mostrar a razoabilidade do cristianismo. Uma geração antes de Tertuliano, um apologeta
chamado Justino (Justino Mártir) adota exatamente essa abordagem. Em O diálogo com Trifão,
ele começa falando sobre sua busca passada pela verdade. Ele afirma (e estou parafraseando):
tentei todos os tipos de filosofias. Tentei todas elas. Cite uma filosofia, e eu tentei. Eu estava
procurando a verdade mais elevada, e somente quando cheguei ao cristianismo encontrei a
forma mais elevada de verdade. Para Justino, a filosofia é o caminho que o leva à verdade de
Deus, que é, em última análise, superior a qualquer filosofia, superior a qualquer sabedoria
humana.
Seu argumento é simples. Se seu público também valoriza a filosofia e a verdade (ele supõe
que sim), então eles também passarão a crer no cristianismo: “A razão dirige aqueles que são
verdadeiramente piedosos e filosoficamente formados a honrar e amar apenas a verdade e rejeitar
as crenças tradicionais se são considerados inúteis” (1 Apol. 2). A escolha clara para seus leitores
é adotar a filosofia cristã.
Para ser honesto, Tertuliano acha mais difícil do que Justino reconhecer muita coisa boa na
filosofia pagã. Ele apela para a autoridade da filosofia e literatura grega e romana que é assumida
por seu público não cristão, mas então ele a vira contra si mesma. Em sua Apologia, Tertuliano
tenta mostrar que as crenças e práticas pagãs se contradizem e que ninguém vive de acordo com
os ensinamentos de seus próprios filósofos e autores. Ele acaba com as suposições de seu público
tentando mostrar que elas são inconsistentes, mas começa por se envolver com ideias sobre as
quais têm autoridade. Ele não começa com um ataque, porque espera convencer seu público a
aceitar sua maneira de pensar. Depois de enfraquecer a cosmovisão pagã, ele então constrói a
alternativa cristã.
Uma observação final sobre os apologetas é importante: eles não citam muito a Escritura
porque os leitores não cristãos não sabem ou não se importam com o que ela diz. Se a Escritura
não tem autoridade para o público, citá-la não fará nada para avançar com o argumento.
Os teólogos têm uma tarefa diferente porque estão escrevendo para um público interno, um
público cristão. Eles geralmente estão tentando convencer as pessoas não sobre o cristianismo
como um todo, mas sobre certas crenças ou práticas dentro do cristianismo. Um teólogo está
tentando dizer que certas coisas são verdadeiras sobre Deus ou Cristo ou o Espírito Santo ou que
são verdadeiras sobre a igreja ou sobre como a igreja deve viver no mundo. Trata-se de uma
conversa interna.
Os teólogos frequentemente apelam para as Escrituras ao apresentar seus argumentos porque
supõem que seu público valoriza as palavras da Bíblia. Por exemplo, na obra Sobre o jejum, de
Tertuliano, ele não diz apenas que os cristãos devem jejuar. Ele dá diversos exemplos bíblicos,
quase ao ponto de esgotar o leitor. Por quê? Porque ele está tentando mostrar que qualquer um
que valorize as Escrituras deve pensar da mesma maneira que ele sobre esse assunto.
Muitos teólogos cristãos primitivos tendiam a ser céticos em relação à filosofia porque era
vista como um modo de pensar secular, até mesmo pagão — tentando chegar à verdade usando a
sabedoria humana em vez de apelar para a sabedoria divina. De fato, muitos teólogos antigos,
incluindo Tertuliano, alertam que tentar misturar filosofia com teologia leva à heresia. Quando a
razão humana é feita para ser o bem maior e o padrão supremo para a verdade, então o ensino e
as conclusões sempre errarão o alvo.
Exploraremos mais essas ideias no próximo capítulo.
No geral, Tertuliano é uma figura complexa em um cenário desafiador. Às vezes, ele foi
acusado de ser muito direto e agressivo, e talvez ele seja em alguns pontos, mas devemos ter em
mente o que está em jogo para ele. Tertuliano está tentando explicar e defender o cristianismo em
uma época em que cristãos (como Perpétua) poderiam ser mortos apenas por serem cristãos (ver
capítulo 6). E ele está envolvido em debates dentro do cristianismo sobre ideias teológicas
fundamentais, incluindo a natureza da Divindade e a pessoa e obra do Espírito Santo (ver
capítulo 7).

3 J. Chapman, “Tertullian”, em The Catholic Encyclopedia (New York: Appleton, 1912), 14:521.
4 “Paráclito” (paraklētos) é uma palavra grega que pode ser traduzida como “ajudante”, “consolador” ou “advogado”. Jesus usa
esta palavra para descrever o Espírito Santo várias vezes no Evangelho de João (14.16, 26; 15.26; 16.7).
5 Ver especialmente James L. Papandrea, Reading the Early Church Fathers (New York: Paulist Press, 2012).
Capítulo
6

Tertuliano defendendo a fé: Apologética e hereges


Ideias-chave
• Tertuliano apresentou argumentos lógicos em suas obras, mas ainda sustentou que alcançar
as mais altas verdades sobre Deus não poderia ser feito por meio da filosofia ou do
raciocínio humano.
• Como apologeta, Tertuliano argumentou que o cristianismo refletia uma compreensão
antiga e superior, enquanto a filosofia e a religião pagãs eram inferiores e irracionais.
• Escrevendo como teólogo, Tertuliano argumentou que as tentativas de argumentar sobre
nosso caminho para Deus por meio da filosofia, em vez de pelas Escrituras, levam à
heresia.

No capítulo anterior, examinamos o ser de Tertuliano, e encerrei discutindo seu trabalho como
apologeta (escrevendo para não cristãos) e teólogo (escrevendo para cristãos sobre temas
cristãos). Aqui veremos Tertuliano em ação em ambos os papéis por meio de alguns de seus
escritos.
O fio condutor deste capítulo é a desconfiança de Tertuliano em relação à filosofia. Ele não é
anti-intelectual — muito pelo contrário —, mas não confia na filosofia como o caminho para
ajudar alguém a encontrar e compreender o bem supremo e a verdade suprema. A convicção de
Tertuliano de que a filosofia nunca pode levar uma pessoa à verdade última informa suas obras
apologéticas e seus escritos contra os hereges.
Se refletirmos por um momento em nosso próprio contexto, notaremos que as pessoas ainda
tentam encontrar sua verdade última por meio de algum tipo de sistema filosófico. O Iluminismo
europeu deu origem a um “culto da razão”, a ideia de que a sabedoria e o entendimento humanos
podem ser a fonte última da verdade. O culto da razão diz que porque não podemos entender
Deus por meio de nossas mentes racionais, Deus não pode existir. Ou, mesmo que Deus exista,
certamente não pode saber nada que não possamos saber.
Essa crença aparece, por exemplo, no brasão da Universidade de Harvard. Harvard foi fundada
em 1636 para treinar o clero, e de 1643 a 1650 o brasão apresentava um escudo com três livros.
Eles tinham a palavra latina veritas (“verdade”) escrita neles — VE no primeiro livro, RI no
segundo e TAS no terceiro. Os dois primeiros livros estavam abertos para o espectador, enquanto
o terceiro livro estava virado para baixo, de modo que o TAS estava de fato na parte de trás do
livro. Quais eram esses três livros? Os dois primeiros representavam o Antigo e o Novo
Testamento, os dois “livros” da verdade que haviam sido revelados por Deus. O terceiro livro
não podia ser lido, porque continha a verdade conhecida apenas por Deus, os mistérios divinos
de Deus.
Os seres humanos podem conhecer alguma verdade, mas não toda.
Em 1847 Harvard mudou seu selo. Sob a influência do Iluminismo, a universidade concluiu
que não havia nenhuma verdade disponível para Deus que não pudesse ser acessada também por
homens, então o terceiro livro foi entregue para ser aberto ao espectador. O atual selo de Harvard
apresenta três livros abertos. A sabedoria humana é a verdade suprema.
Tertuliano discordaria de Harvard. Se a filosofia é sua verdade suprema, ele diria, você está
enganado e mal orientado. Isso se deve à corrupção da razão humana. Por sermos criaturas
caídas, nossa razão é distorcida e limitada. Como pode um ser humano afirmar ter uma
compreensão completa de Deus?
E como uma pessoa pode alegar falar sobre os assuntos eternos de Deus, ou ver as coisas da
perspectiva de Deus?
Para seres finitos, isso é impossível. A razão é uma capacidade humana, e Tertuliano a usa em
seus escritos, mas é sempre inferior aos pensamentos de Deus e, em última análise, não pode nos
levar a Deus. Para Tertuliano, se queremos chegar a Deus, temos que passar pela igreja. Não
podemos chegar a Deus diretamente por meio de raciocínios e especulações filosóficas sobre
Deus. Se queremos entender Deus, se queremos ter um relacionamento com ele, devemos passar
pela igreja. Por quê? Porque a igreja tem acesso à verdade que é mais elevada do que qualquer
filosofia.
Uma das perguntas mais famosas de Tertuliano é esta:
“O que Atenas tem a ver com Jerusalém?” (Praescr. 7). Atenas era o famoso centro da filosofia
grega antiga. Foi o lar da Academia, a escola filosófica fundada por Platão. Jerusalém era o
centro da vida e da fé para o judaísmo, e foi o ponto de partida do cristianismo, o lugar onde
Jesus morreu e ressuscitou. Efetivamente, Tertuliano está perguntando: “O que o centro da
filosofia grega tem a ver com o centro de nossa fé? Que acordo existe entre a academia e a
igreja?”.
Para Tertuliano, somente a igreja, e não a academia, pode conduzi-lo ao bem maior. Sua
suspeita de dependência da filosofia aparece em vários de seus trabalhos, e veremos dois
exemplos — um trabalho apologético (Apologia) e um trabalho teológico (Prescrição contra os
hereges).
A Apologia de Tertuliano
Começamos com a Apologia de Tertuliano. Como vimos no capítulo 2, uma antiga apologia é
uma explicação ou uma defesa, não uma declaração de arrependimento, e esse tipo de literatura
não é exclusivo do cristianismo. Platão escreveu uma Apologia argumentando que os
ensinamentos de Sócrates eram razoáveis e não perigosos, e Tertuliano escreveu uma Apologia
explicando e defendendo o cristianismo. Ainda hoje, faculdades e seminários cristãos oferecem
cursos de apologética, o estudo de como explicar o cristianismo e responder às críticas a ele.
Não temos certeza do que levou Tertuliano a escrever sua Apologia quando o fez, mas uma
teoria sugere que ele a escreveu após a morte de Irineu de Lião. Tertuliano era um grande
admirador do trabalho de Irineu, um bispo do final do século II na Gália (França) que passou
grande parte de sua vida preservando e protegendo as crenças centrais da fé. Uma tradição sugere
que Irineu pode ter morrido como mártir. Talvez — pensou Tertuliano — se até o nobre Irineu
podia ser morto por ser cristão, alguém precisaria explicar melhor o cristianismo ao mundo
exterior.
Embora Tertuliano rejeite o pensamento racional e a filosofia como sendo o bem maior, ele
ainda tenta apresentar um argumento lógico. Mas isso não significa que seja sempre uma
discussão amigável. Contextos modernos em que os cristãos usam expressões como “amizade
evangelística” enfatizam o desenvolvimento de um relacionamento pessoal positivo com uma
pessoa antes de começar a explicar a fé cristã. Tertuliano, no entanto, não é lembrado por ser
sutil ou indireto. Ele poderia ser abrasivo e agressivo, talvez o resultado de discutir casos legais
em um tribunal.
Em sua Apologia, ele não faz rodeios e estabelece uma série de pontos. Vamos nos concentrar
em quatro desses argumentos.
Primeiro: Jerusalém é maior que Atenas — a igreja é maior que a Academia — porque é mais
antiga. A adoração a Deus antecede a filosofia grega clássica. Aqui Tertuliano apela para uma
ideia cultural mais ampla de que ser “mais velho é melhor”. Enquanto muitas empresas hoje
tendem a comercializar produtos “novos” ou “atualizados e aprimorados”, no mundo romano, ser
mais velho era melhor.
Podemos ver isso no tratamento romano para com a população judaica do império. Acreditava-
se que a adoração aos deuses e deusas tradicionais era central para a sobrevivência de Roma.
(Vimos isso acima no capítulo 2 sobre o martírio.) “Eu dou para que você dê” era um lema
romano. Aqueles que se recusassem a adorar os deuses poderiam irritá-los, e os deuses, por sua
vez, poderiam punir o império com peste, fome ou derrota militar. Os descendentes de Abraão
adoravam apenas um Deus e se recusavam a adorar os deuses romanos. Outros podem ter
pensado na religião judaica como inferior e equivocada, mas a honraram — e os romanos
permitiram que continuasse — porque era antiga.
A antiguidade concedeu status e respeito. Na Apologia, Tertuliano afirma que “nossa religião é
sustentada pelos escritos dos judeus, os mais antigos que existem” (Apol. 21). Ele ainda
argumenta que se há algo de bom na filosofia pagã, vem das Escrituras, com o que ele quer dizer
o Antigo Testamento: “Qual dos teus poetas, quais dos teus sábios não beberam das fontes dos
profetas?” (Apol. 47). Moisés e os outros profetas são a fonte de todas as ideias esclarecidas dos
filósofos.
Mas se os não cristãos entenderam mal a fé cristã, é porque “as especulações dos filósofos
perverteram as antigas escrituras” (Apol. 47). Os filósofos pagãos podem ter tropeçado em algo
bom, mas ainda conseguem distorcer a verdade. Tertuliano diz com eficácia, e eu parafraseio,
que a filosofia é nova em comparação com a adoração do único Deus verdadeiro, por isso é
inferior e pode ser enganosa. Você precisa respeitar nossa fé como estando enraizada em algo
mais antigo e melhor, as Escrituras.
Segundo: Tertuliano argumenta que o politeísmo dos romanos é tolo e ilógico. De acordo com
as crenças romanas, os deuses deveriam proteger aqueles que os honram. Mas Tertuliano cita
numerosos exemplos de casos em que os deuses não protegem cidades e regiões do desastre,
incluindo a destruição nas mãos do próprio Império Romano.
Tertuliano então ataca os deuses diretamente. Todo antigo mito sobre os deuses inclui um
comportamento imoral que nunca seria tolerado entre os homens. Zeus/Júpiter, por exemplo, é
um agressor sexual contumaz e até maltrata um membro de sua própria família, de acordo com
um mito. Além disso, os deuses estão sempre em tal conflito uns com os outros que, se fossem
reais, a humanidade nunca conheceria a paz. A Guerra de Tróia acontece por causa de uma
batalha divina baseada em ciúmes mesquinhos e orgulho ferido. Se os deuses pagãos fossem
reais, os homens estariam para sempre presos nesse tipo de disputa.
Mesmo os filósofos pagãos, que são corruptos em seu pensamento, atacam e zombam do
politeísmo. Sócrates zomba das histórias dos deuses gregos. Ele é morto por isso, mas então os
atenienses percebem seu erro e se vingam de seus assassinos — mostrando assim que as críticas
de Sócrates estavam corretas em primeiro lugar. Tertuliano cita outros filósofos (o grego
Diógenes e o romano Varrão) que também ridicularizam a ignorância do politeísmo (Apol. 14).
De fato, em muitos casos os filósofos “derrubam abertamente seus deuses, e em seus escritos
atacam suas superstições; e vocês os aplaudem por isso” (Apol. 46). Se até os filósofos gregos e
romanos veem a tolice do politeísmo, quão tolo ele deve ser!
Tertuliano continua seu ataque às contradições do paganismo. Como pode haver diferentes
deuses e deusas com responsabilidade pela mesma cidade ou atividade? (Existem várias
divindades da guerra, por exemplo.) Mas, por outro lado, como o mesmo deus pode ter muitos
nomes diferentes em lugares diferentes? (O deus do sol é chamado de Helios entre os gregos e
Sol entre os romanos, mas o deus que dirige o sol por meio do céu é Apolo.) E se o sistema grego
de deuses é verdadeiro, então o que dizer do sistema egípcio? Ambos não podem ser verdadeiros.
Todo o conceito de politeísmo, afirma Tertuliano, não faz sentido. É muito mais lógico, escreve
ele, acreditar em um Deus acima de todas as coisas, não em muitos deuses e deusas inferiores
constantemente brigando entre si.
Terceiro: os sábios imperadores romanos tratavam os cristãos com justiça; os ímpios, de modo
contrário, os perseguiram. Tibério, Trajano, Adriano e Marco Aurélio estavam entre os
imperadores que usaram sua razão corretamente. Eles mostraram moderação em relação aos
cristãos e não os perseguiram.
Por outro lado, Nero e Domiciano eram “os vilões mais completos da impiedade, da injustiça,
da imundície, da tolice e da loucura” (Apol. 5). Nero foi o primeiro a derramar sangue cristão
inocente, e Domiciano tentou igualar sua crueldade à de Nero. Tertuliano afirma que “os
perseguidores dos cristãos sempre foram homens desse tipo, sem senso de justiça, piedade ou
vergonha” (Apol. 5). Mesmo a razão limitada escapou deles. Sua maldade foi reconhecida por
todos, tanto que os romanos derrubaram muitas de suas leis perversas.
O leitor fica, portanto, com uma pergunta: vou me comportar para com os cristãos como os
bons imperadores fizeram? Ou vou maltratá-los e ser colocado na categoria de Nero, cuja loucura
e maldade foram tão grandes que sua imagem e nome foram oficialmente condenados pelos
romanos?6 Ao apresentar o argumento nesses termos, Tertuliano está orientando o leitor a dizer:
“Quero ser como Trajano”. Ele está tentando mover o leitor para uma maior compreensão e
tolerância.
Quarto: os cristãos são cidadãos-modelo do império. Eles pagam sua parte justa de impostos ao
estado (aparentemente, no mundo antigo algumas pessoas também sonegavam seus impostos);
cuidam dos pobres; não são ladrões, feiticeiros ou assassinos; e são pais responsáveis para com
seus filhos. É verdade que eles se recusam a participar de festas pagãs, mas eles mais do que
compensam isso porque são uma “defesa contra os demônios e estão sempre de joelhos orando
ao Deus verdadeiro em seu favor” (Apol. 13).
Assim, Tertuliano apresenta quatro argumentos: (1) a filosofia não é confiável; (2) o
politeísmo é irracional; (3) imperadores sábios são justos com os cristãos; e (4) os cristãos são os
melhores cidadãos. Com esses argumentos e muitos outros como eles, Tertuliano tenta
comprovar que a maneira racional e lógica de viver não é apenas deixar os cristãos em paz, mas,
na verdade, tornar-se um deles.
Essa é a estratégia de Tertuliano como apologeta. É assim que ele escreve quando está olhando
para fora, explicando e defendendo o cristianismo para não cristãos.
A filosofia leva à heresia
Os perigos da filosofia, para Tertuliano, não apenas levavam os não cristãos a entenderem mal
o cristianismo; eles também levaram à distorção dentro do próprio cristianismo — à heresia.
Vemos isso claramente em uma obra chamada Prescrição contra os hereges. Tertuliano afirma
que a fonte fundamental de toda heresia é a especulação filosófica. Antes de apresentar sua
prescrição, Tertuliano primeiro oferece um diagnóstico: a filosofia é a causa da doença teológica.
Tertuliano acredita que a tentativa de usar a razão humana para compreender os mistérios divinos
leva as pessoas ao caminho errado.

Imagem 6.1: Anfiteatro romano de Cartago.

Como ele afirma sem rodeios: “As próprias heresias são causadas pela filosofia”. Ele então
entra em um longo ataque aos ensinamentos de Platão, dos estoicos, dos epicureus, de Aristóteles
e outros. Fazendo alusão às cartas paulinas, ele condena os “espíritos enganadores e a ensinos de
demônios” (1Tm 4.1) que causavam as “coceiras nos ouvidos (2Tm 4.3) do espírito da sabedoria
deste mundo” (Praescr. 7; cf. 1Co 1.20; 3.19).
Como essas e outras passagens bíblicas mostram, Paulo advertiu contra isso. Depois que o
apóstolo visitou Atenas (veja At 17.13-34) e se familiarizou com “aquela sabedoria humana que
finge conhecer a verdade, mas apenas a corrompe”, ele alertou seus leitores em várias cartas
sobre os perigos de colocar a sabedoria humana acima da divina. De fato, na Carta aos
Colossenses, Paulo “nomeia expressamente a filosofia como aquela contra a qual devemos nos
proteger” e adverte os colossenses: “Cuidado que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia
e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens” (Cl 2.8) (Praescr. 7).
No final dessa passagem, Tertuliano coloca a famosa pergunta mencionada no início deste
capítulo, que ele liga diretamente às heresias: “O que Atenas tem a ver com Jerusalém? Que
acordo existe entre a Academia e a Igreja? Entre hereges e cristãos?” (Praescr. 7).
Tertuliano afirma conexões diretas entre filósofos antigos e os hereges de sua época,
especificamente Valentino e Marcião. Valentino representava o gnosticismo, que era uma
mistura de elementos do cristianismo e teorias obscuras da filosofia grega. A crítica de
Tertuliano se concentra na teoria complexa de Valentino sobre a existência de muitos seres
espirituais não discutidos nas Escrituras, e ele culpa as teorias bizarras de Valentino na filosofia
de Platão. Marcião defendeu a existência de dois deuses: o deus mau do Antigo Testamento, que
criou o mundo, e o bom Deus do Novo Testamento, que vive apenas no reino espiritual.
Tertuliano atribui essas ideias aos estoicos.
Tertuliano pensava que a filosofia nunca deixou de produzir heresia: “Os mesmos assuntos são
discutidos repetidamente pelos hereges e filósofos” (Praescr. 7). Uma vez que filósofos e hereges
confiavam em suas próprias mentes racionais para responder a perguntas sobre a natureza de
Deus (teologia), a natureza da humanidade (antropologia) e a origem e natureza do universo
(cosmologia), eles inevitavelmente ignoraram e distorceram a verdade.
Em Prescrição contra os hereges, Tertuliano concentra-se mais nas ideias da filosofia como
raízes da heresia do que nas próprias heresias. Sim, ele destaca alguns exemplos de heresia, mas
esses não são o foco principal.
Notavelmente, um autor posterior foi motivado a assumir e expandir o trabalho de Tertuliano.
Existe outro texto sobre heresia que por muitos anos também foi creditado a Tertuliano porque
foi copiado em manuscritos que continham escritos autênticos de Tertuliano. Chama-se Contra
todas as heresias. Inclui uma lista de trinta e duas heresias diferentes, juntamente com uma
explicação das raízes de cada uma. Valentino e Marcião aparecem nessa lista e são
acompanhados por muitos outros. Os estudiosos agora estabeleceram que Tertuliano não
escreveu essa obra, mas o autor anônimo entendeu claramente a intenção da Prescrição de
Tertuliano e decidiu garantir que todos os hereges da época fossem chamados pelo nome.
Tertuliano e filosofia?
Podemos ver um dilema potencial. Como Tertuliano pode apelar para noções de razão de seu
contexto romano e usar exemplos de filósofos para construir seu argumento em alguns de seus
escritos, mas depois se virar e condenar essas mesmas ideias e filósofos como fatalmente
admirados em outros lugares?
A resposta é que depende do seu público e dos seus objetivos. Como apologeta, ele precisa
encontrar algum ponto em comum com os incrédulos — ele deve jogar de acordo com as regras
deles, pelo menos até certo ponto. Eventualmente, ele tenta mostrar que a filosofia pagã é
temerosa e tola, mas ele não pode começar nesse ponto. Uma audiência não cristã não teria
aceitado a verdade divina como uma categoria, então ele deve apresentar o cristianismo de uma
forma que faça sentido para eles. Em sua Apologia, ele está tentando apresentar um argumento
que seja lógico do ponto de vista deles.
Como teólogo, no entanto, ele assume que seu público já concorda que a sabedoria divina
supera a sabedoria humana. A filosofia e a razão nunca podem levar à verdade última. De fato,
quando os cristãos tentam usar a filosofia para explicar as verdades divinas, muitas vezes caem
em heresia. Em sua Prescrição ele tenta mostrar como isso acontece.
Então, Tertuliano pensa na filosofia e na razão como fundamentalmente boas ou más? Para
pensar sobre essa questão, vamos considerar um exemplo moderno de uma questão semelhante.
Você já ouviu um pastor criticar o esporte por fazer as pessoas perderem o culto na igreja, mas
depois se virar e usar analogias esportivas nos sermões? Qual é a verdadeira visão desse pastor
sobre esportes? Os esportes são fundamentalmente bons ou ruins? Você pode dizer: Bem,
depende do argumento que eles estão tentando estabelecer.
Exatamente — e o mesmo vale para Tertuliano. O raciocínio humano é útil quando é útil
(apologética) e perigoso quando é perigoso (teologia).
Mas a sabedoria divina de Deus revelada nas Escrituras continua sendo a mais alta verdade.

6 Até as fontes romanas concordam que Nero estava fora de controle, tanto que sofreu damnatio memoriae (“a condenação da
memória”). Este era um processo oficial que resultava na remoção do nome e da imagem do imperador.
Capítulo
7

Tertuliano definindo a fé:


A plenitude da Trindade
Ideias-chave
• Tertuliano é reconhecido como o pai da teologia latina e foi o primeiro a usar o termo
“Trindade” em seus escritos.
• Tertuliano escreveu contra o modalismo, uma heresia cristã primitiva que negava a
Trindade ao desconstruir o Pai, o Filho e o Espírito Santo em uma pessoa divina usando
“máscaras” diferentes.
• Tertuliano declarou explicitamente que o Espírito Santo é Deus, mas isso era uma questão
de incerteza em algumas partes do cristianismo, inclusive nos primeiros concílios da
igreja.

Neste capítulo voltamos nossa atenção novamente para Tertuliano como teólogo e exploramos
seu papel na explicação da doutrina da Trindade.
Acredito que Tertuliano não recebe crédito suficiente pelo que contribuiu para a teologia cristã,
particularmente sobre a Trindade. Ele foi amplamente ignorado no Oriente de língua grega
porque escrevia em latim. Todos os concílios da igreja eram realizados em grego, então talvez
houvesse a suposição de que algo importante seria dito em grego. Mesmo no Ocidente de língua
latina, Tertuliano foi mais tarde ofuscado por Agostinho. Agostinho tornou-se a voz teológica
dominante em latim, então Tertuliano foi amplamente esquecido por muitas pessoas.
Mas ignorar Tertuliano é um erro, já que ele fez contribuições significativas para a teologia
cristã. Ele foi outro africano cujo efeito sobre o cristianismo ressoa até hoje.
Precisamos reconhecer que Tertuliano nem sempre foi popular. Em seu próprio tempo, ele teve
conflitos com outros cristãos (mais sobre isso adiante), e os leitores modernos muitas vezes o
viram como excessivamente rigoroso. Ele era forte em seu discurso contra o pecado, mas,
novamente, a maioria dos cristãos antigos tinha uma visão mais séria do pecado do que os
cristãos modernos. Suas opiniões sobre o papel das mulheres também não são populares entre
muitos leitores modernos. Não estou tentando convencê-lo de que você deve concordar com
todos os pontos de vista dele. No entanto, ele fez muitas contribuições importantes, e por isso
merece ser estudado e compreendido.
Estudiosos do cristianismo referem-se a Tertuliano como “o pai da teologia latina” porque ele
foi o primeiro escritor a fazer teologia séria na língua latina. Irineu, seu herói, escreveu em
grego. O mesmo fez Clemente de Alexandria, outro importante teólogo da África. Mas
Tertuliano foi o primeiro escritor que conhecemos a produzir extensas obras teológicas em latim.
Tertuliano também cunhou o termo trinitas, do qual se derivam a palavra Trindade ou, em
inglês, Trinity. Embora os teólogos tenham mostrado que o conceito da Trindade pode ser
encontrado nas Escrituras — Mateus 28.19 é o exemplo clássico — nenhum autor das Escrituras
nomeou essa ideia teológica. Tertuliano nomeou: trinitas.
Contra Práxeas
Vamos nos concentrar na obra em que Tertuliano aborda a Trindade de forma mais direta e
completa: Contra Práxeas.
Precisamos compreender melhor o contexto dessa obra antes de olharmos para os detalhes.
Como muitas vezes acontece em situações antigas, não temos todas as informações que
gostaríamos de ter, mas nesse caso temos informações suficientes para fazer um bom palpite
sobre por que Tertuliano escreveu Contra Práxeas e quem poderia ter sido Práxeas.
À medida que prosseguirmos, mergulharemos em algumas ideias teológicas profundas. Isso
pode ser intimidador. Muitos cristãos, por exemplo, creem na Trindade, mas se você pedir que a
expliquem, as palavras podem lhes faltar. É aqui que anos de ensino desse material me
permitirão (assim espero) explicar tais ideias de uma maneira fácil de entender.
Em Contra Práxeas, Tertuliano está atacando uma ideia teológica conhecida como modalismo.
Essa vertente apareceu como uma visão teológica dentro do cristianismo no século II e foi
condenado como heresia. (Mas a ideia ainda está presente no cristianismo hoje.)
Aqui está o raciocínio por trás do modalismo. Como podemos afirmar que existe apenas um
Deus, mas falamos dele como Pai, Filho e Espírito Santo? O modalismo diz que Pai, Filho e
Espírito Santo são três manifestações — como três faces — da mesma pessoa. É como se Deus
fosse um ator em um palco com três máscaras diferentes. Quando ele criou o mundo, ele usava
sua máscara de “Pai”; quando ele veio à terra, ele colocou sua máscara de “Filho”; e quando ele
conduz os crentes à verdade divina e realiza obras de poder, ele coloca sua máscara do “Espírito
Santo”.
Por que a igreja rejeitou essa ideia? Eles fizeram isso porque o modalismo argumenta que o Pai
é o Filho, o Filho é o Espírito e o Espírito é o Pai. Mas nas Escrituras Jesus claramente se refere
ao Pai. Ele ora ao Pai (por exemplo,
Mt 26.42; Jo 11.41,42; 17), e clama ao Pai na cruz (Mt 27.46; Mc 15.34; Lc 23.34,46). Se Jesus é
o Pai, então ele está falando consigo mesmo nesses casos. Jesus também diz que vai embora e
pedirá ao Pai que envie o Espírito (Jo 14.16), e que é melhor para os discípulos que ele parta,
para que o Espírito venha (Jo 16.7). Mas se Jesus é o Espírito, então, nesse caso, estaríamos lhe
pedindo que enviasse a si mesmo e ele, na verdade, não estaria indo a lugar nenhum. Como o
Filho pode orar e falar com o Pai se ele é o Pai, e como ele pode enviar o Espírito se ele é o
Espírito?
Não, disse a igreja, o modalismo é uma compreensão errada de Deus porque contradiz as
Escrituras. Também nega a singularidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Então, quem era Práxeas?
Aqui a história fica ainda mais interessante. O nome “Práxeas” pode ser um pseudônimo
(nome falso) para uma pessoa em particular — ou seja, um bispo de Roma. Temos evidências de
que alguns dos bispos de Roma apoiaram o modalismo, e também sabemos que Tertuliano não
era amigo da Igreja Romana. A certa altura, ele deixou Roma em circunstâncias difíceis. Muitos
pensam que ele estava descontente porque um bispo romano havia condenado os montanistas,
um grupo (como vimos) que Tertuliano tinha em alta estima e via como perfeitamente ortodoxo
em sua doutrina. Tertuliano parecia apreciar especialmente sua ênfase no papel do Espírito Santo
na vida dos crentes.
Tertuliano não apenas discordou da condenação dos montanistas pelo bispo romano, mas
também pensou que a igreja romana não tinha o direito de interferir nas igrejas de outras regiões.
Isso pode explicar o nome “Práxeas”, que pode ser traduzido como “intrometido”. Tertuliano
pode estar escrevendo não apenas contra alguém que ele pensava ser um herege, mas também
contra alguém que, em sua opinião, estava interferindo onde não lhe dizia respeito. Além disso,
sabemos que Tertuliano não teve um bom relacionamento com um bispo em particular, Calisto I
(bispo de Roma de 218 a 222). Outros detalhes no texto apontam mais especificamente para
Calisto sendo Práxeas. Não podemos dizer isso com certeza, porque Tertuliano não nomeia o
bispo diretamente. Mas há fortes evidências circunstanciais de que Tertuliano tinha alguém
específico em mente.
Tertuliano sobre a Trindade
Em Contra Práxeas, a principal preocupação de Tertuliano é a doutrina de Deus. Ele
argumenta não sobre questões de preferência, mas sobre um dos ensinamentos centrais do
cristianismo.
Ele se propõe a explicar a Trindade usando imagens jurídicas romanas, outra indicação de que
ele pode ter sido advogado. Como veremos, ele fornece a explicação com a qual os concílios da
igreja eventualmente concordarão, e ainda assim estes não prestam atenção a ele; em vez disso,
lutam para chegar lá por conta própria.
Os dois principais termos legais para Tertuliano são persona e substantia. No direito romano,
uma persona (“pessoa”) é uma unidade jurídica que pode possuir propriedade. Uma persona
pode ser um indivíduo ou uma corporação moderna, uma unidade coletiva que pode possuir algo.
Devemos evitar pensar que persona é igual a “pessoa” em português, porque nem toda pessoa
poderia ser uma persona sob o direito romano. Por exemplo, crianças, escravos e, em alguns
casos, mulheres não podiam possuir propriedades. São pessoas no sentido moderno, mas não no
sentido jurídico romano.
O outro termo-chave que Tertuliano usa é substantia, que nos dá a palavra da língua
portuguesa “substância”. Uma substantia é algo que pode ser possuído, mas não precisa ser um
objeto físico. Por exemplo, meu computador é uma substantia. É uma propriedade que possuo.
Se alguém o roubar, isso é uma violação da lei. Mas uma substantia também é o que estou
digitando no meu computador enquanto escrevo este livro. Minhas ideias são o que agora
chamamos de “propriedade intelectual”, e isso também é uma substantia. Se alguém plagiar
minhas ideias, eles também roubaram minha propriedade porque eu possuo minhas ideias.
Minhas ideias não são físicas, mas posso possuí-las.
Além disso, uma substância pode ser possuída por mais de uma persona. Por exemplo, se eu
me reunir com minha irmã e meu irmão para comprar uma casa de férias para nossa família (o
que provavelmente não acontecerá a menos que este livro se torne um grande filme estrelado por
Brad Pitt), cada um de nós é uma personalidade separada, e, juntos, possuímos uma substantia (a
casa). Ou aqui está outro exemplo: se duas pessoas entram em negócios juntas, cada uma
permanece uma persona separada, mas são coproprietárias de uma substantia (o negócio).
Uma persona pode possuir algo, e uma substantia pode ser possuída. Mais de uma persona
poderia ser “dono” igualmente de uma substantia. Mas como isso se relaciona com a Trindade?
O Pai é uma persona. O Filho é uma persona. O Espírito Santo também é uma persona. A
divindade — o fato de ser Deus — é uma substantia. Assim como meus irmãos e eu poderíamos
ser três proprietários distintos, mas iguais, de uma casa, todos os três membros da Trindade são
distintos, mas todos possuem igualmente a divindade. As três personae possuem a mesma
substância. Três pessoas, uma substância.

