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eRe eT ae eae rad ct a re pts TED aera errr = CAPD! ea0TO RO eee Ea CG A MTR sro 3c Pep erate co MIRBATLOVITCH TET Rk ead 89 56u intonto,” 5) A sori Ne = OD TT ea rarer ae UR or rn ees ime ‘meu pensamento numa obra clentiica } vr Sate po. BART TN 4 be et © 1997, Editom UNDUT Rua do Comércio, 1364 Caixa Postal 675, 98700-000 ~ fut ~ RS ~ Brasil = $ Fone: (055) 332-7100, Ramal 217 oe Fax: (055) 332.7977 os Email: editora@main.unijuitchebr ¥ Capa: Vilson Mautio Mattos Revisdo: Evelyne Zysman Louiza Mansurovna Boukheraeva Professora, Pesquisadora Visitante Estrangsia / CNP, Dra. em Filosofia Professora, Livre Docente, Departamento de Filosofia Instituto Superior de Acrondutica de Kazan, Rissia ‘No momento atua na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, ju, Brasil Catalogagio na Fonte Biblioteca Central UNIJUL 8763. Boukharaeva, Louiza Mansurovna ‘Comegando 0 dislogo com Mikhailovitch Bakhtin / Louiza Mansurovna Boukharseva. -- [jul : Ed, UNUJUS, 1997, ~ 84 p. - (Colegio Livros de Bolsa), ISBN 85-85866-69-1 | Filosofia da literatura - Literatura russa 2.Litera- tura russa 3.Bakhtin, Mikhail Mikhailovitch 4 Filosofia Literatura russa L-Titulo IL Série. CDU: 82.01 882 SUMARI INTRODUGAO... BEM NO COMECO, NEVEL! E VITEBSK. LENINGRADO KUSTANAI, SAVIELOVO, SARANSK MOSCOU .. NOTAS PRINCIPAIS REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANEXOS. MIKHAIL MIKHAILOVITCH BAKHTIN NO TEMPO GRANDE (Fragmentos da entrevista para "Polityka") NIKOLAI MIKHAILOVITCH BAKHTIN Da Vida das Idéias.. ACONTEMPORANEIDADEEO FANATISMO.... soon 68 © PENSADOR INFECUNDO AEE 0 CONHECIMENTO OS TEXTOS DE M. M, BAKHTIN (Organizagio L. M. Boukharaeva) . INTRODUCAO ‘As idéias de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin (1895- 1975), distintas por sua originalidade, fundamentalidade c alta classe de descoberta, so uma das contribuigdes preciosas a0 acervo intelectual da humanidade. ‘A vidae a criago de Bakhtin, que se revelou como um dos mais conhecidos fil6logos russos do século 20, silo inte- ressantes para 0s fil6sofos, sociélogos, historiadores, estu- digsos da arte ¢ representantes das outras Areas do conheci- mento humanista. Pois na medida do aclaramento da comple- xidade e diversidade de manifestagSes dos termos e teses bakhtinianos, a conceptualidade filoséfica ¢ 0 cardter metodol6gico das questdes levantadas por Bakhtin tormam-se cada vez mais patentes, Refletindo na base do material da arte e da estética, Bakhtin, em primeiro lugar, fazia ‘dltimas’ perguntas ao mun- do. Exatamente estas ‘dltimas’ perguntas - cardinais, ‘metahist6ricas, eternas -, as perguntas do ser (sobre o absolu- to ¢ a autenticidade do ser e scu caréter cotidiano; sobre 0 mnificado da presenga do homem no ser; sobre a liberdadee a responsabilidade, entre outras) ¢ a busca de respostas as perguntas tornam filos6fica a criagdo de Bakhtin. O préprio Bakhtin considerava-se um fil6sofo: “. Osenhor foi mais filésofo que fildlogo? + Mais fldsofo. E tal fiquei até hoje. Sou fildsofo. Sou pensador.”" A situagdo intelectual contempordinea € caracterizada pela presenga de conhecimentos diversificados, que descre~ yem o mundo de maneira distinta, Esta diversidade e, freqilentemente, a contradigio de conhecimentos ea variagao de critétios para avaliar ¢ sclecionar aqueles tidos como ver- dadeiros resultam das atividades de cientistas de orientagées, Posigdes ¢ crengas diferentes, cientistas que s6 explicam ou 86 criticam 0 mundo e as concepgdes presentes sobre este mundo. A explicagio ¢ a critica ndo sio senio atividades in- vestigadoras reducionistas, as quais nio abrem a possibilidade de reconstruir teoricamente a integralidade dos fondmenos estudados. Nestas circunstincias, quando os esquemas ¢ ages habituais do homem deixam de ser efetivos ¢ ndo conseguem descrever a realidade que se desagrega em fragmentos, a filo- sofia adquire uma importincia vitalmente significadora para ‘atividade humana, A filosofia parece que junta, monta, ret- ne novamente 0 mundo, recuperando a significagio perdida do ser, ¢ traga a solugao das questdes principais do scu tempo. ‘A hilosofia ofcre seiiemede pang de principio abordagens, crité ios principais para solucionar as tarefas diversas que surgem nas freas diferentes da atividade humana, Neste plano a filo- Sofia aparece como eriagao das condigdes para o desenvolvi- mento da atividade humana, a qual por sua vez se entende ‘como um momento do ser. Bakhtin, neste recorte da situago intelectual, criou sua propria variante de abordagem filos6fi- co-metodolégica da linguagem, da literatura, da pessoa ¢ da cultura - do universo. Nesta abordagem Bakhtin € filoséfico, integral e metodol6gico pelo contetido e pela estilistica do scu pensamento. Q didlogo com Bakhtin 6 diélogo sobre a uestiio de como, na criacao intelectual individual a respeito do objeto concreto de finguagem ¢ literatura, 0 fildsofo cons- {er fragmentar ¢ “auto-rasgado™ da atividade humana.em ge; fal, cientifico-investigadora em, particular, Nao deixando o ‘campo propriamente dito da andlise literdria ¢ mantendo a integralidade de seu nicleo interno, mas também usando efe- tivamente a amplidio ¢ profundidade de seus conhecimentos filos6ficos, Bakhtin mostra a alta classe de sua cultura metodolégica. Sendo fildsofo em primeiro lugar, Bakhtin ao mesmo tempo é especialista da drea concreta, Especialista-fildlogo que domina perfcitamente a tecnologia de criagao na sua area de conhecimento, Partindo dos prinefpios ¢ idéias filoséficos, aspirando a representar tcoricamente 0 universo da arte na sua diversidade e no seu cardter polissémico, nos estudos do objeto estético concreto, Bakhtin precisava construir novos conceitos. Entre os principais deles so 0 didlogo, a’ polifonia, Seamaval. Estes conceitos, criados para solucionar as tarefas ‘concretas da andlise teGrico-literéria, sfo simultaneamente 0 resultado da reflexao filoséfica e do contexto investigador concreto. Eles no podem ser considerados como sendo ins- trumentos para qualquer pesquisa literdria ou lingiifstica. Es- tes conceitos so, antes de tudo, prinefpios fundamentais, ci ‘érios, categorias axiol6gicas que ainda devem ser realizados na pesquisa concreta. Elaborando estes conceitos, Bakhtin cria as condigdes para o desenvolvimento da atividade profissio- nal na drea de hist6ria e teoria da literatura. Neste sentido 7 Bakhtin € também metodolégico, levando em conta a inter- Existem intimeras pesquisas, diferentes pelo estilo, for- pretagiio da metodologia da atividade profissional exatamen- ma ou tipo, como existe uma quantidade inumerdvel e diver- {fe como a criagio das condigdes para 0 desenvolvimento da sidade infinita de objetos de pesquisa. Nesta imensidaoslovo, inesma. No entanto Bakhtin, em sua criagio de conceitos, no © discurso investigador, de Bakhtin tem seu lugar especial- gabe no quadro da metodologia da atividade cientifica espe- mente original ¢ essencial. Cialmente profissional. O ressoar metodol6gico da sua eri ¢¢20 sai do quadro da atividade estritamente profissional. O carter metodolégico é qualidade imanente da criagao de Bakhtin, nio simplesmente por forga da sua origem filoséti- heuristica, ‘ca, mas por forga exatamente da sua jungao filosofica do u eafico edo conhccimento cultural em ger. verso. No texto esté apresentada a interpretagtio da essCncia vital do didlogo entreew e outro como oposigio do infinito 20, 774” Bakhtin é interessante para os profissionais das dife- t ; J i : infinito. Esta esséncia manifesta-se no estilo © método de ? rentes dreas de conhecimento humano, no $6 para os HloloRt 0 paradigma de toda a criagio intelectual de Bakhtin & © diélogo. O didlogo bakhtiniano tem um grande potencial ico, mormente na situagdo atual do conhecimento ci- Bakhti {4-na moda, pois a orientagio filos6fieo- pesquisar. Bakhtin personifica 0 estilo dialdgico da pesquisa: ‘metodolSgica por ele oferecida atende As exigencTase As ‘conversando’ com diferentes autores, e s6 com aqueles que cignci jtuacdo i al. Certamente, seria co- correspondem & especificidade deste didlogo, 0 fil6sofo per- meter um erro canonizar Bakhtin, dando as suas solucées um manece fiel & sua pré-idéia e segue sua propria légica reflex carter indubitdvel. Bakhtin 6 uma das vozes, mas uma Gas vana criagio de novos conhecimentos. Aberto A assimilag vozes mais originais e vigorosas, da contemporancidade. Jc teorias alheias, mas semantica e expressivamente afinadas Ctextossra afer 40 idior & ani eoavG pO ua fo mesmo modo e diresionadas a uaiar 0 mesmo objet, mundo de reflexes atraentes e, tenho certeza, extremamente akin mostra aalsprdez 2 inépeia do teorismo ceducionista, importantes. E dirigido aos interessados em esclarecer algu- be Ne F I atin cele ao 6 o Pem mas questdes sobre a pesquisa cientifica como modo decon- 1! eno manos Qualquer posigao tedrica fecha a possibi ( tato da pessoa com o universo, contato cujo valor cardinal dade de ver aquilo que pode ser visto a partir de uma outra nio 6 simplesmente 0 conhecimento cientifico con 0/ oslo pod as poxgdes teens presenta uma Toga | feito e acabado, mas, sim, o scu ininterrupto aprofundamento. cial da competéncia cientifica, O texto mostra 0 uso do méto- + Trspirado pela criagao intelectual bakhtiniana, 0 texto mostra do dialdgico pelo préprio Bakhtin nao como uma simples 0 desencadeamento da idéia filos6fica de Bakhtin em teorias explicago ou uma critica, mas como sua auto-superagio,cons- daagao, do didlogo, da linguagem, do romance, do discurso ¢ tante na sua dindmica. A significagdo do didlogo aparece no da interpretago de textos ao longo da linha biogréfica no fendmeno de renascenga da idéia cientifica, destacado por contexto hist6rico-cultural da Russia. Bakhtin. A criagio cientffica €um processo de despertar idéias Cientificas, guardadas na meméria social, distantes do pre- sente © quase esquecidas, & vida em um novo contexto cultu- ral ¢ hist6rico; ¢ de nfo continuar uma tradigio, limpando-a das superposigdes que ameagam sua pureza; nem de inventar algo absolutamente novo ¢, nesta I6gica, certamente genia ‘melhor que tudo o que jé foi criado antes. Estas iltimas con- Sideragées reflotem a situacio intelectual de hoje, de busca almente necessfria de uma nova perspectiva metodolégica de cigneias humanas, si rada por mui tas atuais, entre os quais gostaria de prem relevo 0 socidlo- ‘80 Pierre Bourdieu. A citagio de Bourd “gam, afim de defender 0 saber, a razdo ¢ 0 universal encarados na sua dimensiio real ¢ cefetiva, exposto na sua ditima obra “Médi li (’Meditagées pascalianas") - obriga a recordar a vida de Bakhtin que enfrentava dificuldades ¢ softia da intervengio destes poderes nas suas atividades intelectuais. Reforgando a idéia do didlogo na pesquisa cientéfica, gostaria de destacar articular. a impossibilidade de dialogar com qual; rsonificactio “teérica” nesm; Pois, no lugar de consonincia sinfonica, a ecléticn traz a, Cacofonia de vores baruthentas ¢ ambiciosas, As idéias e teorias de Bakhtin pertencem a cultura de lite, nos termos de Nikolai Berdiaev?, pois alimentam asrafzes da cultura humana como um todo, Surgiram o fendmeno da bakhtinistica, com estudos biogréficos, histérico-culturais, 10 te6ricos ¢ filoséficos sobre a criagao intelectual de Bakhtin, € © fendmeno da bakktinologia, como desenvolvimento criati- vvo das idéias deste autor singular. Comegando 0 dilogo com Bakhtin, 6 profundamente importante dirigit-se as idéias au- {énticas do fildsofo ¢, assim, ds fontes literdrias originals © fags textos que as analisam. Os motivos mais dirctos da elaboragiio deste texto sio as preocupagdes te6rico-metodolégicas da minha pesquisa em andamento sobre “Os Valores Educacionais dos Estudantes nos Limites da Educagio Universitéria". A interpretagio bakhtiniana original da pessoa, as concepgdes de aciio res- ponsvel, pensamento participative, dislago das culturas, en- tre outras, so aquetas com as quais a pes em didlo- g0. A disciplina “Mikhail Bakhtin e a Bakhtinfstica Contem- porfinen" no Curso do Mestrado em Educagiio nas Cigneias avivou 0 interesse em apresentar a criago intelectual de Bakhtin, introduzindo novos dados no meio académico a par tir das fontes russas, até corrigindo algumas imprecisies en- las na literatura em portugues, e em levantar algumas questdes para possfveis reflexdes e pesquisas posteriores. Eu gostaria de agradecer meus interlocutores, alunos-colegas Mestrandos e professores, com os quais conversamos e dis- cutimos sobre diversos aspectos da pesquisa cientifica no enfoque bakhtiniano: eles encontrario aqui os resultados des- sas discussdes, O texto inclu a lista dos titulos das obras de Bakhtin ¢ ‘ apresentagdo de sua entrevista para o periédico “Polityka”, traduzida para o portugués pela primeira vez. Consta também ‘uma apresentagio de textos de Nikolai Mikhailovitch Bakhtin’, lum pensador original, cujas idéias, possivelmente, influiram no pensamento do seu irmio Mikhail c, com certeza, tendo suas peculiaridades especfficas, sio muito semelhantes com este. Esses textos de N. M. Bakhtin estio ora apresentados 20 leitor brasileiro, traduzidos para o portugués. 12 EM NO COMECO 0 ditogo com Bakhtin é um Gi 1ogDeom a pessoa e com sua criacdo intelectual. Didlogo Sobre como os eventos da vida pessoal, os deverese direitos existenciais, por um lado, por outro lado, as idéias e concepedes teGrico-cientificas, sio entrelagados e recfproca ¢ constitutivamente esto pre~ sentes um no outro. Mikhail Mikhailovitch Bakhtin é uma pessoa insdlita tanto na vida, quanto na sua criag&o teérica. Ele nasceu no dja 17 (4 pelo calendério antigo) de no: de 1895, na cidade de Oryel, Seu pai, funciondrio de eeeteery enn ee nobre que empobre- ceu ¢ ¢stava em decadéncia. Na familia de seis filhos (dois fillhos e quatro filhas, uma delas adotiva), imperava uma at- mosfera intelectual liyre. A familia mudava freqiientemente de lugar de moradiam fungao do servigo do pai. Bakhtin era bilingiie desde a inffncia, Em 1973 ele re- cordava: “Minha quase primeira Iingua era o alemao. Eu pen- savaem alemio, falavaem alemiio.™ Muito cedo, ainda meni- no, Bakhtin conheceu obras de literatura séria e profunda: Fyodor Dostoievski, Immanuel Kant, Friedrich Nietzsche. Bakhtin era um menino prodfgio que, ja na juventude, ndo s6 13 lera obras filos6ficas na forma original, em alemio, mas era dotado de uma meméria fenomenal: “Eu podia na primeira Ieitura guardar na meméria nio s6 um texto em versos, mas também em prosa. (..) Muitos trechos de Nietzsche eu sabia de cor, no original, certamente, na lingua alema."’ Por motivo de mudangas de moradia da familia, Bakhtin estudou em diferentes cidades: Oryel, Vilno, Odessa. Em 1913 matriculou-se na Universidade de Novorossyisk, mas j4 em 1914 transferiu-se para a Universidade de Sankt Petersburgo, na Faculdade de Filosofia e Histéria. Ali mesmo o irmao mais velho, Nikolai, também estudava. A partir de 1914 e até 1918 Bakhtin, que jé conhecia as obras de Kant®, tornou-se adepto da concepeio deste pensa- dor. O kantismo russo era representado nessa época de modo muito consideravel, especialmente na Universidade de Sankt- Petersburgo. Ali o lider reconhecido do pensamento kantiano era o Professor Alexandr Vassilievitch Vvendenski (1856- 1925), que teve, entre seus alunos, S. Frank, I. Lapshin, N. Losski”, posteriormente grandes pensadores russos. Bakhtin pode ser considerado como um desta brithante pléiada. O pro- blema fundamental das reflexdes filoséficas de Vvendenski era 0 “do Eu estranho”. Presente nas obras dos seus alunos, exatamente este problema foi um dos eixos formadores de toda a criagdo de Bakhtin. Pelo fato da sua afirmagao espiritual ¢ intelectual em Sankt-Petersburgo, ¢ mais tarde em Nevel’ e Vitebsk, onde no se fazia sentir a influéncia moscovita ortodoxa ¢ nacio- nalmente tradicional e patriarcal, Bakhtin nfo absorveu as buscas da filosofia religiosa e do simbolismo russos. Rogan- do-os, Bakhtin prestou mais atengio ao existencialismo de Lev Shestov e Nikolai Berdiacv. 14 Bakhtin formou-se em 1918. Pensando na vida de uma pessoa em particular, naquela época, na Russia, €necessério Tembrar as mudangas enormes ocorridas nas estruturas € nos sistemas sociais pela vontade subjetiva do homem, aproxi- mando-os da vida de cada uma das pessoas, ultrapassando as normas admitidas. A interferéncia das estruturas polftico-es- tatais nos direitos existenciais da pessoa, até no direito 3 vida, brigavam cada um @ buscar salvagi0 por seus proprios thos desta época era a fome.' Para sobreviver, Bakhtin mu- dou-se de Petrogrado (antiga Sankt-Petersburgo) em guerra para uma pequena cidade do interior, mas relativamente farta e segura - Nevel’, onde permaneceu até 1920, Naquele ano Bakhtin mudou-se novamente, para Vitebsk, onde morou até 1924. Estes anos da vida em Nevel’ ¢ Vitebsk constituem 0 primeiro periodo da criagao intelectual de Bakhtin. 