Imagem 7.1: A metáfora legal de Tertuliano para a Trindade.


Ele [Práxeas] afirma que há um único Senhor, o Todo-Poderoso Criador do mundo, para que dessa doutrina da unidade ele
possa criar uma heresia. Ele diz que o próprio Pai desceu à virgem, que ele mesmo nasceu dela, que ele mesmo sofreu e
que ele mesmo era Jesus Cristo. (Prax. 1)
Tertuliano responde com uma enxurrada de textos bíblicos contra Práxeas. Ele até afirma que o
próprio Satanás sabe que o Pai e o Filho não são o mesmo, mas é grato a Práxeas por espalhar a
heresia. Tertuliano critica Práxeas por ter prestado “um duplo serviço ao diabo em Roma. Ele
afastou a profecia e trouxe a heresia. Ele fez o Paráclito [Espírito Santo] fugir e crucificou o Pai”
(Prax. 1). Ao condenar os montanistas, Práxeas expulsa o Espírito Santo e substitui uma
compreensão correta de Deus pela heresia modalista.
Tertuliano tenta mostrar que os argumentos de Práxeas são os de um “grande tolo”. Eles são
baseados na distorção de apenas alguns textos, enquanto os Evangelhos mostram repetidamente a
distinção entre Pai, Filho e Espírito. O Evangelho de João desempenha um papel especialmente
importante, pois aqui, mais claramente, vemos que o Pai e o Filho são um e ainda assim
distintos. Na mesma passagem, Jesus diz: “como o Pai me conhece a mim, e eu conheço o Pai”
(10.15) e “Eu e o Pai somos um” (10.30). O Espírito também é divino, mas não é o Pai nem o
Filho. Ao comentar o Evangelho de João, Tertuliano diz: “A conexão do Pai no Filho e do Filho
no Paráclito produz três pessoas conectadas que ainda são distintas umas das outras. Estes três
são um, mas não um” (Prax. 25).
O Pai, o Filho e o Espírito não são uma só pessoa. Isso seria modalismo. Então, como os três
podem ser um? Todos os três compartilham uma substantia, que é a divindade. Essa é a
linguagem jurídica romana.
Tertuliano, como os autores das Escrituras, tenta explicar em palavras humanas os mistérios
divinos que, em última análise, estão além delas. Ele usa a linguagem jurídica romana porque
isso é mais familiar ao seu público.7 Ninguém precisa ser advogado para entender o conceito
básico de “proprietário” e “propriedade” — assim como entendemos esses conceitos hoje,
mesmo que não sejamos advogados.
Para realmente entender tudo sobre Deus, teríamos que ser Deus. Mas, como Paulo escreve,
vemos apenas “obscuramente” até que vejamos Deus face a face (1Co 13.12). Tertuliano crê que
as Escrituras argumentam contra o modalismo e a favor da Trindade, então ele tenta descrever a
natureza de Deus da melhor maneira possível com as ferramentas disponíveis.
Tertuliano e os concílios da Igreja Primitiva
Podemos comparar o que Tertuliano diz com os credos dos concílios da igreja. No ano 325
d.C., o imperador Constantino convocou um concílio em Niceia, uma cidade perto da capital
Constantinopla. O principal tópico de debate foi a natureza do Filho. Ele é eterno ou foi criado
pelo Pai?
Após mais de um mês de deliberação, o conselho emite um credo, ou declaração de fé (“credo”
vem da palavra latina credo, “creio”). Hoje nos referimos a isso como o Credo Niceno. O credo
começa:
Creio em um Deus, Pai Todo-poderoso, Criador de todas as coisas visíveis e invisíveis; e em um Senhor Jesus Cristo, o
unigênito Filho de Deus, gerado pelo Pai antes de todos os séculos, Deus de Deus, Luz da Luz, verdadeiro Deus de
verdadeiro Deus, gerado não feito, de uma só substância com o Pai… [o texto segue sobre a vida de Cristo].
O credo deixa claro que o Filho não foi feito ou criado, e também afirma duas vezes que o
Filho é da mesma essência que o Pai. Não há diferença em essência ou substância entre o Pai e o
Filho. Ambos compartilham plenamente a divindade, assim como Tertuliano disse.
De fato, quando o credo foi traduzido do grego para o latim, o Filho foi descrito como
consubstantialis. Vemos a palavra substantia no meio desse adjetivo mais longo. Mas não há
evidência de que o concílio tenha lido ou prestado atenção às obras de Tertuliano. Infelizmente,
mais de cem anos depois que esse teólogo africano ofereceu sua explicação da natureza da
Trindade em Contra Práxeas — três pessoas, uma essên-
cia — outras partes da igreja ainda estavam lutando com essa verdade básica. Assim, Tertuliano
estava mais de um século à frente de seu tempo neste conceito fundamental de Deus.
O pensamento avançado de Tertuliano não se limita ao Filho. Sua teologia do Espírito Santo
está ainda mais à frente de seu tempo. Tertuliano diz que o Espírito é também uma persona que
participa da substantia da divindade. A forte doutrina de Tertuliano sobre o Espírito pode ter
influenciado seu apoio aos montanistas, que davam forte ênfase à obra do Espírito. Para
Tertuliano, a obra do Espírito não é nada que se deve temer, pois é a obra do próprio Deus.
Em Contra Práxeas, Tertuliano afirma claramente:
“O Espírito é Deus” (Prax. 26). De nossa perspectiva hoje, essa é uma parte padrão da doutrina
da Trindade, mas nem sempre foi assim. Outros eram mais hesitantes e pouco claros sobre a
essência do Espírito. Vemos isso se retornarmos ao Credo Niceno de 325 d.C. Após a declaração
de abertura sobre o Pai e uma série de declarações sobre o Filho, o credo aborda o Espírito e diz:
“E [creio] no Espírito Santo”. Isso é tudo o que o credo original diz sobre o Espírito. Não
descreve o Espírito como tendo “uma só substância com o Pai”, como faz com o Filho.
O fato é que no período dos primeiros concílios alguns líderes da igreja não tinham certeza de
como falar sobre o Espírito Santo. (Alguns argumentam que isso ainda é verdade em algumas
partes do cristianismo hoje.)
Em 381 d.C., o imperador Teodósio I convocou outro concílio da igreja, dessa vez na capital
de Constantinopla. Apenas um ano antes, ele havia declarado o cristianismo a religião oficial do
império. Mas alguns debates em andamento em torno do credo de 325 o incomodaram. Então ele
convocou um conselho para resolver as coisas para sempre (pelo menos assim ele pensou).
O Primeiro Concílio de Constantinopla emitiu uma versão atualizada e esclarecida do credo.
Nas igrejas de hoje, os cristãos recitam não o Credo Niceno de 325, mas o Credo de
Constantinopla atualizado de 381. (Tecnicamente, os estudiosos o chamam de Credo Niceno-
Constantinopolitano.)
No credo de 381, a seção sobre o Espírito é mais desenvolvida e afirma mais sobre o papel e a
fonte do Espírito:
E no Espírito Santo, Senhor e Vivificador, que procede do Pai8 e do Filho, que com o Pai e o Filho conjuntamente é
adorado e glorificado, e que falou por meio dos profetas.
O Espírito vem do Pai, é chamado Senhor e é adorado e glorificado com o Pai e o Filho. No
entanto, o credo de 381 ainda não diz que o Espírito é “uma só substância com o Pai”.
Quando os cristãos recitam esse credo hoje, presumimos que isso significa, ou pelo menos
implica fortemente, que o Espírito também é Deus. Naquela época, no entanto, havia incerteza
sobre isso. Por um tempo, o presidente do concílio de 381 foi Gregório de Nazianzo. Ele era um
teólogo e bispo da Capadócia (uma região na parte central da atual Turquia) que acabou se
tornando bispo em Constantinopla. Na Igreja Ortodoxa Oriental, ele é considerado um dos
maiores pensadores da história do cristianismo e muitas vezes é chamado simplesmente de
Gregório, o Teólogo.
Gregório queria que o credo de 381 declarasse explicitamente que o Espírito Santo é Deus.
Alguns resistiram a esse ponto, enquanto outros atacaram a liderança de Gregório em detalhes
técnicos da lei da igreja. No final, Gregório decidiu que era melhor para ele renunciar e deixar o
conselho avançar do que lutar por sua posição e ser um obstáculo ao progresso do conselho.
Quando anunciou sua renúncia diante do conselho e do imperador, ele aproveitou a última
oportunidade para reafirmar algumas de suas ideias centrais. Duas delas foram a unidade da
Trindade e a plena divindade do Espírito Santo. Ao falar do Pai, do Filho e do Espírito, ele
declarou enfaticamente: “Os três têm uma natureza: Deus” (Orat. 42.15). Todos os três são, sem
dúvida, divinos e devem ser adorados como totalmente Deus.
Ele também não perdeu a oportunidade de atacar os modalistas, que ainda estavam por ali em
sua época. No interesse (eles afirmam) da unidade divina, eles falam como se Deus usasse três
máscaras diferentes. Mas na verdade, diz Gregório, eles destroem a Trindade.
Gregório perdeu no concílio, mas venceu na história cristã. Ele é frequentemente lembrado
como um pioneiro da teologia da Trindade e mais especificamente da doutrina do Espírito Santo.
(Os teólogos chamam isso de “pneumatologia”, da palavra grega para “espírito”, pneuma.) Mas,
na verdade, Gregório estava simplesmente andando no mesmo caminho que um teólogo africano
de quase dois séculos antes. Tertuliano foi o verdadeiro pioneiro.
A importância de Tertuliano
Podemos apenas imaginar como a história do cristianismo e da teologia teria sido diferente se
os bispos de Niceia e Constantinopla tivessem lido e ouvido Tertuliano. Quantas heresias dos
séculos III e IV poderiam ter sido evitadas? Quantas controvérsias teológicas do século IV nunca
teriam acontecido? Se a igreja se unisse mais cedo em uma compreensão da natureza de Deus,
como a história teria sido diferente?
Podemos apenas especular sobre as respostas a essas perguntas, mas podemos evitar o erro que
muitos cristãos cometeram naquele período. Podemos reconhecer a contribuição desse teólogo da
costa da África. Podemos apreciar seu trabalho e dar a seus escritos seu devido lugar ao lado de
outros grandes pensadores dos primeiros séculos do cristianismo.
Por muitas vezes este capítulo foi fortemente teológico. É difícil falar sobre Deus e a natureza
de Deus permanecendo apenas na superfície, pois as verdades de Deus são profundas. Mas,
esperançosamente, chegamos a uma maior compreensão da importância de Tertuliano para a
doutrina da Trindade (e talvez até tenhamos entendido a própria Trindade um pouco melhor).
Tertuliano usou uma metáfora de seu mundo para tentar explicar a natureza de Deus e defendeu
fortemente a plena divindade de todos os membros da Trindade. Por isso, devemos sempre nos
lembrar dele.

7 Lembre-se de que, entre os irlandeses, Patrício usou o exemplo do trevo para explicar a Trindade — uma planta com três
folhas.
8 A igreja no Ocidente mais tarde acrescentou “e do Filho” ao Credo. Esta foi uma fonte de grande controvérsia na igreja
medieval e foi um dos fatores na divisão da igreja oriental-ocidental.
Capítulo
8

A vida e os tempos de Cipriano


Ideias-chave
• O século III foi uma época de grandes desafios no Império Romano, e os cristãos foram
acusados de serem parte do problema.
• O imperador Décio respondeu à crise tentando forçar o retorno à religião romana
tradicional.
• O imperador Valeriano renovou e intensificou a política de Décio de suprimir as práticas
cristãs, incluindo a execução de bispos como Cipriano.
Imagine um cenário comigo, num contexto em que a economia está ruim. Há uma recessão e
baixa confiança nos sistemas econômicos e na liderança. A pobreza está crescendo, e há uma
distância cada vez maior entre a classe alta e a classe baixa. Há muito tempo há tropas lutando no
Oriente Médio. Essas guerras têm sido um dreno adicional na economia e na sociedade. Elas
parecem continuar e as pessoas estão ficando cansadas, atravessando então a fronteira. Alguns
estão preocupados com essa onda de imigração, e algumas lideranças veem isso como uma
questão de segurança.
Aqui vemos uma batalha entre duas ideologias dife-
rentes — duas maneiras diferentes de pensar sobre a sociedade. Alguns argumentam: Temos um
passado glorioso. Fomos a maior potência do mundo, mas perdemos o rumo. Precisamos voltar
a esses valores antigos, os valores tradicionais que nos engrandeceram e trarão mais uma vez a
bênção divina que costumávamos desfrutar. Outros respondem: Não, precisamos fazer coisas
novas. As coisas precisam mudar. As antigas formas já passaram e nunca devem voltar.
Precisamos deixá-las para trás e seguir em frente.
Doenças se abateram sobre eles e tornaram as coisas ainda piores. As pessoas estão morrendo
aos milhares, e parece não haver resposta. E além de tudo isso, os padrões climáticos estão
ficando mais extremos. A mudança climática tem sido prejudicial para as colheitas e colocou
todos, mas especialmente os agricultores, sob maior pressão.
Você pode imaginar isso? Quando apresento esse cenário aos alunos, eles geralmente pensam
que estou falando dos Estados Unidos da era contemporânea. (E não importa em que ano ensinei
isso. Os alunos sempre encontraram paralelos.) Quando ensinei sobre isso em outras partes do
mundo, descobri que outros lugares também podem se relacionar com muitas dessas tensões.
Mas não estou descrevendo os Estados Unidos ou qualquer outro lugar do mundo hoje. Então,
isso é apenas um cenário hipotético?
Não, bem-vindo ao Império Romano do século III d.C.9
A crise do século III
Esse é o período que os historiadores romanos chamam de Crise do Terceiro Século, o período
de 235 d.C. a 284 d.C.
Recessão. O império enfrentava lutas financeiras. Uma dinastia de imperadores que governou
de 193 d.C. a 235 d.C. tomou decisões devastadoras. Eles queriam aumentar o exército, mas não
tinham dinheiro porque o império não havia feito nenhuma conquista significativa recente. No
passado, o exército regularmente conquistava novos territórios e os despojava de suas riquezas,
que pagavam por futuras campanhas militares. Esse processo quase parou, então essa linha de
imperadores desvalorizou a moeda. Eles começaram a misturar metais mais baratos como bronze
e cobre nas moedas de prata para que pudessem cunhar mais moedas. Inevitavelmente, a inflação
disparou para um patamar fora de controle.
O denário tinha sido a moeda padrão no Império Romano por trezentos anos. Era o salário de um
dia para o diarista médio. Você se lembra quando alguns líderes religiosos tentaram enganar
Jesus com uma pergunta sobre impostos (Mc 12.13-17)? Trouxeram-lhe um denário. Mas, no
século III, os preços estavam tão fora de controle que o denário quase não tinha valor, então foi
retirado de circulação.
Guerras. Na fronteira oriental do império, os persas sassânidas estavam avançando em
território romano. Em 235, eles já haviam tomado várias cidades importantes, e o Império
Romano não tinha a presença militar para afastar a ofensiva.
Imigração. Roma também não tinha recursos para proteger sua fronteira norte. Numerosas
tribos começaram a fluir para o império, especialmente do norte e centro da Europa. Esses
“bárbaros” incluíam tribos como os godos, visigodos, ostrogodos, vândalos e outros, alguns dos
quais estavam sendo empurrados para o oeste por outras tribos vindas da Ásia central.
Ideologia. Os valores tradicionais da época significavam adoração aos deuses romanos.
Discutimos isso no capítulo 2 quando vimos por que os cristãos foram perseguidos. A religião
romana ensinava uma relação de troca com os deuses: “Eu dou para que você dê”. Se as pessoas
adorassem aos deuses, estes permitiriam que o império prosperasse. As pessoas temiam que esse
equilíbrio com os deuses tivesse sido perturbado. Quando as coisas davam errado era por que
elas haviam errado? A maioria acreditava que era porque haviam desonrado os deuses.
Então vieram os revolucionários dizendo: Não, precisamos fazer as coisas de uma maneira
diferente. Quem eram esses encrenqueiros? Cristãos. Os cristãos do império diziam: Os velhos
costumes são inferiores. Esses deuses e deusas não são reais. É tolice crer em pedra e madeira
como deuses reais. Não, aceite essa nova forma, esse jeito melhor de viver. Além disso, os
cristãos não se juntariam ao exército porque isso exigiria um juramento de fidelidade ao
imperador. De fato, algumas fontes cristãs afirmam que os membros do exército não eram
elegíveis para o batismo até que deixassem o serviço militar. Isso enfraqueceu ainda mais o
exército.
Para os cristãos, adorar o único Deus verdadeiro era a chave para a paz e a bênção divinas. Já
para os seguidores da religião romana tradicional, os cristãos eram, em grande parte, culpados
dos problemas e das adversidades.
Doença. Em 249 d.C. ou 250 d.C., uma praga eclodiu na Etiópia. No ano seguinte, começou a
varrer grande parte do Império Romano. Era altamente contagiosa e, em seu auge, pode ter
matado até cinco mil pessoas por dia em Roma. Os historiadores estimam que a praga matou
mais da metade da população total em Alexandria, a maior cidade do Egito. Os imperadores
romanos Hostiliano e Cláudio Gótico estavam entre suas vítimas; a doença devastou o império
por quase vinte anos. As numerosas mortes significaram ainda menos homens saudáveis para o
exército. A causa exata nunca foi estabelecida, embora o ebola tenha sido frequentemente
sugerido como tal.
Alterações Climáticas. Uma série de verões secos e escaldantes atingiu o Império ao mesmo
tempo, paralisando ainda mais um sistema de produção e distribuição de alimentos que já sofria
com o declínio econômico e os efeitos da praga.
No meio de todo esse alvoroço e turbulência, Cipriano se tornou o bispo de Cartago em 249
d.C. Você pode imaginar começar um trabalho nessas circunstâncias?
Décio e “aquela antiga religião”
Um outro fator tornou o contexto de Cipriano muito desafiador, e este está relacionado aos
valores tradicionais mencionados acima. De acordo com a tradição romana, a cidade foi fundada
no ano 753 a.C. Isso significava que em 247 d.C. foi comemorado o aniversário de mil anos da
fundação de Roma. À medida que o aniversário do milênio se aproximava, as pessoas ficavam
nostálgicas. Elas começaram a pensar nas glórias passadas de Roma. Pense em como Roma era
poderosa antes desses bárbaros e cristãos aparecerem. Lembra-se de quando costumávamos
derrotar os persas? Conte as histórias novamente sobre como conquistamos aqui e expulsamos
aquele grupo de lá. Lembra-se de quão grande foi Roma?
Por que Roma foi tão grande por quase mil anos? Deve ter sido pelos tradicionais e antigos
costumes romanos, então o entusiasmo pelos valores tradicionais aumentou.
Quando eu era jovem, às vezes ouvia a expressão “dê-me aquela antiga religião”. (É também o
título de uma conhecida canção gospel do século XIX.) A expressão refere-se à nostalgia de dias
passados. Antigamente, as pessoas amavam mais a Deus e cantávamos músicas melhores. Todo
mundo era mais religioso naquela época. Leve-me de volta aos bons e velhos tempos, quando eu
costumava congregar com minha avó, e as pessoas se vestiam bem para ir à igreja. Dê-me
aquela antiga religião. A nostalgia tem uma maneira de distorcer nossa percepção dos “bons e
velhos tempos”, mas ainda é uma força poderosa. (Lembro-me de estar sentado na igreja com
calças compridas de poliéster e uma camisa social em dias úmidos de 35 graus sem ar-
condicionado. Aqueles “bons e velhos tempos” nem sempre eram tão bons.)

Imagem 8.1: Imperador romano fazendo uma oferenda aos deuses em homenagem aos três animais sagrados: porco, ovelha e
touro.

No outono de 249 d.C., um novo imperador subiu ao poder. Ele era um general e administrador
capaz chamado Décio, e estava determinado a restaurar as glórias passadas de Roma. Parte disso
foi trazer de volta “aquela antiga religião”.
Isso exigia promover a adoração aos deuses tradicionais em todo o império e remover
quaisquer ameaças internas daqueles que se recusavam a adorar. Em dezembro de 249, Décio
emitiu um decreto imperial. Todos no império eram obrigados a comparecer perante seus oficiais
locais e fazer um sacrifício em homenagem aos deuses romanos. Cada pessoa receberia um
recibo (chamado de libellus, ou “livrinho”) para provar que havia feito isso. Décio estava
tentando se mostrar um imperador no modelo dos grandes líderes do passado, que eram piedosos
o suficiente para agradar aos deuses.
A lógica de Décio era evidente. Se vamos nos acertar com os deuses novamente, se nossa
economia vai melhorar, se vamos desfrutar de vitórias militares, se vamos restaurar o belo
passado de Roma, todos nós precisamos honrar os deuses. Se você não fizer isso, estará se
identificando como inimigo de Roma. Você concorda ou não. Não existe meio-termo.
Décio não pretendia ser especificamente anticristão. Uma pessoa não tinha que desistir de sua
fé para fazer isso — na verdade, para Décio a fé não era realmente um fator. Na religião romana,
a ênfase estava no que uma pessoa fazia, não no que ela cria. Uma pessoa podia crer no Deus de
Abraão e adorar a Cristo, desde que também realizasse um sacrifício em homenagem aos deuses
romanos. Não fazer isso era visto como um ato de traição contra o império e levava ao exílio ou
prisão. A morte não era uma punição primária naquela época, mas às vezes resultava dela,
especialmente depois de abril de 250, quando a tortura foi adicionada às penas para aqueles que
se recusavam a sacrificar.
A emissão do decreto quase ao mesmo tempo da chegada da praga não ajudou os cristãos.
Alguns os culparam.
Os romanos disseram que a praga era o julgamento dos deuses por causa desses incrédulos. Isso
alimentou o sentimento anticristão em todo o império.
Os membros mais proeminentes da sociedade atraíam mais atenção do governo, e isso incluía
os bispos cristãos. Fabiano, o bispo de Roma, recusou-se a sacrificar e foi jogado na prisão, onde
morreu logo depois. Multidões em cidades como Alexandria e Cartago se voltaram contra os
cristãos como inimigos do império e os atacaram. Dionísio, o bispo de Alexandria, escapou com
vida por pouco e se escondeu na Líbia.
Cipriano enfrentou pressão semelhante em Cartago. Ele decidiu fugir para salvar sua vida,
argumentando que precisava permanecer vivo para liderar seu rebanho após o fim da
perseguição. Não foi uma decisão popular entre todos, principalmente aqueles que ficaram e
enfrentaram perseguição. Sem sua liderança, muitos cristãos em Cartago cederam à pressão do
sacrifício.
Nos meses finais de 250, a perseguição começou a diminuir, mas bispos como Cipriano e
Dionísio permaneceram escondidos. Décio morreu em junho de 251 lutando contra os godos na
fronteira norte, e a perseguição deciana chegou ao fim. Cipriano conseguiu retornar a Cartago.
Quando Cipriano voltou, a igreja de lá estava sendo agredida por todos os lados. Ela estava
dividida sobre o que fazer com os cristãos que haviam cedido e sacrificado aos deuses durante a
perseguição. Cipriano também viu sua autoridade sendo desafiada. Do lado de fora, os cristãos
ainda estavam sendo culpados pela praga. Muitas das informações sobre a doença sobrevivem
nos escritos de Cipriano, por isso é muitas vezes (e infelizmente) referida como a Praga de
Cipriano.
Enquanto isso, no centro do poder imperial em Roma, a desordem reinou por mais de dois
anos. Após a morte de Décio, três imperadores diferentes governaram dentro de um período de
dois anos. Hostiliano morreu de peste no final de 251 e foi substituído por Treboniano Galo, que
foi assassinado por suas próprias tropas em 253. Emiliano tornou-se imperador por alguns meses
antes de também ser morto por seus próprios soldados, que colocaram em seu lugar um
governador regional chamado Valeriano.
Valeriano e a intensificação da perseguição
O nome de Valeriano se tornaria famoso nas páginas da história cristã. Antes do final de seu
reinado de sete anos (253 d.C. a 260 d.C.), ele renovaria as políticas de Décio para impulsionar a
religião tradicional e até aumentar a perseguição aos cristãos.
Os cristãos evitaram o assédio generalizado durante os primeiros anos do reinado de Valeriano.
O imperador estava ocupado lutando contra os persas na frente oriental e os godos na frente, ao
longo do Mar Negro. No entanto, em 257, Valeriano estava voltando sua atenção também para
assuntos internos. Seus pontos de vista sobre as ameaças ao império são vistos pelos
historiadores como notavelmente semelhantes aos de Décio, concentrando-se no culto aos deuses
tradicionais. As campanhas de Valeriano não estavam indo bem, então os deuses deveriam estar
com raiva. Ele decidiu que os cristãos tinham que ser a razão, então foi mais longe do que Décio
ao mirar especificamente neles.
Em 257 d.C., ele enviou uma carta da frente persa de volta ao Senado em Roma com
instruções para a supressão do cristianismo. Ele se concentrou na liderança cristã e declarou que
todos os membros do clero deveriam realizar sacrifícios aos deuses ou enfrentar o exílio. Os
cristãos também eram proibidos de ter reuniões — especialmente em cemitérios em homenagem
aos mártires — porque eram vistas como “secretas”. O Império Romano tinha uma longa
tradição de proibir reuniões secretas porque o governo não sabia o que estava acontecendo nelas.
Valeriano recorreu a esse precedente legal. Como vimos no capítulo 2, alguns dos rumores sobre
os cristãos centravam-se no que supostamente acontecia nas reuniões secretas desses “ateus”.
De acordo com um relato da vida de Cipriano, o bispo se recusou a sacrificar e foi exilado
naquele ano para a cidade de Curubis (atual Kourba na Tunísia).
A carta 257 de Valeriano aparentemente não trouxe resultados rápidos o suficiente, então em
258 ele enviou outra carta, que incluía uma ordem direta para executar bispos e outros líderes
cristãos. Os cristãos das classes aristocráticas tinham que realizar sacrifícios aos deuses, ou
perderiam sua posição e seriam despojados de todas as suas propriedades. Se ainda se
recusassem a sacrificar, seriam executados. Nessa época havia cristãos até mesmo dentro da casa
imperial, e se eles se recusassem a sacrificar, seriam forçados à escravidão.
Valeriano esperava matar o cristianismo matando seus líderes. Ele certamente não estava lendo
os escritos do profeta Zacarias, mas teria encontrado o mesmo princípio ali: “Fere o pastor, e as
ovelhas ficarão dispersas” (Zc 13.7, citado por Jesus em Mc 14.27; cf. Mt 26.31). Uma vez que
os líderes e os aristocratas estivessem mortos ou tivessem realizado o sacrifício, o restante dos
cristãos se dissolveria — afinal, não haveria ninguém para liderar suas reuniões ou fornecer
lugares para os cristãos se reunirem. Pelo menos assim pensou Valeriano.
Sisto II era bispo de Roma há menos de um ano quando ele e sete de seus diáconos foram
alvejados. Sisto foi preso enquanto liderava um culto em uma das catacumbas cristãs e
decapitado. Seus diáconos logo trilharam o mesmo caminho.
O mais famoso deles foi Lourenço. De acordo com uma tradição, após a morte de Sisto,
Lourenço foi instruído a entregar toda a riqueza da igreja. Ele pediu três dias para efetuar o
recolhimento e, durante esse tempo, distribuiu todas as propriedades da igreja aos pobres e
necessitados de Roma. Quando ele se apresentou ao governador três dias depois, mostrou
algumas dessas pessoas desprivilegiadas como os verdadeiros tesouros da igreja. Ele foi
imediatamente morto e é lembrado como São Lourenço, porque morreu como mártir.10
Em 258 Cipriano estava de volta a Cartago, e o governador regional da África, Galério
Máximo, veio procurá-lo. Como no ano 250, o bispo teve uma escolha a fazer: ficar e morrer ou
fugir e tentar ajudar a igreja no futuro. Inicialmente, ele novamente escolheu se esconder, mas
depois se entregou.
Galério o trouxe para julgamento e tentou convencer o bispo a sacrificar aos deuses, mas
Cipriano recusou-se. O governador finalmente não teve escolha a não ser pronunciar uma
sentença:
Por muito tempo você viveu uma vida ímpia e reuniu várias pessoas como parte de sua associação ilegal. Você se declarou
abertamente inimigo dos deuses e da religião de Roma. Os imperadores piedosos, sagrados e honrados [...] tentaram em
vão alinhá-los com nossas práticas religiosas. Já que você foi preso como chefe e líder desses crimes terríveis, vamos fazer
de você um exemplo para seus outros associados nessas práticas perversas. A autoridade da lei será verificada pelo
derramamento de seu sangue [...] Está decidido que Tácio Cipriano será punido pela espada (Acta Cipr. 4).
Observe as acusações contra Cipriano, que se relacionavam diretamente com os esforços de
restauração de Valeriano. Cipriano foi acusado de ser “ímpio” e parte de uma “associação
ilegal”. Ele foi acusado de ser “um inimigo dos deuses e da religião de Roma”. Porque ele era o
“líder” deste grupo, os romanos iriam fazer dele um “exemplo”. Galério pensou que quando os
outros cristãos o vissem derramar o sangue de Cipriano, eles aprenderiam a lição e entrariam na
linha.
Em 14 de setembro de 258 d.C., Cipriano morreu como mártir por decapitação na cidade de
Cartago.
Descobriu-se que Galério estava certo, mas não da maneira que esperava. Cipriano tornou-se
um exemplo para outros cristãos; mas, em vez de ficarem com medo por causa do que aconteceu
com seu bispo, eles se tornaram ainda mais ousados em sua fé. (A mesma coisa aconteceu entre
os primeiros cristãos quando Paulo foi lançado na prisão. Veja Fp 1.12-14.) Nos séculos que se
seguiram, Cipriano foi reverenciado como o mártir africano ideal. Ele representava o que
significava encarar a morte de frente, sem vacilar.
Pôncio era diácono em Cartago na época de Cipriano e conhecia bem o bispo. Em seu livro A
vida de Cipriano, escrito logo após seu martírio, Pôncio refletiu sobre sua morte:
Por ter sofrido dessa maneira, Cipriano, que havia sido um exemplo para todos os homens bons, também se tornou o
primeiro exemplo no norte da África que encharcou [de sangue] sua coroa sacerdotal. Ele foi a pessoa mais importante
depois dos apóstolos para servir de exemplo dessa maneira. (Vit. Cypr. 19)
Matar o pastor não fez com que as ovelhas se dispersassem. Em vez disso, tornou seu rebanho
ainda mais determinado — embora, como veremos, não necessariamente unido.
Poucos líderes cristãos na história enfrentaram tantos desafios quanto Cipriano. Como bispo,
ele viu duas rodadas de perseguição imperial e uma praga. Ele pagou por sua fé com sua vida, e
por isso ele é honrado dentro do cristianismo até hoje como o maior de todos os mártires
africanos.
Mas em seu próprio tempo, Cipriano teve que lutar para manter sua igreja — que sofreu tanto
do lado de fora, como sendo dilacerada por dentro.