15 NEVEL’ E VITEBSK Nevel’ e Vitebsk cram cidades onde diferentes culturas Etnicas ¢ lingiifsticas e diversos costumes e modos de vida se encontraram e conviviam pacificamente, interagindo e pene- trando uma na outra. Situadas no espaco geogréfico delimita- do pela conhecida “linha de assentamento judéico”, essas ci dades aprescntavam uma cultura urbana mista que reunia as Culturas judaica, ortodoxa ¢ catdlica, com uma Ifngua falada onde se manifestavam peculiaridades do bielorusso ¢ entoa- ‘Ses juddicas. A revolugio socialista e 0 surgimento da nova cultura proletério-revolucionéria contribuiram para a diversi- dade cultural das cidades ¢ fizeram de sua vida trangiila ¢ sonolenta uma vida agitada ¢ curiosa de novas idéias e pro- Postas. E foi naturalmente que os novos intclectuais, chegan- do nas cidades por razes semelhantes, se aproximaram, cri- ando seus cfrculos de amizade e de troca de idéias, penetran- do 20 mesmo tempo no meio jé estabelecido dos intelectuais locais. Exatamente em Nevel’ comegou a formar-se o efrculo conhecido hoje como “bakhtiniano” e chamado pelos con- temporiineos “kantiano”. A alma viva e mente brilhante deste citculo era Bakhtin, que lecionava sobre Immanuel Kant para seus amigos e correligiondrios M. I. Kagan, L. V. Pumpiansky; 16 M. V. Yudina. Matvei Kagan Maria Yudina cresceram na cidade, seus lagos com a mesma ajudaram os amigos e cole- ‘gas, pelas discussdes filoséficas, a entrarem na vida intelectu- al de Nevel” de modo muito ativo. Bakhtin lembrava: “Ali também foi uma coisa peculiar, una coisa marcante para aqueles anos: foi a Sociedade Cienttfica de Nevel’. E isto ndo foi uma brincadeira ndo. A propésito, 0 che- fe dela era eu. Os membros eram Pumpiansky, Matvei Isaeevitch Kagan -fildsofo. Ele tornou-se um dos meus amigos mais préximos"? A Sociedade Cientifica de Nevel’ desenvolvia uma ampla e variada atividade cultural: organizagdo de palestras, concertos ¢ espeticulos, edigdo de almanaque com debates sobre assuntos diversificados: religido, socialismo, artes. Os arredores de Nevel’ sao exclusivamente boni- tos, € a cidade é maravithosa. Ela é situada no meio dos lagos, esta é uma terra de lagos. Os lagos e arre- dores sao absolutamente miraculosos. Nés passedva- ‘mos longe, habitwalmente: Maria Veniaminovna, Lev Vassilievitch, as vezes mais alguém, e durante estes Passeios conversdvamos. Eu lembro como expunha até reflexes iniciais sobre minha filosofia ética, sentando nas bordas do lago (...); este lago, nds 0 chamavamos de lago da Realidade Etica”.” As conversas ¢ discusses coletivamente criadoras so uma marca importante do cftculo de Bakhtin, Provavelmente ‘aqui, no pensamento ¢ na formulaeo em conjunto, toma ori- 17 {gem o problema dos textos itigiosos, que apresentam uma russa.no mesmo Instituto, Nesta época L. ¥. Pumpiansky mesma concepeio cultural, mas apareceram publicamente com lecionava no Conservatério. Para Bakhtin a vida em Vitebsk nomes de autores diferentes. foi marcada de forma especial: em 16 de julho de 1921 ele casou-se com Elena Alexandrovna Okolovitch’s, que acom- panhou seu marido em todas as peripécias da vida, na alegria ‘ © no pesar. Okolovitch morava na mesma casa onde pararam evo tlt dnteresee pela Bakhtin e V, N. Voloshinov.® Pelo testemunho de R. M. Nevel’ era chamada de “nossa Marburg” por Bakhtin ¢ seus amigos. Neste nome personificou-se o iteresse filos6fi- co central deles: kantiano, filosofia, ¢ antes de mais nada pela filosofia do tipo Mirkina, uma das alunas de Bakhtin, na parede do quarto de neokantiano, o tema principal era este." M, I. Kagan, que Bakhtin estava escrita uma poesia da autoria de V. “estudou diretamente na Alemanha, com Hermann Cohen” | N.Voloshinov: exerceu uma influéneia importante no pensamento de Bakhtin,”? Um pocta e um fildsofo aqui moravam nos dias rigorosos de inverno. Muitas questées intrincadas nessa época eles solucionavam.”” Nevel’ apresentava duas faces a Bakhtin ¢ seu efrculo: ‘como “nossa Marburg” € como personificagao da tensio en- ‘re uma pessoa criativa, por um lado, e 0 meio principal ¢ dificuldades ideol6gicas, por outro. Uma atividade cultural Para encontrar solugdes as ‘questdes intrincadas’, aju- aberta 20 pablico, em forma de debates e palestras, no podia dava a atmosfera criativa, livre e desinibida de Vitebsk, que se realizar sem confrontos ideolégicos. A pritica do didlogo recebeu muitos representantes de peso da cultura da Russia. Jf fora exercitada por Bakhtin, tolerant ¢ leal com os repre- Naquela época florescia ali a arte vanguardista de Chagall e sentantes do novo poder revolucionério, os bolcheviques: “ain- Malevitch't, brilhavam os miisicos ¢ artistas do Conservat6- da que cu penetre no &mago dessa pessoa, também me conhe- rio € da Escola de Artes, 0, porém devo dominar a verdade das nossas interrelagGes, ido tii és liga le Gris efoadie do ast unio 2 thicniaes fs Naw stand nia de criatividade e fundamental para a elaboracdo de sua filo- somos participantes”. sofia sem premissa, que se desenvolveu nos textos poste- Em 1920 ¢ 1921 quase todos os participantes do efrcu- riores, lo deixaram Nevel’: Bakhtin mudou-se para Vitebsk. Este perfodo da vida de Bakhtin foi frutuoso em termos Ostextos principais do perfodo de Nevel’ ¢ Vitebsk séo. Em Vitebsk os amigos reuniram-se novamente e nesse “Para uma filoxofia da aco” ¢ “Autor e heréi si cfreulo entrou P. N. Medvedev. “ Bakhtin comegou suas ativ esistiea”. A esséncia da criagio de Bakhtin nesie neat dades de professor de literatura curopéia ocidental no Institu- ‘eroxprssal plas palaras do prio Baku ees realmen Sg ag ee Bahia Serna vida, 7 to Pedagégico; P. N. Medvedev era professor de literatura realmente, signi 18 19 A filosofia de Bakhtin tem um cardtcr peculiar. Bakhtin criou sua concepcii filos6fica, teorizando no material estéti C0, mais precisamente no material literdrio. Nao ha muitos trabalhos especifica e puramente filoséficos de Bakhtin. M: + { dois primeiros trabalhos de Bakhtin acima referidos, Nestes, Bakhtin estabeleceu seu conceit filoséfieo fundamental, que sobytie' (0 ser-cvento). Elaborando sua filosofia, Bakhtin cria 0 conceito do ser stem ontol6gieo que de fato & ético, ne rama {2 ser Gado da pessoa. Q.cfitgrio ético daagio aL responsablidade-Respons i ‘uma responsabilidade perante alguém e por uma razio deter- jonsavelmente. Esta interpretacio do ser aproxima a pessoa F coms devenes ¢ dieitns-cxistoncials sua agio responsi vel em relagio ao ser. Surge o conceito de ser-evento. com as outras pessoas, em relagdcs que tém lados éticos ¢ estéticos. O importante nesta colocagio € que 0 ser, como 2, imanentemente humana, ou em outras palavras 6 ser-cvento, ser, para Bakhtin, adquire uma imagem de universo cas. O ser é universo social, no qual a prioridade pertence a individtg. Lembramos das rafzes kantianas do pensamento ‘de Bakhtin: a pessoa interpreta-se como um objetivo por si, e auténticos - neste sentido: propriamente filos6ficos - so os Posteriormente se desencadcia em seus outros textos: Bytie- & bytie™ com 9 ser ico que pertence A ‘raz pratica”, um i and as ica pura’, esponsabilidade entende-se nio como SS minada, tras_sim, como o dever existencial da pessoa livre SF dasTegras morais universais, Assim, o sr signi ites. ‘A caracteristica do ser da pessoa consiste em relagbes agi ética, € uma existéncia no empo, uma existéncia hist6ri vivo, onde as pessoas esti ligadas entre si por relagSes &ti- oa ¥ 20 so riot? nao como um meio. Esta imagem do ser permanece em todas as reflexes de Bakhtin e podemos descobri-la no mundo dialégico e polif6nico do romance de Dostoievski, no encon- tro de vozes no romance como género € no carnaval rabelaisiano. Tnterpretando 0 ser como ago responsével do indi duo social, Bakhtin destaca o aspecto estético da idéia do ser\ Pois a ago, para Bakhtin, 6 0 ato de criago dos valores cul- turais, ou, em