9 Essa analogia é adaptada de Mike Aquilina e James L. Papandrea, Seven Revolutions: How Christianity Changed the World
and Can Change It Again (New York: Image, 2015), p. 11-14.
10 Na tradição católica romana, Lourenço é o terceiro maior santo de Roma, depois de Pedro e Paulo. Ele é o santo padroeiro dos
pobres, dos diáconos, dos bibliotecários, dos comediantes (porque enganou o governador) e dos chefs — inclusive produtores
específicos de churrasco. (Isso lhe garante pontos no meu livro.)
Capítulo
9

Cipriano:
Sobre perdão e unidade
Ideias-chave
• Diferentes respostas cristãs à perseguição criaram uma situação desafiadora, pois aqueles
que sacrificaram aos deuses e aqueles que se recusaram estavam ambos na igreja.
• Cipriano assumiu uma posição bastante rigorosa sobre a reintegração dos decaídos,
enquanto estava mais disposto a oferecer cartas de perdão aos que confessavam.
• Cipriano enfrentou desafios à sua autoridade por parte daqueles que o viam como muito
rígido, bem como daqueles que o acusavam de ser muito brando.
A perseguição da igreja que aconteceu sob Décio colocou os cristãos sob tremenda pressão.
Em alguns casos, eles tiveram que decidir entre a vida e a morte, entre manter seus bens e perdê-
los, ou mesmo entre as exigências de sua fé e as exigências de suas famílias. Foi um momento
desafiador.
Mas mesmo depois que a perseguição terminou, todos não podiam simplesmente voltar à vida
normal.
Diferentes respostas à perseguição
Conforme vimos no capítulo anterior, o imperador exigia que todas as pessoas sacrificassem e
recebessem um recibo mostrando que haviam o realizado. Aqueles que pertenciam à classe alta e
os líderes cristãos foram particularmente alvos da regulamentação, mas qualquer um poderia ser
solicitado a apresentar provas do sacrifício. Mesmo um diarista poderia ser acusado por um
vizinho de traição por se recusar a oferecer o sacrifício. Portanto, ninguém estava realmente
seguro a menos que tivesse um libellus (recibo).
Nem todos os cristãos responderam à situação da mesma maneira. Podemos agrupar as pessoas
nas igrejas em duas grandes categorias. Tanto durante quanto após a perseguição, os líderes
tiveram que lidar com o fato de que ambas as categorias estavam juntas .
O primeiro grupo são os confessores. Eram pessoas que se recusaram a oferecer o sacrifício e,
portanto, foram lançadas na prisão, enviadas para o exílio, despojadas de todas as suas
propriedades, ou alguma combinação dessas penalidades. Eles confessaram a Cristo no momento
da provação e, portanto, viveram de acordo com o padrão de Cristo em Mateus 10.32,33:
“Portanto, todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de
meu Pai, que está nos céus; mas aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei
diante de meu Pai, que está nos céus”. Os confessores podem não ter sido enviados para a arena,
mas ainda assim foram reverenciados porque não recuaram e sofreram como resultado de sua
atitude.
Dentro dessa categoria, alguns enfrentaram a execução. Conforme registram numerosos relatos
de martírio, atirar uma pessoa às feras não era garantia de morte. Às vezes, os animais não
estavam com fome ou não estavam interessados por algum motivo. Temos relatos de animais
sendo forçados a atacar pessoas. Algumas pessoas sobreviveram a esses ataques, mas
carregavam em seus corpos cicatrizes e outras mutilações. Normalmente, pensamos em mártires
como aqueles que morreram por sua fé. Mas, aos olhos de muitos cristãos, os sobreviventes
também deram a vida, de modo que eram, na verdade, mártires vivos.
Alguns, é claro, morreram. Embora esses mártires não estivessem mais na igreja, seu exemplo
e sacrifício ainda importavam.
O segundo grupo são os lapsos. Nem todos acreditavam que sua fé valia a pena a ponto de
sacrificar suas vidas ou suas propriedades, então eles simplesmente ofereceram o sacrifício aos
deuses romanos. Eles caíram, o que significa que eles foram vistos como desistentes de sua fé. O
termo “apóstata” (aqueles que abandonaram sua fé) também foi usado para descrevê-los. Cartas
sobreviventes escritas por Cipriano, Cornélio de Roma e Dionísio de Alexandria sugerem que
muitos cristãos se enquadravam nessa categoria. Talvez eles tenham sacrificado por medo, ou
talvez tenham tentado oferecer alguma justificativa teológica. Eles poderiam ter dito: Todos nós
sabemos pelos escritos de Paulo que esses outros deuses e deusas não são deuses reais, certo?
Eles são apenas madeira e pedra, então se eu for fazer uma oferenda, não estou realmente
fazendo uma oferenda a um deus ou deusa pagã. Não estou realmente desonrando a Deus,
porque esses não são deuses reais.
Como vimos, a religião romana não era sobre crença ou fé, mas sobre ação, de modo que os
oficiais romanos não se importavam se as pessoas acreditavam nos deuses ou não. Elas só
precisavam realizar a ação. Um cristão poderia, portanto, oferecer o sacrifício sabendo que esta
era uma ação inútil, e os oficiais do governo não se importariam. Mas aos olhos de alguns outros
cristãos, essas pessoas abandonaram a fé. Eles caíram e foram culpados de idolatria porque
sacrificaram aos deuses pagãos.
Dentro da categoria geral dos lapsos, havia um grupo distinto, os “compradores de libellus”.
Alguns cristãos não queriam oferecer o sacrifício, mas também não queriam enfrentar as severas
penalidades por não fazê-lo. Eles descobriram uma maneira de contornar essa situação:
precisavam de um recibo, mas havia mais de uma maneira de obter um. Alguns parecem tê-los
comprado de outras pessoas. Se um vizinho não fosse cristão, uma pessoa poderia comprar seu
libellus, e então poderia voltar e pegar outro. O cristão tecnicamente não estava oferecendo o
sacrifício, mas poderia mostrar a documentação necessária se fosse exigido.
Outros simplesmente subornaram seus funcionários locais. Entendo que seja difícil imaginar
oficiais do governo recebendo subornos (insira o sarcasmo aqui), mas no mundo antigo às vezes
isso acontecia. Essas autoridades locais realmente se importavam com o que os cristãos
acreditavam? Não, de jeito nenhum. Também sabemos por vários relatos de martírio que o
processo de julgar e executar pessoas às vezes era mais trabalhoso do que qualquer outra coisa.
Portanto, os cristãos que tinham meios financeiros às vezes podiam comprar um libellus. Todo
mundo saiu ganhando, certo? O cristão não se sacrificava e era protegido, e o oficial local
ganhava algum dinheiro extra.
Mas aos olhos de outros cristãos, essas pessoas falharam em defender a fé.
Unidade cristã?
Precisamos imaginar a igreja em uma cidade como Cartago, mesmo enquanto a perseguição
sob Décio ainda estava acontecendo. Em qualquer reunião da comunidade cristã, todas essas
categorias de pessoas podem estar presentes: confessores, mártires vivos, lapsos, compradores de
libellus e aqueles que pagaram suborno. Como seria isso?

Imagine estar nessa situação. E se seu irmão morresse na perseguição? E se ele foi martirizado
no sentido mais extremo? Ou talvez ele não tenha morrido, mas está sentado ao seu lado com
cicatrizes extensas, talvez até sem um membro. Ou talvez ele ainda esteja na prisão aguardando
notícias de seu destino. À sua frente está uma confessora. Ela se recusou a sacrificar e foi jogada
na prisão. Ela pode ter sido ou não espancada na prisão, mas nunca negou sua fé e desde então
foi libertada.
No entanto, sentada atrás de você está uma família que ofereceu o sacrifício aos deuses pagãos.
Quando o decreto foi emitido, eles voluntariamente foram e cometeram idolatria. Perto da frente
da assembleia está sentado um dos homens mais ricos da igreja. Ele possui propriedades
significativas e é amigável com muitas autoridades locais. Ele não ofereceu o sacrifício, mas
subornou um de seus amigos no governo para lhe dar um libellus.
Então, pense novamente na pergunta: como seria isso?
À medida que o culto continua, chega a hora da Eucaristia, ou Ceia do Senhor (também
chamada de Comunhão em algumas tradições). Isso foi instituído por Jesus como um ritual
contínuo que lembra a comunidade cristã de sua unidade em torno do núcleo da fé. Ela une todos
os cristãos como um sinal de que todos precisam de Cristo e todos são iguais diante dele.
Lembre-se de que, em 1Coríntios 11, o apóstolo Paulo está irado porque a Ceia do Senhor se
tornou uma fonte de divisão, em vez de unidade.
Como você se sentiria se, quando fosse tomar parte da Ceia, estivesse ombro a ombro com
pessoas que cederam sacrificando aos deuses ou trabalhando pelos padrões do sistema? A
Eucaristia envolve compartilhar o pão e o cálice para mostrar unidade, mas você sentiria um
vínculo de união com aqueles que haviam cedido a pressões do mundo? Você se sentiria unido
em um vínculo de amor mútuo com alguém que havia dito: “Ah, eu não queria ter dito aquilo.
Eu só me sacrifiquei para ficar longe de problemas” ou “Eu subornei alguém para fazer isso por
mim. Mas agora estou de volta e pronto para adorar a Cristo”?
Como bispo, Cipriano teve que lidar com essa situação. Era uma questão real, não hipotética.
O que você faz com as pessoas que “desistiram de sua fé”, fazendo o sacrifício ou pagando um
suborno, e depois voltam e querem participar da Eucaristia com pessoas que foram presas por
sua fé? Como preservar a unidade? Como preservar a comunidade?
E lembre-se do que Cipriano fez quando a perseguição começou. Seguindo o conselho de outros
líderes, ele se escondeu para preservar sua própria vida até que a pressão diminuísse.
Os lapsos
Cipriano estava lidando com uma situação política delicada. Como ele poderia honrar o
sacrifício dos mártires e confessores enquanto também cuidava daqueles que buscavam o
perdão? Isso estava se tornando uma situação mais complicada do que o bispo poderia imaginar.
Ele foi além de distinguir categorias de pessoas na igreja para a questão da própria autoridade da
igreja e até mesmo para a questão do batismo (como veremos no capítulo 10).
Cartago e Roma tinham uma relação frequente durante esse período, então o que estava
acontecendo em Roma deve fazer parte de nossa discussão. Devemos ter em mente que a
perseguição também estava acontecendo em Roma, e Fabiano, bispo daquela região, morreu
poucos meses após o início da perseguição de Décio. Alguns cristãos em Roma defendiam uma
posição rigorosa em relação aos lapsos. Eles viam o pecado do lapso como muito sério para ser
facilmente perdoado. No ponto mais extremo dessa posição, alguns argumentaram que o lapso
nunca poderia ser restaurado à plena comunhão na igreja. Essa posição foi assumida por uma das
principais figuras da igreja romana, um homem chamado Novaciano.
Por causa da intensidade da perseguição de Décio, Roma não teve um bispo por quase um ano
após a morte de Fabiano. Durante esse intervalo, um pequeno grupo de padres influentes,
incluindo Novaciano, liderou a igreja. Em uma série de cartas, Novaciano expôs seu argumento
contra o perdão dos lapsos. A idolatria — ele argumentou — era um pecado que não podia ser
perdoado, pelo menos não pela igreja. Aqueles que abandonaram sua fé nunca poderiam ser
totalmente restaurados à comunidade cristã, porque somente Deus poderia perdoar esse pecado.
Uma pessoa poderia entrar em um período de penitência, o que significa que estava em condição
de implorar por perdão pelo pecado. Normalmente, após um período de tempo, ela poderia ser
restaurada à igreja. Mas Novaciano argumentou que a penitência para os lapsos tinha que durar
pelo resto de suas vidas. Talvez Deus lhes perdoasse na vida após a morte.
Cerca de um ano após a morte de Fabiano, Cornélio foi eleito bispo de Roma. Ele assumiu uma
posição menos rigorosa do que Novaciano. O perdão e a readmissão na igreja não seriam simples
ou rápidos, mas ainda eram possíveis por meio do processo de penitência. Aqueles que estavam
realmente arrependidos poderiam ser readmitidos. A igreja romana foi abalada porque alguns
padres queriam que Novaciano fosse bispo, e a maioria dos cristãos romanos o apoiava. Cornélio
discordou de Novaciano acerca do perdão e o viu como um rival. Novaciano acabou sendo
expulso da igreja (excomungado) e então viria a fundar sua própria igreja. (Depois disso,
Cornélio e outros se envolveram em assassinato de reputação, inventando todos os tipos de
acusações ultrajantes contra ele. Novaciano foi muitas vezes acusado de heresia, mas seu único
“crime” foi desafiar Cornélio. Notavelmente, Novaciano escreveu um importante tratado
teológico defendendo a doutrina ortodoxa da Trindade.)
A igreja romana não assumiu a posição mais estrita, e Cipriano estava inclinado a concordar
com sua perspectiva. Cartago e Roma mostraram uma abordagem comum para a questão dos
lapsos. Mas Cipriano enfrentou um desafio a essa posição e à sua autoridade como um todo de
uma fonte inesperada e formidável: os confessores.
Por sua coragem e sacrifício, os confessores (incluindo os “mártires vivos”) eram tidos em alta
conta nas comunidades cristãs. A essa altura, muitos acreditavam que os mártires tinham grande
autoridade espiritual e influência no céu com Deus, porque haviam morrido pela fé. Os
confessores estavam dispostos a desistir de suas vidas, então, aos olhos de muitos, eles tinham
autoridade carismática e podiam aplicá-la nesta vida e na próxima.
Essa ideia não era nova. Como vimos, em uma das visões de A paixão de Perpétua e
Felicidade, um bispo e um presbítero imploraram a Perpétua que resolvesse seu desacordo.
Podemos esperar que esses confessores estejam entre os mais rigorosos no que diz respeito ao
perdão. Afinal, eles estavam dispostos a pagar o preço final. No entanto, ironicamente, as fontes
nos dizem que os confessores foram mais indulgentes do que bispos como Cipriano e Cornélio.
Os confessores ofereceram perdão para alguns cristãos que os procuravam: Temos autoridade
para perdoar porque estávamos dispostos a pagar o sacrifício final. E estamos dispostos a
perdoar aqueles que estão realmente arrependidos. Os confessores emitiam cartas de perdão aos
lapsos e prometiam interceder junto a Deus em seu favor. Essas cartas logo estavam sendo
produzidas em grandes quantidades e distribuídas livremente.
Essa situação causou dois problemas para Cipriano. Primeiro, os confessores estavam
promovendo uma política diferente da do bispo. Assim como Novaciano, por seu rigor, ameaçou
Cornélio em Roma, os confessores ameaçaram Cipriano por ser brando demais. Em segundo
lugar, os confessores estavam desafiando diretamente a autoridade do bispo. De acordo com a lei
da igreja, o bispo era a mais elevada autoridade espiritual em sua cidade ou região. Ele
controlava as práticas da igreja, incluindo a penitência. Os confessores ousaram falar e agir no
lugar do bispo, até mesmo diretamente contra ele. Eles, sendo a própria autoridade, de fato
criaram uma hierarquia espiritual alternativa.
Cipriano estava preso. Ele não queria passar para a posição branda acerca do perdão, mas
também não podia ser visto como crítico ou contrário aos confessores. Esse foi um campo
minado político para Cipriano, porque enquanto os confessores ficaram e enfrentaram
perseguição, ele se escondeu — e estava em uma posição vulnerável. Cipriano procurou nas
Escrituras orientações específicas sobre como proceder, mas nem Jesus nem os apóstolos haviam
enfrentado uma situação exatamente como essa. Ele teria que traçar seu próprio curso.
Inicialmente, Cipriano tentou andar em uma linha estreita. Ele reconheceu a autoridade das
cartas dos confessores, mas disse que elas se aplicavam apenas a alguém que estivesse em seu
leito de morte. Se uma pessoa decaída quisesse ser imediatamente restaurada à igreja, a única
maneira de fazer isso era ir até os oficiais do governo e receber de volta seu sacrifício, arriscando
assim suas vidas e tornando-se confessores. Alguns aceitaram esse compromisso, incluindo
alguns dos confessores, enquanto outros alegaram que o bispo não tinha o direito de questionar a
autoridade dos confessores. Se os confessores emitiam o perdão, então a pessoa, sem dúvida
nenhuma, recebia perdão. Cipriano estava arriscando e evitando uma rebelião aberta. Mesmo
entre os outros líderes da igreja em Cartago, ele estava à beira de ser derrubado.
Na primavera de 251, a perseguição diminuiu ainda mais, embora Décio ainda estivesse vivo
por mais alguns meses. À medida que a Páscoa se aproximava, Cipriano se preparava para voltar
do esconderijo a Cartago. Nessa época ele escreveu Os lapsos, uma de suas obras mais famosas.
Ele abriu a obra com um extenso elogio aos confessores e sua coragem. Ele teceu isso de
forma hábil em seu argumento principal: dividir a igreja é um pecado pior do que a idolatria. Os
confessores sofriam pela igreja, mas agora alguns estavam no processo de destruir a própria
igreja que haviam sacrificado para preservar. Ele chorou por causa da “violência hostil que
arrancou uma parte de nossas próprias entranhas e as jogou fora com cruel destruição”. Os
confessores deveriam chorar e sofrer com seu bispo, e o próprio Cipriano foi traspassado pelas
“espadas cruéis” dos rebeldes (Laps. 4). Já era ruim o suficiente que a igreja estivesse
enfrentando a destruição do lado de fora, mas agora ela também estava sendo dilacerada por
dentro.
A unidade é o bem maior, e a unidade deve ser mantida. Aqueles que lutam contra a unidade
destroem a igreja e não fazem parte dela. Ele abordou essa questão em primeiro lugar como um
pastor. O que servirá à igreja como um todo em tempo e espaço real? Ele não poderia tratar a
questão como apenas um conceito ou um debate teológico.
Essa obra em prol da unidade pode ter ajudado alguns, mas não resolveu completamente o
problema. No final da primavera de 251, um grupo de bispos africanos finalmente se reuniu para
discutir a situação. Ser rigoroso ou negligente demais poderia dividir a igreja. Eles delineavam e
dividiam os lapsos entre aqueles que realmente haviam realizado o sacrifício (os
“sacrificadores”) e aqueles que haviam recebido um libellus por compra ou suborno (os
“certificados”). Os “sacrificadores” permaneceriam em penitência até o leito de morte, e só então
poderiam ser restaurados à igreja e receber a Eucaristia. Já um “certificado”, a depender do caso,
podia ou não ser restaurado imediatamente.
Cipriano tinha a tarefa aparentemente impossível de tentar manter todos juntos e estava sob
ataque de todos os lados. Ele teve que suavizar até mesmo sua própria posição sobre o perdão
por causa da unidade, e assim o fez.
O que é a Igreja?
O debate sobre os lapsos poderia ser interpretado de diferentes maneiras, mas uma das
questões centrais era esta: O que é a igreja? A maneira como as pessoas pensaram sobre essa
questão contribuiu muito para determinar sua perspectiva nesse debate.
Gostaria de apresentar duas ilustrações diferentes para nos ajudar a entender as diferentes
perspectivas daquele tempo. Para ser claro, essas ilustrações não foram usadas no século III,
porque não existiam naquela época. São imagens do nosso tempo, mas acredito que ainda
podemos usá-las para nos ajudar a pensar sobre seus conceitos de igreja. (Essas imagens também
podem nos permitir refletir sobre nossos próprios conceitos de igreja.)
A igreja é como uma sala limpa ou como um hospital?
Qualquer empresa que fabrica equipamentos eletrônicos ou suprimentos médicos tem uma sala
limpa. É um lugar construído para estar livre de qualquer contaminação. Numa fábrica de
produção de peças eletrônicas e para computadores não deve haver poeira, pois ela pode estragar
o equipamento. Em uma fábrica de suprimentos médicos, quaisquer germes ou vírus
contaminariam os produtos. Em uma sala limpa, os trabalhadores usam máscaras, luvas, óculos e
aventais completos. Tudo tem que ser perfeito, ou pelo menos o mais próximo possível da
perfeição.
A igreja deveria ser assim? Deveria ser um lugar apenas para o limpo, para o (aparentemente)
perfeito? Se assim for, então os lapsos não devem ser permitidos de volta porque eles
contaminariam a igreja. Novaciano representava essa perspectiva e, até certo ponto, Cipriano
também. Eles não queriam readmitir os lapsos facilmente ou de forma alguma, pois isso tornaria
a igreja impura.
A equipe de um hospital também quer manter as coisas o mais limpas possível, mas todo o seu
objetivo é acolher os doentes e feridos. Eles realmente querem que o imperfeito venha, pois
dedicaram suas vidas a servir as pessoas necessitadas. Médicos e enfermeiros podem confrontar
pessoas que acabam no hospital porque tomaram decisões erradas, mas não se recusam a tratá-
las.
A igreja deveria ser assim? Deveria ser um lugar onde o objetivo é que as pessoas fiquem boas
estando lá, de modo que os pecadores e caídos sejam a razão pela qual a igreja existe? Os lapsos
e os compradores de libellus haviam caído, então o lugar que eles mais precisavam estar era na
igreja, e não deixados de fora dela. Eles precisavam fazer parte da comunidade se quisessem
ficar bem. Essa foi a posição mais indulgente adotada por muitos dos confessores, e alguns dos
líderes africanos que desafiaram Cipriano.
Podemos fazer a mesma pergunta sobre a igreja hoje. É um lugar para os sãos? Ou as portas
estão abertas para os doentes? Queremos manter um certo nível de pureza (ou pelo menos a
aparência de pureza)? Ou a igreja deveria ser um lugar bagunçado cheio de pessoas caídas? Ou é
uma mistura dos dois? Dependendo de como respondemos a essa pergunta, como respondemos
quando as pessoas falham?
Essa questão dos lapsos teve implicações mais amplas e logo levou a outro debate, este sobre a
questão do batismo e rebatismo.
Capítulo
10

Cipriano:
A controvérsia do rebatismo
Ideias-chave
• Ambos os partidos rigoristas (os mais severos) e laxistas (os mais brandos) se opuseram a
Cipriano e até elegeram seus próprios bispos rivais de Cartago.
• Cipriano argumentou que os batismos de cismáticos e hereges não eram legítimos porque
esses clérigos não eram puros. Portanto, as pessoas provenientes desses grupos tiveram
que ser rebatizadas.
• Estêvão I de Roma tomou uma posição diferente sobre a questão do rebatismo, o que
provocou um desacordo entre os bispos de Cartago e Roma.

Mesmo após a morte de Décio em 251 d.C., Cipriano e a igreja africana não tiveram paz e
sossego. Eles ainda estavam no meio de uma praga, e bispos rivais com suas correspondentes
estruturas de liderança contaminaram a autoridade de Cipriano.
Bispos rivais
De um lado estava o grupo mais rígido, “os rigoristas”. Aparentemente liderados por homens
enviados ao norte da África por Novaciano e seus seguidores, os rigoristas argumentaram que o
lapso nunca poderia ser restaurado à igreja. Somente Deus poderia perdoar o pecado da idolatria,
então os lapsos morreriam fora da paz da igreja e enfrentariam seu destino eterno por conta
própria.
Em 252, os novacianistas ordenaram um presbítero romano (ancião) chamado Máximo como
bispo e o enviaram a Cartago para desafiar Cipriano. Os rigoristas concordaram com Cipriano,
afirmando que o bispo tinha autoridade para controlar quem era aceito e quem não era aceito na
igreja. Mas eles acreditavam que Cipriano havia se desqualificado como bispo por seus frouxos
padrões. Esse partido estrito gozou de amplo apoio em algumas partes da África.
Do outro lado encontravam-se “os laxistas” — entre muitos dos quais, sem dúvida, estavam os
lapsos. Aproveitando a posição mais generosa dos confessores, eles apoiaram a restauração
imediata à igreja de todos os que pediam perdão. Terminada a perseguição, a importância
política dos confessores começou a mudar. Não eram tão influentes quanto no tempo de Décio,
mas os laxistas não queriam que sua abertura ao perdão cedesse ao rigor de Cipriano ou, pior
ainda, aos novacianos.
Já na primavera de 251, o partido laxista ganhou força entre alguns bispos africanos. Seu líder,
Privato, tinha sido o bispo de Lambesis, uma cidade na região da Numídia, a oeste de Cartago.
Ele havia sido afastado do cargo em 240 por um conselho sob a acusação de heresia e má
conduta, mas agora estava de volta e envolvido com a política da Igreja. Ele e alguns outros
apoiadores ordenaram um homem chamado Fortunato, que havia sido presbítero sob Cipriano,
para servir de alternativa como bispo de Cartago. Os lapsos da África tinham boas razões para
apoiar esse grupo, já que estes permitiram que eles voltassem às suas igrejas.
Assim, por um período de tempo, houve três pessoas diferentes afirmando ser o legítimo bispo
de Cartago.
A reunificação e a questão do rebatismo
Essa situação durou vários anos, mas eventualmente alguns procuraram se reunificar com
outros cristãos. Isso levou a outro evento traumático durante o tempo de Cipriano: a controvérsia
do rebatismo.
Em 254 ou 255 um grupo de bispos da Numídia enviou uma carta a uma reunião do clero
(sínodo) em Cartago que estava em plena comunhão com Cipriano. Pessoas de outro grupo,
certamente os laxistas, queriam se juntar à igreja principal e não tinham certeza do que fazer.
Tecnicamente, essas pessoas eram cismáticas, não hereges. Antes de prosseguirmos, devemos
ser claros sobre a distinção entre essas duas categorias. A palavra “cisma” refere-se a uma
divisão ou separação, então cismáticos são aqueles que estão de alguma forma separados dos
outros na igreja, mas ainda sob a sua cobertura. Eles compartilham o mesmo núcleo teológico,
mas diferem em alguma questão de crença ou prática. Como vimos no capítulo anterior, para
Cipriano, o cisma era um assunto muito sério. Aos seus olhos, quebrar a unidade da igreja era
pior do que cometer idolatria. Os bispos rivais dos laxistas e dos rigoristas eram tecnicamente
cismáticos. Eles podiam confessar os mesmos credos, mas ainda eram problemáticos.
Os hereges, por outro lado, foram separados da igreja em algumas crenças teológicas centrais.
Eles não representavam apenas visões cristãs alternativas sobre alguma questão ou algumas
questões. Eles eram vistos como não cristãos. Eles representavam uma ruptura não dentro da
igreja, mas a partir da igreja.
Parece que os bispos numidianos estavam perguntando o que fazer com os cismáticos, não com
os hereges. Os hereges eram completamente não cristãos, então todos os seus ritos e pretensos
sacramentos não eram reconhecidos, incluindo o batismo. Mas e os cismáticos? Se uma pessoa
foi batizada em um grupo cismático, isso é válido? Ou eles deveriam ser rebatizados na igreja
dominante (que Cipriano e seus aliados chamavam de igreja católica [universal])?11
Um concílio anterior da igreja na África declarou com todas as letras que o “batismo”
administrado por hereges não contava. Mas e aqueles que querem passar da igreja laxista para a
igreja católica? Parece que as pessoas que se mudaram da igreja católica para os laxistas foram
recebidas sem nenhum problema, então a igreja convencional deveria mostrar a mesma
aceitação? Aprendemos pelos escritos de Cipriano que Cartago também começou a ver a mesma
situação. Alguns que haviam deixado a igreja de Cipriano para se juntar aos laxistas estavam
começando a retornar. O que deveria ser feito com eles? Afinal, eles não eram hereges em
nenhum sentido técnico.
Cipriano defendeu uma posição rigorosa. Não haveria distinção entre batismo por cismáticos e
batismo por hereges. Nenhum deles era legítimo.
Lembre-se de que Cipriano valorizava muito a unidade, mas também valorizava a pureza. É
por isso que ele demorou para receber os que haviam retornado à comunhão com a igreja. Nesse
caso, isso também o levou a rejeitar os bispos cismáticos como completamente ilegítimos. Eles
não eram bispos inferiores; eles não eram bispos de forma alguma. Para Cipriano, a unidade
cristã não estava em jogo porque tais bispos não eram cristãos verdadeiros.

Imagem 10.1: Batistério em Tipasa.