outras palavras, 0 ato criativo de engendrar sig- nificados. No mundo dos valores culturais, a qualidade do ser per- tence a agiio da pessoa, ao ‘meu’ ato que cria valor, ¢ no a0, valor pronto, Neste plato, Bakhtin estd longe do mundo dos valores culturais na interpretacao destes & maneira de Plato, como mundo objetivo das idéias onde nao ha lugar para ‘mim’, para 0 individuo, ou para 0 eu autor dos valores. A cultura, nesta 6tica, nil se interpreta como uma esfera independente, ccontraposta & vida, um reflexo da vida em forma de valore: ‘mas como a prépria vida Bakhtin une a vidae a cultura, bus. ando o valor cultural que assegura a vida. lenitude dose . Bakhtin encontrou este va- Jor, esta forma cultural, que apresenta ‘vida viva’ e é uma parte orginica da vida, no romance de Dostoievski. A idéia filosGfica de Bakhtin, iniciando seu desencadeamento na teo- ria da ago, realiza-se na concepgio de didlogo. Este é 0 se- ‘gundo pertodo na criagio de Bakhtin, 2 LENINGRADO Em 1924 Bakhtin retoma a Petrogrado, que mudara de nome para Leningrado. Os amigos e colegas do circulo de estudos de Bakhtin também afluiram para esta cidade, Come- telectual de ou um outro periodo, 0 segundo, na vida Bakhtin, Bakhtin nesse perfodo nao tinha nenhum emprego ofi- cial, lecionava sobre Kant, Freud, Bergson, sobre questdes teoldgicas. A nica fonte financeira na vida de Bakhtin era uma pensdo por invalidez: a osteomiclite, da qual jé softia Bakhtin em Vitebsk, fez com que seu amigo Voloshinov o cuidasse, dividindo a moradia, No cftculo dos amigos nessa 6poca entraram N. Konrad, M. Tubianski, I. Sollertinski que conhecia Bakhtin, P. Medvedev ¢ L. Pumpianski jé no tempo de Vitebsk, por assistir as suas aulas em 1920-21. Bakhtin conheceu_em Leningrado_as atividades do cftculo “Voskressenie”, que foi marcado de modo especial no destino ilésofo: in foi preso sob imputaci culpa por participar neste cfrculo religioso-filosofico, que ten- tava reuniro cristianismo com o socialismo. Na segunda metade dos anos 20, Bakhtin avanga sobre ‘0 modelo altemativo da linguagem c elabora seu conceito prin- 22 cipal - 0 dilogo. O trabalho mais importante desse perfodo é “Os problemas da criagdio de Dostoievski" (1929), que intro- uz novas idéias linguisticas e sua concep¢ao de polifonia, ‘Além deste trabalho de Bakhtin, outros, de autora litigiosa, ‘apresentam uma concep¢io de linguagem e discurso de ori- ‘gem bakhtiniana, Osurgimento do problema dos textos parabakhtinianos csté ligado & publicagio de uma série de livros e artigos com (os nomes dos amigos de Bakhtin na qualidade de autores e com uma apresentagio bastante transparente das idéias do préprio Bakhtin. Normalmente aos textos litigiosos referem- se 0s livros: V. Voloshinov “Freudismo” (1927), P. Medvedev “Método formal na teoria e hist6ria da literatura e na erica literéria” (1928), V. Voloshinov “Marxismo e filosofia da lin- guagem" (1929); € os artigos: V. Voloshinov “Do outro lado do social” (1925), V. Voloshinov “Discurso na vida e discur- 0 na poesia” (1926), entre outros. Este problema ¢ apresentado numa extensa bibliografia em diferentes Iinguas: russo, principais linguas européias, ja- ponés, coreano.® As opiniées dos bakhtinistas sobre a autoria dos textos divergem. Hé argumentagdes tanto a favor, quanto contra a autoria de Bakhtin, A soma e classificago destas argumenta- ‘g8es revela o seguinte quadro. Entre os argumentos prin Bakhtin si ~a proximidade metodolégica e textual dos trabalhos Parabakainianay com os trabalhos sem didvida pertencentes a ais @ favor da autoria de 23 ~ a afirmagio escrita de I. Kanaev sobre a autoria de Bakhtin quanto ao artigo “Vitalismo contemporfinco”, publicado em 1926 sob o nome de I. Kanaev.2" Esta afirmacio, de forma indireta, destaca a probabilidade da participago de Bakhtin na escrita de outros textos; -08 testemunhos, orais ¢ esctitos, de conhecidos ou entrevistadores de Bakhtin, que abrangem desde as afirma- Ses da participagio co-autoral de Bakhtin até sua autoria absoluta¢ indiscutfvel; ~ referéncias aos opositores literdrios de Bakhtin que atribut- ram exatamente a cle a critica do método formal na literatu- rac linguagem. Entretanto, 0s fatos registrados revelam que Bakhtin no gostava de tocar no assunto dos textos litigiosos; niio negava, sua participagdo na escritade alguns trabalhos de V. Voloshinov eP. Medvedev, ¢ explicava de maneira cada vez diferente 0 problema da sua autoria. Recentemente foram publicados tes~ temunhos documentais de Bakhtin sobre a questo. Na revista “Estudos Literérios", 1992, vol. 5, encontra~ se a resposta de Bakhtin a V. Kojinov, escrita ainda em 1° de marco de 1961, relativa & autoria dos textos “Método formal na teoria ¢ hist6ria da literatura e na critica literéria” ¢ “Mar- xxismo e filosofia da linguagem” “0s livros ‘Método formal’ ‘Marsismo e filosofia da Tinguagem’ sao bem conhecidos de mim. V. N. Voloshinov e P. N. Medvedev sdo meus falecidos ami- ‘gas; no pertodo da redagao destes livros trabalhamos ‘num contato criativo mais estreito. Mais ainda, a con- cepeao comum da linguagem e da obra discursiva foi 24 colocada no fundamento destes livros e do meu traba- Tho sobre Dostoievski. (..) Devo notar que a presenca de uma concepeao comum e do contato no trabalho \\, nao diminui a independéncia e originalidade de cada um destes livros, Relativamente a outros trabathos de P.N. Medvedev e V.N. Voloshinov, hd de ressaltar que les pertencem a um outro plano e ndo refletem a con. Gy ceneto comun, endo tomeinenhuma parte na eriagdo deles. Eu sigo, até agora, esta concepgao da lingua- ‘gem edo discurso que estd exposta sem plenitude sufi cciente e nem sempre de manera inteligivel nos livros apontados..."” ‘Umdos testemunhos de Bakhtin simplesmente afirma a autoria de V. Voloshinov quanto a escrita do livro “Marxismo e filosofia da linguagem”. Em entrevistas com V. D. Duvakin, professor e pesquisador da Universidade Estatal de Moscou, em feverciro € margo de 1973 Bakhtin disse: .eu tinha wn amigo chegado, Valentin Nikolaevitch Voloshinox. Ele é autor do livro ‘Marxismo e filosofia i da linguagem’, o qual, porassim dizer, me atribuem.”.#” Para reforgar 0 posicionamento contra a autoria de Bakhtin, alguns pesquisadores destacam a simplificagao das idéias complexas de Bakhtin, a marxificagdo destas e a au- séncia de linguagem transparente e acessivel nos textos de autoria em debate (entre estes estéo, por exemplo, os pesqui- sadores americanos G. $, Morson eC. Emerson, contra-argu- mentando aos seus compatriotas K. Clark e M. Holquist).2* Levando em conta de fato um universo de opiniées, ar- Bumentagdes e testemunhos diferentemente direcionados a 25 respeito da questo da autoria dos textos litigiosos, somente pode ser confirmada a necessidade de pesquisar escrupulosa ¢ profundamente esta questao. Sé por este caminho podem ser esclarecidas melhor as causas de uma autoria discutivel. Entre estas podem ser encontradas a aspiracao de Bakhtin em nao abrir sua autoria nas condigdes de controle ideolégico e ocultar seu nome por outros diversos; a recusa de Parti ni iplantagdo da metodologia marxista na filosofia ¢ na lologia; uma relacao dialdgica & criagio colctiva, a ausén- cia de relagées formais com instituigées cientfficas toriais, € outras a descobrir, Falando do acervo intelectual do efrculo de Bakhtin, seria provavelmente mais correto buscar resposta A pergunt sobre a significfincia do grau da presenga participe de Bakhtin| ‘os textos, € no sobre 0 fato de quem exatamente escreveu aquele ou outro texto, Isto no impede a importincia da continuidade ¢ do aprofundamento das pesquisas biograficas, de texto e de con- tetido tebrico, bem pelo contrario exige-as; etambém nfio aca- ba com a necessidade de ser rigorosamente preciso nas afir- ‘mages da autoria dos textos. Neste sentido, no mfnimo nioé correto substituir o nome de V. Voloshinov ou de P. Medvedev pelo nome de Bakhtin. Aparecem estranhas e incorretas, até por falta de informagdes, aquelas apresentagdes de Bakhtin em portugués que nem se preocupam em abrir o panorama da diversidade e até da divergéncia de opinides de pesquisado- res. Um dos principais livros da heranga bakhtiniana, “Mar- xismo e filosofia da linguagem”, cuja importancia no meio académico-cientifico brasileiro se manifesta de maneira Sb- via e nfo € posta em diivida, circula sob forma de traducao da 26 tradugdo “principalmente” francesa, realizada ainda nos anos 70. Esta tradugo para o portugués traz, junto com o texto bakhtiniano, o Prefécio (Roman Jakobson) e a Introducao (Marina Yaguello) & edigao francesa, com suas informagéese afirmagdes a respeito de diferentes caracteristicas da criagao intelectual e da linha biogréfica de Bakhtin, sem se preocupar com o fato de se ligar, assim, a uma determinada visio, ou interpretacZo, de Bakhtin, e néio com o autor original. De fato, © leitor brasileiro é levado a uma nica interpretago possf- vel, através de uma leitura de secunda mao e sem contato di ‘eto com a obra original. Em relagdo a autoria do livro “Mikhail Bakhtin (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem”, no prefficio consta: “Acabou-se descobrindo que o livro em ‘questo € varias outras obras publicadas no final dos anos vinte e comego dos anos trinta com o nome de Volochinov - como, por exemplo, um volume sobre doutrina do freudismo (1927) (..) - foram, na verdade, escritos por Bakhtin (...)". Nao se pode saber, do texto, quais documentos ou argumenta- 90es teGricas levaram os apresentadores de Bakhtin em fran- cés aesta conclusio, Por sua vez, os apresentadores brasilei- 10s da edigao brasileira nem sequer se deram conta de que se trata, ndo do fato, mas de uma interpretagdo do fato da autoria naedicao francesa. O tinico fato conhecido, ¢ que retine todos gs pesquisadores, é que o préprio Bakhtin nunca se pronuncia de forma unfvoca a respeito do assunto. Nos textos litigiosos a idéia filoséfica de Bakhtin de- sencadeia-se na questo da linguagem e do discurso. O ser, interpretado nas primeiras obras como bytie- sobytie, ser-evento, que aparecia em forma de pensamento participativo da pessoa inserida no universo social, em forma 27 ago do individuo social, nos textos parabakhtinianos adquire as caracteristicas de ser provido de consciéncia e de som. Uma forma particular da agio 6 0 discurso, a agio lin- giifstica. Assim 9 ser, que na primeira etapa da criagdo inte- ectual de Bakhtin se apresentava como existéncia das pesso- as ligadas eticamente entre si, adquire a lingua e, com cla, a voz. Os individuos, inseridos no universo social, mantém uma ‘conversagio permanente, enchendo-o do ressoar das vozes. A filosofia da linguagem, nos textos parabakhtinianos, aparece em forma de teoria “socioldgica” da linguagem. Esta__ apresentacio “sociol6gica” estes da Ii penta teflextes sobre um problema nio simples € nio to ne aint ae Sree Dees eS ‘Sem ter a pretensio de aprofundar muito a questo, ha de lembrar que normalmente as conviegdes sobre o marxismo de Bakhtin se baseiam na proclamagao, pelos autores dos tex- josos, do seu apego ao marxismo; no uso da termino- logia marxista nos textos; nas peculiaridades de conteddo te- rico e na certeza da autoria de Bakhtin, Entretanto, nem sem- pre um fenémeno ¢ aquilo que quer parecer. seminolaga) pode no expressar, mas pelo contrério velar a esséncja vers dadcira do fenémeno. Falando do contetido te6rico, é impor- tante destacar 0 fato que todas as construgdes e explicagées te6ricas dos estudiosos sobre o marxismo de Bakhtin, a partir dos textos em questo, se fundamentam principalmente na prioridade do social, que est presente de forma incontestavel nos textos. Mas 0 marxismo nio se reduz a prioridade do so- cial, que por sua vez pode ser apresentada por concepg6es teéricas diferentes. Além do mais, 0 contetido tesrico dos tex- 28 tos niio abrange a amplitude do marxismo. Em relagio & auto- ria de Bakhtin, conforme dito acima, 0 tinico fato que pode- ‘mos confirmar com toda a certeza é que houve autoria dupla ou miltipla - de Bakhtin e de scus amigos e colegas dialo- gando. filosofia da linguagem de Bakhtin desencadeia-se 10 conceito principal - o didloi ssmente um dos conccitos, até centrais, {os pelo fildsofo. Odidloga é cio e seu pin: Esta afirmagio nao significa todavia que Bakhtin sejao primeito ¢ nico fundador do dialogismo. Antes de Bakhtin formular suas idéias originais em “Os problemas da criacao de Dostoievski” (1929), o dialogismo como corrente inde- pendente ja estava presente na filosofia ocidental. Também ‘fo conhecidas as buscas, conjeturas e os achados dialdgicos de outros autores russos. Entre os dialogistas ocidentais, que so contempordne- 0s mais velhos de Bakhtin, encontram-se M. Buber (1879- 1965), F. Rosenzweig (1886-1929), E. Rosenstock-Huessy (1888-1973), principio dialégico de Buber ¢ apresentado no prin- cipal livro do autor, “Eu e Tu" (1923). Este princfpio foi tra- balhado pelo filésofo religioso em forma de dialogismo personalista, De acordo com Buber, primeiramente existe Eu que, sendo a premissa de Tu, 0 antecede. Distintamente de Buber, Rosenzweig ¢ Rosenstock-Huessy procedem e radi- cam-se em bases equipolentes da pessoa e do mundo, do Eue Tu na eternidade (Rosenzweig) e no tempo vivido 29 (Rosenstock-Huessy). “Der Stem der Erlésung” (“Estrela da redengdo”) de Rosenzweig ¢ “Ja und Nein” (“Sim e Nao") de Rosenstock-Huessy, junto com “Eu e Tu” de Buber, marca- ram 0 comeco do princfpio dialégico no conhecimento filo- S6fico e cultural geral de nosso século, Nao se pode esquecer ‘© nome de outro dialogista, Ferdinand Ebner (1882-1931), pensador dinamarqués, que formulou nas suas anotagdes com toda a clareza a tese principal do dialogismo do século 20: Tu existe na qualidade de princ{pio ético. A intuigdo dialégica na filosofia remonta ainda mais longe, a Ludwig Feuerbach e a Hermann Cohen, Na pr6pria Ruissia também, 6 interessante mencionar os achados dialdgicos de outros pensadores, como a teoria mun- dialmente conhecida de A. Ukhtomski, contempor‘ineo russo de Bakhtin: teoria das dominantes, que foi elaborada princi- palmente nos anos 20 c que trata das atitudes comportamentais da pessoa. A dnica dominante condigna da pessoa, segundo Ukhtomski, € a atitude de orientagdo para uma norma univer- salmente ética e, simultaneamente, para o préximo, para a pessoa concreta com seus interesses ¢ necessidades, e nfo para © distante abstrato. O conceito central do autor € seu interlocutor, ou interlocutor merecido. Somente com aquele é possivel 0 didlogo. Dislogo, ou conversago entendida em sentido amplo, como uma comunicagéo permanente com as pessoas vivas e as que jé foram, que sio personificagdes dos principios universais ¢ superiores do ser. O acervo literdrio deste autor, como dos demais russos que contribufram na afi magio das tendéncias dial6gicas no conhecimento humano hoje, ainda aguarda estudos mais profundos, 30 A concepgio de dislogo de Bakhtin é especialmente original, pois tem carter até genuino. As vezes, pesquisado- res da criagdo intelectual de Bakhtin dizem que Bakhtin € es- tilo, destacando suas peculiaridades de filosofas.”” O estilo de filosofar de Bakhtin, em primeiro lugar, é um estilo dial6gico. Bakhtin ‘conversava’ , dialogava permanentemente com dife- rentes tcorias-e tradigdes filos6ficas, criando sua prépria con- ‘cepcio, partindo dos seus interesses te6ricos investigadores. 