Para que a igreja africana fosse unificada e pura, o grupo de bispos africanos como um todo (o
“colégio” de bispos) também deveria ser unificado e puro. Cipriano não acreditava que cada
bispo individualmente tivesse autoridade separada e independente desde os apóstolos. Ele
acreditava que o colégio dos bispos como grupo tinha autoridade dos apóstolos como grupo.
Qualquer cismático ou herege desse grupo contaminaria todo o colégio.
Os bispos alternativos rigorosos e laxistas na África eram falsos e, portanto, seus chamados
sacramentos eram falsos também. O batismo, a Eucaristia, a penitência ou qualquer outra
atividade realizada sob a autoridade de um bispo cismático era nula, porque esses bispos
contaminados e falsificados não tinham autoridade espiritual para conferir o Espírito Santo ou
oferecer perdão.
Cipriano estava defendendo um forte senso de autoridade da Igreja, focado nos bispos. Isso foi
coerente com seus pontos de vista sobre os lapsos. Como você deve se lembrar, no capítulo 9,
Cipriano estava preocupado porque alguns confessores estavam oferecendo perdão com muita
facilidade e, portanto, minando sua autoridade como bispo.
Aos olhos de Cipriano, ele não estava defendendo o rebatismo, mas simplesmente o batismo, já
que os cismáticos não tinham posição ou poder espiritual. Por serem impuros, eles não podiam
realizar os sacramentos. Em outras palavras, o batismo só era eficaz e efetivo se realizado por um
bispo “apropriado”. A graça de Deus no batismo tinha que fluir por meio de um canal puro.
Nos escritos de Cipriano sobre o assunto, ele atacou a impureza dos bispos cismáticos. Em
uma carta a Cornélio de Roma, Cipriano se referiu a um grupo cismático como “uma facção de
desesperados” (Ep. 54.1). Ele chamou Fortunato, o bispo rival laxista de Cartago, de um “bispo
falso colocado naquele lugar por alguns hereges incuráveis” (Ep. 54.9). Privatus, o líder do
partido laxista, era um “velho herege que havia sido condenado há muito tempo por muitos
crimes graves” (Ep. 54.10).
Suas impurezas pessoais os desqualificavam para serem bispos e, portanto, para administrar
batismos legítimos. Portanto, qualquer um que viesse de seu grupo para se juntar à igreja
principal tinha que passar por um processo de ser aceito para o batismo e depois batizado.
Cipriano atacou abertamente esses bispos impuros e quaisquer bispos que tivessem traído seu
dever ao reconhecer os batismos realizados em igrejas cismáticas.
Conflito com Roma
Em 254 d.C. Estevão I tornou-se bispo de Roma. Ele ainda estava lidando com desafios na
Roma de Novaciano e sua hierarquia eclesiástica alternativa, e por isso já era bastante
familiarizado com as questões levantadas pelo cisma.
O ano de 256 marcou uma virada na controvérsia do rebatismo e o início do conflito aberto
entre a igreja africana e Roma. Na primavera daquele ano, Cipriano enviou várias cartas a
Estêvão sobre essa controvérsia. Ele incluiu uma carta dos bispos africanos afirmando que eles
estavam exigindo o rebatismo.
Cipriano recebeu uma carta de Estêvão naquele verão e deve ter ficado chocado com o que leu.
Ele descreveu o conteúdo da resposta de Estêvão em uma carta a outro bispo, Pompeu,
possivelmente o bispo de Sabrata, na Trípoli romana (atual Líbia).
Estevão ficou irado porque a igreja africana estava rebatizando. Ao explicar sua posição, ele
distinguiu entre duas partes do processo batismal como era praticado naquela época em todo o
mundo cristão, incluindo a África. Primeiro, um novo convertido era batizado e, imediatamente
depois, o bispo impunha as mãos sobre ele para lhe conferir o Espírito Santo. Estevão
argumentou que apenas a segunda parte precisava ser refeita. O rebatismo não era necessário,
mesmo que fosse um herege, não apenas um cismático. Cipriano citou a carta de Estêvão:
Se alguém, portanto, vier a você por algum tipo de heresia, não faça nada que não tenha sido transmitido. Quero dizer que
as mãos devem ser impostas sobre ele para arrependimento, uma vez que os próprios hereges, em sua própria prática, não
batizam quem vem a eles de outro grupo, mas apenas os admitem à comunhão. (Ep. 73.1)
A imposição de mãos precisava ser feita pelo bispo, mas isso era tudo. Ele alegou que essa era
a tradição que havia sido “transmitida” e, portanto, que os africanos estavam errados em se
afastar dela. Ele conclui dizendo que a igreja tradicional/católica deveria receber hereges sem
rebatismo, assim como os hereges o faziam.
Cipriano ficou furioso. Ele rejeitou o direito de Estêvão de dizer à igreja africana o que fazer
— e isso ocorreu muito antes do estabelecimento da autoridade incontestada do bispo romano
(papa) no Ocidente. Além disso, ele não podia acreditar no conteúdo da carta de Estêvão. Ele o
acusou de tentar “manter a causa dos hereges contra os cristãos e contra a igreja de Deus”. Ao
reconhecer o batismo dos hereges, ele havia “adotado as mentiras e a contaminação de uma
lavagem suja” (Ep. 73.1-2). Cipriano ficou particularmente perturbado porque Estêvão pensou
que a igreja deveria seguir o exemplo dos hereges: “A igreja de Deus e a esposa de Cristo
tornaram-se tão más que seguem os exemplos dos hereges. Com o propósito de celebrar os
sacramentos celestiais, [Estêvão afirma] a luz deve emprestar práticas das trevas, e os cristãos
devem fazer o que os anticristos fazem” (Ep. 73.4). Note que qualquer distinção entre cismáticos
e hereges desapareceu. Para Estevão, reconhecer o batismo dos cismáticos foi tão ruim quanto
reconhecer o batismo dos hereges.
O bispo africano foi implacável em seu ataque pungente a Estêvão. O bispo romano, ele
acusou, havia se sujado ao formar uma aliança com os hereges e ameaçar a verdadeira igreja de
Deus:
Ele [Estêvão] dá glória a Deus quando reconhece o batismo de Marcião? Ele dá glória a Deus quando julga que o perdão
dos pecados é concedido entre aqueles que blasfemam contra Deus? [...] Dá glória a Deus aquele que se tornou amigo dos
hereges e inimigo dos cristãos, que pensa que os sacerdotes de Deus — que sustentam a verdade de Cristo e a unidade da
Igreja — devem ser excomungados? (Ep. 73.8)
Marcião foi considerado um dos hereges mais perigosos do século II. A igreja romana o havia
excomungado porque, dentre outras coisas, ele rejeitava tudo que viesse dos judeus. Ele ensinou
que o mundo foi criado por um Deus corrupto dos judeus, não pelo Deus celestial, além de
rejeitar três dos quatro Evangelhos, deixando apenas algumas partes de Lucas. Cipriano ficou
chocado com o fato de Estêvão ter se tornado um defensor dos hereges ao reconhecer o batismo
de seus seguidores. Como poderia o bispo romano alegar estar glorificando a Deus apoiando
hereges? Ainda pior, Estêvão ameaçou excomungar Cipriano e outros bispos africanos, que
“apoiam a verdade de Cristo e a unidade da Igreja”.
Cipriano voltou ao conceito de unidade ao encerrar seu argumento contra Estêvão. Para
aumentar a força, ele apelou para as palavras do apóstolo Paulo: “Porque nos foi dado que há um
só Deus, e um Cristo, e uma só esperança, e uma só fé, e uma só Igreja, e um só batismo
praticado na única Igreja” (Ep. 73.11). Essa referência a Efésios 4.5,6 apoiou as afirmações de
Cipriano de que o único Deus tem uma igreja e que somente essa igreja pode administrar o
batismo.
No outono de 256, oitenta e cinco bispos africanos se reuniram para considerar a questão. Eles
leram as cartas de Cipriano e Estêvão e chegaram a uma decisão unânime. Aqueles que primeiro
foram batizados por cismáticos ou hereges teriam que ser rebatizados na igreja católica para
serem aceitos.
Os bispos africanos definitivamente rejeitaram a posição do bispo de Roma, e não se
incomodaram com suas ameaças de excomunhão. Obviamente, eles não acreditavam que ele
tivesse autoridade para aplicá-la, além de acreditarem que ele estava do lado dos cismáticos e
hereges.
O desacordo entre Cipriano e Estevão resultou de uma diferença fundamental em seus
entendimentos sobre o batismo. Para Cipriano, como observamos, a pureza do bispo era um
requisito. O verdadeiro batismo só poderia acontecer por meio de um verdadeiro bispo. Um
bispo contaminado resultaria em sacramentos poluídos, não os santos sacramentos da única santa
igreja. Como Cipriano perguntou: “Como pode alguém consagrar a água que é profana e não tem
o Espírito Santo?” (Ep. 73.5).
Não temos um registro dos argumentos completos de Estêvão porque não temos sua carta
completa a Cipriano de 256. Temos apenas aqueles trechos preservados por Cipriano e os
escritos de vários outros bispos que se envolveram no debate, como Dionísio de Alexandria e
Firmiliano de Cesareia (na Capadócia, atual Turquia). Dionísio aparentemente tentou reconciliar
Estêvão e Cipriano, enquanto Firmiliano ficou do lado de Cipriano e acusou Estêvão de ter
renunciado a qualquer pretensão de ser o sucessor do apóstolo Pedro.
Pelo que podemos deduzir, Estevão parece ter apresentado dois argumentos a favor de sua
posição mais branda. Primeiro, ele alegou que estava seguindo a prática dos apóstolos de não
exigir o rebatismo. Não sabemos como ele argumentou, e não há exemplo bíblico dos apóstolos
reconhecendo o batismo por cismáticos ou hereges. O que quer que ele dissesse, não era
convincente para Cipriano e Firmiliano, e ambos os bispos o criticaram nesse ponto.
O segundo argumento de Estêvão foi que a eficácia do sacramento está na própria prática por
meio do exemplo e mandamento de Cristo, não na pureza de quem o realiza. Em outras palavras,
o batismo é inteiramente obra de Deus, então a identidade ou pureza do ministro que imerge o
convertido na água não importa. (Os teólogos têm um nome técnico para isso: opus operatum, o
que significa que um ritual tem valor em si mesmo, não importa quem o realize.) Assim, parece
que, apesar de toda a agitação que Novaciano causou à igreja romana, Estêvão ainda reconhecia
seu batismo como válido.
Pode ser útil retornar à nossa pergunta do final do capítulo anterior: O que é a igreja? Se a
igreja é como um hospital, o médico precisa ser saudável para que o paciente melhore — para
que o batismo seja eficaz? Cipriano responderia: Sim, se o médico não está bem, o paciente não
pode ficar bem. Estevão discordaria: não, mesmo que o médico não esteja bem, ele ainda pode
ajudar um paciente a ficar bom.
Alguns historiadores da igreja fizeram um grande esforço para suavizar o relacionamento entre
Estêvão e Cipriano. Eles apontam que em outras cartas Cipriano tentou minimizar qualquer
conflito direto com Estêvão. Certamente há um ar de respeito, mas sua correspondência ainda
mostra a tensão da situação. Firmiliano leu todas as cartas relevantes desde aquela época,
incluindo a carta de Estevão para Cipriano. Ele registrou, em uma carta a Cipriano, que Estêvão
chegou ao ponto de chamar Cipriano “um falso Cristo, um falso apóstolo e um obreiro
fraudulento” (Ep. 74.26). Isso dificilmente parece ser a linguagem de um pequeno desacordo.
Tanto quanto sabemos, e apesar dos melhores esforços de Dionísio de Alexandria, o conflito
entre Estêvão e Cipriano nunca foi resolvido. Em 257, a perseguição eclodiu sob Valeriano, e
Estêvão foi decapitado em agosto daquele ano. Seu sucessor, Sisto II, teve relações mais
positivas com seu colega africano, embora Cipriano e Sisto tenham sido vítimas fatais da
perseguição no ano seguinte.
Legados do debate sobre o rebatismo
Sobre o enredo do rebatismo, o capítulo final estava longe de ser escrito. A questão surgiria
novamente durante a controvérsia donatista (tema da próxima parte deste livro).
De uma forma diferente, essa questão apareceu durante a Reforma. Enquanto Martinho Lutero
e alguns outros reformadores continuaram a praticar o batismo infantil, outros protestantes
argumentaram que o batismo de uma criança não era real porque este requer uma expressão de
fé. Assim, quando um católico ou um luterano se unia ao seu grupo, eles exigiam o rebatismo —
ou, em seu entendimento, batizadas pela primeira vez. Esse grupo foi chamado de anabatistas,
que significa literalmente os “rebatizadores”. Por não reconhecerem os batismos de outros, eram
odiados tanto por católicos como por outros protestantes. Dezenas de milhares deles morreram
devido à perseguição nas mãos de outros cristãos, e alguns fugiram para o Novo Mundo para
sobreviverem. Eles são os ancestrais dos amish e dos menonitas.
Na igreja contemporânea, algumas denominações acreditam que o batismo requer uma
confissão de fé e o batismo por imersão, portanto o batismo infantil não conta como um batismo
verdadeiro. Eles podem exigir o batismo do crente para se juntar à sua igreja, o que pode ser
ofensivo, por exemplo, para a sua família. Você está dizendo que o que fizemos por você quando
era criança não foi válido? Alguns grupos vão ainda mais longe e reconhecem apenas os
batismos realizados em suas próprias denominações, e alguns cristãos desconsideram outras
formas de batismo a ponto de questionar a salvação de outros.
E quanto à identidade do administrador do batismo? Na tradição católica romana, ortodoxa e
em algumas tradições protestantes, apenas certas pessoas têm permissão para realizar batismos, e
isso geralmente é indicado pela ordenação. Em outras tradições protestantes, qualquer crente
pode realizar o batismo porque essa é a obra de Deus.
E o administrador do batismo tem que ser espiritualmente puro? Alguns argumentam que
certos pastores, ministros ou bispos podem ser desqualificados por razões morais ou teológicas,
de modo que não podem administrar os sacramentos do batismo e da Ceia do Senhor. Outros
discordam, e provavelmente também divergem dos motivos que desqualificariam alguém. As
denominações dividiram-se e continuam a dividir-se sobre essa questão.
Esses exemplos da Reforma e da igreja contemporânea não são exatamente os mesmos que
Cipriano enfrentou em seu tempo. As questões teológicas eram diferentes no século III, mas um
fator permanece o mesmo: questionar o batismo de outro grupo cristão pode levar a interações
complicadas e divisivas.
Cipriano não viveu para ver a restauração da unidade da igreja. Na verdade, mal sabia ele que
muitas de suas ideias seriam usadas como munição em uma fratura ainda pior da igreja africana
cerca de meio século após sua morte: a controvérsia donatista.

11 A palavra grega katholikos significa “universal” ou “internacional”. Deixo “católica” aqui em letras minúsculas para evitar
confusão com as alegações posteriores da igreja romana de ser a igreja “Católica” (C maiúsculo), significando a única igreja
verdadeira. Como veremos neste capítulo, Cipriano se considerava parte da igreja católica, mas não estava de acordo com a
igreja de Roma na questão do rebatismo.
Capítulo
11

A vida e os tempos
dos mártires tardios
Ideias-chave
• O imperador Diocleciano chegou ao poder durante um período de paz para o cristianismo,
mas acabou por dar ênfase à religião romana tradicional.
• Sob a influência de Galério, Diocleciano emitiu uma série de ordens cada vez mais
agressivas contra os cristãos, que deram início à Grande Perseguição.
• Diocleciano alvejou líderes cristãos e seus livros sagrados. Alguns clérigos enfrentaram
tortura ou morte, enquanto outros trocaram seus livros por suas vidas.

Este capítulo estabelecerá a situação histórica do evento político, eclesiástico e social mais
importante na igreja africana primitiva: a Controvérsia Donatista. Para entender as
complexidades dessa controvérsia, precisamos olhar para o seu pano de fundo.
Começaremos voltando a Cipriano e discutindo como ele lidou com os lapsos. Vimos que
alguns pensavam que eles poderiam voltar imediatamente, enquanto outros (incluindo Cipriano)
pensavam que eles poderiam ser restaurados apenas pouco antes da morte, e ainda alguns outros
diziam que não poderiam ser restaurados à igreja nesta vida. Levantamos a questão “O que é a
igreja?”. A igreja é como uma sala limpa? Ou a igreja é como um hospital?
Com a controvérsia do rebatismo, propomos essa ilustração e perguntamos: “Se a igreja é
como um hospital, o médico precisa estar bem para ajudar os outros?”. No caso da igreja
africana, se o bispo era impuro, então tudo o que o bispo fazia também era impuro? Poderia um
bispo cismático ou mesmo herético administrar um batismo legítimo? Estêvão de Roma
argumentou que o batismo era obra de Deus, de modo que a pureza do seu administrador não era
central. Cipriano discordou fortemente e argumentou que um bispo impuro (ou clérigo de
qualquer tipo) não poderia administrar verdadeiros sacramentos. Muitos na África concordaram
com a postura mais rigorosa de Cipriano sobre essa questão. Uma vez que um bispo se
contaminasse, ele não estaria mais apto para ser bispo, e nenhum de seus sacramentos seria
legítimo.
Todas essas questões, sob um novo ângulo, voltaram durante a controvérsia donatista.
A ascensão de Diocleciano e Galério
Após o fim da perseguição por Valeriano (ele morreu em 260 d.C. na Pérsia), a igreja
experimentou várias décadas de relativa paz. O impulso radical por valores romanos tradicionais
às custas dos cristãos perdeu um pouco de energia. De fato, no final do século III, temos
evidências da igreja africana e de outros lugares de que o cristianismo estava se expandindo. Os
cristãos estavam aumentando em número, e sua presença estava se tornando mais óbvia.
Edifícios específicos em algumas cidades serviam como locais de encontro cristão. Esses lugares
foram identificados como igrejas, e as pessoas sabiam que eram igrejas. Os cristãos não estavam
mais limitados a adorar com as portas fechadas em casas.
Em 284 d.C., Diocleciano tornou-se o imperador do Império Romano. Ele foi um
administrador brilhante. Em dois anos, descobriu que o império havia crescido demais para uma
única capital e um único líder, então em 286 ele o dividiu em uma metade oriental, que ele
governava, e uma metade ocidental, que era governada por um líder militar feroz chamado
Maximiano.
Em 293, ele dividiu ainda mais o império em quatro regiões administrativas com um líder
ligado a cada uma (embora ele ainda fosse a autoridade máxima), cenário que ficou conhecido
por Tetrarquia — literalmente, “governo por quatro”. Não que Diocleciano fosse humilde ou
quisesse compartilhar o poder. Em vez disso, ele percebeu que suas políticas poderiam ser
implementadas de forma mais rápida e eficaz se a população sentisse o peso de mais centros
locais de governo. O parceiro menor de Diocleciano na parte oriental do império era outro
homem forte — e, como se viu, sanguinário — que havia subido nas fileiras das forças armadas.
Seu nome era Galério e, quando se casou com a filha de Diocleciano, tornou-se seu imperador
subordinado e genro.
Diocleciano era um imperador romano tradicional, e como Décio e Valeriano, ele queria voltar
aos velhos hábitos, àquela “antiga religião”. Ele esperava restaurar a glória de Roma restaurando
os velhos costumes, e seus cogovernantes seguiram sua liderança. Muitas das moedas desse
período apresentam imagens dos deuses e deusas, e um poema anônimo escrito em homenagem a
Maximiano afirmou:
Acumulaste aos deuses altares e estátuas, templos e oferendas, que dedicaste com teu próprio nome e tua própria imagem,
cuja santidade é aumentada pelo exemplo que dás de veneração aos deuses. Certamente, os homens agora entenderão que
poder reside nos deuses, quando você os adora com tanto fervor.
Diocleciano e seus colegas estavam liderando um renascimento religioso. A piedade dos
imperadores deu o exemplo para a população em geral e mostrou “que poder reside nos deuses”.
É claro que o exemplo só funcionaria se o império mudasse, se os imperadores pudessem lidar
com as dificuldades econômicas do império. Dentro de alguns anos, eles começaram a fazer
exatamente isso. O reinado de Diocleciano é identificado pelos historiadores como o fim da crise
do século III.
Diocleciano estabeleceu sua capital em Nicomédia, muito perto de onde o próximo imperador,
Constantino, mais tarde estabeleceria sua própria capital de Constantinopla. A Nicomédia tinha
uma população cristã considerável nessa época. Sabemos disso por um homem chamado
Lactâncio, que trabalhou na corte imperial. Diocleciano o trouxe para Nicomédia para ensinar
retórica e latim, mas, enquanto esteve lá, Lactâncio se converteu ao cristianismo. (Mais tarde, ele
escreveu um dos relatos mais importantes da conversão de Constantino.)
Lactâncio foi um dos muitos cristãos na corte imperial. Esse movimento era, portanto, bastante
familiar a Diocleciano e, segundo uma fonte, o imperador podia até ver o edifício da igreja da
cidade a partir da varanda do seu palácio. Inicialmente, Diocleciano não viu isso como uma
ameaça direta, ou talvez tenha optado por não vê-la como tal porque conhecia muitos cristãos.
Tudo isso mudou em 299. Nesse ano, Diocleciano e Galério assinaram um tratado de paz para
acabar com uma guerra com seu grande rival na fronteira oriental, os persas (tecnicamente, o
Império Sassânida). Depois disso, eles realizaram sacrifícios em homenagem aos deuses
romanos e buscaram sua orientação sobre o que o futuro reservaria. Na tradição romana, os
sacerdotes sacrificavam animais e depois “liam” suas entranhas para discernir a orientação dos
deuses, mas esses sacerdotes não conseguiam ver nada. Alegaram que não podiam desempenhar
suas funções porque havia cristãos na casa de Diocleciano.
Agora vemos isso pelo que era — uma desculpa desses sacerdotes para atacar seus rivais
religiosos — mas Diocleciano e Galério acreditaram nisso. Diocleciano, provavelmente
estimulado por Galério, ordenou que todos os membros de sua casa fizessem um sacrifício e, em
seguida, enviou uma ordem para que todos os membros do exército romano também
sacrificassem. Aqueles que se recusassem seriam removidos do serviço militar, o que significaria
a perda de status social e provavelmente a ruína financeira.
Conforme observamos no capítulo 2, houve períodos em que os que serviam no exército eram
proibidos de serem batizados. De acordo com Hipólito de Roma, os soldados não podiam ser
batizados porque haviam feito um juramento de fidelidade ao imperador. Se tivessem jurado
lealdade ao imperador, não poderiam ser leais primeiro a Deus como seu único rei.
Aparentemente, na época de Diocleciano, esse não era mais o caso, pelo menos não em todos os
lugares.
Em 301, Diocleciano visitou o Egito e teve conflitos abertos com líderes da religião
maniqueísta. (Vamos aprender mais sobre os maniqueus na parte 5, sobre Agostinho.) Assim
como os cristãos, os maniqueus não adoravam os deuses romanos tradicionais e eram vistos
como ameaças ao império. Diocleciano finalmente ordenou que os líderes maniqueus fossem
queimados vivos, mas em 302 ele mudou a punição: execução para as classes mais baixas e
trabalho escravo para os aristocratas maniqueístas. O imperador estava começando a mirar nos
inimigos da religião romana tradicional. Os cristãos foram o próximo alvo óbvio.

Imagem 11.1: Pessoa condenada às feras (Trípoli). Os cristãos teriam morrido em ambientes como esse.

Diocleciano planejava impor o exílio como punição para os cristãos, mas Galério o pressionou
ainda mais. Uma visita ao oráculo de Apolo selou o destino dos cristãos. Apolo foi incapaz de
guiar Diocleciano por causa dos “ímpios”, e Diocleciano finalmente se convenceu de que
eliminar os cristãos era a única opção.
A Grande Perseguição
Em fevereiro de 303, Diocleciano queimou a igreja em Nicomédia e quaisquer cópias dos
escritos cristãos que haviam ali, e colocou toda a riqueza da igreja em seu próprio tesouro. No
dia seguinte, ele enviou uma ordem para a destruição de todas as igrejas e livros cristãos, e os
cristãos foram proibidos de se reunir em qualquer lugar do império. Mais tarde naquele mês, um
incêndio irrompeu no palácio, e Galério convenceu Diocleciano de que ele foi iniciado pelos
cristãos. Não havia evidência disso, mas Diocleciano executou vários deles.
As ordens de Diocleciano sobre os cristãos intensificaram-se e deram início ao que é
conhecido como a Grande Perseguição. Diocleciano e seus colegas, especialmente Galério,
estavam dispostos a lidar com os cristãos violentamente se necessário, assim como Décio e
Valeriano haviam feito. Mas suas habilidades administrativas e estruturas políticas superiores
permitiram que fossem mais eficazes em seus esforços.
Isso deu início a um reino de terror diferente de tudo o que os cristãos haviam visto
anteriormente, tanto em intensidade quanto em duração. As perseguições sob Décio e Valeriano
duraram apenas alguns anos e diminuíram após cerca de um ano. Quando esses imperadores
morreram, a perseguição morreu com eles. Mas a grande perseguição durou quase uma década,
muito além do reinado de Diocleciano. Diocleciano se aposentou em 305 devido a uma doença,
mas seu genro, Galério, continuou o tormento dos cristãos até 311. (Oficialmente, os cristãos não
estavam seguros até que dois coimperadores posteriores, Constantino e Licínio, emitissem um
decreto de tolerância em 313, tradicionalmente conhecido como o Edito de Milão.)
As histórias de martírios cristãos desse período são numerosas. Algumas certamente foram
baseadas em eventos reais, enquanto outras podem ter sido criações literárias posteriores. Ouvir
uma história de mártir no tempo de Diocleciano era, para os cristãos dos séculos posteriores,
muito provável. Eis uma indicação do trauma que os cristãos sofreram durante esse período, e
recordado posteriormente.
A longa lista de mártires nomeados em fontes posteriores do reinado de Diocleciano inclui
figuras famosas homenageadas como santos dentro de algumas tradições cristãs (principalmente
ortodoxa, católica e anglicana): Agnes, que morreu com a idade de doze ou treze anos, depois
que alguns pretensos amantes rejeitados a entregaram por ser cristã; Jorge, um comandante
militar que foi executado por se recusar a sacrificar aos deuses; e Sebastião, outro membro do
exército que foi morto por traição.
Mas Diocleciano não estava preocupado principalmente com cristãos individuais, pelo menos
não no início. Ele queria usar uma abordagem mais eficiente para lidar com o problema cristão.
Como mencionado acima, ele já tinha como alvo edifícios e livros cristãos. Se os cristãos não
tivessem um lugar para se reunir, isso poderia afrouxar a força das comunidades e seus laços
entre si. Um grupo organizado de cristãos pode estar disposto a resistir às ordens imperiais em
uma determinada cidade, mas eles fariam o mesmo se estivessem isolados um do outro? Os
cristãos estariam mais comprometidos em honrar seu Deus ou mais preocupados com os outros
os entregando às autoridades?
Diocleciano também sabia da importância dos livros para os cristãos. Seus textos sagrados
estavam no centro de sua fé. Isso era conhecido por funcionários do governo muito antes de
Diocleciano. Por exemplo, no ano 180 d.C., um grupo de cristãos de uma cidade na África
chamada Scillium foi levado perante o governador em Cartago. Eles foram ameaçados de morte,
a menos que oferecessem um sacrifício em homenagem ao imperador e aos deuses romanos. No
meio do julgamento, o governador notou que o líder cristão, Esperato, trouxe uma caixa com ele.
O governador perguntou: “Quais são as coisas na sua caixa?”. Esperato disse: “Livros e epístolas
de Paulo, um homem justo” (Acta mart. Scillit. 12). Mesmo enfrentando a morte, esses cristãos
ainda carregavam alguns de seus textos sagrados. Isso mostra a importância dos livros cristãos,
especialmente as Escrituras.
Diocleciano adotou a mesma abordagem que Valeriano, concentrando-se primeiro nos líderes
cristãos. De acordo com o decreto de fevereiro, os oficiais do governo foram autorizados a
confrontar o clero cristão e exigir seus livros e propriedades da igreja. De acordo com Lactâncio,
que escreveu uma história desses eventos, Diocleciano enviou a ordem contra os cristãos com
uma mão e tentou conter os desejos violentos de Galério com a outra. Diocleciano “tentava
observar a moderação ordenando que o decreto fosse realizado sem derramamento de sangue,
enquanto Galério queria que todos os que se recusassem a sacrificar fossem queimados vivos”
(Mort. 11).
O primeiro edito de Diocleciano pretendia apaziguar os deuses suprimindo as práticas cristãs,
mas tudo “sem derramamento de sangue”. Nem todos observaram essa intenção, no entanto, e
desde o início algumas regiões viram ações assassinas contra os cristãos. De acordo com
Lactâncio e o historiador da igreja Eusébio de Cesareia, em poucos meses houve ataques contra
cristãos na Nicomédia, Palestina e África. O bispo da Nicomédia, Antimo, foi caçado e
decapitado. Somente na parte ocidental do império os cristãos foram largamente deixados em
paz.
Em alguns lugares, os cristãos reagiram. Então, no verão de 303, Diocleciano emitiu um
segundo decreto ordenando a captura e aprisionamento de todos os bispos e ministros. De acordo
com Eusébio, tantos oficiais da igreja foram presos que assassinos e ladrões de túmulos tiveram
que ser libertados para abrir espaço nas prisões (Hist. eccl. 8.6.8).
A situação tornou-se instável. No outono daquele ano, Diocleciano tentou recuar na
perseguição aos líderes da igreja. Qualquer um que estivesse disposto a oferecer o sacrifício seria
libertado da prisão. Eusébio nos diz que alguns o fizeram de boa vontade, mas outros recusaram.
Alguns funcionários locais estavam tão cansados do “problema” cristão que liberaram o clero de
qualquer maneira e disseram que haviam sacrificado, mesmo que não o tivessem feito. Eusébio,
em seu livro
Os mártires da Palestina, até conta a história de um ministro que foi levado a um altar, onde os
guardas o dominaram, agarraram sua mão e o forçaram fisicamente a jogar uma pitada de
incenso no fogo. Então o homem foi informado de que havia cumprido seu dever e foi demitido.
A tentativa de Diocleciano de recuperar o controle por (em sua mente) generosidade não
funcionou, então em janeiro ou fevereiro de 304 ele foi em outra direção. Seu quarto édito em
um ano foi o mais opressivo e violento de todos, sem dúvida para o deleite de Galério. A fim de
remover qualquer incerteza sobre o cumprimento da ordem, todos — incluindo homens,
mulheres e crianças comuns — foram obrigados a se reunir em um espaço público para realizar
um sacrifício comunitário. Não havia lugar para se esconder, e o preço da recusa era a morte.
Como havia acontecido com os decretos anteriores, a execução não foi realizada de modo
uniforme em todo o império. Os cristãos que viviam nos territórios de Diocleciano e Galério
sofreram muito, enquanto os cristãos da parte ocidental do império se saíram melhor de modo
geral, exceto, ao que parece, os da África.
Depois que Diocleciano se aposentou, em 305, Galério tornou-se o principal imperador no
leste, e seu colega mais novo era um homem chamado Maximiano. Como Galério, Maximiano
estava ansioso para derramar sangue cristão e, em 306 e 309, chegou a emitir seus próprios
decretos exigindo sacrifícios.
Diocleciano partiu para acabar com o sofrimento do império e restaurar a glória passada de
Roma. Com o incentivo de Galério, ele tentou eliminar as ameaças à religião tradicional. Os
cristãos estavam no topo de sua lista de alvos. Diocleciano pretendia e tentou erradicar o
cristianismo livrando-se de igrejas, livros e líderes. Alguns historiadores acreditam que ele se
aposentou confiante de que havia alcançado seu objetivo. A igreja, pelo menos no Oriente, havia
sido significativamente enfraquecida. Mesmo Eusébio registrou que uma “multidão [de cristãos]
[...] paralisados em seus espíritos pelo medo, foram facilmente enfraquecidos logo no início”
(Hist. eccl. 8.3.1).
Mas Diocleciano, Galério e Maximiano estavam todos errados. A igreja não morreu, mesmo
nas áreas de maior sofrimento. Em vez disso, o sangue dos mártires serviu apenas para
intensificar o compromisso entre aqueles que não cederam. Como escreveu Tertuliano: “O
sangue dos mártires é a semente da igreja” (Apol. 50).
De volta aos livros
Para concluir a contextualização da controvérsia donatista, precisamos retornar às políticas
relativas aos livros cristãos. Uma parte importante do primeiro edito foi a apreensão e queima de
livros sagrados. Nem todos os líderes cristãos responderam da mesma maneira, e isso criou
grandes problemas na África mais tarde.
Tentemos imaginar a cena em que oficiais ou soldados romanos partiram para cumprir o
primeiro edito de Diocleciano. Um grupo de homens chega e bate na porta da casa do bispo
local. O bispo sabe por que eles estão lá. Seu trabalho é exigir os livros e qualquer propriedade
da igreja (especialmente dinheiro ou metais preciosos). Os livros serão queimados; a propriedade
será entregue às autoridades. O desejo — pelo menos oficialmente — é evitar derramamento de
sangue.
Agora devemos lembrar que essa ordem veio ao final de quase quarenta anos de convivência
pacífica com os cristãos. Algumas dessas autoridades locais cresceram tendo os cristãos como
amigos e vizinhos. Membros cristãos e não cristãos da aristocracia socializaram-se e talvez suas
famílias tenham se casado. Os bispos eram figuras importantes em algumas comunidades além
da igreja e tinham outros vínculos. Na cidade de Abthungi, ao sul de Cartago, o bispo Félix era
parente do funcionário local encarregado de executar ali a ordem imperial.
Do ponto de vista do bispo, os livros valeriam a pena a ponto de colocar sua vida em risco?
Afinal, o próprio Cipriano havia escolhido fugir de Cartago para evitar a morte durante o tempo
do governo de Décio. Sua vida era muito valiosa para a igreja em Cartago. A vida de um bispo
ou de um ministro não valia mais para a Igreja do que alguns livros que mais tarde poderiam ser
substituídos?
Fontes sugerem que alguns entregaram livros, alguns recusaram e alguns encontraram
maneiras de contornar o pedido. Um bando de bandidos provavelmente não conseguiria
diferenciar o Evangelho de Mateus de um jornal, pois normalmente não haveria alguém letrado e
instruído entre gente assim. Eles teriam distinguido uma cópia da Carta de Paulo aos Filipenses
de uma carta escrita a um bispo para outro bispo? Provavelmente não. Portanto, alguns
esconderam as Escrituras e entregaram outros livros em seu lugar. Os agentes do governo
inevitavelmente se importavam, desde que pudessem dizer que tinham feito seu trabalho? Não
necessariamente, ao que parece.
Passado certo tempo, no entanto, a perseguição diminuiu e terminou, e as diferentes respostas
dos bispos à perseguição criaram um problema. O que deveria ser feito com os bispos que
entregaram livros, mesmo que não fossem realmente as Escrituras? Como o que havia passado
no tempo de Cipriano, eles cederam sob pressão. Eles poderiam ser restaurados? Ou, como
durante a controvérsia do rebatismo, eles foram agora desqualificados como clérigos? Eles ainda
poderiam administrar os sacramentos ou — e isso se tornaria importante mais tarde — ordenar
outros clérigos?
Nessa questão sobre o manuseio dos livros estão as sementes de um debate que dilacerou a
igreja africana.
Capítulo
12

Cecilianistas versus donatistas: Igrejas rivais


Ideias-chave
• Surgiu uma controvérsia na igreja africana sobre o que fazer com os bispos que entregaram
livros sagrados durante a Grande Perseguição.
• Em 311 Ceciliano foi eleito o novo bispo de Cipriano, mas muitos rejeitaram sua eleição,
então uma hierarquia eclesiástica rival foi estabelecida por um grupo conhecido como
donatistas.
• A igreja romana e vários imperadores romanos se aliaram aos seguidores de Ceciliano e
tentaram suprimir a igreja donatista, em alguns casos com violência.