0 didlogo de Bakhtin com outros autores nio € adogo ou simples aproveitamento das idéias destes, mas, sim, € um did- logo criativo, no qual a idéia originéria daquele ou de outro autor adquire outro significado, outro soar, outra importén- se da fonte nativa até a repelir. No entanto, a comunidade de idéias de Bakhtin dos autores em didlogo era necesséria para inicié-lo ¢ desenvolvé-lo exatamente com estes e no com outros autores, ou seja com seus interlocutores € oponentes. Desta forma, na concepgao bakhtiniana de did- logo, encontram-se os motivos e idéias de Kant, Rickert, ‘Spengler, entre outros. A concepgio de didlogo esté apresentada no livro de Bakhtin sobre Dostoievski. Elaborado na segunda metade dos anos 20, este livro foi publicado em 1929 sob 0 titulo “Problemy tvorichestva Dostoevskogo” / “Os problemas da criagdo de Dostoievski". Este livro é o mais importante no segundo perfodo da criagao intelectual de Bakhtin. O dialogismo, apresentado como ontologia e ética nas suas pri- meiras obras, aparece como uma teoria estética e literdria. Interpretando bytie-sobytie como evento do encontro entre a forma ¢ 0 contetido da obra de arte, Bakhtin explicao evento estético, na base do material literdrio, enquanto co- 31 Municagio do autor ¢ do heréi. © mundo romanesco de Dostoievski existe no caso em que o autor dé ao heréi uma liberdade plena, como se ele fosse uma pessoa viva ¢ real. A relagio do autor a0 her6i esta baseada no imperativo de Kant; | pessoa é um fim, € no um meio. O heréi de Dostoievski Pertence 3 realidade, & vida ¢ resiste ao acabamento do autor. Ele € ativo, realiza-se inteiramente, expressando sua ‘iltima’ verdade sobre 0 mundo, mesmo que esta verdade no seja verdade nenhuma. O autor, cuja presenga no romance no é notada, inspira o herbi, através do diélogo com este, para enun- ciar suas idéias sobre as “tltimas’ questées do ser: sobre a vida e a morte, sobre a liberdade, sobre a responsabilidade, etc. © her6i de Dostoievski aparece como idéia, ou, como Bakhtin gostava de expressar, como slovo, palavra.O dilogo do heréi-idéia, heréi-slovo com outros herGis de romance tem a forma do encontro ¢ até de choque entre diferentes vistes de mundo. Os diélogos do autor com seus heréis e os didlogos entre os herdis no romance resultam numa estrutura polif6nica de romance. O romance de Dostoicvski manifesta-se como tum entrelagamento de idéias vitais, ou de vozes dos herdis; ‘como um modelo do ser, mais ainda: como o proprio ser. Para Bakhtin, 0 ser é didlogo: “Tudo na vida ¢ didlogo” O didloga hakhtiniano é “oposigao de pessoa a pessoa” como do eu a0 outro, oposigio em prol da oposigio, Nao ha objeto do didlogo, os dialogandos nao se encontram no qua- dro de um assunto determinado. “O infinito defronte o inf (0" estd no didlogo que se prolonga permanentemente. Dislo- go € um mundo de idéias iguais em dircito, onde nio existe uma hierarquia axiolégica nem um tiltimo resultado concreto, mével e inabalivel. 32 eee (0s pesquisadores da criagao intelectual de Bakhtin no- tam a divergéncia entre sua interpretagio do didlogo ¢ 0 posicionamento do escritor Dostoievski, que o revelava de forma claraem seus textos. Esta divergéncia prova que o pen- samento de Bakhtin ndo se fechava no quadro da anélise pu- ramente literdria e, na realidade, seus principais livros sobre as obras de Dostoievski e de Frangois Rabelais foram muito mais abrangentes e profundos, apresentando a concepgio fi- los6fica do dialogismo. Simultaneamente & teoria de didlogo, Bakhtin elabora uum novo modelo de lingua. A idéia inicial sobre o ser-evento, bytie-sobytie, tratado ‘Jo responsdvel da pessoa, desdobrou-se - através de agio-palavra, ou enunciago - no conceito de pen- samento participativo. A pessoa & participe do ser. A pessoa participa no ser através Ge HOE wal, WU PSUS Sets IG0, @ qual pode ser a idéia que toma a forma de slovo, palavra. Slovo & muito us Gagem, Palavra en- tende-se niin como umasnidade lexicogrifica, mas comoalgo__ ue tem seu autor, seu destinatario e se pronuncia em deter- minado contexto, Desta forma a palavra aparece como uma junciagio, réplica em di Tingua é um wurso_do-indivic i sistema estavel'e wr] oye 33 KUSTANAI, SAVIELOVO, SARANSK Em 1929 Bakhtin foi preso, Entre as acusagGes, além da participagao no circulo religioso “Voskressenie” (cujas at vidades eram conhecidas por Bakhtin, mas a0 qual ele no participava, nem era filiado), havia a imputagio de culpa em ecionar ilegalmente: “O tempo todo lembravam do pasado, que eu lecionei sobre Kant, ete. Foi-me imputado, propria- mente, que dava aulas ndo oficialmente, ¢ aulas de caréter idealista"®, Bakhtin foi condenado a dez anos de campo de destacamento especial em Solovki (SLON). A intercessio dos amigos (M. Yudina, M. Kagan e sua esposa S, Kagan), a in- tervengio de alguns intelectuais, entre os quais Maxim Gorki, Alexei Tolstoi, Anatoli Lunatcharski, ¢ a agravagao da docn- a resultaram na substituigo do campo pela deportago em Kustanai (Cazaquistio). Ali Bakhtin e sua esposa permanece- ram do infeio de 1930 até 1936. Kustanai era um local tradicional de deportagito. Dis- tante dos grandes centros urbanos, estepe e deserto com tre- cchos de terras férteis, 6 uma regiZo agricola com antiga cria- ‘go de porcos, Bakhtin dava aulas para pecuaristas e traba- Thava como contador em kolkhoz; assim ganhava a vida. A 34 ctiatividade e 0 espitito investigador nao abandonaram Bakhtin: o artigo “Estudo das entrevistas com kolkhozianos” é resultado dessas atividades”, Certamente, este texto nao re- fete as preocupagdes fundamentais do cientista. Os anos 30€ 40 ¢ infcio dos anos 50 constituem o terceiro perfodo na cria- Zo intelectual de Bakhtin, quando ele elaborou sua teoria do romance, ‘As reflexdes sobre o romance de Dostoievski desem- bocam na conclusdo de que o romance é uma realidade pecu- liar. O romance niio 6 0 reflexo literdrio da vida, mas é a pr6- pria vida. O romance nfl pertence s6 a0 mundo artstico, mas pertence a realidade hist6rica viva. O romance é parte organi ca do ser-evento. Esta interpretagio do romance de Dostoievski, Bakhtin a extrapotou para o romance como ge- nero, Aqui toma sua origem a idéia atual sobre o romance como algo inacabado e aberto. O romance como género prin- cipal no pensamento ena literatura curopeus, os conccitos de carnaval ¢ de cronotop s3o as descobertas fundamentais de Bakhtin nesse perfodo, Bakhtin comegou seu trabalho sobre o romance como nero ainda em Kustanai, durante sua deportagaio, Continuow em Saransk (Mord6via), onde, com a ajuda do seu amigo colega do antigo cfrculo kantiano P. Medvedev, conseguiu uma vaga de professor no Instituto Superior Pedagégico. Bakhtin permaneceu em Saransk s6 até 1937 ¢ logo se mudou para Saviclovo, uma cidadezinha ndo longe de Moscou. Durante todos os anos de repressées agudas, Bakhtin esteve nessa ci- dade, dando aulas na escola de segundo grau. Com o término da Grande Guerra Patriética, em 1945, Bakhtin retomou a ‘Saransk, para o mesmo Instituto, onde nessa época lecionow 35 ) as disciplinas de literatura nacional e estrangeira e de teoria literdria, Durante todos esses anos as reflexes te6ricas cons- tantes nfo foram deixadas de lado por Bakhtin; clas 0 leva- ram conclusdo que o carter inacabado e absolutamente aber- to_do romance esté_ligado com a especificida ua atureza. Qromance, em comparagdo com a obra épica, ¢ orien- tado a representar o presente e ndo o pasado. Nao hd distin- Gia entre romance ¢realidade preseatp. Assim, tanto na acep¢ao ‘quanto axiologicamente, o romance ndo é acabado, nao é ter- minado, ele sempre é atual. A imagem romanesca viva reno- va-se cada vez mediante a reprosentagio do leitornos contex- {0s histGrico-culturais, adquirindo scu acabamento exatamen- fe num contexto determinadg. Entretanto, em principio 0 r0- ‘mance é aberto pela releitura também em outros contextos de outras épocas. A imagem romanesca tem uma atualidade pe- culiar, que se manifesta através darelagao entre aimagem eo sef-evento, a0 qual autor ¢ leitor silo essencialmente participes. Além disso, 0 cardter inacabado e aberto do romance procede da relatividade da imagem romanesca. O romance tem sua origem nos géneros literdrios de riso, enraizados ain- da na Antiguidade ¢ na Idade Média. Estes gncros especi- alizavam-se na relativizagdo e, até, na ridicularizagdo dos va- lores vigentes e reconhecidos na sociedade. Cada época pos- terior dé sua visio de valores € de significagdes 4 imagem romanesca, deste modo corrigindo-a, inteirando e acabando- ano seu contexto hist6rico e cultural. (O desencadeamento posterior da idéia de romance como inacabado e aberto realiza-se na proposigao de slovo, pala- vra. A imagem romanesca € imagem lingtifstica. Bakhtin ja 36 apresenta ao piblico nilo uma pessoa em came € 0:50, no na sua concretude real, como o era antes, mas, sim, apresenta a palavra que a pessoa pronuncia, apresenta 0 discurso..O ro- mance para Bakhtin, nesse perfodo, é um mundo vivo ‘mullilingiifstico, de diversidade de discursos e multissono, 0. mundo nio é mais silencioso, ele adquire a lingua, a palavra pronunciada, 0 discurso, adquire a voz. O paradigma pés- ‘moderno do ser como ser linglifstico manifesta-se de forma plona nesta teoria do romance. ‘O mundo das idéias sonorizadas, das idéias-palavras, 6 ‘um contexto onde acontecem os discursos individuais do au- tor, do narrador e dos herdis. Neste