À medida que a perseguição no norte da África estava diminuindo em 311 d.C., havia boas e
más notícias para a igreja. A boa notícia era que os cristãos e seus líderes não corriam mais o
risco imediato de perder a vida (ou assim pensavam). A má notícia era que alguns haviam cedido
às exigências dos oficiais romanos, e isso agora precisava ser resolvido.
O retorno de velhas questões
A controvérsia donatista se concentrou especialmente nos bispos. Como observamos no
capítulo anterior, alguns responderam aos decretos de Diocleciano simplesmente entregando
livros cristãos para serem destruídos por agentes do império. Eles determinaram que suas
próprias vidas valiam mais do que os livros. Alguns entregaram outros livros e fingiram que
eram as Escrituras, também para salvar suas próprias vidas. Outros, no entanto, pagaram o preço
por se recusarem a entregar qualquer coisa.
Uma abordagem rigorosa para os lapsos tinha sido a política da igreja africana durante o tempo
de Cipriano, e parece que muitos dentre os leigos (não clérigos) aplicaram esse mesmo padrão
aos bispos após a Grande Perseguição.
O verbo latino trado significa “entregar” algo, então os bispos acusados de entregar livros
foram chamados de traditores — literalmente, “aqueles que entregaram”. (Essa palavra latina é a
fonte do termo “traidor”.) Aos olhos de muitos, eles eram tão ruins quanto os lapsos durante o
tempo de Décio e Valeriano. Sob pressão, muitos desmoronaram e não se mantiveram firmes,
mesmo aqueles que entregaram livros que não eram textos bíblicos.
Durante a controvérsia do rebatismo, Cipriano declarou que os bispos lapsos não eram mais
bispos legítimos. Eles então haviam abandonado seus deveres sagrados, para que não pudessem
administrar sacramentos ou realizar quaisquer outros deveres clericais. Muitos acreditavam que
essa mesma condenação deveria ser aplicada aos bispos traditores. Porque eles eram impuros
devido à sua traição à fé, eles não deveriam ter posição na igreja.
Mais uma dinâmica deve ser incluída em nossa discussão, porque mais tarde se tornou um
fator crítico. Lembre-se de que em meados do século III, Cipriano discordou da igreja romana na
questão do rebatismo e rejeitou o direito do bispo romano de interferir nos assuntos da região de
outro bispo. No início do século IV, ainda não havia “papa” com autoridade reconhecida para
dizer a outros bispos o que fazer. A igreja romana era influente no Ocidente, mas não tinha
autoridade inquestionável. Muitos cristãos na África seguiram Cipriano na crença de que a igreja
romana deveria cuidar de seus próprios negócios e que, no caso dos lapsos e do rebatismo, estava
simplesmente errada.
A rivalidade entre África e Roma estava prestes a ser reacendida, pois o decreto da entrega de
livros era outra situação em que as perspectivas sobre os lapsos e a pureza do clero levavam ao
desacordo com Roma. Essas não eram questões novas na África. Eram questões antigas e não
resolvidas que foram revividas em uma nova situação e borbulharam novamente no ano 311 d.C.
A erupção da controvérsia
Mensúrio tornou-se bispo de Cartago em 303 e teve o desafio de ser bispo até 311 — o que
abrangeu quase todo o período da Grande Perseguição. Ele não era muito amado porque se
opunha ao direito dos confessores de “interferir” no governo da Igreja, argumentando que a
autoridade pertencia apenas aos bispos. Como resultado, alguns o acusaram de ser um inimigo
dos mártires, e ele era impopular com grande parte dos leigos na igreja africana. O autor da obra
Atos dos mártires abitinianos também acusa Mensúrio de ser um traidor (Pass. Dat. Saturn. 20),
embora o texto não forneça evidências para essa acusação. (Pode ter sido apenas outra maneira
de atacar sua reputação.)
Mensúrio morreu em 311, bem na época em que a perseguição estava chegando ao fim. Um de
seus diáconos, Ceciliano, foi nomeado para substituí-lo. De acordo com a prática da Igreja, a
eleição deveria esperar até a chegada dos bispos da Numídia, uma região menos urbana a oeste
que havia sido mais cautelosa com as conexões romanas, e mais rigorosa no trato com os lapsos.
O principal bispo da Numídia — na época, Secundus — tradicionalmente supervisionava os
procedimentos. No entanto, os partidários de Ceciliano devem ter percebido que seu candidato
não teria o apoio da Numídia, então correram para realizar a eleição antes da chegada de
Secundus.
Sua eleição foi imediatamente questionada por muitos na África. Não só o processo foi
irregular, mas — para alguns — Ceciliano foi manchado por sua associação com Mensúrio. Por
um lado, ele era como Cipriano, pois defendia a autoridade do bispo, mas por outro era diferente
dele, pois desonrava os confessores e mártires. De fato, como vimos no capítulo 9, a abertura da
obra de Cipriano Sobre os lapsos foi uma extensa passagem de louvor aos mártires e confessores.
Os oponentes de Ceciliano, portanto, argumentaram que ele era contra não apenas os confessores
e mártires, mas também o próprio Cipriano.
Após um pedido de ajuda dos oponentes de Ceciliano, os bispos da Numídia se organizaram
contra ele e seus aliados. Liderados por Secundus, um grupo de setenta bispos declarou Ceciliano
ilegítimo e elegeu um homem chamado Majorino em seu lugar. Há indícios de que Majorino foi
apoiado pela maioria dos leigos em Cartago.
Os bispos númidas não tinham, tecnicamente, autoridade para remover Ceciliano, mesmo
achando que a eleição original era imprópria. Então eles foram preparados com uma acusação,
por meio da qual esperavam exigir que ele renunciasse. No capítulo anterior, conhecemos
brevemente um bispo chamado Félix, da cidade de Abthungi, ao sul de Cartago, e que um
parente dele era o oficial imperial local encarregado de apreender e queimar os livros e igrejas
cristãs naquela cidade. Esse mesmo Félix também estava entre aqueles que haviam ordenado
Ceciliano como ministro muito antes de se tornar diácono e depois bispo.
Os opositores de Ceciliano alegavam que Félix havia sido um traidor, e que ele havia
entregado livros sagrados a seu parente e aos agentes do império. Por ter feito isso, ele, portanto,
não era mais um bispo legítimo e não podia cumprir nenhum dever sagrado, incluindo a
ordenação. Já que Félix não era um verdadeiro bispo, então a ordenação de Ceciliano não era
legítima; e como este nunca fora devidamente ordenado como membro do clero, então não
poderia ser bispo.
Os bispos anticecilianistas estavam aplicando o argumento de Cipriano de que bispos
ilegítimos não podiam cumprir deveres sagrados. Cipriano havia dito que cismáticos e hereges
não podiam realizar batismos. (Para usar a metáfora do hospital, os médicos doentes não podem
curar os pacientes.) Os bispos númidas afirmavam que os traditores [“traidores”] eram
igualmente maculados, manchados, e que suas ordenações eram igualmente falsas. Ceciliano
serviu e agora era o sucessor de um bispo traditor, e havia sido ordenado por outro bispo
traditor. Ele foi contaminado em duas frentes. Os partidários de Ceciliano contestaram
vigorosamente tais alegações.
Felix era de fato um traditor? Os historiadores discordam sobre se ele realmente entregou os
livros. Uma fonte sugeriu que ele pode ter elaborado um plano com seu parente para fazer
parecer ao governo imperial que ele entregou livros sagrados sem realmente fazê-lo. Tais
distinções sutis não teriam feito diferença para os cristãos mais rigorosos da África. E de
qualquer forma, tudo o que realmente importava naquela época era que muitas pessoas
acreditavam que ele havia protegido sua própria vida em vez dos livros sagrados.
A acusação oficial contra Ceciliano era de que sua ordenação fora inválida, porém havia mais
na história. Enquanto ainda era diácono, Ceciliano ofendeu uma aristocrata na igreja de Cartago,
chamada Lucila. Ela usava uma relíquia de um mártir no pescoço e costumava beijá-la pouco
antes de receber a Eucaristia. Ele a repreendeu por essa prática. Lucila ficou ofendida com as
ações dele e sem dúvida as interpretou como prova de que Ceciliano, como Mensúrio, não
respeitava os mártires. Quando Ceciliano foi eleito bispo, ela fazia parte do grupo que se opunha
a ele.
Mas isso não foi o pior. Uma evidência ainda mais potencialmente prejudicial surgiu,
sugerindo que Ceciliano não foi apenas desrespeitoso com os mártires, mas que, na verdade, os
havia os perseguido. Atos dos mártires abitinianos (texto produzido antes da eleição de
Ceciliano) alegava recontar os eventos de 304 d.C., quando um grupo de cristãos em Abitina,
uma vila perto de Cartago, foi preso por realizar uma reunião cristã ilegal. Seu caso foi enviado
para Cartago, onde foram presos enquanto aguardavam o julgamento que os levou à execução.
As prisões romanas normalmente não forneciam comida e água para os prisioneiros, portanto
esses cristãos de Abitina (considerados confessores até então) contavam com ajuda de fora.
Então, uma reviravolta aparentemente impensável de eventos ocorreu:
Quando Mensúrio, o chamado bispo de Cartago, manchado pela recente entrega das Escrituras, arrependeu-se da malícia
de seus atos e começou a revelar crimes maiores, ele que teve de implorar aos mártires perdão por queimar os livros,
enfurecendo-se contra eles com a mesma determinação com que havia entregado as leis divinas, acrescentando às suas
transgressões atos ainda mais vergonhosos. Mais implacável que o tirano, mais sangrento que o carrasco, Mensúrio
escolheu Ceciliano, seu diácono, como ministro adequado de seus delitos. Ele parou diante das portas do cárcere, armado
de chicotes e azorragues, para desviar da entrada e da saída todos aqueles que levavam comida e bebida aos mártires na
prisão, prejudicando ainda mais os já afligidos por grave injustiça. As pessoas que vinham alimentar os mártires eram
abatidas à direita e à esquerda por Ceciliano [...] Para afastar os piedosos do abraço dos mártires e para afastar os cristãos
do dever de piedade, Ceciliano foi mais implacável que o tirano, mais sangrento que o carrasco. (Pass. Dat. Saturno. 20)12
Mensúrio era um traditor que havia implorado perdão aos confessores, que aparentemente o
concederam. E de que forma ele retribuiu essa misericórdia? Mensúrio não apenas negligenciou
outro grupo de confessores; ele realmente enviou alguém para impedir que eles fossem ajudados.
Alguns cristãos estavam levando comida e água para os prisioneiros, mas foram impedidos de
entregar. Quem os impediu? Foram os guardas romanos? Não. Não era outro senão o próprio
Ceciliano, agindo em nome do bispo. Ele impediu fisicamente aqueles que tentavam ajudar os
“mártires na prisão”. Seu comportamento impediu os cristãos de cumprir seu dever piedoso para
com os confessores. Por causa de sua traição, as ações de Ceciliano foram piores do que as dos
perseguidores pagãos. Atos dos mártires continua contando que os gloriosos mártires morreram
não pela espada ou na arena com os animais selvagens, mas na prisão por fome — um destino
horrível causado por Mensúrio e Ceciliano.
Alguns historiadores discordam quanto à veracidade desses eventos. Alguns acreditam que
sim, enquanto outros afirmam que a história foi inteiramente inventada para prejudicar a
reputação de Ceciliano. Seja como for, parece que muitos acreditaram que sim, já que o
comportamento de Mensúrio e Ceciliano tornou a história plausível.
Bispos rivais, igrejas rivais
Dois homens diferentes agora afirmavam ser o legítimo bispo de Cartago, ambos eleitos em
circunstâncias incomuns. Um tinha o apoio da hierarquia oficial, enquanto o outro era candidato
do povo e tinha o apoio dos bispos da Numídia.
O movimento majorino cresceu rapidamente e, em 312, enviou até mesmo um bispo para
servir seus apoiadores na própria Roma. Vítor de Garba era seu nome, e sem dúvida Milcíades, o
bispo oficial de Roma na época, não aceitava a presença de um rival. Ironicamente, o próprio
Milcíades era de origem africana e agora estava sendo desafiado por alguém de sua própria
região.
Em 313, os partidários de Majorino apelaram para o imperador Constantino, que havia
chegado ao poder recentemente. Esse caso estava muito acima de seu nível de conhecimento
teológico. Seu objetivo era simplesmente manter a paz no império, então Constantino entregou a
questão a um grupo de bispos liderado por Milcíades. O caso deveria ser decidido por um grupo
de três bispos da Gália porque o partido majorino não confiava no bispo romano. Milcíades, no
entanto, mudou o plano e acrescentou quinze bispos italianos de sua própria escolha.
Embora as fontes históricas sejam pouco claras sobre a data exata, parece que Majorino morreu
em algum momento de 313, talvez depois que o apelo foi enviado, mas antes da reunião em
Roma. Assim, o apelo em Roma foi liderado por Donato, que provavelmente acabara de ser
eleito para substituir Majorino como o novo bispo rival de Cartago. Ele provaria ser um inimigo
formidável para Ceciliano, mas, nessa ocasião, ele nunca teve a chance de apresentar o caso. Os
bispos decidiram a favor de Ceciliano, e outro apelo ao Concílio de Arles (na França) em 314
também não teve sucesso.
Nesse ponto, devemos fazer uma pausa e olhar para os nomes dos diferentes grupos envolvidos
na controvérsia. Os partidários de Ceciliano começaram a chamar seus oponentes de “donatistas”
por causa do nome do bispo rival, Donatus. Eles se autodenominavam “católicos”, termo que
vem da palavra grega katholikos, que significa “geral ou universal”, e usaram esse título para
alegar que estavam em comunhão com a igreja mais ampla, em oposição aos donatistas, que se
separaram dela. Historiadores posteriores de algumas tradições cristãs continuaram chamando
Ceciliano de Católico (com C maiúsculo) como forma de expressar que ele estava de acordo com
Roma e, portanto, “certo” nesse debate. Esse uso pelos historiadores pode nos dizer mais sobre
suas próprias convicções teológicas e preferências denominacionais do que sobre a realidade
histórica do início do século IV. Mas os donatistas também reivindicaram o título de “católicos”,
alegando ser a igreja legítima.
Para falar de uma perspectiva histórica objetiva, irei me referir aos partidários de Ceciliano (e
seus sucessores) como os cecilianistas e aos partidários de Donato (e seus sucessores) como os
donatistas.
Em 316, Constantino decidiu que esse cisma, que ameaçava a unidade do império, tinha que
ser resolvido, e enviou tropas imperiais para tomar as igrejas donatistas e suprimir seu culto. Para
os cecilianistas, esse foi um exemplo do imperador servindo à igreja, defendendo o verdadeiro
bispo e combatendo o cisma — ou mesmo a heresia, como alguns viam. Para os donatistas, esse
foi mais um exemplo de perseguição imperial aos cristãos. Constantino estava agindo como
Nero, Décio e Valeriano, e fato de que o imperador os perseguia era prova de que eles eram a
verdadeira igreja.
Após cinco anos, Constantino recuou em suas políticas fracassadas contra os donatistas e
“deixou-os ao julgamento de Deus” (CPD 31.54), mas o dano já havia sido feito. Donatistas
morreram como mártires por ordem de Constantino, portanto não abandonariam sua causa agora.
Eles tinham que manter a fé e honrar apenas os bispos “puros”, não os descendentes dos
traditores, que eram apoiados pela mão pesada do império.
As hierarquias concorrentes da igreja continuavam crescendo. Os historiadores acreditam que
as cidades maiores ao longo da costa podem ter apoiado principalmente os bispos cecilianistas,
enquanto a maior parte do norte da África se inclinava para os donatistas. E, no entanto, mesmo
em algumas cidades maiores, bispos concorrentes e até igrejas concorrentes estavam muito
próximos uns dos outros. No século V, Agostinho registrou que a igreja donatista em Hipona
estava tão perto de sua própria basílica que eles podiam ouvir os donatistas cantando. (Caso isso
pareça estranho, vale a pena notar que cidades de qualquer tamanho nos Estados Unidos
geralmente têm várias igrejas da mesma denominação. Às vezes isso é necessário devido à
população, mas muitas vezes reflete diferentes campos teológicos dentro dessas denominações.)

Imagem 12.1: Bispos cecilianos e donatistas de Cartago.

Um século de divisão
Ambos os lados estavam firmemente entrincheirados e inflexíveis, e os donatistas realizaram
seu próprio conselho da igreja em 336 d.C. Foi uma reunião impressionante de 270 bispos, que
abordou a questão do rebatismo de ex-membros das igrejas cecilianas. (Surpreendentemente, os
donatistas decidiram não exigir tal prática.) Nesse mesmo ano, Gregório, um dos principais
oficiais cívicos de Roma, iniciou um tipo de ação violenta contra os partidários dos donatistas na
cidade. Sabemos poucos detalhes sobre isso, mas o que quer que tenha acontecido fez com que
Donato chamasse Gregório de “mancha sobre o Senado [romano]” (Optatus de Milevis, Adv.
Donat. 3.3). Apesar dessa oposição adicional, a linhagem de bispos donatistas em Roma
continuou.
Cerca de uma década depois, em 347, o imperador Constante (um dos filhos de Constantino)
fez outra tentativa de curar o cisma. Ele enviou embaixadores imperiais liderados por Macário,
para trazer os donatistas de volta à linha. O suborno era aparentemente o principal plano de
Constante, mas os donatistas não queriam fazer parte disso. Eles não confiavam em nenhum
agente imperial a essa altura, e um de seus gritos de guerra era: “O que o imperador tem a ver
com a igreja?”.
O grupo donatista que se reuniu com Macário era liderado por um bispo chamado Márculo.
Após a reunião não ter corrido bem, os bispos donatistas foram presos e torturados. Todos foram
finalmente libertados, exceto Márculo, que recebeu a execução de ser jogado de um penhasco.
De acordo com uma fonte antidonatista posterior, um ramo extremista dos donatistas se revoltou
e provocou Macário e suas tropas. Seja como for, não há dúvida de que Macário respondeu com
uma demonstração de força militar. Suas tropas ficaram fora de controle, e seguiu-se uma
matança de donatistas. Para estes, Constante era uma repetição de Valeriano e Diocleciano.
Donato foi forçado ao exílio e morreu na Gália em 355. Ainda assim, os donatistas persistiram.
Parmênio seguiu Donato como bispo donatista de Cartago e serviu por aproximadamente mais
quarenta anos.
Apenas fragmentos dos escritos de Donato e seus sucessores sobreviveram, e a história da
controvérsia foi dominada pelos escritos de dois autores antidonatistas, Optato de Milevo no
século IV e Agostinho de Hipona no século V. Optato era um bispo da Numídia que escreveu
uma longa obra contra os donatistas. Nela, os apresentou como cismáticos e rebeldes, tanto da
igreja quanto do governo legítimo do imperador.
Ele argumentou que o apóstolo Paulo havia dito aos romanos que os cristãos deveriam honrar
todas as autoridades seculares, portanto os donatistas deveriam ter se submetido aos imperadores
e dado apoio aos bispos cecilianistas.
Agostinho foi menos gentil. Ele considerou os donatistas hereges, totalmente afastados da
igreja, e escreveu uma série de obras condenando-os. Sua cidade natal ficava no meio de uma
região dominada pelos donatistas, então ele os conhecia bem. Mas quando mais tarde se tornou
bispo, extraiu sua autoridade da linhagem cecilianista. Ele protestou contra os donatistas com
grande frequência e intensidade, e sua perspectiva tem impactado as visões dos donatistas até
hoje. Eles ainda são amplamente chamados de cismáticos ou mesmo hereges, embora poucas
pessoas hoje saibam quem eles eram ou o que defendiam arduamente.
Em 411, o imperador Honório revisitou a questão donatista convocando um concílio da igreja
em Cartago. O concílio foi presidido por Marcelino, bispo cecilianista de Cartago. Não
surpreendentemente, os donatistas foram novamente condenados, e dessa vez declarados fora da
lei. Seus bispos foram forçados a entregar suas igrejas, e as forças imperiais suprimiram
impiedosamente o culto donatista. A perseguição foi tão grande que até Agostinho, inimigo dos
donatistas, reclamou que Honório havia ido longe demais.
Imagem 12.2: Batistério donatista em Timgad.

A controvérsia donatista foi uma das divisões mais traumáticas da igreja primitiva. Por mais de
um século, a igreja africana foi dividida em estruturas de igrejas rivais.
A questão da pureza dos bispos ainda era oficialmente o cerne da questão, mas como ambos os
lados lutavam pela vantagem, outro fator entrou em jogo. Eles alegaram que poderiam provar sua
legitimidade pelo fato de estarem na linha dos verdadeiros mártires da igreja.

12 Todas as traduções de Atos dos mártires abitinianos vêm de Maureen A. Tilley, Donatist Martyr Stories: The Church in
Conflict in Roman North Africa, Translated Texts for Historians 24 (Liverpool: Liverpool University Press, 1996), 25-50.
CAPÍTULO
13

Donatistas versus cecilianistas: mártires rivais


Ideias-chave
• Tanto os donatistas como os cecilianistas se identificavam como a verdadeira igreja porque
estavam na linhagem dos mártires que remontavam a Cipriano, e por meio dele ao
apóstolo Paulo.
• O autor de Atos dos mártires abitinianos escreveu o texto para demonstrar que os
donatistas eram a verdadeira igreja.
• Optato de Milevo e Agostinho de Hipona foram duas das principais vozes argumentando a
favor da igreja cecilianista durante o quarto e início do século V.

No capítulo anterior examinamos o desenvolvimento da controvérsia donatista na criação de


igrejas rivais e estruturas de liderança. Os cecilianistas afirmavam ser a Igreja legítima porque
eram reconhecidos por Roma e pelo imperador.
Os donatistas afirmavam ser a igreja legítima porque tinham os bispos “puros” e provavelmente
a maioria da população cristã africana. Mas nenhum dos lados conseguiu convencer o outro com
esses argumentos.
Ambos os lados tentaram selar o argumento a seu favor alegando serem a verdadeira igreja por
estarem na linhagem dos mártires desde os apóstolos.
Mártires no cristianismo do norte da África
Os cristãos na África sofreram perseguição nas mãos do governo romano no segundo (mártires
cilitanos), terceiro (Perpétua e Cipriano) e início do quarto (Grande Perseguição) século. Aqui,
como em muitas outras partes do império, a veneração aos mártires (os estudiosos se referem a
isso como o “culto dos mártires”) tornou-se um aspecto importante da piedade cristã. Os mártires
foram figuras significativas porque deram o exemplo sacrificando suas vidas por sua fé. Como
resultado, em muitos lugares, as palavras de Jesus “Se me perseguiram a mim, também
perseguirão a vós outros” (Jo 15.20) cumpriam-se literalmente, vez que o sofrimento era uma
parte esperada de seguir a Cristo.
A igreja sofredora era a verdadeira igreja.
Essa maneira de pensar desempenhou um papel importante nas controvérsias que Cipriano
enfrentou sobre os lapsos e o rebatismo. Como vimos no capítulo anterior, os donatistas
interpretaram as ações militares de Constantino e outros oficiais romanos como prova do fato de
que os donatistas eram os verdadeiros cristãos e não se renderam ao império. Eles se viam como
herdeiros de uma tradição que remontava a Cipriano, Perpétua e ainda mais longe — talvez, o
mais importante —, aos próprios apóstolos. Eles eram a verdadeira igreja porquanto
representavam a igreja apostólica.
Não é necessário dizer que os cecilianistas rejeitaram isso. Eles afirmavam ser a verdadeira
igreja apostólica e acusavam os donatistas de serem fraudes.
Nos passos do apóstolo Paulo
Para ambos os lados, Cipriano foi uma figura-chave no debate sobre quem era a verdadeira
igreja dos mártires. Ele era tido em alta consideração por todos os cristãos africanos porque havia
sofrido dois períodos de perseguição imperial e, por fim, entregado sua vida. Mas a reputação de
Cipriano como mártir foi reforçada pelo fato de que ele estava em uma linhagem de mártires que
remontava aos apóstolos, particularmente a Paulo, que era reverenciado entre todos os cristãos
como um mártir modelo.
Devemos reservar alguns momentos para resumir as tradições sobre a morte de Paulo. O Novo
Testamento nos diz que Paulo foi a Roma preso, provavelmente no início do ano 60 d.C., e
permaneceu ali por dois anos (At 28). A Bíblia não nos diz nada mais sobre o destino de Paulo.
Alguns estudiosos pensam que Paulo morreu no final desse aprisionamento, enquanto outros
argumentam que Paulo foi solto, pregou por mais um pouco de tempo e acabou voltando para
uma prisão romana mais tarde. A tradição cristã primitiva também estava dividida nesse ponto.
Em ambos os casos, a tradição diz que Paulo foi condenado à morte pelo imperador Nero. Isso é
relatado primeiramente no Martírio de Paulo (a seção final dos Atos de Paulo), um texto do fim
do século II que provavelmente se baseia em tradições muito anteriores que foram transmitidas
de boca a boca.
De acordo com várias versões posteriores do martírio, a caminho da morte de Paulo, uma
mulher piedosa deu-lhe um pano ou uma mortalha para amarrar na cabeça, para que ele pudesse
cobrir os olhos no momento da morte. Após ter sido decapitado, ele devolveu sobrenaturalmente
a mortalha sangrenta para a mulher, e o objeto foi capaz de realizar curas milagrosas. A igreja
romana alegou ter esse sudário até o final do século IV. (Tradições posteriores ligaram a morte
de Paulo à de Pedro, mas isso não fazia parte dos relatos mais antigos, que apresentavam Paulo
como um mártir modelo por si só.)
A história da morte de Paulo foi crucial para a igreja africana. No capítulo 11, vimos que o
legado de Paulo desempenhou um papel na mais antiga história de martírio sobrevivente do norte
da África, Atos dos mártires cilitanos, que datam de cerca de 180 d.C. Vale a pena retornar a
esse texto agora com mais detalhes. Esse grupo de cristãos foi preso na aldeia de Scillium e
levado a Cartago para julgamento. Durante o julgamento, o governador percebeu que eles
levaram algo consigo e questionou seu líder, Esperato: “O que tem aí?”. Esperato respondeu:
“Livros e epístolas de Paulo, um homem justo” (Acta mart. Scillit. 12).
No momento de enfrentar a iminente execução, os cristãos extraíam forças do exemplo e das
cartas de Paulo.
Não sabemos quais cartas eles tinham na época, mas qualquer número de cartas de Paulo
poderia ter sido uma fonte de encorajamento. Em Romanos, Paulo escreve: “O próprio Espírito
testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. Ora, se somos filhos, somos também
herdeiros, herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo; se com ele sofremos, também com ele
seremos glorificados. Os sofrimentos do presente e as glórias do porvir. Porque para mim tenho
por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser
revelada em nós” (Rm 8.16-18). Em 2Coríntios 11.24-27, Paulo inclui uma longa lista de
sofrimentos que suportou pelo evangelho (ser açoitado, espancado, apedrejado, naufragado, etc.).
Paulo também escreve aos filipenses sobre sua alegria mesmo em meio ao sofrimento, pois o
evangelho continuava a avançar apesar e até por causa de seu tempo na prisão. Eles também
devem se alegrar quando sofrem (Fp 1.12-30). Esses são apenas alguns exemplos das cartas de
Paulo, que quase certamente estão no pano de fundo desse texto.
Os Atos dos mártires cilitanos incluem uma alusão específica a outra carta paulina. Quando o
governador aumenta a pressão para que os cristãos ofereçam um sacrifício para honrar o
imperador e os deuses romanos, Esperato responde: “Não conheço o imperador dessa época, mas
sirvo ao Deus que nenhum homem vê nem pode ver com estes olhos” (Acta mart. Scillit. 6).
Esperato parafraseia uma passagem de 1Timóteo, em que Paulo descreve Deus como habitando
“em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver” (1 Tm 6.16). No momento da provação,
Esperato e os outros cristãos se inspiraram nas palavras e ações de Paulo.
Momentos depois, os mártires souberam que seguiriam o exemplo de Paulo em sua maneira de
morrer. O governador declarou: “Por terem persistido de maneira obstinada, embora lhes tenha
sido dada a oportunidade de retornar ao costume dos romanos, está decidido que serão punidos
com a espada” (Acta mart. Scillit. 14). Eles morreram sendo decapitados com a espada,
exatamente da mesma maneira que Paulo morreu. Ao fazer isso, eles estavam literalmente
seguindo os passos do apóstolo, imitando-o como ele havia exortado várias igrejas a fazer (1Co
11.1; Fp 3.17; 1Ts 1.6; 2Ts 3.9).
Os relatos do martírio de Cipriano também destacam a imitação de Paulo. Temos dois relatos
sobre isso que foram escritos logo após a morte do bispo: Atos de Cipriano (autor anônimo) e A
vida de Cipriano, escrito por Pôncio, um diácono que serviu sob a liderança de Cipriano em
Cartago.
O autor dos Atos de Cipriano registrou vários detalhes que pretendiam fazer o público conectar
a morte de Cipriano com a de Paulo. Após uma breve troca de palavras entre o bispo e o
governador romano, este emitiu sua sentença: “Está decidido que Tácio Cipriano será punido
com a espada” (Acta Cypr. 4). A frase latina usada para descrever a sentença de Cipriano, “será
punido com a espada”, é idêntica à linguagem usada quando os mártires cilitanos foram
condenados à morte. Suas mortes estavam ligadas à de Paulo, e a de Cipriano, ligada à deles;
assim, por meio deles, Cipriano estava ligado a Paulo. Como os mártires cilitanos, Cipriano foi a
melhor ilustração do que é seguir o exemplo de Paulo.
À medida que Cipriano se aproximava de seu local de execução, “muitos panos e lenços foram
colocados na frente dele pelos irmãos” (Acta Cypr. 5). Esses detalhes ecoam as histórias sobre
Paulo recebendo uma mortalha a caminho de sua morte. O pano de Paulo absorveu seu sangue e
se tornou uma fonte de cura. Os seguidores de Cipriano esperavam que algo semelhante
acontecesse após a morte de seu bispo, porque ele estava morrendo da mesma forma que o
apóstolo.
Pôncio também destacou a comparação entre Paulo e Cipriano em A vida de Cipriano (em uma
passagem citada no final do capítulo 8). Depois de descrever a morte do bispo, Pôncio tentou
colocar esse evento em seu contexto mais amplo. Ele observou que Cipriano suportou muito
sofrimento, assim como os apóstolos. Ao derramar seu sangue pela fé, se tornou o exemplo
africano supremo de perseverança, perdendo apenas para os próprios apóstolos: “Por sofrer
assim, Cipriano, que havia sido um exemplo para todos os homens de bem, também se tornou o
primeiro exemplo no norte da África que encharcou [em sangue] sua coroa sacerdotal. Ele foi a
pessoa mais importante depois dos apóstolos ao servir de exemplo dessa maneira” (Vit. Cypr.
19).
Cipriano foi apresentado como o mártir africano mais importante, não apenas porque era bispo,
mas — mais importante — porque sua morte seguiu o modelo do apóstolo Paulo. Por meio de
sua morte, Cipriano tornou-se como um apóstolo para a igreja africana.
Tanto os donatistas quanto os cecilianistas tentaram reivindicar para si esse legado de martírio.
Verdadeiros e falsos mártires: vozes donatistas
Quem era a verdadeira igreja? Foi a igreja reconhecida pelo imperador e o bispo de Roma, ou a
igreja dos bispos “puros”? Os donatistas e os cecilianistas não concordavam.
Eles concordaram, no entanto, neste ponto: a verdadeira igreja era a igreja dos verdadeiros
mártires, os herdeiros do legado que passou pelos mártires Cipriano e cilitanos, até os apóstolos.
Mas qual hierarquia da igreja poderia reivindicar isso com razão?
Ambos os lados afirmaram ser a igreja dos verdadeiros mártires por meio de seus ataques um
ao outro. A esmagadora maioria das evidências sobreviventes sobre a controvérsia donatista vem
da perspectiva cecilianista, mas ainda há material suficiente do lado donatista para se ter uma
noção de sua abordagem ao debate.
A perspectiva donatista é bem exposta em Atos dos mártires abitinianos, que exploramos no
capítulo anterior. Esse texto contém a acusação de que Ceciliano, por ordem de Mensúrio,
espancou cristãos piedosos que tentavam levar comida e água a alguns confessores na prisão.
A mensagem geral do texto condenava os cecilianistas como um todo. Na abertura de Atos dos
mártires abitinianos, o autor deixou claro que a história esclareceria quem fazia e quem não fazia
parte da verdadeira igreja:
Uma vez condenado o erro, quem se alegra na verdade do Senhor leia os registros dos mártires para se apegar à Igreja
Católica e distinguir a santa comunhão da profana. Esses [registros] foram inscritos nos arquivos indispensáveis da
memória para que a glória dos mártires e a condenação dos traidores não se desvaneçam com o passar dos tempos. (Pass.
Dat. Saturno. 1)
O autor donatista afirmava que seu grupo, e não os cecilianistas, era a igreja legítima, pois
faziam parte da “Igreja Católica”. O termo “católico” foi usado para afirmar que eles haviam
permanecido como parte da “santa comunhão”. Os cecilianistas, em contraste, eram os
cismáticos — aqueles que haviam deixado a igreja seguindo os “traidores”, e se tornaram parte
da comunhão “profana”.
O autor queria garantir que a “condenação dos traidores” não fosse esquecida em tempos
posteriores, e essa foi a razão para escrever a obra Atos dos mártires abitinianos. Esses “registros
dos mártires” seriam uma prova duradoura de que alguns se afastaram da igreja, enquanto os
verdadeiros mártires donatistas “selaram com seu próprio sangue o veredicto contra os traidores
e seus associados, rejeitando-os na comunhão da Igreja” (Pass. Dat. Saturno. 2).
A importância do apóstolo Paulo para esses mártires donatistas apareceu várias vezes no
decorrer da história. Segundo o texto, o leitor cristão emérito era ameaçado se não entregasse as
Escrituras. O governador lhe perguntou: “Você tem Escrituras em sua casa?”. Ele respondeu:
“Sim, mas estão no meu coração” (Pass. Dat. Saturn. 12). O autor destaca que isso era uma
alusão a 2Coríntios 3.3:
Ó mártir, lembre-se do Apóstolo que mandou escrever a Lei do Senhor “não em pedra, mas pelo Espírito do Deus vivo,
não em tábuas de pedra, mas nas tábuas do coração de carne”! Ó mártir, guardião mais adequado e diligente da lei sagrada!
Tremendo com o crime dos traidores, ele colocou as Escrituras do Senhor nos refúgios de seu próprio coração para não
perdê-las. (Pass. Dat. Saturno. 12)
Imagem 13.1: Linhas de sucessão de mártires cecilianistas e donatistas.

Paulo serviu de inspiração para o emérito colocar as Escrituras em seu coração, onde não
poderiam ser entregues, como os traditores haviam feito. No decorrer da história, mais dois
mártires também aludiram à mesma passagem em 2 Coríntios, afirmando que as Escrituras
estavam em seus corações.
O ensino e o exemplo de Paulo percorrem todo o texto, e o autor retorna às palavras do
apóstolo ao resumir a mensagem geral de Atos dos mártires abitinianos, que é a separação entre:
a igreja dos mártires e o conventículo dos traidores [...] Eles são tão contrários um ao outro como a luz é para as trevas, a
vida para a morte, um santo anjo para o diabo, Cristo para o Anticristo. Como disse o apóstolo Paulo: “Abram seus
corações para mim como crianças e não se unam aos incrédulos. Pois que partilha há entre justiça e iniquidade ou que
comunhão entre luz e trevas? Que acordo há entre Cristo e Belial, que pequena parte entre um crente e um incrédulo, que
acordo entre o templo de Deus e os ídolos?” (Pass. Dat. Saturno. 22).
Paulo havia advertido os coríntios a evitar a comunhão com as trevas, os incrédulos e o templo
dos ídolos (2Co 6.14-16). Os cecilianistas, que eram liderados pelo próprio diabo “sob o pretexto
da santíssima religião” (Pass. Dat. Saturn. 22), agora encarnavam esses perigos.
O autor de Atos dos mártires abitinianos deixou ao leitor estas instruções: “Deve-se ver e
amaldiçoar toda a congregação corrupta de todas as pessoas manchadas e profanas, e todos
devem buscar a linhagem gloriosa dos mártires abençoados, que é a una, santa e verdadeira
Igreja, da qual os mártires surgem e cujos mistérios divinos os mártires observam” (Pass. Dat.
Saturn. 23). As igrejas cecilianistas não estavam na “linhagem dos mártires bem-aventurados”,
nem faziam parte “da Igreja una, santa e verdadeira, da qual os mártires surgem”. Essa honra
pertencia aos donatistas.
Verdadeiros e falsos mártires: a resposta cecilianista
Em meados do século IV, Optato de Milevo tornou-se uma das principais vozes cecilianistas
contra os donatistas. Tanto Ceciliano quanto Donato estavam mortos, mas o conflito entre seus
sucessores continuava, e os mártires ainda desempenhavam um papel fundamental.
Imagem 13.2: Mosaico de Uppenna vinculando os mártires abitinianos aos apóstolos. “Aqui estão os nomes dos mártires: Pedro,
Paulo, Saturnino, o presbítero. Da mesma forma Saturnino, Bindemius, Saturnino, Donatus, Saturnino, Gududa, Paula, Clara,
Lucila, Kortun, Iader, Cecílio, Emílio, que morreram e foram sepultados em 8 de novembro.”

Optato focou nos donatistas tanto na África quanto em Roma. Ele via o contexto romano como
um alvo fácil porque podia apontar para os santuários dos mártires dos apóstolos em Roma e
quem os controlava — isto é, a igreja romana, não os donatistas. Optato argumentou que a
ilegitimidade dos donatistas era vista desde o tempo de seu primeiro bispo romano, Vítor de
Garba: “Em Roma estão os santuários dos dois apóstolos [Pedro e Paulo]. Você pode me dizer se
ele [Victor] conseguiu se aproximar deles, ou ofereceu sacrifícios naqueles lugares, onde, é certo,
estão esses santuários dos santos?” (Adv. Donat. 2.4.2). Não, Vítor não podia oferecer sacrifício
(a Eucaristia/Ceia do Senhor) porque não era um verdadeiro bispo e, portanto, não tinha acesso
aos santuários dos mártires de Paulo e Pedro.
Além disso, Vítor não tinha uma igreja na qual pudesse liderar o culto. Ele estava ali “como
pastor sem rebanho, como bispo sem povo. Pois nem como um rebanho, nem como um povo,
podem ser chamados aqueles poucos que se apressaram entre as mais de quarenta basílicas de
Roma, mas não tinham um lugar onde pudessem se reunir” (Adv. Donat. 2.4.2). O fato de Vítor
não ter acesso aos santuários dos mártires ou às igrejas mostrava que os donatistas não eram
cristãos autênticos. Os cecilianistas, que estavam em comunhão com a igreja romana, eram a
verdadeira igreja católica e apostólica.
No início do século V, Agostinho de Hipona assumiu o caso cecilianista contra os donatistas e,
de forma semelhante, apontou os mártires apostólicos como prova de qual igreja era verdadeira.
Em sua obra Sobre a obediência, Agostinho tentou mostrar que havia uma linhagem de
verdadeiros mártires e uma de falsos mártires:
Preciosa aos olhos do Senhor é a morte dos seus justos. Portanto, a morte de Pedro é preciosa; portanto, a morte de Paulo é
preciosa [...] portanto, a morte de Cipriano é preciosa. Por que elas são preciosas? Por uma ação pura e uma boa
consciência, além de uma fé que não é falsa. Essa serpente, no entanto, vê isso. Essa antiga serpente vê que os mártires são
honrados e os templos estão desertos. Ela inventou cuidadosamente tramas astutas e venenosas contra nós, e porque não foi
capaz de exercer influência sobre os cristãos por meio de falsos deuses, ela criou falsos mártires. (Oboed. 16)
Deus se alegrou com a morte dos santos, incluindo a morte de Cipriano e dos apóstolos Pedro e
Paulo, porque eles se mostraram verdadeiros por meio de sua fé até o fim.
A “antiga serpente”, o diabo, viu que o testemunho desses mártires fez com que muitos
abandonassem o culto aos deuses pagãos, então ele desenvolveu um plano mais sutil. Satanás
tentou desviar os fiéis criando “falsos mártires”, uma referência aos mártires donatistas. Histórias
como Atos dos mártires abitinianos não eram relatos de cristãos enfrentando a perseguição com
coragem. Em vez disso, eram “tramas astutas e venenosas” planejadas pelo diabo para enganar as
pessoas a seguir os líderes donatistas.
Em outro sermão proferido na festa anual dos “aniversários” de Pedro e Paulo (29 de junho),13
Agostinho atacou diretamente o direito dos donatistas de reivindicar os apóstolos para si. Embora
se regozijasse com o fato de os cecilianistas honrarem Paulo e Pedro, ele afirmou que os
donatistas estavam do lado de fora olhando: “O que os hereges [os donatistas] dirão sobre essas
coisas? Acho que até eles celebram a festa dos apóstolos. Eles realmente se esforçam para
celebrar seu dia, mas não se atrevem a cantar essa canção” (Dies nat. Pet. Paul. 9). Os donatistas
pensavam que também estavam honrando os apóstolos. Eles até estabeleceram uma festa, mas
seus esforços foram inúteis porque eram hereges. Eles não podiam cantar o cântico que pertencia
apenas aos membros da verdadeira igreja.
A igreja verdadeira?
A controvérsia donatista nunca foi formalmente resolvida, como podemos deduzir pelas fontes.
Mas a divisão entre os cecilianistas e os donatistas logo se tornou menos importante quando
todos os cristãos na África enfrentaram uma ameaça mais séria e comum. Os vândalos haviam
chegado à costa da África em 430, sitiando a cidade de Hipona, de Agostinho, onde este mesmo
morreu durante o cerco. Menos de uma década depois, eles pilharam a própria Cartago.
No tempo de Cipriano, a pergunta era: O que é a igreja? Um hospital ou uma sala limpa? E
um médico impuro (ministro ou bispo) pode curá-lo?
Na época da controvérsia donatista, a pergunta havia mudado: Qual é a verdadeira igreja?
Ambos os lados argumentaram que entrar na igreja errada com o bispo errado era uma sentença
de morte teológica: “Nós somos a verdadeira igreja de Deus. Eles são uma fraude do diabo”.
Esse conflito tem assombrado a história cristã. Em muitas ocasiões envolvendo controvérsias
entre grupos cristãos, um dos lados usou o termo “donatista” para condenar seus adversários. Na
Idade Média, reformadores como John Wycliffe (Inglaterra), Jan Hus (República Tcheca),
Martinho Lutero (Alemanha) e Ulrico Zuínglio (Suíça) foram chamados de donatistas por seus
oponentes.
Nos ambientes cristãos modernos, os acusados de serem muito rígidos são chamados de
donatistas. No catolicismo romano, alguns usaram a linguagem para criticar a Fraternidade São
Pio X, que rejeita muitas das reformas criadas pelo Concílio Vaticano II na década de 1960. Nos
círculos protestantes, particularmente em denominações divididas ou em divisão, aqueles do lado
progressista usaram o termo “donatista” para condenar aqueles que continuam a defender
abordagens cristãs mais tradicionais para questões como a sexualidade humana e doutrinas como
o nascimento virginal e a ressurreição física de Cristo.
Embora tenha terminado há mais de mil e quinhentos anos, a controvérsia donatista continua
relevante para a igreja moderna, pois levanta questões sobre a natureza da igreja e sua liderança
que ainda estão sendo debatidas hoje.

13 Os cristãos antigos descrevem o dia da morte de um mártir como o seu “aniversário”, porque nesse dia ele nasceria no céu.
CAPÍTULO

14

A vida e os tempos
de Agostinho
Ideias-chave
• As Confissões de Agostinho relatam seus primeiros anos de vida e suas tentativas de
encontrar satisfação por meio do prazer físico, da filosofia e da religião maniqueísta.
• Agostinho mudou-se para Milão e entrou em contato com o bispo Ambrósio, cujas
habilidades retóricas o inspiraram a ouvir seus sermões.
• Depois de batizado, Agostinho quis se retirar para um mosteiro, mas foi chamado para o
serviço da igreja e acabou se tornando bispo de Hipona.

Nesta seção final do livro, voltamos nossa atenção para Agostinho de Hipona. Ele foi, sem
dúvida, um dos pensadores mais influentes na história do cristianismo (particularmente no
Ocidente), e em alguns recortes da história da igreja ele é o único africano a receber grande
atenção. Às vezes, participo de conferências sobre o cristianismo primitivo, nas quais há várias
sessões sobre Agostinho em todos os horários, e essas sessões são agendadas duas vezes, porque
há muitos artigos sobre ele.
Agostinho certamente foi importante, mas espero que possamos ver agora que pular direto para
ele enquanto passamos por Perpétua, Tertuliano, Cipriano e a controvérsia donatista seria um
erro. Agostinho foi um produto de seu tempo e de seu contexto, e seu trabalho foi profundamente
influenciado por questões, autores e líderes africanos que vieram antes dele.
Este capítulo fornece uma visão geral da vida de Agostinho. Quem ele foi? Que eventos em
sua jornada de vida definiram o curso para ele se tornar um bispo poderoso e autor prolífico de
sermões, cartas e obras teológicas?
Muito do que sabemos da vida de Agostinho vem de sua autobiografia: Confissões.
O jovem Agostinho
Agostinho nasceu em 354 d.C. em Tagaste (atual Souk Ahras, na Argélia), uma cidade
comercial romana no norte da África. Ele veio ao mundo em uma época em que o cristianismo
era legalizado em todo o império (não era a religião oficial até 380), mas a igreja africana estava
profundamente dividida pela controvérsia donatista.
O pai de Agostinho, Patrício, não era cristão até perto do fim de sua vida. Seus sonhos para o
filho eram inteiramente seculares. A mãe de Agostinho, Mônica, era cristã. Ela fez o possível
para criar seu filho na fé, mas não foi fácil. Quando jovem, Agostinho fez muitas coisas que
devem tê-la preocupado, mas ela continuou orando e esperando, e, por fim, sua influência
impactou seu filho e todo o cristianismo.
Agostinho veio posteriormente honrar sua mãe como uma santa mulher de Deus, e a igreja
anuiu e depois fez dela uma santa. Por fim, um belo lugar na praia foi nomeado em sua
homenagem: Santa Mônica, na Califórnia. Um relato afirma que um missionário franciscano
chamado Juan Crespí deu o nome dela à cidade porque encontrou duas fontes no local que o
lembraram das lágrimas que Mônica derramou por seu filho durante os dias selvagens de sua
juventude. O jovem Agostinho deu muito trabalho para a mãe.
Mônica queria influenciá-lo para o cristianismo, mas seu pai o estava treinando para a vida
pública. Agostinho era intelectualmente dotado e vinha de uma família que podia mandá-lo para
a escola. Então, aos doze anos, foi enviado para um centro regional de aprendizado em Madauro,
onde recebeu uma educação de alta qualidade que o ajudou a avançar mais e mais rápido na vida.
Madauro não era uma cidade grande, portanto quem hoje caminha entre suas ruínas pode ter
certeza de que Agostinho andou por aquelas mesmas ruas.
Posteriormente, Agostinho retornou a Tagaste por um curto período de tempo, mas seu tédio o
levou a buscar todos os tipos de prazeres. Ele contou que roubou uma pêra não porque a queria,
mas porque roubar era errado — e isso tornava o feito mais doce. Ele furtou apenas para sentir a
adrenalina do furto.
Por fim, as habilidades e ambições de Agostinho o levaram a mirar mais alto. Em 371, aos
dezessete anos, deixou Tagaste para estudar retórica na cidade grande, em Cartago. Esta era a
maior e mais rica cidade do norte da África. Embora estivesse indo oficialmente para lá a fim de
estudar, ele também tinha outros planos em mente. Agostinho mal podia esperar para ver o que a
cidade grande tinha a oferecer. (Ele tinha mais ou menos a idade da maioria dos calouros da
faculdade hoje, então algumas coisas não mudam.)
Pela sua própria descrição em Confissões, Agostinho mergulhou de cabeça nos prazeres do
mundo — sexo promíscuo, envolver-se com a escória, assistir a espetáculos teatrais lascivos e
qualquer outra coisa que pudesse encontrar para fazer.
Mas ele ainda estava indo bem em seus estudos, e nesse ponto Agostinho sabia, no fundo, que
algo estava errado — ele sabia que deveria estar se saindo melhor, pelo menos na área
intelectual. Enquanto continuou com sua vida desregrada, ele também se tornou mais interessado
em filosofia, e se sentia particularmente atraído por Cícero, que acreditava que as pessoas
podiam superar suas próprias fraquezas por meio da autodisciplina.
Duas coisas importantes aconteceram nessa época. Em primeiro lugar, o pai de Agostinho
morreu, mas não antes de receber o batismo. O homem que tanto empurrava Agostinho para as
atividades seculares dobrou os joelhos diante de Cristo. Mônica ficou comovida; Agostinho deve
ter ficado perplexo.
Em segundo lugar, Agostinho juntou-se a um grupo chamado maniqueu. Essa era uma religião
que misturava elementos do cristianismo com outras religiões, especialmente uma grande
religião do mundo antigo chamada zoroastrismo. Não precisamos entrar em todos os detalhes da
religião maniqueísta, mas permita-me apresentar seus fundamentos. Os seres humanos estão
presos em uma batalha cósmica entre a luz e a escuridão, entre o bem e o mal. O bem cria a alma
humana, enquanto o mal cria o corpo físico. Se uma pessoa pode conquistar seu corpo por meio
da autodisciplina, então ela pode derrotar o mal. Mas o maniqueísmo também ensinou uma
versão do fatalismo, o que significa que muito disso está fora do controle humano. Muitos estão,
de fato, fadados ao fracasso, não importa o quanto tentem. As coisas já estão determinadas.
Agostinho seguiu o maniqueísmo por nove anos, tentando encontrar verdade e consolo nessa
religião.
Suas atividades recreativas continuaram. Durante esse período da vida — por volta dos dezoito
ou dezenove anos de idade —, sua namorada deu à luz um filho. Agostinho acabou ficando
frustrado com a vida em Cartago e foi com sua namorada e seu filho morar em Roma e abrir uma
escola de retórica lá.
O desafio das experiências da vida
Agostinho estava perseguindo suas aspirações de carreira na capital de Roma. Ele estava
seguindo o maniqueísmo e esperando que a autodisciplina pudesse salvá-lo, embora
aparentemente não estivesse se esforçando o suficiente. Sua mãe continuou a tentar atraí-lo para
o cristianismo, e embora ele mais tarde dissesse isso de forma simpática, temos a impressão de
que ela às vezes era um tanto inconveniente. Ela não se continha.
Agostinho finalmente voltou para a África, e seu mundo foi abalado quando um de seus
amigos mais próximos morreu. Em suas Confissões, ele nos conta sobre as conversas que teve
com esse amigo próximo nos dias que antecederam sua morte. Assim como Agostinho, ele havia
sido maniqueísta, mas posteriormente se converteu ao cristianismo. Agostinho tentou brincar
com ele sobre sua conversão, mas seu amigo não estava rindo. O fato de ele levar isso tão a sério
começou a abalar o senso de confiança de Agostinho quanto ao seu modo de viver.
Quando seu amigo morreu, Agostinho não encontrou consolo em lugar algum. Ele escreveu em
suas Confissões:
Meu coração estava completamente escurecido pela tristeza, e para onde quer que eu olhasse eu via a morte. Minha cidade
natal era uma câmara de tortura para mim [...] Perguntei à minha alma por que estava tão abatida e por que isso me
incomodava tanto. Mas não soube responder [...] Uma sensação estranha tomou conta de mim, pois agora era cansativo
viver e assustador morrer. (Conf. 4.9)
Seus esforços filosóficos e sua busca pelo maniqueísmo não ofereceram respostas ao enfrentar
a fragilidade humana. Sim, ele já havia perdido seu pai, portanto já havia sentido a dor da morte.
Mas de alguma forma esse assunto o atingiu com muito mais força quando se deparou com a
morte de um amigo próximo da mesma idade, pois Agostinho percebeu que se seu amigo podia
morrer, ele também podia. Em minha experiência de trabalho com estudantes universitários e do
ensino médio, muitas vezes percebo entre eles um sentimento de invulnerabilidade até que um de
seus colegas morra. Nesse ponto, eles percebem que a vida e a morte são assuntos sérios. Foi o
que aconteceu com Agostinho.
Ao relembrar essa experiência, ele aludiu ao Salmo 43.5: “Por que estás abatida, ó minha
alma? Por que te perturbas dentro de mim?”. Naquela época, Agostinho não tinha a resposta que
o salmista dá: “Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu”.
Agostinho não sabia onde colocar sua esperança. Sua alma não tinha uma resposta para (para
usar uma expressão das histórias de Sherlock Holmes) o “problema final” — a própria morte, e
atingiu tal nível de desespero a ponto de ficar totalmente sobrecarregado. Viver parecia difícil
demais, mas ele também tinha medo de morrer. Ele sabia que algo não estava certo, e isso tudo o
levou a ficar muito abalado e a começar a se afastar do maniqueísmo, que já vinha questionando
seriamente. Agostinho duvidava que pudesse fornecer respostas para perguntas maiores.
A transformação em Milão
Em 384 d.C., pouco antes de seu trigésimo aniversário, Agostinho mudou-se para Milão para
buscar um trabalho como professor de retórica. Sua mãe o seguiu até lá, o que provavelmente
não o deixou feliz. Agora ela poderia acompanhá-lo de perto.
Em Milão, Deus realmente aumentou a pressão sobre Agostinho (mesmo sem a ajuda de sua
mãe). O bispo local era um homem chamado Ambrósio, e isso ajudará a entender um pouco
sobre sua origem. Ambrósio não era um clérigo de carreira que havia subido na hierarquia como
padre ou monge. Em vez disso, ele tinha sido um político. Seu pai havia sido o governador
regional da Gália (atual França), e seu filho estava seguindo os seus passos. Ambrósio estudou
direito em Roma e chamou a atenção de alguns funcionários do governo, que o nomearam
governador de uma região do norte da Itália. Milão era a capital do país, então Ambrósio se
mudou para lá em 370.
Em 374 o bispo de Milão morreu, e houve um tumulto sobre quem deveria ser o seu sucessor.
Ambrósio foi convocado para tentar acalmar a multidão, e, enquanto isso acontecia, alguém
gritou: “Ambrósio para bispo!”. A multidão irrompeu em apoio, e, antes que percebesse, ele foi
escolhido para ser bispo. Como Ambrósio não havia sido batizado, ele teve seu processo
“acelerado” por meio de treinamento pré-batismal (catequese) e batismo. Ele estava na cadeira
episcopal por cerca de uma década quando Agostinho chegou a Milão.
Ambrósio era um pensador e orador de formação clássica e, para Agostinho, ouvi-lo falar era o
melhor evento da cidade. Agostinho ainda não concordava com o conteúdo dos sermões de
Ambrósio, porque eram todos muito “cristãos”, no entanto apreciava a habilidade do bispo como
orador público. Ambrósio era tão brilhante e interessante que Agostinho continuava retornando,
embora as mensagens saltassem de sua cabeça e de seu coração — ou assim pensava. Ele agora
estava ouvindo a mensagem do cristianismo de sua mãe de um lado e a de Ambrósio de outro.
Mas havia mais. Sua visão de mundo também estava desmoronando.
Agostinho ainda lutava para viver à sua maneira, esperando que a busca dos prazeres desta
vida lhe trouxesse consolo e felicidade. A essa altura ele fez a famosa oração: “Peço castidade e
pureza, mas não para hoje!” (Conf. 8.7). Ele queria prosseguir com seu estilo de vida por mais
tempo, ainda que a busca pelo prazer físico mantivesse sua vida vazia e sem sentido.
A vida intelectual era sua última fortaleza, embora ele ainda não estivesse a salvo de seus
ataques internos. Isso nos leva à minha passagem favorita em todos os escritos de Agostinho.
Nela, ele nos conta sobre um dia em que ele e alguns de seus amigos intelectuais estavam
andando pelas ruas de Milão. Ele estava trabalhando em um discurso em homenagem ao
imperador, e sentia a pressão de fazer uma grande apresentação. Passava ali, à beira da estrada,
um mendigo que ria e brincava, aparentemente por ter bebido vinho demais.
Agostinho ficou impressionado com a ironia da situação. Ele trabalhava há anos para alcançar
uma posição importante na sociedade, esperando que isso lhe trouxesse felicidade. E, no entanto,
estava desgastado pela ansiedade que acompanhava a posição que havia conquistado. Aquele
homem, por outro lado, encontrou a felicidade graças a algumas moedas que lhe haviam sido
dadas, investidas então em vinho.
Agostinho certamente percebeu que a felicidade desse mendigo era breve, e sua fome e sede
logo voltariam: “Evidentemente, sua felicidade não é a genuína!”. No entanto, o problema lógico
permaneceu. Se lhe fosse oferecida a escolha entre a infelicidade e a felicidade, Agostinho
escolheria a felicidade. Porém, se lhe fosse oferecida a escolha entre sua vida e a vida desse
mendigo, ele escolheria sua própria vida. No entanto, ele não estava feliz, e “meu aprendizado
não era fonte de felicidade para mim” (Conf. 6.6).
Mais tarde, olhando para trás, Agostinho diria que Deus estava tentando chamar sua atenção
por meio dessa experiência também. Ele estava ficando sem lugares em que se esconder.
No verão de 386, Agostinho finalmente cedeu. Certa tarde, no quintal de uma casa, ele chorava
em total desespero por sua incapacidade de resolver seus conflitos internos. Então ele ouviu a
voz de uma criança cantarolando: “Toma e lê, toma e lê”. Ele acreditava que Deus estava lhe
dizendo “para abrir o livro de Escrituras [de Deus] e ler a primeira passagem que [ele] visse”.
(Claro, essa não é normalmente a melhor maneira de ler a Bíblia. A Escritura não é um jogo de
palavras.)
Agostinho pegou uma coleção das cartas de Paulo, abriu e começou a ler. Seus olhos caíram
sobre Romanos 13.13,14: “Andemos dignamente, como em pleno dia, não em orgias e
bebedices, não em impudicícias e dissoluções, não em contendas e ciúmes; mas revesti-vos do
Senhor Jesus Cristo e nada disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências”. A
passagem o atingiu como uma flecha atirada diretamente em seu coração. Naquele momento,
todas as suas dúvidas foram embora, e ele sabia o que tinha que fazer: voltar seus olhos e
depositar suas esperanças em Deus somente.
Naquele dia, naquele jardim, as palavras da Escritura penetraram em seu coração duro de uma
maneira que nunca havia acontecido antes. Em suas Confissões, ele refletiu mais tarde sobre os
anos que havia perdido fugindo de Deus: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova. Tarde te
amei” (Conf. 10.27).
Agostinho, o cristão
Ambrósio batizou Agostinho em Milão na Páscoa de 387, em um batistério que ainda hoje
pode ser visitado. Atualmente ele é chamado de Battistero Paleocristiano (Batistério Cristão
Primitivo) e foi redescoberto em escavações arqueológicas sob a Catedral de Milão, a segunda
maior catedral gótica do mundo (ver Imagem 14.1).
Após seu batismo e conversão ao cristianismo, Agostinho levou Romanos 13 a sério em
relação a negar a carne. (Seu filho também morreu nessa época, e não ouvimos mais sobre a mãe
do menino.) Mas como ele poderia escapar das tentações da vida? Agostinho decidiu seguir a
vida como um monge.
Ele voltou para a África e ali fundou uma comunidade monástica. Sua ideia era, ao que parece,
deixar para trás a sociedade que ele achava tão poluída com pensamentos e atividades impuros.
Apesar de querer se retirar para a vida monástica, ele não conseguia se esconder tão facilmente.
Vez após vez, Agostinho continuava sendo atraído à vida pública.
Por fim, e contra sua vontade, em 395 ou 396 ele foi nomeado bispo de Hipona, uma cidade na
costa do Mediterrâneo, e, em cerca de uma década, deixou de ser um libertino anticristão de
coração duro para ser um bispo.

Imagem 14.1: Batistério de Santa Tecla (Milão), local onde Agostinho foi batizado por Ambrósio.

Ele serviu como bispo de Hipona até sua morte, em 430. O jovem Agostinho havia buscado
oportunidades maiores e melhores, mas o Agostinho mais velho deixou isso para trás. Mesmo
que ele quisesse se mudar, a lei da Igreja dizia que uma vez que alguém se tornasse bispo em
uma cidade, não poderia se mudar para se tornar bispo de outra. Não havia “mobilidade
ascendente” para os bispos.
Grande parte da biografia de Agostinho chega até nós por meio de Confissões. A maior parte
do livro faz uma retrospectiva de sua vida, e ele cria que Deus estava trabalhando nela, mesmo
quando não tinha consciência disso.
O papel de Mônica, seu treinamento em retórica, a morte de seu amigo — todas essas influências
o estavam preparando para o que Deus tinha reservado. Mesmo historiadores e filósofos
seculares que ignoram a teologia reconhecem a importância de Confissões como a primeira
grande obra autobiográfica introspectiva.
Na abertura das Confissões, Agostinho faz uma de suas declarações mais citadas: “Fizeste-nos
para ti, e inquieto está o nosso coração, enquanto não repousa em ti” (Conf. 1.1).
Sombras de Agostinho
Hipona é a cidade moderna de Annaba, na Argélia. Em uma colina proeminente da cidade foi
erguida uma basílica com o nome de Agostinho, construída no final do século XIX durante a
ocupação colonial francesa da Argélia (ver Imagem 14.2), e acredita-se que ela guarda como
relíquia um de seus braços.

Imagem 14.2: Basílica de Agostinho (Hipona). Fileiras de pilares separam os corredores da seção central (nave) da igreja, com a
abside semicircular visível na extremidade.

A igreja de Agostinho estava realmente em um vale abaixo desta basílica moderna. Ainda
podemos visitar as ruínas de sua Basílica da Paz. Um relato sugere que Agostinho pode ter se
sentado enquanto pregava, e seu assento é preservado na abside da igreja.
Quando os convertidos se achegavam para ser batizados, ele os levava para o batistério ao lado
da igreja, que também sobrevive parcialmente (ver Imagem 14.3). Ao lado dela há um edifício
residencial que os arqueólogos acreditam ter sido a casa do bispo.

Imagem 14.3: Batistério de Agostinho (Hipona).

Nos próximos dois capítulos, veremos a teologia de Agostinho, e, ao fazê-lo, precisamos ter
em mente as experiências de sua vida discutidas neste capítulo. Ele escolheu roubar quando era
jovem apenas pelo prazer do delito, então passou a acreditar que as crianças não são inocentes.
Ele tentou melhorar a si mesmo por meio da filosofia e da autodisciplina, mas falhou. No
maniqueísmo, teve que enfrentar a questão da escolha humana versus fatalismo. Após sua
conversão ao cristianismo, ele olhou para trás e concluiu que Deus estava trabalhando
secretamente em todo o tempo. Todas essas experiências mais tarde impactariam sua teologia, de
uma forma ou de outra.
Devo acrescentar uma nota histórica a essa visão geral da vida de Agostinho. Quando retornou
à África após seu batismo, a fim de fundar um mosteiro, ele estabeleceu regras para os monges.
Séculos depois, em 1244 d.C., um grupo de eremitas religiosos na Itália pediu ao Papa Inocêncio
IV que lhes permitisse fundar uma nova ordem religiosa, e foi decidido que eles seguiriam as
regras estabelecidas por Agostinho. A Ordem de Santo Agostinho (OSA) foi fundada e
rapidamente se espalhou para além das fronteiras da Itália, que existe até hoje.
Talvez o monge agostiniano mais famoso da história tenha sido um jovem alemão intenso que
ingressou na Ordem de Santo Agostinho em 1505. Seu nome era Martinho Lutero.
CAPÍTULO
15

Agostinho:
Teólogo do Ocidente
Ideias-chave
• Agostinho produziu um grande número de escritos de diferentes tipos, e sua principal
preocupação era quase sempre cuidar da igreja.
• Ele defendeu a doutrina do pecado original, que ensina que os seres humanos são
pecadores desde a concepção, pois herdaram a culpa de Adão e Eva.
• Agostinho também desenvolveu um modelo relacional para entender a Trindade e
argumentou que o reino de Deus não é terreno.