mundo de encontro de linguas, ndo sempre personificadas e ligadas com os protago- nistas, nota-se perfeitamente a prioridade do universal, do social perante 0 individual. O didlogo existe para 0 dilogo, para o seu todo, € nao para participantes individuais. A pes- soa como integralidade nica desaparece no infinito social Tingiistico, submetida ao ser. Seré que podemos considerar esta personificagdo filoséfica na teoria do romance como 0 auténtico dialogismo? A resposta a esta pergunta encontra-se no livro de Bakhtin “Tvorichestvo Fransua Rable i narodnaia cultura Srednevekovia i Renessansa"! “A criagdo de Frangois Rabelais e acultura popular da Idade Média e do Renascimento” (1965). Aclaboragio deste livro comegou ainda em Kustanai. O tema desenvolvido no livro foi primeiramente apresentado em for- ma de tese de Doutorado. A defesa da tese ocorreu no dia 15 Me novembro de 1946, no Instituto de Literatura Mundial A. ‘Gorki, Mas a colagio de grau de Doutor em Filologia aconte- 37 ‘eu somente em 1952, tendo encontrado dificuldades buro- ctiticas ligadas as idéias apresentadas fora do padrio teonico vigente. ‘Um dos principais conceitos bakhtinianos, o camaval, entra no meio cientifico pés-modemo e cultural em geral a partir da obra sobre o romance rabelaisiano. O carnaval é exa- tamente 0 conceito-chave para entender o desenvolvimento 4a idéia de Bakhtin sobre didlogo, Geared bsquea forma artistica, usada por Rabel que mantra vida, Bakhtin analisa: o camaval é um frag Mento da forma cultural maior. Esta forma 60 mundo festivo popula. O préprio romance de Rabelais ¢ parte orginica des- te mundo. Parece que 0 autor nfo est presente no romance, onde a espontaneidade e naturalidade do carnaval predomina independentemente da idéia deste autor. Rabelais aparece ‘como um autor informe, sem personalidade, sem discurso pré- prio nem voz prépria. O her6i deste romance é coletivo, é um coro popular rindo. Nesta dtica filoséfica nio hd uma corrclagio exis tencialmente personalizada entre, por um lado, 0 autor que esté dominado pela multidao festiva popular ¢ nela dissolvi- do, e, por outro lado, 0 her6i coletivo. A pessoacm particular desaparece no meio carnavalesco A multidio carnavalesca ‘qdquire tracos personificados: cla mesma, constitufda do povo, essa tinica ¢ sdlida, Pois nile hé di eo autor e herdi; nem entre os herSis, Bakhtin analisa 0 camaval como uma tradigio cultural ‘universal, uma fonte do género romanesco na literatura, O camaval 6 a vida acima de convengdes oficialmente reconhe- 38 cidas como normas ¢ regras na sociedade, acima dos valores vigentes. O camaval é arrebatamento pelo ser, éxtase do ser. Desta forma o carnaval, que dé vida a0 romance, aparece nele como a apoteose € 0 término légico da tendéncia dial6gica. De fato Bakhtin, que elogia o carnaval, mostra naufriigio do individuo na espontancidade carnavalesca. © carnaval € um suplemento a cultura oficial. Ele relativiza e ridiculariza scus valores, personificando a deso- bedigncia c insubordinacao as previsOes oficiais. Apresentando ‘uma verdade nistica da vida, ao mesmo tempo o carnaval no tem nada a dialogar: ndlo hd contetido préprio. Mas, ainda, o fato de 0 préprio ser do carnaval se fazer mediante a relativizagio alegre e cOmica de valores pode ser interpreta- do como auséncia de intengao para 0 dilogo. A pant desta colocagao surgem algumas consi a respeito da autenticidade do dislogo. leragdes Infelizmente, hé de registrar uma tendéncia no uso do termo “didlogo” semethante ao uso da categoria “reflexio”, Ja bastante gasta e surrada hoje. O uso impertinente do termo “didlogo" ¢ de scus derivados, tais como dialogar, dialogador, dialogal, dialégico, dialogistico, dialogismo, dialogicamente, ete, toma absurda.c insuportavel a situagdo em certos cfrculos académicos e préximos a eles, mais ainda com os apclos de dialogadores-amadores para dialogar e encontrar no dislogo decisdes dialdgicas. Esta situagao reflete-se no conhecimento cultural em geral, ¢ necessidades estreitamente corporativas reforgam os efeitos de um uso solto € no rigoroso do termo dislogo. De fato, a repetigto feiarrona do termo didlogo e de seus derivados, para contentar a moda e uma vontade de apa- recer muito mais & frente do que a propria ciéncia o exige, 39 est ligada com um uso instrumental, no scu pior sentido, do termo didlogo € conduz ao surgimento de compreensdes servidoras do didlogo, ao surgimento de didlogos-mascaras: diflogo-aceitagao, didlogo-consenso, didlogo-argumentagao Prepotente, entre outros. Entretanto, o didlogo é um conceito ético-axioldgico, é um principio filos6fico de conduta da pes- ‘soa em situagdo de conversagio: seja verbal, ou por meio de ages, ou através de siléncio, nao importa. O didlogo é oideal comunicativo, do qual deve se aproximar o dislogo cm rea za¢do pritica, Este didlogo pratico é um processo, ¢ seu resul-! tado € permanentemente temporirio. Ele expressa a unidade e integralidade da idéia em cons . Neste sentido, ndio, hd resultado final do didlogo, ou seja ndo existe uma verd: definitiva para todos os dialogandos. O didlogo € um encon- tro de posigGes, argumentacées e pontos de vista difer 7 (ou encontro de verdades individuai, igualmenterespeitadas Rela Fiqueza de personalidade dos sujeitos destas verdades ¢ mazmaniohte reconhesidas pelos paticipantes no didlogo, 0 didlogo estabelece-seem um porto de eyulforo que assegu- raa integralidadc ¢ vitalidade da comunidade em didlogo, ¢ também assegura 0 movimento i linfmica do did- ogo. 0 di TCO O Paliee pote sowie reese modelo sinergético da cultura da comunicagio.! A aborda- gem sinergética contribui na aproximagilo ao essencial vivo do didlogo, que se manifesta como reunido de formagées com- plexas como uma integralidade evolutiva. Os didlogos-més- caras de fato exploram alguns momentos particulares do did- logo auténtico, imitando-o, Nem o diflogo-aceitagiio, que nZo descobre as posigSes verdadeiras dos seus participantes; nem 0 didlogo-consenso, que se baseia num acesso a opiniio nao universalmente distribufdo; nem os demais, que nao tém fun- 40 damento para entrar no panto de equilibrio como um momen- to constantemente prolongado no encgntro doewe dooutro, - no podem ser considerados didlogo [0 didlogo é processo de vida Ele acontece, e por isto é auténtico, neste contexto his- ‘6rico-cultural, agora e aqui, neste exato momento e neste lo- cal do seu acontecimento. O dilogo € auténtico crono- topicamente. cronotop¥s um conceito criado em desenvolvimento € substituigaio dos conceitos de tempo ¢ espago. As caracte- risticas temporais ¢ espaciais uncm-se no cronotop, 0 qual € um todo integral, concreto e conscientizado. Pelo cronotop existem eventos vivos ¢ indeléveis do ser, ¢ nao leis, fungdes e fatos saciais objetivos que revelam o essencial, 0 necess4rio € 0 repetido no universo. A eventualidade do ser liga os even- tos ha tempo passados com eventos do presente e do futur. distante, desvendando 0 encontro de eventos no Tempo Gran- de™, A eventualidade cronot6pica, descoberta através de uma unidade arquitetnica, interpreta o universo em termos de pluralidade ontolégica: como um encontro de nomes pré- prios, ou seja, pessoas na sua realidade concreta e viva. A integralidade da pessoa, cujo essencial transparece nas carac- teristicas concretas ¢ individuais, entra no didlogo. A impor- tincia destas caracteristicas, interpretadas na tradigdo do ‘tcorismo como derivadas ¢ insignificantes - uma espuma nas ondas do rio, ou cértex no qual se apresenta o ser imediato dos objetos (Hegel) -, no paradigma lingiifstico pés-moderno do ser traz.a interpretacio do didlogo como manifestagio do_ ser individual da pessoa na sua integralidade e plenijude. Esta interpretagao opGe-se & compreensio socratica do dislogo como uma polémica, um debate, com seus vencedores e ven- cidos. 41 ; dlogo niio acontece por si mesmo. Além do eu, apto, intencionado e preparado ao dislogo, e seu interlocutor, algo entre eu € 0 outro deve existit, Este algo se manifesta no tra- balho construtivo em conseguir o dislogo, As consideragées sobre a autenticidade: ‘do didlogo des- Pertam um questionamento sobre o monélogo. Freqilentemente © mondlogo, ou prinefpio monol6gico, é contraposto a0 dié- logo. O préprio Bakhtin mostrou uma visto critica em rela- ‘$40 20 mondlogo, Usando seu termo preferido slovo, palavra, Bakhtin destacava seu cardter essencialmente: dialdgico: “slovo € dialégico pela sua propria natureza”.® Nesta colocagio esté em aberto a questio: como & posstvel o monélogo? Simulta- neamente A afirmagiio sobre a dialogicidade de qualquer slovo, palavra, Bakhtin contrapée a palavra dialégica 2 palavra monolégica: “A consideragio da antipalavra (Gegenrede) pro- voca mudangas especificas na estrutura da palavra dial6gica, tornando-a internamente eventual ¢ esclarecendo o objeto da palavra de um modo novo, abrindo nele novas faces fora de alcance para a palavra monolégica”.“ A consideragao da antipalavra traz. vida para a palavra dial6gica, a vivifica. A eventualidade interna da palavra apa- rece como uma mancira de manifestagdio ¢ um grau da dialogicidade da mesma. A eventualidade da palavra ocorre no encontro do eu ¢ do outro no didlogo a respeito do objeto, endono objeto. Assim, através do encontro do ewe do outro, ‘como um cruzamento existencial de conscitncias, se realiza 0 ‘aprofundamento na compreensio do objeto. O dilogo, en- tendido como “oposigio do infinito 20 infinito”, o didlogo com sua imensidao e auséncia de contetido, s6 pode ocorrer em condigdes de miitua orientagdo das consciéncias, orienta- 42 ‘¢40 igual em termos de semintica e de expresso no espago e no tempo da mesma palavra, diretamente direcionada para 0 mesmo objeto. Mas permanecem nas consciéncias seu pré- prio interesse e seu proprio posicionamento a respeito do ob- jeto. Pois a habilidade de realizar o mondlogo como uma ex- pressio da propria posi¢o da pessoa, como relagdo argumentativa da integralidade do monologando, é a devida condigiio do didlogo. O didlogo pressupde 0 encontro de suas yerdades como posigdes e atitudes pessoais sélidas e convin- vida em um novo contexto hist6rico, na co-autoria de seu > novo" criador com todos as antepassados, Assim, nesta l6gi- » cade vida das idéias cientificas, se realiza a unio arquitetdnica » da eventualidade cronot6pica. As priticas do culto na ciéneia ® demonstram, na realidade, a falta de forga suficiente e de von- ade para se aproximar do ideal comunicativo do didlogo. ( tema hermenéutico transparcee nas anotagdes © OS sltimos ensaios de Bakhtin, Especialmente em “Owet na ‘vopros redaktsii “Novovo mira”! Resposta A pergunta da Re- ‘dagio do “Novo Mundo” (1967), hé um chamamento a assi- ‘milagao de principios hermenéuticos. Como sempre, a idéia le didlogo esté presente e penetra as reflexes bakhtinianas, 48 1no caso, a respeito da questo da interpretagdo ¢ compreen- sio do texto. Em comparagdo com a tradigao hermenéutica ocidental, dentro da qual Bakhtin dialoga com W. Dilthey, M. Heidegger, X.~T. Gadamer, Bakhtin parte do didlogo como de algo existencial no texto para o interpretar e compreender. Primeiro existe 0 didlogo, 0 encontro ¢ a oposig&io de pessoa a pessoa. A significago do texto é entrelacada com 0 eu do autor do texto, Para compreender 0 texto em interpretagao, 6 necessério "vnenakhodimost™, a relagdo de uma consciéncia aoutra consciéncia, exatamente enquanto outra; a ndo confiu- éncia do ew com 0 outro: para compreender a alteridade do autor, 0 scu lugar fora de qualquer lugar, o que ndo pode levar © eu para a confluéncia empitica com 0 outro do autor e, si- multancamente, define o lugar do eu no ser como lugar nico fmpar, excepcional. Os autores ocidentais concebem 0 didlogo como uma’ espécie de meio na interpertayda da texto. O interpretador | relaciona-se com 0 conteddo do texto, ¢ nfo obrigatoriamen- te-com 0 eu do autor. O encontro de interlocutores realiza-se no objeto. O objeto, tema ou assunto, € 0 mais importante. Primeiro existe 0 texto, o didlogo aparece mais tarde como um instrumento de interpretagio. O didlogo desencadeia-se objetivamente, como uma l6gica racional e nio personifica- da, O distanciamento hist6rico ¢ cultural entre o interpretador co texto ¢ essencial para sua interpretagio, ‘Comparando, deve ser dito que as teorias hermenéuticas ocidentais so mais trabalhadas no sentido de estudos mais Pormenorizados ¢ minuciosos das significagSes dos textos. A idéia de Bakhtin, neste recorte, € mais simples, mas metodologicamente valiosa: deve ser analisada a oposigo 49 dial6gica do ew © do outro, do interpretador ¢ do eu do autor auténtico do texto. Como Bakhtin abriu uma pista para a apli- cago de seus conceitos metodolégicos ao trabalho de inter- Pretagio de textos, o aprofundamento desdobramento pos- teriores desta idéia constituem um campo de pesquisa pro- missor e aberto. Conceptualmente, a hermenéutica de Bakhtin apresen- tase como o didlogo das eulturas, Tal concepgiio atrai os in- teresses de cientistas em diferentes dreas do conhecimento, Pois tem em si uma grande forga heuristica potencial. Especi- almente a aplicagio do dialogismo bakhtiniano a educagio, Por natureza uma das atividades humanas mais conservado- ras, tem possibilidade de se desenvolver como pesquisa pio- neira: serd que podem - ¢ como - as relagdes pedagdgicas, ue ocorrem em termos de dominacio e obediéneia escola- 425, s¢ transformar em escola de didlogo das culturas? A con? cepeio do didlogo das culturas também toma-se extremamente importante ¢ vital no contexto do proceso atual de globalizago da cultura humana como um todo. Esta concepgao bakhtiniana origina-se na teoria dacul- tura de Oswald Spengler,” que introduziu o principio fisiognémico no lugar da causalidade na metodologia da pes- quisa histérico-cultural. Analisando as culturas como dualidades humanas de nivel superior, ou como culturas-pes- soas com seu “organismo”, sua “alma” e sou “destino”, Spengler formulou uma conclusio pessimista sobre a impos- sibilidade de sentir e de compreender uma cultura alheia. Par- tindo da visio fisiognémica das culturas, Bakhtin dialoga com Spengler e chega & conclusiio de que comunicacio e didlogo sdo permanentes entre as culturas no Tempo Grande. 50 Moscou © nome de Bakhtin comegou a se tornar conhecido a partir dos anos 50 ¢ 60. A publicagio dos livros sobre Dostoievski e Rabelais, o interesse para estes e para a criagdo {de Bakhtin em seu conjunto fizeram com que scus leitores € admiradores solicitassem as autoridades politicas a mudanga do filésofo de Saransk para Moscou. Bakhtin e sua esposa Elena Okolovitch transferiram-se para Moscou em 1969. O falecimento de Okolovitch em 1971 abalou profundamente Bakhtin. Cheio de idéias e projetos de escrever novos traba- thos, s6 conseguiu exp6-los sob forma de anotagées. Bakhtin faleceu no dia 7de margo de 1975 ¢ 6 enterrado, junto & espo- sa, no cemitério Wvedenskoi SI NOTAS * Conversagées com Bakhtin. In: Homer. 1993, Vol. 4 - P.152, * Nikolai Alexandrovitch Berdizey (1874-1948), um dos mais conhecidos {lésofos russos da primeira metade do século 20, Inicio suas reflexdes Atosoticas, procurando ligar 0 marxismo e o kantismo, ¢ mais tarde se ‘nteressou pelo cristianismo. Foi aivo nas sis atvidades no somente Aacadmicas, mas também poltcas expressadus normalmente na orpaniza- ipagdo-em periédicosflossficos religiosos. Deixou urna enor. los6fca literira, euja maior parte estétraduzida do russo para outros idiomas. Suas obras mais conhecidas fo: “A filosofia da desi- pvaldade” (1923); “O destino do homem (experiéncia da ética parado- al)” (1931); "O sentido da historia” (1936). Sua autobiografia (Paris, ppublicagio de 1949) impressiona pela profundidade das eflexSes sobre a natureza filoséfica do autoconhecimento humano, ou, baje driam, do seu eu proprio. No relatrio “A situagio espiritual do mundo contemporineo” para o Con _gressode Ideres da Federagto Mundial Cristi, em maio de 1931, Berdiaey ‘mostra devida integraidade ompnica do aristocraismo e do democratismo na cultura, © principio aristocritico deve assegurar a perfeita qualidade © 4 alimentagio do enriquecimento permanente da cultura, que tem, como sua misso, objetivo transpessoais a realizar. O principio demoerstica sig- nifiea a ampliagi0 do eirculo dos familirizados com a cultura, a entrada dde masias populares na cultura, Nem sempre na pitic os dois prine(pios ‘eso em ligagZo onginica. Mas sempre hi tendéncias para esta, person

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