Tertuliano pode ter sido o pai da teologia latina, mas Agostinho foi seu descendente mais
famoso (intelectualmente, não biologicamente). Suas obras sobreviventes ultrapassam cinco
milhões de palavras. Neste capítulo, consideraremos os diferentes tipos de textos que ele
escreveu e exploraremos algumas de suas ideias teológicas mais influentes. No próximo capítulo
veremos sua disputa teológica com Pelágio sobre questões de responsabilidade humana e divina
na salvação.
Diferentes razões para escrever
Agostinho nunca escreveu em vão. Ele estava sempre respondendo às necessidades e desafios
de seu tempo. Suas numerosas obras podem ser divididas em algumas categorias amplas:
1. Obras de reflexão teológica. As Confissões de Agostinho se enquadram nessa categoria,
pois seu tema principal é a obra de Deus em sua vida, mesmo durante seus anos de juventude e
rebeldia. A Doutrina Cristã é um guia para interpretar, ensinar e defender as Escrituras. Vários
outros trabalhos importantes dessa categoria serão discutidos neste capítulo. Eles incluem A
cidade de Deus, Trindade e Fé, esperança e amor (também conhecido como Enchiridion, ou
“Manual”).
2. Comentários aos livros bíblicos. Agostinho escreveu vários comentários sobre Gênesis, dois
dos quais ofereceram leituras metafóricas do relato da criação, e outro que ofereceu o que ele
chamou de relato “literal”. (Por “literal” ele quis dizer uma leitura que era histórica, mas também
poética e simbólica, pois acreditava que os seres humanos nunca poderiam entender
completamente o ato de criação de Deus.) Ele escreveu sobre os Salmos, o Evangelho de Mateus,
o Evangelho de João, Romanos, Gálatas e 1João, juntamente com obras mais amplas que
respondem a perguntas sobre o Antigo Testamento e os Evangelhos. Esses comentários deveriam
ser úteis para o cuidado pastoral e o ensino.
3. Obras polêmicas. Agostinho passou muito tempo escrevendo contra pessoas e grupos que
ele considerava hereges — tendo sempre em mente o objetivo de defender a fé. Você deve se
lembrar de que ele foi maniqueísta por nove anos e escreveu seis obras especificamente aquele
grupo. Agostinho rejeitou seu dualismo cósmico e tentou resgatar outras pessoas que acreditava
ainda estarem presas no erro do maniqueísmo.
Como vimos no capítulo 12, Agostinho também escreveu contra os donatistas. Ele foi ensinado
e havia se tornado bispo no ramo cecilianista da igreja africana, era pró-romano e se considerava
parte da igreja católica (universal), enquanto os donatistas eram, na melhor das hipóteses,
cismáticos — mais provavelmente hereges. Para Agostinho, os bispos donatistas não eram
legítimos, então, com uma linguagem forte, ele tentou convencer os donatistas a voltarem para o
que acreditava ser a igreja adequada.
Ele escreveu contra muitos outros em seu desejo de proteger a ortodoxia, incluindo Pelágio,
que será o foco do capítulo 16.
4. Sermões. Agostinho era antes de tudo um homem da igreja. Seus sermões revelam suas
ideias teológicas, mas também mostram a realidade cotidiana de ser pastor e bispo. Em alguns de
seus sermões, ele lida com pessoas de sua congregação que viviam vidas profanas, e em outros
sermões ele parece frustrado com a baixa frequência no culto. (Os pastores modernos muitas
vezes se veem lidando com as mesmas questões.) Lembre-se de que as pessoas em Hipona não
sabiam que estavam ouvindo uma das figuras mais famosas da história cristã. Ele era
simplesmente o bispo deles, então alguns não sentiam a necessidade de ouvi-lo o tempo todo.
5. Cartas. Algumas delas foram escritas como obras polêmicas, enquanto outras tratavam de
questões de ordem eclesiástica ou assuntos cotidianos.
Juntos, esses vários tipos de escritos nos dão uma visão mais completa da carreira de um
homem que enfrentou sua cota de lutas e entendeu a realidade de cuidar de almas no mundo real,
não apenas na torre de marfim de ideias e ideais.
Hoje, Agostinho se destaca como uma das pessoas mais influentes na formação da teologia
ocidental. A teologia católica romana deve muito a ele, assim como certos ramos da teologia
protestante.
Pecado original
Agostinho defendeu a doutrina do pecado original. Esse é um tema controverso porque alguns
cristãos a aceitam e alguns a rejeitam — e mesmo entre aqueles que a aceitam há discordância
sobre o que isso significa para a prática cristã. Não vamos mergulhar profundamente nesses
debates ou tentar resolvê-los. O objetivo aqui é apresentar um resumo dos pontos de vista de
Agostinho sem tentar descobrir quem está certo ou errado nas interpretações posteriores.
Começaremos com uma descrição geral da doutrina do pecado original. Ela ensina que o
pecado é hereditário, sendo transmitido por meio do processo humano de reprodução. Por quê?
Porque todos os seres humanos são descendentes de Adão e Eva (embora para Agostinho, Adão
fosse o principal culpado). A doutrina não afirma que todas as pessoas nascem com uma
tendência ao pecado; afirma que todos nós somos de fato pecadores desde a concepção.
Até onde sabemos, Agostinho foi o primeiro a expor a doutrina do pecado original dessa
maneira. Aqueles que a apoiam argumentam que ela está implícita nas Escrituras, enquanto
aqueles que se opõem dizem que as Escrituras mostram que o pecado não é passado de uma
geração para outra.
A passagem-chave para Agostinho é Romanos 5.12. Nela, Paulo está falando sobre os dois
“Adões”. O primeiro Adão — o próprio Adão — traz o pecado ao mundo por meio de sua
desobediência, enquanto o segundo Adão — Cristo — traz o antídoto para o pecado. Aqui está a
fala de Paulo como traduzida do texto grego: “Portanto, assim como por um homem entrou o
pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens,
porque todos pecaram”.
O pecado veio ao mundo por meio de Adão, procedido da morte. Isso se aplica a todas as
pessoas, “porque todos pecaram”. À primeira vista, isso parece sugerir que todas as pessoas estão
sob a pena do pecado e da morte porque todas cometeram pecados.
Mas Agostinho não estava lendo o texto grego.
Ele estava lendo uma tradução latina, já que, pelo que sabemos, não lia grego. Onde o grego diz
“porque”, Paulo usa o termo ephʾhō. Trata-se de uma expressão comum que significa “porque”
— literalmente, “neste caso” ou “devido ao fato de que”. No entanto, a tradução latina de
Agostinho aparentemente dizia “em quem”.
Portanto, como ele leu no texto, “a morte se espalhou para todas as pessoas, em quem todos
pecaram”. Quem é a pessoa “em quem” todos pecaram? É o primeiro Adão. Agostinho
argumentou que todas as pessoas pecaram “em Adão” porque são a sua descendência. O pecado
de Adão automaticamente se torna nosso pecado e é transmitido a todos nós porque estamos
todos ligados a ele geneticamente.
Em sua obra Fé, esperança e amor, Agostinho afirma: “Diz-se, e provavelmente é verdade,
que os bebês também são culpados pelos pecados de seus pais, não apenas pelos pecados dos
primeiros seres humanos, mas também os de seus pais biológicos” (Enchir. 46).
Para Agostinho, todos os seres humanos herdam o pecado dos primeiros seres humanos e de
seus pais biológicos. Todos nós nascemos nessa condição. Os defensores da doutrina do pecado
original afirmam que Agostinho deixa claro o que Paulo quer dizer em Romanos, enquanto seus
oponentes dizem que Agostinho não entende Paulo.
Mas como exatamente esse pecado é transmitido? Para Agostinho, ele se dá por meio do ato
sexual, porque toda atividade sexual envolve luxúria: “Quando se trata do processo atual de
reprodução, o envolvimento legal e honroso não pode acontecer sem a paixão da luxúria [...] o
resultado dessa luxúria ardente está vinculado ao pecado original” (Nupt. 27). Agostinho pensava
que as relações sexuais dentro do casamento não eram pecaminosas, desde que o objetivo dessas
relações fosse a reprodução. No entanto, a luxúria foi uma das consequências do pecado de
Adão, então onde quer que houvesse luxúria, o pecado original estava presente. (Isso pode soar
como se Agostinho fosse contrário ao casamento, mas, na verdade, ele estava defendendo o valor
do casamento contra alguns extremistas que argumentavam que o verdadeiro cristianismo requer
total abstinência sexual mesmo dentro dele.)
Um bebê que sai do útero é um pecador simplesmente porque é um descendente de Adão e
Eva. Bebês não nascem inocentes. Eles nascem com o pecado como, para usar uma terminologia
moderna, uma “condição preexistente”.
Para alguns cristãos, essa é a motivação para batizar crianças. Eles já nascem fora do
relacionamento com Deus por causa do pecado de Adão e Eva. Agostinho falou sobre isso em
Fé, esperança e amor, onde se referiu ao “pecado que veio ao mundo por um homem e passou a
todos os homens, pelo qual até as crianças são batizadas” (Enchir. 45).
Aqueles que aceitam a doutrina do pecado original também apontam para o Credo Niceno de
325 d.C.: “Cremos em um só batismo para remissão dos pecados”. Essa linguagem é tirada
diretamente do sermão de Pedro no dia de Pentecostes (At 2.38). Aqui está a lógica: se um bebê
nasce pecador, e se o batismo é necessário para perdoar pecados, então um bebê deve ser
batizado para ser perdoado. Nem todos os cristãos que batizam crianças seguem essa linha exata
de raciocínio, mas alguns o fazem.
A doutrina do pecado original foi recebida de formas diferentes ao longo da história do
cristianismo. Ela tornou-se a doutrina oficial da Igreja Católica Romana e, por fim, deu origem à
doutrina da imaculada conceição, que se tornou oficialmente um dogma católico em 1854. Como
Jesus teve uma mãe humana, ele teria herdado o pecado por meio do nascimento. No entanto,
essa doutrina diz que Maria estava milagrosamente livre do pecado original, então o pecado não
foi transmitido a ele.
Essa doutrina foi, de certo modo, modificada em alguns ramos do protestantismo,
particularmente os da tradição de Martinho Lutero e João Calvino (cristãos luteranos e
reformados/calvinistas).
Os ortodoxos e alguns outros protestantes rejeitam a doutrina do pecado original e argumentam
que os seres humanos nascem, de fato, com uma natureza corrompida, mas que não são
pecadores até que realmente cometam um pecado. No entanto, mesmo aqui há divisão. Alguns
ainda batizam crianças para tratar da corrupção de nossa natureza humana pelo pecado (por
exemplo: ortodoxos, metodistas, anglicanos), enquanto outros não as batizam até que elas
atinjam uma idade de consciência/responsabilidade, quando reconhecem seu pecado e a
necessidade de perdão (por exemplo: batistas, evangélicos, igreja de Cristo (EUA), menonitas,
pentecostais, etc.).
As opiniões de Agostinho sobre o pecado original tornaram-se uma doutrina importante e fonte
de debate na teologia cristã; portanto, não importa quais sejam nossas crenças pessoais sobre o
assunto, vale a pena notar o papel que esse teólogo africano desempenhou em seu
desenvolvimento.
A Trindade relacional
A teologia da Trindade de Agostinho está espalhada por suas numerosas obras, mas ele a trata
de forma mais completa em A Trindade. Essa obra maciça é composta por quinze livros escritos
ao longo de quase trinta anos, no final da vida de Agostinho. Na introdução, ele conta ao leitor
uma história um tanto inesperada. No momento em que estava no meio do livro 13, alguns
leitores ficaram impacientes e roubaram sua cópia para publicá-la. Felizmente, ele tinha outras
cópias e as usou para concluir e publicar o trabalho rapidamente, antes que a cópia roubada fosse
amplamente distribuída.
Logo de início, ele também diz ao leitor que está escrevendo especificamente contra aqueles
que tentam aplicar a razão humana e, portanto, não entendem e deturpam a Trindade. Suas
preocupações aqui nos lembram de Tertuliano, que argumentou que a filosofia e a razão humana
nunca poderiam levar à verdade última e poderiam, em vez disso, gerar heresia — com o que
Agostinho concordou. Alguns aplicavam as limitações dos corpos físicos a um Deus espiritual,
enquanto outros supunham que o espírito divino poderia ser diretamente comparado ao espírito
humano. Outros ainda reconheceram que o assunto não era entendido pela razão humana, mas
passaram a falar sobre coisas que não entendiam.
Agostinho afirma que algumas verdades sobre Deus não se encaixam em nosso pensamento ou
entendimento humano. Portanto, como Tertuliano e outros antes dele, Agostinho às vezes
precisava falar sobre a Trindade usando metáforas. No início, ele resume a doutrina correta da
Trindade como foi declarada em gerações anteriores por aqueles que acreditava estar ensinando a
verdade:
O Pai e o Filho e o Espírito Santo compartilham uma substância14 e representam uma unidade divina. Não há três deuses,
mas um só Deus. O Pai gerou o Filho e, portanto, o Pai não é o Filho. E o Filho é gerado pelo Pai e, portanto, o Filho não é
o Pai. E o Espírito Santo não é o Pai nem o Filho, mas somente o Espírito do Pai e do Filho e também igual ao Pai e ao
Filho. (Trin. 1.4.7)
Ele reafirma o ensinamento básico sobre a Trindade que Tertuliano articulou. O Pai, o Filho e
o Espírito são um Deus, e todos fazem parte da unidade divina. Eles também são iguais entre si,
e Agostinho fala diretamente contra o modalismo quando diz que o Pai, o Filho e o Espírito
também são distintos um do outro.
Em Trindade, ele usa várias analogias e metáforas para falar da Trindade. Vamos nos
concentrar em um de seus exemplos mais famosos e influentes: a analogia do amor. Ele
reconhece que esta não é uma analogia perfeita, mas é útil porque “nossas mentes débeis talvez
possam entender isso mais facilmente por meio de algo que nos é familiar” (Trin. 9.2.2).
Sua analogia apela para a experiência humana do amor: “Quando amo qualquer coisa, há três
coisas envolvidas: eu mesmo, a coisa que amo e o próprio amor. Eu não amo o amor em si. Não,
devo amar alguma coisa, porque não há amor se não se ama” (Trin. 9.2.2). Agostinho tenta criar
um argumento filosófico a partir da experiência humana. Todos nós entendemos, diz ele, que não
podemos dizer que amamos a menos que estejamos amando alguém ou algo. Nós amamos, o
amor é algo que vem de nós, e quem amamos recebe o amor.
Ele aplica isso à Trindade. O Pai é quem ama. O Filho é aquele que é amado (“Este é o meu
Filho amado”). O Espírito é o próprio amor.
Agostinho certamente sabia que a analogia era limitada, mas ela possui três vantagens
importantes. Primeira: ela aborda a questão de como três pessoas divinas podem igualmente ser
Deus. Sabemos por experiência própria, diz ele, que o amor não pode acontecer isoladamente. O
amor requer uma espécie de trindade: o amante, o próprio amor e o objeto do amor. “Esses três,
portanto, são inseparáveis uns dos outros de uma maneira incrível. No entanto, cada um deles é
uma substância [substantia], e todos juntos são uma substância ou essência” (Trin. 9.5.8). Quem
ama não pode ser separado do amor, e o amor não pode ser separado do ser ou coisa amada.
Existe uma relação necessária. Todas as partes são iguais e não podem ser separadas.
Segunda: essa metáfora se apega a declarações bíblicas como 1João 4.7,8: “Amados, amemo-
nos uns aos outros, porque o amor procede de Deus; e todo aquele que ama é nascido de Deus e
conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, pois Deus é amor”. Deus é quem
ama; o amor existe; somos o objeto do amor de Deus. Se queremos entender Deus, precisamos
entender o amor. Portanto, é lógico aplicar nossa experiência de amor à nossa compreensão de
Deus.

Imagem 15.2: Modelo relacional da Trindade, por Agostinho.

Terceira: essa metáfora enfatiza o elemento relacional divino. Deus existe em um


relacionamento, não apenas com os seres humanos, mas também dentro de si mesmo. Aqui
Agostinho está rejeitando o modalismo. No início de Trindade, ele condena especificamente o
modalismo — a ideia de que Deus existe isoladamente e simplesmente muda de máscara para
desempenhar papéis diferentes (ver cap. 7, sobre Tertuliano e a Trindade). Não, diz Agostinho,
Deus não existe isoladamente, mas sempre em relação mútua. Um Deus: Pai, Filho e Espírito
Santo.
Reconhecendo que sua analogia acaba falhando em algum momento, Agostinho afirma no
início de Trindade que a sabedoria humana não pode nos ajudar a entender algumas verdades
definitivas sobre Deus. No entanto, usando a metáfora do amor, Agostinho quer enfatizar que
Deus é essencialmente um ser relacional, e porque somos criados à sua imagem, também somos
seres essencialmente relacionais. Como indica 1João, quanto mais amamos uns aos outros, mais
refletimos a natureza de Deus. Ou como Jesus diz: “Nisto todos conhecerão que sois meus
discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13.35).
O reino de Deus é celestial, não terreno
Em agosto de 410 d.C., a cidade de Roma foi saqueada pelos visigodos, uma das chamadas
tribos bárbaras que varreu a Europa e tragou partes da parte ocidental do Império Romano, já em
ruínas. Pela primeira vez em quase oitocentos anos, um exército estrangeiro havia entrado em
Roma.
Esse evento foi tremendamente traumático. Os cristãos daquele período pensavam que Deus
protegeria suas cidades e, mais precisamente, que os santos as protegeriam. Os túmulos de Pedro
e Paulo estavam em Roma, então certamente sobretudo aquela cidade jamais cairia porque os
apóstolos não permitiriam que isso acontecesse. A ideia de que os santos protegeriam seus
santuários e suas cidades era difundida no mundo antigo (e continuou na Idade Média).
Mas Roma caiu e foi devastada por três dias. Edifícios foram queimados e igrejas, saqueadas
(embora as basílicas de Pedro e Paulo tenham sido deixadas intactas como santuários). Alguns
moradores foram mortos ou capturados, abusados e vendidos como escravos. Outros escaparam
da carnificina e fugiram da cidade, e a África estava entre os principais locais de refúgio. A
igreja em Hipona, sem dúvida, teria recebido cristãos desmoralizados e confusos, oriundos de
Roma.
Muitos estavam se perguntando: Como isso pôde acontecer?
Como consequência de 410, Agostinho escreveu sua obra mais longa, A cidade de Deus. Nela
ele estava travando uma guerra em duas frentes. Por um lado, muitos não cristãos disseram que
Roma caiu por causa dos cristãos. O cristianismo havia se tornado a religião oficial do império
apenas trinta anos antes, em 380. Alguns diziam que os deuses romanos tradicionais estavam
irados por serem ignorados e puniram Roma enviando os visigodos. Essa era “aquela antiga
religião” da época de Décio, Valeriano e Diocleciano. Agostinho rejeita tal pensamento e
argumenta, em vez disso, que Deus poupou Roma dos bárbaros por mais tempo porque os
cristãos estavam na cidade.
Por outro lado, muitos cristãos se perguntavam como Deus e os santos poderiam deixar Roma
cair. Agostinho responde não oferecendo conforto, mas desafiando suas suposições. O problema
não é que Roma caiu. O problema é que eles entenderam mal a natureza do reino de Deus.
Muitos pensavam que Roma era a cidade de Deus, como se Cristo e os apóstolos tivessem
estabelecido um reino na terra, e que os túmulos dos apóstolos garantiam a glória da cidade, mas
estavam enganados. A verdadeira cidade de Deus é uma cidade celestial. Agostinho diz a seus
leitores:
Duas cidades foram fundadas por dois amores. A cidade terrena é fundada pelo amor a si mesmo, ainda que à parte de
Deus. A cidade celestial é fundada pelo amor a Deus, amor que supera a autopreservação. O primeiro se gloria em si
mesmo; este último glorifica ao Senhor. (Civ. 14.28)
Colocar confiança no poder terreno não era algo neutro, mas na verdade mostrava desrespeito a
Deus porque a cidade terrena e seus líderes eram corruptos, buscando glória para si mesmos, e
não para Deus. Sem hesitar, Agostinho traz uma crítica contundente contra aqueles que colocam
sua esperança em um poder terreno no lugar da cidade eterna de Deus.
O que Cristo prometeu a seus discípulos é o que Deus nos promete: cidadania em uma cidade
celestial, a verdadeira cidade de Deus. Paulo (Fp 3.20) e Pedro (1Pe 2.11) entenderam isso (veja
também Hb 13.14).
A história mostraria que muitos não deram atenção às palavras de Agostinho. Na Idade Média,
muitas partes da Europa tentaram unir um reino terreno a um reino celestial. Líderes religiosos
controlavam impérios e lideravam exércitos na batalha. Alguns tentaram criar sua própria cidade
de Deus, mas todos esses esforços acabaram fracassando.
Ainda hoje alguns podem se debater ao ouvir a mensagem de Agostinho. Alguns podem crer
que Deus favorece um país em detrimento de outro ou talvez que seu país seja mais forte se os
cristãos (pelo menos aqueles que compartilham suas opiniões políticas) estiverem no poder. Eles
podem acreditar que é possível construir a cidade de Deus na terra. Agostinho discordaria.

14 Agostinho usou o termo substantia, ecoando Tertuliano.


CAPÍTULO
16

Agostinho: O debate com Pelágio sobre graça e vontade


Ideias-chave
• A ideia de ascetismo inspirou Pelágio a ensinar que Deus dá aos seres humanos a
capacidade de fazer o bem, mas que cabe a eles seguir adiante.
• Agostinho argumentou que os pontos de vista de Pelágio davam muita responsabilidade e
crédito ao livre-arbítrio humano, e minavam a graça de Deus.
• As ideias de Agostinho incluíam a noção de predestinação e estabeleceram debates
teológicos sobre graça e livre-arbítrio que continuaram ao longo da história do
cristianismo.

Este capítulo explorará a disputa teológica mais famosa de Agostinho — uma disputa com um
homem chamado Pelágio. O debate se concentra no estado da humanidade e no papel e
disponibilidade da graça de Deus para a salvação.
As raízes da autodisciplina
As raízes desse debate estão em uma controvérsia mais ampla no cristianismo primitivo sobre
a importância e os limites da autodisciplina. Alguns na igreja primitiva argumentaram a partir de
1Coríntios 7 que a forma mais elevada de vida cristã exigia a negação extrema do eu. Isso levou
à prática do “ascetismo”, uma palavra que vem do termo grego para “disciplina” (askēsis). Os
ascetas (as pessoas que praticavam o ascetismo) negavam a si mesmos prazeres físicos, incluindo
qualquer comida que pudessem realmente desfrutar, e relações sexuais, mesmo dentro do
casamento. Os ascetas acreditavam que sua disciplina os tornava mais aceitáveis aos olhos de
Deus.
Um dos exemplos mais famosos desse estilo de vida no cristianismo ocidental foi Jerônimo,
um proeminente estudioso da Bíblia e teólogo que viveu na mesma época que Agostinho.
Jerônimo era do norte da Itália e tornou-se popular do outro lado do Mediterrâneo. Ele é
provavelmente mais conhecido por traduzir a Bíblia para a tradução latina conhecida como
Vulgata. A tradução de Jerônimo se destacou porque ele usou o texto original hebraico para o
Antigo Testamento e o grego para o Novo Testamento. Antes disso, outros haviam usado a
tradução grega do Antigo Testamento, não o próprio hebraico.
Jerônimo foi um dos homens mais capacitados e reverenciados de seu tempo, e modelou uma
vida ascética. Seu exemplo influenciou muitos outros, e muitos dentro e ao redor de Roma o
admiravam.
Por volta de 380 d.C., Pelágio mudou-se para Roma. Agostinho (Ep. 186.1) e Jerônimo
(Comm. Jer. liv. 1, prol.; liv. 3, prol.) concordaram que ele veio originalmente da Grã-Bretanha
(Jerônimo o acusou de estar “repleto do mingau escocês”). Como Jerônimo, ele foi bem treinado.
Pelágio e outros foram inspirados pela rigorosa autodisciplina de Jerônimo e outros ascetas, mas
quando olharam para a sociedade ao seu redor, viram preguiça espiritual e moral. O pecado era
deliberado porque os cristãos não estavam se disciplinando.
Pelágio concluiu que os cristãos estavam agindo de maneira profana porque escolheram agir
dessa maneira. Eles escolheram ser moralmente frouxos, pecar repetidamente e romper seu
relacionamento com Deus. Deus havia dado a eles as Escrituras e outras ferramentas para viver
uma vida santa, mas eles não as estavam usando.
Mas se os seres humanos podem escolher pecar, então eles também podem escolher não pecar.
Pelágio começou a ensinar uma forma estrita de abnegação e moralismo: é possível ser agradável
aos olhos de Deus, só precisamos nos disciplinar para isso. Apesar de ter sido inspirado por
Jerônimo, Pelágio agora agiu por conta própria. Esse novo ensinamento não refletia o que
Jerônimo ensinava. De fato, os dois mais tarde tiveram um conflito aberto em Jerusalém sobre as
ideias de Pelágio.
Agostinho se envolve no debate
Por volta de 410, talvez pouco antes do saque de Roma pelos visigodos, Pelágio e alguns de
seus partidários deixaram Roma para ir à África, e lá entrou em conflito direto com Agostinho.
Agostinho viu os ensinamentos de Pelágio como errôneos e perigosos. Ensinar às pessoas que
elas poderiam ganhar o favor de Deus pela autodisciplina ia contra o evangelho da graça. Ele
começou a pregar e escrever abertamente contra Pelágio e seus seguidores, e temos vários
documentos desse longo e acalorado debate. Infelizmente, a maioria dos argumentos de Pelágio
são preservados apenas nos escritos de Agostinho contra ele. Muitos estudiosos acreditam que
Agostinho citou Pelágio com precisão, mas ainda devemos estar cientes de que estamos vendo
esse debate pelas lentes de apenas um lado.
Aqui está um trecho de um dos escritos de Pelágio como foi preservado por Agostinho, em que
Pelágio argumenta que Deus dá aos seres humanos a capacidade de fazer o bem, mas estes
devem escolher prosseguir em sua decisão:
Nós nos concentramos em três coisas em ordem de importância. Primeiro, colocamos capacidade; segundo, desejo; e
terceiro, realidade. A capacidade tem a ver com a nossa natureza. O desejo está relacionado com a nossa vontade. E a
realidade diz respeito ao que realmente acontece. A capacidade é creditada a Deus, que dá e concede às suas criaturas e à
sua criação. Os outros dois, desejo e realidade, são creditados ao ser humano. (Grat. Chr. 5)
Pelágio argumenta que, para que qualquer boa obra aconteça, uma pessoa precisa da
capacidade de e do desejo de fazê-la. Só assim ela pode tornar-se realidade. Deus dá aos seres
humanos a capacidade de fazer o bem, mas eles escolhem se desejam torná-lo realidade. Os
seres humanos não podem fazer o bem sem a ajuda de Deus, e Deus deu essa ajuda necessária a
todos.
Pelágio continua dizendo: “Sou livre para não ter um bom desejo ou realizar uma boa ação,
mas não posso afirmar que não sou capaz de ter um bom desejo. Essa capacidade me é dada [por
Deus]” (Grat. Chr. 5). Ninguém pode alegar que é incapaz de fazer o bem, porque Deus deu essa
capacidade, que ele chama de graça, a todos. Alguns simplesmente optam por não colocar essa
graça em ação. Ao mesmo tempo, Deus não força os homens a escolher o bem ou o mal. Essa é
uma escolha da vontade humana.
Os seres humanos são a fonte última de sua bondade? Eles podem praticar o ascetismo em
virtude de seu próprio poder e determinação? Não, diz Pelágio, a autodisciplina e a vida piedosa
seriam impossíveis se Deus não fornecesse a graça fundamental, a capacidade. No entanto, Deus
não decreta a virtude para nós. O desejo e a disciplina são necessários para tornar as boas ações
uma realidade.
Agostinho rejeita os ensinamentos de Pelágio porque discorda fundamentalmente de algumas
das suposições subjacentes sobre a natureza da humanidade e a condição humana. Aqui a
discussão vai se relacionar com o capítulo 15 e os pontos de vista de Agostinho sobre o pecado
original. Em um de seus ataques a Pelágio, Agostinho diz:
Esses homens são tão inimigos da graça de Deus [...] que acreditam que o ser humano é capaz de obedecer a todos os
mandamentos de Deus sem ela [...] Deus simplesmente nos assiste por sua lei e ensino para que possamos aprender o que
devemos fazer e esperar, não para que possamos realmente fazer o que aprendemos que devemos fazer. (Haer. 88)
Agostinho acredita que as convicções de Pelágio negam o devido crédito a Deus. Este não
apenas nos dá um empurrão para fazer o bem e depois nos deixa seguir por conta própria.
Agostinho argumenta que Deus também nos dá a vontade (desejo) necessária para viver uma
vida santa.
Agostinho vai ainda mais longe em seu ataque ao acusar Pelágio de tornar a oração inútil. Se
uma pessoa começa a crer ou continua crendo por sua própria vontade, então Deus não tem parte
nisso. Qual seria o objetivo da oração?
Eles tornam as orações da igreja inúteis, sejam essas orações para que os incrédulos e aqueles que recusam os
ensinamentos de Deus possam retornar a Deus; ou orações pelos fiéis, para que sua fé cresça e perseverem. Crer ou
continuar a viver na fé, eles argumentam, vem das próprias pessoas, não de Deus. (Haer. 88)
Agostinho critica Pelágio e seus partidários pelo que ele percebe serem as implicações de sua
teologia. Pelágio nunca nega o poder da oração ou a importância da graça de Deus. A diferença é
o que a graça de Deus faz na vida do crente ou do incrédulo. Sobre essa questão, Pelágio e
Agostinho discordam, como exploraremos a seguir.

Imagem 16.1: Cátedra da igreja de Agostinho (Hipona). Daqui ele pregou sermões contra Pelágio e outros oponentes.

Mais adiante nessa passagem, Agostinho argumenta que Pelágio anula a necessidade do
batismo infantil porque nega o pecado original: “Eles dizem que as crianças são batizadas para
que, por seu novo nascimento, sejam adotadas e admitidas no reino de Deus e passem de bem a
melhor. Mas dizemos que somos batizados para sermos libertos daquele antigo mal, o pecado
original” (Haer. 88). Pelágio praticou o batismo infantil, mas Agostinho alega que o fez pelas
razões erradas. Pelágio acreditava que o batismo torna as crianças que já são boas ainda
melhores, enquanto Agostinho acreditava que o batismo tira a criança da maldição do pecado
original.
Ambos os lados poderiam apelar para as Escrituras. Pelágio poderia apontar para 2Pedro 1.3:
“Seu poder divino nos deu tudo o que precisamos para uma vida piedosa, por meio do
conhecimento daquele que nos chamou por sua própria glória e bondade”. Deus nos deu todas as
ferramentas, incluindo o conhecimento. Mas Agostinho poderia rebater com João 15.5: “Sem
mim nada podeis fazer”. Jesus diz que não podemos fazer “nada” sem Deus. Não podemos
começar com um empurrão divino e seguir por conta própria.
Perguntas e respostas
Como outros debates teológicos, este se complicou rapidamente e, com o tempo, os rivais
tomaram posições cada vez mais extremas. Para tentar esclarecer os pressupostos e argumentos
de ambos os lados, consideraremos três questões fundamentais sobre humanidade e salvação
para o debate entre Agostinho e Pelágio. Ao examinar as opiniões dos dois sobre essas questões,
veremos mais facilmente por que eles passaram a não gostar tanto um do outro. Você
reconhecerá algumas das ideias de nossas discussões anteriores, mas talvez isso o ajude a
abordar o tópico sob um ângulo diferente.
Qual é o estado natural dos seres humanos?
Quando os seres humanos são concebidos e vêm ao mundo, como eles são? Pelágio ensinou
que os seres humanos nascem com a capacidade de ter a vontade de fazer o bem. Eles podem
escolher não fazer o bem — exercer sua própria vontade em não fazê-lo — mas isso é culpa
deles, visto que a graça de Deus lhes dá essa capacidade. Asceta é o modelo de pessoa que
escolhe viver uma vida santa, fazendo o que Deus lhe permite fazer. Deus dá a capacidade, e os
homens precisam mostrar o desejo (ou vontade) de trazer a realidade.
Mas, para Agostinho, vontade humana em si está completamente arruinada para todos os
homens de todos os tempos por causa do pecado de Adão. Os seres humanos são concebidos
como pecadores e nascem como tais, e Deus precisa consertar a humanidade por meio da graça.
Sem graça, os seres humanos não têm a possibilidade de fazer o bem ou de estar em paz com
Deus, porque a vontade humana está arruinada.
Ou seja, quer dizer que Deus oferece graça e então o ser humano responde a ela? Não, diz
Agostinho, mas a condição humana é tão deplorável que a pessoa não é capaz nem mesmo de
receber a graça de Deus por vontade própria. A própria disposição de receber a graça de Deus
também é dada pelo Senhor. Uma pessoa não recebe a graça de Deus por decisão própria, mas
porque Deus a dá livremente. Deus faz com que eles recebam sua graça. Sem a ação divina, não
há quem possa ser salvo. Se uma pessoa demonstra a capacidade e o desejo de realizar uma boa
obra, isso se deve unicamente à graça de Deus. Ele é quem recebe todo o crédito.
Como podemos ver, Pelágio e Agostinho iniciam com ideias conflitantes sobre a natureza da
humanidade, e isso possui implicações para a próxima pergunta.
Por que algumas pessoas creem, mas outras não?
Quando o evangelho é pregado, por que algumas pessoas chegam à fé e outras não? Uma
família cristã cria quatro filhos da mesma maneira, mas três aceitam a fé e um não. Duzentos
estudantes se aglomeram em torno de um pregador em um campus universitário. Alguns
zombam e escarnecem, enquanto outros ouvem e são transformados. (Quando ainda estava na
faculdade, eu via isso na Universidade Ohio State toda semana, quando irmão Jed, um pregador
que proclamava o juízo vindouro abertamente, ia ao campus.) Como essas coisas acontecem
dessa maneira?
Pelágio argumentou que esse era o resultado do livre-arbítrio humano. Os seres humanos têm a
capacidade de escolher aceitar ou não o evangelho. Eles podem escolher responder ou não à
graça de Deus. Aqueles que escolhem aceitá-la e curvar seus desejos à vontade divina são
abençoados, enquanto outros resistem deliberadamente.
Para Agostinho, a resposta é a eleição. Por que algumas pessoas acreditam e outras não?
Porque elas são escolhidas (eleitas) por Deus para receber sua graça — e parte disso é a graça da
fé. Eles não creem por escolha própria, mas porque Deus os escolheu, e não podem resistir.
Os debates sobre essa questão foram particularmente acalorados. Agostinho poderia
argumentar que a doutrina da eleição está presente nas Escrituras (por exemplo, Rm 8.33; 9.18;
1Pe 2.4), enquanto seus oponentes poderiam responder com outras passagens, indicando que a
oferta da salvação está aberta a todos os que a receberem (por exemplo, Jo 3.16; Rm 10.9,10;
2Pe 3.9). (Observe que algumas passagens de Romanos podem ser usadas por ambos os lados.)
O que é graça e como ela opera?
Pelágio acreditava que a graça consiste numa ajuda de Deus. Isso incluiria todas as maneiras
pelas quais Deus ajuda a humanidade a ser perfeita, todas as formas pelas quais ele nos ajuda a
aprender a fazer o bem e todas as ferramentas que dá ao ser humano para que se torne um ser
bom. A graça inclui a lei de Moisés. Ela inclui a Escritura como um todo, a qual nos ensina o que
Deus deseja e nos prepara para nossa jornada em direção ao Senhor numa vida piedosa. Nela
estão o exemplo e os ensinamentos de Cristo, os quais vemos nos Evangelhos como um modelo
para o caminho que devemos seguir. A graça nos aponta a direção certa, nos mostra o caminho a
seguir e nos dá um ponto de partida.
Agostinho acreditava que a graça é o remédio para a vontade humana (talvez devêssemos dizer
o antídoto para a vontade humana). A vontade humana está irremediavelmente arruinada,
portanto não podemos nem mesmo responder a Deus. A graça de Deus faz o que o livre-arbítrio
humano não pode fazer.
Para Pelágio, a graça é, em certo sentido, externa e passiva, e oferecida por Deus , mas não
imposta. Em suma, a vontade humana é o agente ativo que põe em ação a graça de Deus. Para
Agostinho, porém, a graça de Deus é interna e ativa. Não é recebida, mas aplicada por Deus. A
graça é o agente ativo, o único agente, e a vontade humana é passiva — ou mais precisamente,
quando se trata de fazer o bem, está morta.
Agostinho também deu o próximo passo. Se a graça de Deus está ativa e a vontade está morta,
então Deus deve escolher aqueles que a receberão. Isso o levou a explorar o tema da eleição e
predestinação — a ideia de que o destino eterno de uma pessoa é predestinado por Deus.
Enquanto alguns estão predestinados a vir à fé, outros estão predestinados a não crer. Em seus
escritos, Agostinho se concentrou principalmente na eleição dos salvos, enquanto intérpretes
posteriores discutiram mais explicitamente a condenação dos réprobos.
De Agostinho e Pelágio até o presente
Em um dado momento, por motivos que desconhecemos, Pelágio desapareceu do palco da
história, mas o debate não parou. Agostinho prosseguiu no ataque às suas ideias, e um novo
oponente veio à tona: Juliano, o bispo de Eclano, sul da Itália (não confundir com o imperador
pagão Juliano), assumiu a causa contra Agostinho depois que vários concílios regionais da igreja
condenaram Pelágio.
Poucos dos escritos de Juliano sobreviveram, e muito do que temos vem de citações nos
escritos de Agostinho. Como você deve se lembrar do capítulo 14, Agostinho foi maniqueísta por
nove anos antes de sua conversão em Milão. Um elemento da crença maniqueísta era o fatalismo
— a ideia de que o destino de uma pessoa foi determinado por forças sobre as quais ela não tem
controle. Juliano percebeu isso e argumentou que a crença de Agostinho no pecado original e a
doutrina da eleição eram resquícios do fatalismo dos maniqueus. Eles representavam uma
filosofia pagã, e não a Escritura; eram heresia, e não cristianismo. Obviamente, Agostinho
discordou violentamente e condenou Juliano de maneira aberta.
Mesmo em meio aos debates entre Agostinho e Pelágio, e depois Juliano, outros já começaram
a traçar um caminho intermediário. Um erudito monge oriental chamado João Cassiano foi
enviado a Roma como embaixador por volta de 404 d.C., e acabou permanecendo no Ocidente,
onde fundou dois mosteiros no sul da Gália, perto de Marselha. Em Conferências, ele
argumentou que as visões pelagianas e agostinianas eram ambas muito extremas.
Cassiano havia dito que estabelecer uma dicotomia entre o livre-arbítrio humano e a graça de
Deus foi uma abordagem fundamentalmente admirável de ambos os lados do debate. Ele
argumentou que alguns exemplos bíblicos mostram Deus como como aquele que tomava a
iniciativa (Saulo/Paulo; Mateus, o cobrador de impostos), enquanto outros sugerem um
movimento humano em direção a Deus (Zaqueu; o ladrão penitente na cruz). Pelágio estava
errado quando sugeriu que uma pessoa poderia ser santa com base em sua própria vontade; o
livre-arbítrio não pode levar ninguém a Deus. Mas Agostinho havia ido longe demais ao negar
qualquer ação da vontade para com Deus.
Cassiano sugeriu que, de acordo com as Escrituras, Deus não opera da mesma maneira em
todos os casos com todas as pessoas:
Por esses exemplos que trouxemos dos relatos dos Evangelhos, podemos ver muito claramente que Deus traz salvação à
humanidade por diversos e inumeráveis métodos e de maneiras que não somos capazes de descrever. Deus incita a um
maior zelo alguns que já estão desejosos e sedentos, enquanto força outros, mesmo contra sua vontade e suas tentativas de
resistir. (Coll. 13.17)
Ambos os lados do argumento ignoraram o fato de que as Escrituras não fornecem uma
explicação de “tamanho único” para o modo como as pessoas chegam à fé. A visão pelagiana
deu muito crédito ao livre-arbítrio humano, enquanto a visão da graça de Agostinho foi além da
evidência bíblica. Deus concede graça que às vezes age concomitantemente ao livre-arbítrio que
ele mesmo deu aos homens, e que às vezes age independentemente deste. Uma única explicação
não se aplica a todas as situações. Essa foi a tentativa de Cassiano de tomar uma posição em
meio ao que ele acreditava serem dois extremos.
Em 529 d.C. (cerca de cem anos após as mortes de Agostinho e Cassiano), o Segundo Concílio
de Orange se reuniu no sul da França para abordar os debates em andamento sobre as crenças de
Agostinho e seus oponentes. O concílio decidiu que Agostinho estava correto sobre o pecado
original e a importância da graça em atrair uma pessoa em direção a Deus, mas que ele havia
ultrapassado os limites ao afirmar que alguns são predestinados ao pecado e à condenação.
Os teólogos normalmente descrevem as conclusões do concílio como “semiagostinianas”.
Isso não resolveu o debate, que surgiu novamente durante a Reforma. Vários dos reformadores
— João Calvino sendo o principal deles — reviveram uma visão mais robusta da teologia da
graça e da eleição de Agostinho. Calvino afirmou o que os teólogos chamam de “dupla
predestinação”: “Nem todos são criados na mesma situação. Alguns são predestinados para a
vida eterna, outros para a condenação eterna” (Inst. 21.5). Tanto os salvos quanto os condenados
são igualmente predestinados a seus destinos, e portanto Calvino discordou das conclusões do
Segundo Concílio de Orange.
Do outro lado do debate, Jacó Armínio, um teólogo holandês, questionou a veracidade bíblica
da doutrina da predestinação. Seus opositores procuraram descartar suas ideias rotulando-o de
“pelagiano”, embora sua teologia não tivesse nenhuma semelhança com as crenças de Pelágio.
O debate continua dentro do protestantismo até hoje. Denominações da tradição calvinista (por
exemplo, presbiterianos e aqueles que levam o título de “reformados”) ensinam a eleição divina,
enquanto outros (por exemplo, metodistas e evangélicos) concordam que a graça de Deus é
imerecida, mas acreditam que a oferta da salvação está aberta a todos. Este último grupo é
frequentemente chamado de “arminiano” por seus oponentes calvinistas, embora sua teologia
possa não ter semelhanças com as crenças de Armínio. Luteranos e anglicanos contemporâneos
têm uma forte doutrina da graça, mas não vão tão longe quanto a visão calvinista. Nenhuma
denominação contemporânea conhecida por mim ensina os pontos de vista de Pelágio. (Pelo
menos, esses são os ensinamentos oficiais de várias denominações, que indivíduos podem ter
seus próprios pontos de vista.)
A Igreja Católica Romana segue a visão de Agostinho sobre o pecado original, a Trindade e
muitos outros tópicos. Mas ela resiste à sua visão de predestinação , a qual considera uma reação
exagerada contra Pelágio.
Os cristãos ortodoxos rejeitam fortemente a visão de predestinação de Agostinho. Na verdade,
ele é uma figura muito impopular entre eles por causa desta doutrina em particular. Quando fui
professor no Egito e tive alguns alunos ortodoxos, inicialmente foi um desafio para mim fazê-los
ler Agostinho com a mente aberta, já que não gostam muito dele.
No mundo cristão moderno, poucas figuras são tão influentes, mas também tão controversas e
polarizadoras quanto Agostinho. Esse bispo africano continua a lançar uma longa sombra sobre a
teologia e a prática cristã.
Conclusão

O objetivo deste livro foi destacar as contribuições significativas feitas pela igreja norte-
africana primitiva que moldaram o mundo cristão da época e continuam a moldá-lo até hoje.
Vimos o impacto dessa região específica do continente sem nem mesmo discutir a importância
do Egito e da Etiópia, que têm suas próprias histórias a contar.
Temas-chave
A África estava no centro do desenvolvimento do cristianismo primitivo. Os cristãos de lá
enfrentaram os mesmos problemas que crentes de outras partes do mundo, e pensadores
africanos ajudaram a moldar as respostas a algumas dessas questões. Mas suas soluções nem
sempre eram fáceis e nem sempre levavam à harmonia. Ao longo deste livro, traçamos alguns
desses temas principais:
A resposta à perseguição. De Perpétua a Cipriano e até a controvérsia donatista, vimos a
pressão exercida sobre indivíduos e igrejas cristãs durante períodos de repressão violenta. Alguns
dos mártires mais famosos da igreja — Perpétua e Cipriano — vieram do norte da África e
exemplificaram o exemplo máximo de fidelidade até a morte. Mas outros seguiram um caminho
diferente. Mesmo Cipriano fugiu inicialmente para proteger sua própria vida, enquanto outros
escolheram suas vidas acima dos livros sagrados ou do que consideravam uma insignificante
cerimônia de sacrifício aos deuses. No tempo de Cipriano e da controvérsia donatista, a igreja
teve que lidar com essa variedade de respostas. Alguns argumentaram que a igreja poderia e
deveria permanecer unificada, enquanto outros decidiram que precisavam se separar daqueles
que consideravam impuros.
A questão da autoridade. A autoridade na igreja reside em uma estrutura estabelecida de
líderes, ou é mais fluida do que isso? A história de Perpétua introduziu a ideia de que a
autoridade carismática de um confessor pode superar até mesmo a autoridade de um bispo. Essa
ideia fluiu pela história, levando à tensão na época de Cipriano e da controvérsia donatista,
quando os bispos procuravam reafirmar sua autoridade sobre os confessores e “mártires vivos”.
E quem poderia ser um líder? O movimento Nova Profecia (montanista), que parece ter
impactado Perpétua e Tertuliano, apresentava liderança feminina, a qual não fazia parte da
hierarquia oficial. O que deveria ser feito em relação a isso? Em alguns casos, os cristãos
estabeleceram uma estrutura de liderança alternativa, porque pensavam que certos líderes eram
desqualificados e talvez ameaçassem a legitimidade dos sacramentos. A Nova Profecia refletiu a
questão implicitamente, embora explícita quando bispos rivais foram eleitos tanto em Cartago
quanto em Roma na época de Cipriano e da controvérsia donatista. Agostinho, por exemplo, não
apoiava tais alternativas.
Desenvolvimentos teológicos. Em termos do que poderíamos chamar de “teologia técnica”,
Tertuliano e Agostinho fizeram grandes contribuições. Eles usavam metáforas diferentes, mas
ambos apresentavam fortes doutrinas da Trindade contra aqueles que consideravam como
cismáticos e hereges, particularmente os modalistas. Tertuliano também desempenhou um papel
fundamental na teologia do Espírito Santo. Provavelmente influenciado pela Nova Profecia, ele
afirmou explicitamente que o Espírito Santo é totalmente Deus. Essa visão ainda era
desconfortável para alguns no Oriente por quase dois séculos após a época de Tertuliano, mas a
igreja finalmente aceitou oficialmente a plena divindade do Espírito. Agostinho exerceu um
impacto significativo na compreensão ocidental de tópicos como a natureza e o papel da graça, o
estado decaído da humanidade (pecado original) e a futilidade de tentar estabelecer um reino
espiritual na terra. Mesmo em seu próprio tempo, suas ideias encontraram resistência e
continuam sendo assunto de discussão e debate hoje.
Relações com autoridades seculares. O período de tempo coberto neste livro,
aproximadamente 200—430 d.C., viu uma reversão dramática no relacionamento da igreja com
o Império Romano. Perpétua e Felicidade, Tertuliano, Cipriano e os cristãos que levaram à
controvérsia donatista viveram em períodos de incerteza e por vezes de violência. Apologistas
como Tertuliano tentaram explicar as crenças e práticas cristãs ao mundo, esperando que seus
vizinhos e oficiais do governo tratassem os cristãos com mais moderação. Mas isso nem sempre
funcionou. De repente, em 311, Constantino mudou o equilíbrio de poder no império e logo em
seguida a situação dos cristãos dentro do dele, enquanto os bispos o procuravam para apoio e
ajuda na resolução da controvérsia donatista. Para os cecilianistas, o imperador mostrou-se um
defensor da ortodoxia. Para os donatistas, as ações violentas de Constantino e alguns
imperadores posteriores foram simplesmente a continuação da violência anterior. Os oficiais
imperiais não eram confiáveis. Agostinho vivia em um contexto mais cristão, no qual os
principais problemas da igreja eram com os hereges e “bárbaros”, e não com os imperadores.
Pensamentos conclusivos para reflexão
Espero que no processo de leitura deste livro você tenha adquirido alguns insights sobre os
temas acima e outras ideias mais específicas e pessoas que você achou interessantes. Como
historiador da igreja, creio que expandir nosso conhecimento do passado é sempre importante.
Ao longo do caminho, também inseri perguntas ou declarações para nos convidar a pensar
sobre nossa própria relação com o passado e sobre alguns dos problemas que as pessoas
enfrentaram, principalmente os que permanecem conosco hoje. Meu objetivo não foi convencê-
lo do que você deve pensar sobre essas questões, mas quero convencê-lo de que você deve pensar
sobre elas.
Em primeiro lugar, somos parte do corpo universal de Cristo, a “comunhão dos santos”. O
termo “santos” é usado aqui no sentido geral que o apóstolo Paulo emprega, significando todos
aqueles que estão “em Cristo” (Rm 1.7; 1Co 1.2; 2Co 1.1; Ef 1.1; Fp 1.1; Cl 1.2). A “comunhão
dos santos” inclui, portanto, todos os crentes. Inclui pessoas de fora de nossas igrejas e
denominações locais. Inclui pessoas que estão adorando o Senhor em toda a África, América do
Norte e do Sul, Europa, Ásia e todos os outros cantos do mundo em que os cristãos adoram a
Deus e amam a Cristo. Essa comunhão também inclui aqueles que partiram antes de nós. Ela se
estende ao longo do tempo. Aqueles que estão em Cristo são membros plenos dessa comunidade
ao lado de Paulo, Perpétua e Felicidade, Tertuliano, Cipriano, Ceciliano, Donato, Agostinho e
Mônica. Somos parte deles, assim como eles fazem parte de nós. Eles estão entre o que o escritor
de Hebreus chama de nossa “nuvem de testemunhas” (Hb 12.1), e a história deles é a nossa
história.
Como membros amorosos dessa comunhão, devemos mostrar-lhes graça enquanto estudamos
e procuramos compreender suas motivações e ações. Lembre-se de que temos o benefício de ver
suas vidas retrospectivamente, mas eles não tiveram esse mesmo privilégio. Se mostrarmos graça
a eles, isso nos dará esperança de que as gerações futuras também nos concederão graça ao olhar
retrospectivamente para nossas vidas.
Em segundo lugar, os temas e as questões podem ser semelhantes, mas não há comparação
direta entre a igreja primitiva africana e a de hoje. Em outras palavras, sim, podemos e devemos
refletir sobre os temas acima, mas devemos lembrar que Décio e Diocleciano não estão vivos
hoje. Cristãos em algumas partes do mundo estão, de fato, lidando com ameaças às suas vidas,
mas muitos não estão. O fato de um líder político favorecer algumas políticas que eu não gosto
não significa que eu esteja sendo perseguido como os primeiros cristãos foram. Também
devemos lembrar que os termos “montanista”, “donatista” e “pelagiano” não descrevem
nenhuma denominação cristã moderna. Podemos discordar de outros cristãos em sua
compreensão da graça. Ou podemos acreditar que algumas denominações ou partes de
denominações enfatizam muito ou pouco um elemento da teologia cristã ou que são muito
estritas de algum modo. Mas usar os nomes de grupos antigos como insultos desdenhosos para os
cristãos modernos é impreciso e inútil.
Em terceiro lugar, devemos ter cuidado para não idealizar o passado ou demonizar o presente.
Eu cresci em uma tradição em que algumas pessoas pensavam: Queremos ser como a igreja
primitiva, porque tudo era perfeito naquela época. Todos sentiam o mesmo sobre tudo. Todos se
davam bem. Ela foi tão perfeita. Se pudermos voltar a fazer as coisas do jeito que eles faziam,
podemos ser perfeitos como a igreja primitiva. A essa altura você já sabe que esse tipo de
idealização do passado é equivocada. A igreja primitiva não era perfeita, e eles não tinham tudo
sob controle. Lembre-se de que mesmo no tempo de Paulo não era assim. A maioria de suas
cartas foi escrita porque as igrejas não estavam unidas ou estavam tentando resolver vários
problemas. Assim, não podemos simplesmente ir aos arquivos da história da igreja, retirar uma
cópia original do cristianismo e colocá-la em prática automaticamente hoje. Não há tempo
perfeito que possamos recuperar porque os primeiros cristãos também eram pecadores.
Ao mesmo tempo, não devemos demonizar o presente. Às vezes, ouço cristãos dizerem coisas
como: não sei como a igreja sobreviverá ao [preencha o espaço em branco]. Como vimos neste
livro, às vezes pessoas muito poderosas tentaram acabar com a igreja de forma proativa, às vezes
esporadicamente e às vezes de forma sustentada. Outras vezes, a igreja parecia estar à beira da
destruição por causa de divisões internas. No entanto, a igreja marchou. Sim, há muitos desafios
hoje. Mas, como historiador da igreja, estou convencido de que nossos desafios não são maiores
do que os desafios enfrentados no passado, incluindo aqueles enfrentados pelas pessoas deste
livro.
Em último lugar, como o apóstolo Paulo escreve: “Aquele que começou boa obra em vós há de
completá-la até ao Dia de Cristo Jesus” (Fp 1.6). Por meio de muitos perigos, labutas e
armadilhas, a igreja sobreviveu. Por quê? Porque a igreja é obra de Deus. Não importa o quanto
alguns tentem minar ou mesmo eliminar a igreja, e não importa o quão imperfeitamente
operamos como igreja, a obra de Deus irá avançar. Ela é obra de Deus, não nossa.
Deus tem sustentado a igreja em meio ao fogo e a espada de forma externa e em meio à
ameaças de maneira interna. Estou confiante de que Deus irá sustentar a igreja através dos vários
desafios e provações que enfrentamos hoje.
Quando entendemos nosso lugar na comunhão dos santos, percebemos que não somos piores
ou melhores do que os santos eram no passado. Estamos simplesmente vivendo neste tempo e
espaço, e somos “criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou
para que andássemos nelas” (Ef 2.10).
Bibliografia selecionada

Allan Fitzgerald e John Cavadini (org.), Augustine through the Ages: An Encyclopedia (Grand
Rapids: Eerdmans, 1999). Este é um grande volume com artigos sobre uma ampla variedade de
questões relacionadas ao estudo de Agostinho. Público: acadêmico.
Barbara K. Gold, Perpetua: Athlete of God. Women in Antiquity. (Oxford: Oxford University
Press, 2018). Gold analisa grande parte dos estudos anteriores sobre Perpétua, desde aqueles que
a tratam como uma heroína feminista até aqueles que a tratam como uma personagem fictícia.
Público: acadêmico.
Brent D. Shaw, Sacred Violence: African Christians and Sectarian Hatred in the Age of
Augustine (Cambridge: Cambridge University Press, 2011). Shaw examina a interação entre o
conflito religioso e a ideologia imperial no início do século V. Público: acadêmico.
Bryan M. Litfin, Early Christian Martyr Stories: An Evangelical Introduction with New
Translations (Grand Rapids: Baker Academic, 2014). Publicado no Brasil sob o título
Conhecendo os mártires da Igreja Primitiva, por Edições Vida Nova. Este livro contém novas
traduções com breves introduções de vários textos sobre o martírio. Inclui Atos dos mártires
cilitanos,
A paixão de Perpétua e Felicidade, uma passagem de Tertuliano, um texto relacionado à grande
perseguição e uma seleção de Agostinho. Público: geral.
Christine Trevett, Montanism: Gender, Authority and the New Prophecy (Cambridge: Cambridge
University Press, 2002). Trevett fornece uma visão geral do montanismo com atenção especial
ao papel das mulheres. Público: acadêmico.
David E. Wilhite, Ancient African Christianity: An Introduction to a Unique Context and
Tradition (New York: Routledge, 2017). Esta é uma excelente escolha para quem procura um
tratamento acadêmico mais aprofundado de muitos dos tópicos do livro. Ele também cobre
algum material posterior. Público: acadêmico.
David E. Wilhite, Tertullian the African: An Anthropological Reading of Tertullian’s Context
and Identities. Millennium Studies 14 (Nova York: de Gruyter, 2007). Wilhite aplica várias
lentes teóricas ao contexto histórico da África cristã primitiva e pergunta o que havia de
particularmente “africano” na teologia de Tertuliano. Público: acadêmico.
Edwina Murphy, The Bishop and the Apostle: Cyprian’s Pastoral Exegesis of Paul. Studies of
the Bible and Its Reception 13. (Berlin: de Gruyter, 2018). Murphy examina a variedade de
maneiras pelas quais Cipriano interpretou os escritos de Paulo para uso em um ambiente
pastoral. Público: acadêmico.
Geoffrey G. Dunn, Cyprian and the Bishops of Rome: Questions of Papal Primacy in the Early
Church. Early Christian Studies 11 (Strathfield, Austrália: St Pauls, 2007). Dunn explora a
relação entre Cipriano e cada um dos cinco bispos de Roma durante seu tempo como bispo de
Cartago. Ele demonstra o desejo de Cipriano de trabalhar bem em conjunto, mas também sua
resistência a qualquer reivindicação romana de jurisdição fora de sua própria província. Público:
acadêmico.
Geoffrey G. Dunn, Tertullian (London: Routledge, 2004). Dunn fornece uma visão geral da vida
e dos escritos de Tertuliano, acompanhada de novas traduções de partes de suas obras mais
famosas. Público: geral.
Henry Chadwick, Augustine: A Very Short Introduction (Oxford: Oxford University Press,
2001). Chadwick resume seu amplo conhecimento de Agostinho neste volume curto e acessível.
Público: geral. Aqueles que querem um mergulho mais profundo podem considerar a leitura de:
Chadwick, Augustine of Hippo: A Life (Nova York: Oxford University Press, 2009). Público:
acadêmico.
J. E. Merdinger, Rome and the African Church in the Time of Augustine (New Haven: Yale
University Press, 1997). Merdinger argumenta que a igreja norte-africana — pelo menos o ramo
cecilianista — passou a depender fortemente da contribuição da igreja romana em questões de
disputa interna. Público: acadêmico.
J. Patout Burns Jr, Cyprian the Bishop (London: Routledge, 2002). Burns explora vários
elementos dos escritos de Cipriano, particularmente sobre a questão da unidade da igreja.
Público: geral.
J. Patout Burns Jr. e Robin M. Jensen, em colaboração com Graeme W. Clarke et al.,
Christianity in Roman Africa: The Development of Its Practices and Beliefs (Grand Rapids:
Eerdmans, 2014). Este volume fornece uma ampla visão geral do cristianismo do norte da África
e as fontes que usamos para estudá-lo. Inclui uma rica coleção de imagens da região. Público:
geral/acadêmico.
James L. Papandrea, Reading the Early Church Fathers (New York: Paulist Press, 2012). Esta é
uma introdução ampla e acessível a uma gama de textos e autores cristãos primitivos. Público:
geral.
Jan N. Bremmer e Marco Formisano (org.), Perpetua’s Passions: Multidisciplinary Approaches
to the “Passio Perpetuae et Felicitatis” (Oxford: Oxford University Press, 2012). Esta é uma
coleção de ensaios acadêmicos sobre vários aspectos do contexto e interpretação de A paixão de
Perpétua e Felicidade. Público: acadêmico.
Jesse A. Hoover, The Donatist Church in an Apocalyptic Age. Oxford Early Christian Studies
(Oxford: Oxford University Press, 2018). Hoover destaca que a experiência de opressão dos
donatistas os levou a se concentrar em um esperado fim do mundo. Público: acadêmico.
Joyce E. Salisbury, Perpetua’s Passion: The Death and Memory of a Young Roman Woman
(New York: Routledge, 1997). Salisbury explora as tensões entre a identidade religiosa de
Perpétua e suas expectativas culturais e familiares. Público: acadêmico.
Lesley Dossey, Peasant and Empire in Christian North Africa (Berkeley: University of
California Press, 2010). Este livro analisa o cristianismo na África romana a partir da perspectiva
dos cristãos comuns, e não dos bispos. O autor usa uma grande variedade de fontes, incluindo
sermões anônimos daquela época que normalmente são esquecidos. Público: acadêmico.
Mark Edwards, Optatus: Against the Donatists. Translated Texts for Historians 27 (Liverpool:
Liverpool University Press, 1997). Edwards fornece uma introdução histórica e uma tradução de
uma das mais influentes obras antidonatistas do século IV. Público: geral/acadêmico.
Maureen A. Tilley, Donatist Martyr Stories: The Church in Conflict in Roman North Africa.
Translated Texts for Historians 24 (Liverpool: Liverpool University Press, 1996). Tilley inclui
uma introdução à controvérsia donatista e traduções de uma variedade de relatos de martírio,
incluindo Atos dos mártires abitinianos. Público: geral/acadêmico.
Maureen A. Tilley, The Bible in Christian North Africa: The Donatist World (Minneapolis:
Fortress, 1997). Tilley estuda de perto vários aspectos da interpretação bíblica entre os autores
donatistas. Este é um trabalho importante na coleta de várias dessas vozes muitas vezes
ignoradas. Público: acadêmico.
Paul Foster (org.), Early Christian Thinkers: The Lives and Legacies of Twelve Key Figures
(Downers Grove, IL: IVP Academic, 2010). Grandes estudiosos apresentam introduções
acessíveis a importantes figuras históricas. Este livro apresenta capítulos sobre Perpétua,
Tertuliano e Cipriano. Público: geral.
Peter Brown, Augustine of Hippo: A Biography, nova edição (Berkeley: University of California
Press, 2000). Publicado no Brasil sob o título Santo Agostinho: Uma biografia, pela Editora
Record. Considerado por muitos estudiosos como a melhor biografia disponível sobre
Agostinho, este livro vale o esforço para aqueles com inclinação acadêmica. Esteja ciente de que
Brown escreve com interesses principalmente históricos, não teológicos. Público: acadêmico.
Rex D. Butler, The New Prophecy and “New Visions”: Evidence of Montanism in “The Passion
of Perpetua and Felicitas” (Washington, DC: Catholic University of America Press, 2006).
Butler argumenta que elementos de A paixão de Perpétua e Felicidade demonstram claramente
elementos do pensamento montanista. Público: acadêmico.
Richard Miles (org.), The Donatist Schism: Controversy and Contexts. Translated Texts for
Historians 2. (Liverpool: Liverpool University Press, 2016). Vários estudiosos exploram diversos
elementos da controvérsia donatista desde seu início até a época de Agostinho. Público:
acadêmico.
Serge Lancel, Saint Augustine. Traduzido por Antonia Nevill (London: SCM, 2002). O trabalho
clássico de Lancel sobre Agostinho fornece mais análises dos elementos teológicos de sua vida.
Público: acadêmico.
Tarmo Toom (org.), The Cambridge Companion to Augustine’s “Confessions” (Cambridge:
Cambridge University Press, 2020). Um grupo internacional de renomados estudiosos
especialistas em Agostinho analisa vários elementos de sua autobiografia. Público: acadêmico.
Thomas C. Oden, How Africa Shaped the Christian Mind: Rediscovering the African Seedbed of
Western Christianity (Downers Grove, IL: IVP, 2007). Oden argumenta que as contribuições
africanas do passado para a história da igreja podem estar relacionadas à experiência da igreja
africana hoje. Público: geral.
Thomas J. Heffernan, The Passion of Perpetua and Felicity (Oxford: Oxford University Press,
2012). Este livro fornece uma longa introdução ao texto, acompanhada dos textos em latim e
grego, uma nova tradução e comentários. Público: acadêmico.
Timothy D. Barnes, Tertullian: A Historical and Literary Study, edição revisada (Oxford:
Clarendon, 1985). Barnes propõe uma linha do tempo dos escritos de Tertuliano e depois tenta
reconstruir o desenvolvimento do pensamento de Tertuliano. Público: acadêmico.
Todd D. Still, e David E. Wilhite (org.), Tertullian and Paul. Pauline and Patristic Scholars in
Debate 1 (New York: Bloomsbury T&T Clark, 2013). Alguns dos principais estudiosos do
mundo sobre Paulo e Tertuliano abordam vários aspectos da interpretação de Paulo por
Tertuliano. Público: acadêmico.
W. H. C. Frend, The Donatist Church: A Movement of Protest in Roman North Africa, edição
revisada (New York: Oxford University Press, 1985). Este é um trabalho clássico sobre a
controvérsia donatista, embora muitas das ideias de Frend tenham sido contestadas e/ou
atualizadas em estudos mais recentes. Público: acadêmico.
William Harmless (org.), Augustine in His Own Words (Washington, DC: Catholic University of
America Press, 2010). Este livro é composto principalmente de passagens dos escritos de
Agostinho, traduzidas e compiladas para dar ao leitor iniciante uma noção das principais
preocupações de Agostinho, particularmente em seu trabalho como bispo. Público: geral.
William Tabbernee, Prophets and Gravestones: An Imaginative History of Montanists and Other
Early Christians (Peabody, MA: Hendrickson, 2009). Um dos principais especialistas em
montanismo apresenta uma reconstrução da experiência e prática montanista. As histórias são
suas elaborações, mas são baseadas em evidências literárias e arqueológicas sobre pessoas reais.
Público: geral/acadêmico.
Poslúdio à edição em português

A História (com “H” maiúsculo) é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento


espiritual da Igreja de Cristo. Em uma geração marcada pelo imediatismo e pela negligência para
com o passado, a trilha por rastros históricos leva o cristão de mente mais perspicaz às fontes
inesgotáveis de autoconhecimento, de conhecimento da igreja, dos fundamentos de sua fé e das
origens das doutrinas em que crê. À medida que desfia o tecido dos acontecimentos e eventos do
passado, o investigador atento acessa uma rica, densa e diversa herança espiritual. O cristianismo
antigo é como uma floresta que, quando observada de cima, dá de enxergar a unidade, a coesão,
a interdependência, a interação, embora com muitas tonalidades de verde, diversos tipos de
floração e de frutos e numerosas espécies de plantas. O Senhor da igreja, em sua sabedoria e
providência, agiu na antiguidade cristã em um movimento de unidade e diversidade. Na imagem
do poeta brasileiro Stênio Marcius, um tapeceiro cuja obra final é um único tapete, mas que
“traça voltas, faz mil caminhos sem perder o fio”.
Tendo isso em mente, Cristianismo Primitivo no Norte da África: Como teólogos africanos
moldaram a teologia cristã, de David L. Eastman — internacionalmente conhecido por seus
estudos no Novo Testamento e no cristianismo antigo, além de ser um professor que legou ao
mundo acadêmico e à comunidade cristã em geral um material que nasceu para a sala de aula,
mas se propõe a edificar a igreja toda —, transporta-nos à igreja antiga no norte da África, a uma
região e a uma história pouco conhecidas dos brasileiros. A definição geográfica dada pelo
professor do que é a África cristã primitiva e a divisão de seu estudo em cinco momentos dentro
de um lapso temporal de um pouco mais de dois séculos, desde o martírio de grupos cristãos no
início do século III até a vida e teologia de Agostinho de Hipona, nas primeiras décadas do
século V, tornam o estudo leve e a leitura fácil (de fato, um mestre lecionando aos seus pupilos).
Ademais, a seleção de importantes figuras históricas e de temas teológicos fundamentais tornam
o cristianismo africano acessível à igreja atual através de uma didática poucas vezes vista em
livros de história. Os capítulos, por sua vez, trazem suas ideias-chave, e a estruturação dos
tópicos que serão ali desenvolvidos torna essa obra uma aula à parte de pedagogia.
A princípio, ao explorar os motivos que levaram Roma a perseguir e matar os cristãos em
Cartago, Eastman destaca a acusação de ateísmo: isto é, aqueles que adoravam o Deus
verdadeiro eram acusados de negligenciar o culto e os sacrifícios aos deuses romanos. Os
rumores que se divulgavam sobre as reuniões cristãs eram escandalosos e somavam-se a essa
acusação inicial, marginalizando as comunidades cristãs naquela sociedade. Os relatos de
perseguição e martírio podem ser encontrados nas obras de historiadores romanos, e as
citações desses registros historiográficos são completadas ricamente pelo contexto que o autor
costura para um entendimento claro do leitor. Por exemplo, a história das jovens Perpétua e
Felicidade e seus vínculos com o movimento Nova Profecia (montanismo) é instigante e explora
vários temas teológicos, fechando a primeira parte do livro.
Seguindo, a vida de Tertuliano e de Cipriano de Cartago são revisitadas e questões contextuais
e teológicas são vistas com uma perspectiva própria do autor. A relação de Tertuliano com as
igrejas orientais e com Roma sofre alguns reveses, o que impede que sua grande habilidade
teológica seja absorvida plenamente no tecido da igreja antiga. Por meio desse pano de fundo, o
professor Eastman instiga o leitor com essas contrariedades, trazendo para o debate algumas
pistas históricas — como textos críticos ao bispo romano ou sua participação no monta-
nismo — para tentar decifrar esse ostracismo de Tertuliano. Já mediante a vida de Cipriano
somos presenteados com a exposição da crise romana do século III e com a situação das
comunidades cristãs no norte da África diante da perseguição que o império infligiu ali. O bispo
não só dá respostas teológicas acerca da reação dos vários grupos cristãos à importunação
imperial e suas consequências na igreja, como paga com a própria vida por sua posição contra
Roma.
Quanto aos desdobramentos da reação da igreja, com sua produção teológica, aos atos de
acossamento imperial, estes levaram à controvérsia donatista, a qual o autor descreve como
“evento político, eclesiástico e social mais importante na igreja africana primitiva”. Devo dizer
que, ao longo dessas páginas, mais uma vez o leitor será surpreendido e presenteado com uma
aula sobre as perseguições e os martírios do início do século IV e sobre o donatismo e suas
consequências para a igreja.
E, por fim, o professor Eastman conclui sua aula magistralmente com um pouco da vida e obra
de Agostinho. O bispo de Hipona foi diretamente influenciado pelos acontecimentos que
transcorreram no norte da África. Desde os martírios de Perpétua e Felicidade, passando pela
vida e obra de Tertuliano e Cipriano, até a grande controvérsia donatista, o contexto deságua
num tempo em que a perseguição cessa. Por isso, os problemas que Agostinho enfrentou foram
ideias heréticas — as quais o professor Eastman apresenta panoramicamente — e, no fim de sua
vida, o cerco bárbaro à sua cidade.
Após toda essa leitura, devo reforçar que se trata de uma grande oportunidade para o leitor de
língua portuguesa ter acesso a essa diversidade do cristianismo antigo daquela região através da
vida e do contexto histórico de mártires e dos Pais da Igreja, assim como ter conhecimento de
ricos detalhes sobre importantes controvérsias teológicas da antiguidade. A Pro Nobis Editora
acerta ao traduzir este livro, confirmando seu propósito de resgatar a herança histórica cristã,
seus personagens mais importantes e seus temas centrais.
As contribuições dadas pela igreja antiga do norte da África não só impactaram o mundo cristão
primitivo, mas também influenciam a igreja até hoje. Minha oração é que esta obra cumpra sua
função: edificar a igreja brasileira, criando homens e mulheres conscientes historicamente de
suas origens e de sua riquíssima herança espiritual. Agradeço ao Pr. Judiclay Santos, diretor da
editora, pela amizade e pela oportunidade de ler e comentar essa obra.
A serviço do Senhor e de sua igreja,
Bruno Calíope Gurgel,
empresário e professor de História da Igreja

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