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. 1 et ey CAPITULO A linguagem do Realismo, do Naturalismo e do Parnasianismo ' i ‘Trabalho de inverno (1883-4), do pintor realista George Clausen, Motivados pelas teorias cientfficas e filosdficas da época, os escritores realistas se empenharam em retratar 0 homem e a sociedade em conjunto. Nao bastava mostrar a face sonhadora e idealizada da vida, como haviam feito os romanticos; era preciso mostrar a face do cotidiano massacrante, do casamento por interesse, do amor adiiltero, da falsidade e do egotsmo, da impoténcia do ser humano comum diante dos poderosos. Na segunda metade do século XIX, a literatura europeia buscou novas formas de expressao, sintonizadas com as mudancas que ocorriam em diferentes setores: filoséfico, cientifico, politico, econdmico e cultural. A renovacao na literatura manifestou-se na forma de trés movimentos literarios distintos na Franca: o Realismo, o Naturalismo € 0 Parnasianismo. © Realismo teve inicio com a publicagao de Madame Bovary (1857), de Gustave Flaubert; © Naturalismo, com a publicagao de Thérése Raquin, de Emile Zola; e o Parnasianismo, com a publicacdo das antologias parnasianas intituladas Parnasse contemporain (a partir de 1866) Embora guardem diferencas formais e ideolégicas, essas trés tendéncias apresentam alguns aspectos comuns: © combate ao Romantismo, o resgate do objetivismo na literatura e 0 gosto pelas descricdes. De modo geral, pode-se dizer que 0 Naturalismo € uma espécie de Realismo cientifico, enquanto 0 Parnasianismo € um retorno da poesia ao estilo cléssico, abandonado pelos roranticos. o4n A linguagem da prosa realista A seguir, vocé lera um conto de Machado de Assis, o principal escritor realist brasileiro, por meio do qual sera feito 0 estudo da linguagem da prosa realista 48 Leitura Missa do galo ere | Nunca pude entender a conversagao que tive com uma senhora, hd muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos a missa do galo, preferi nao dormir; combinei que eu iria acordé-lo 4 meia-noite. ‘Acasa em que eu estava hospedado era do escrivao Meneses, que fora casado, em primeiras nipcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceigao, e a mae desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatorios. Vivia tranquilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros, poucas relagdes, alguns passeios. A familia era pequena, o escrivdo, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. As dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; as dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer a0 Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasides, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam A socapa; ele nao respondia, vestia-se, saia e s6 tornava na manha seguiinte, Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ago. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceigao padecera, a principio, com a existéncia da combor¢a; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito. Boa Conceicao! Chamavam-Ihe “a santa”, ¢ fazia jus ao titulo, to facilmente suportavaos esquecimentos do marido, Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes ldgrimas, nem grandes risos. No capitulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparéncias salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O proprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era 0 que chamamos uma pessoa simpatica Nao dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Nao sabia Odiaf, [OCC tS ser até que nao soubesse amar. Naquela noite de Natal foi 0 escrivao ao teatro, Era pelos anos Dumas paie Dumasfilho =, de 1861 ou 1862. Eu j4 devia estar em Mangaratiba, em férias; mas Alexandre Dumas, 0 pai, @ 0 autor fiquei até o Natal para ver a “missa do galo na Corte”. A familia de Os irés mosqueteiros, provavelmente recolheu-se & hora do costume; eu meti-me nasalada frente, vestido a mais famosa histéria de aventuras de € pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar capa e espada. Alexandre Dumas Filho ninguém, Tinha trés chaves a porta: uma estava com 0 escrivao, eu autor de A dama das camellias, obra que levaria a outra, a terceira ficava na casa. pe em discussio o tema da prostituigao — Mas, St. Nogueira, que faré vocé todo esse tempo? — _ @ que serviu de referéncia para a criagao perguntou a me de Conceigao. de Luciola, de José de Alencar. 3 5 2 3 — Leio, D. Indcia Tinha comigo um romance, Os Trés Mosqueteiros, velha traducao, creio, do Jornal do Comércio. Sentei-me a mesa que havia no centro da sala, e luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez. ao cavalo negro de D’Artagnan e fui-me as aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrério do que costumam fazer, quando sao de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns pasos no corredor cong de Os tes mosqueteiros, de Stephen que ia da sala de visitas a de jantar; levantei a cabeca; logo depois erek. vi assomar & porta da sala o vulto de Concei¢ao. 241 — Ainda nao foi? perguntou ela. — Nao fui; parece que ainda nao é meia-noite. — Que paciéncia. Concei¢ao entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupao branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visao romantica, nao disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei 0 livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza: — Nao! qual! Acordei por acordar. Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos nao eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam nao ter ainda pegado no sono. Essa observagao, porém, que valeria alguma coisa em outro espirito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez nao dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me ndo afligir ou aborrecer. Jé disse que ela era boa, muito boa. — Mas a hora ja hd de estar préxima, disse eu. — Que paciéncia a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Nao tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu. — Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo. — Que € que estava lendo? Nao diga, jd sei, é 0 romance dos Mosqueteiros. — Justamente: € muito bonito. — Gosta de romances? — Gosto. — Jé leu A Moreninha? — Do Dr. Macedo? Tenho l4 em Mangaratiba. — Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances ¢ que vocé tem lido? Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceigéo ouvia-me com a caheca reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as palpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a lingua pelos beigos, para umedecé-los. Quando acabei de falar, no me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeca, cruzar os dedos e sobre eles pousar 0 queixo, tendo 08 cotovelos nos bragos da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. “Talvez esteja aborrecida”, pensei eu. E logo alto: — D. Concei¢ao, creio que vao sendo horas, e eu. — Nao, nao, ainda é cedo. Vi agora mesmo 0 rel6gio; si0 onze e meia. Tem tempo. Vocé, perdendo a noite, é capaz de nao dormir de dia? — Ji tenho feito isso. — Eu, nao; perdendo uma noite, no outro dia estou que no posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha — Que velha o qué, D. Concei¢ao! Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranquilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para 0 outro lado da sala e deuvalguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido, Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressao singular. Magra embora, tinha nao sei que balango no andar, como quem the custa levar 0 corpo; essa feigdéo nunca me pareceu tao distinta, ‘ 242 ot Casamento e traigéo No Romantismo, as historias geralmente ter- mina em final feliz e em casamento. No Rea- lismo, elas quase sempre comegam com 0 ca samento, que, envolto por interesses @ contradi- (Ges, faciimente é seguido de adultéio. tema do aduttério foi tratado por escrito- res de diferentes épocas posteriores @ também JA foi abordado na misica, no cinema e no teat. No teatro brasileiro, ele se destaca nos dramas familiares de Nelson Rodrigues. No cinema, um clssico sobre 0 tema 6 A insustentével leveza do ser (1988), de Philip Kaufman, baseado na obra do escritor checo Milan Kundera. E, mais recen- ‘temente, 0 aduitério esta em filmes como Tralgao (1998), de Arthur Fontes e outros; Pequeno dicio- ‘nario amoroso (1999), de Sandra Wernack; Amor, exo @ traigdo (2004), de Jorge Fernando; Lady Chatterley (2006), de Pascale Ferran. ao Cena do filme Lady Chatterley. | como naquela noite. Parava algumas vezes, examina ————— | tum trecho de cortina ou consertando a posigio de algum O her6i problematico e a modernidade objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a Ea partir do Reliamio que comegata ter maor | mesa do permeio, Estreito era o cfrculo das suas ideias; | presenga na iteratura a figura do herbi problem tornou ao espanto de me ver esperar acordado; e repeti- | co. Diferentemente do herbi romanesco — aquele The 0 que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do | qotado de ousadia,integridade @ coeréncia em grau galo na Corte, e nao queria perdé-la. | muito maior que a média das pessoas —, 0 herdi — £ a mesma missa da roga; todas as missas se | problemético 6 0 ser humano na sua pequenez, Pparecem. ‘com fraquezas, manias e incertezas, em um mundo — Acredito; mas aqui ha de haver mais luxo e mais | no qual se sente sem lugar. Na modemidade, ¢ o gente também. Olhe, asemana santana Corteé mais bonita | tipo de herdi que passou a predominar na literatura, ‘que na toga. S. Jodo ndo digo, nem Santo Antonio... 1o cinema € no teatro. Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os Filmes como Desejo e reparacao (2007), de Joe cotovelos no marmore da mesa e metera 0 rosto entre | Wright, Medos privados em lugares publicos (2006), as maos espalmadas. Nao estando abotoadas as mangas, | de Alain Resnais, O cheiro do ralo (2007), de Heitor cairam naturalmente, e eu vi-lhe metade dos bragos, | Dhala, Meu nome ndo é Johnny (2008), de Mauro muito claros, e menos magros do que se poderiam | Lima, ¢ Tropa de elte (2007), de José Padiha, apre- supor. A vista nao era nova para mim, posto também | sentam herdis problemiaticos. nao fosse comum; naquele momento, porém, a impress4o Em Tropa de elite, Capito Nascimento, inte- que tive foi grande. As veias eram tao azuis que, apesar | grante do Bope, é uma espécie de herdi na luta con- da pouca claridade, podia conté-las do meu lugar. A | tra o crime e contra a corrupeao na propria policia, presenga de Conceigao espertara-me ainda mais que mas sente-se em confito ¢ infeliz com a profisséo. © livro. Continuei a dizer 0 que pensava das festas da roca e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo & boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, | variando deles ou tornando aos primeiros e rindo para | fazé-la sorrir e ver-Ihe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela nao eram bem negros, mas escuros; 0 nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, reprimia-me: — Mais baixo! mamae pode acordar. E nao saia daquela posi¢ao, que me enchia de gosto, tao perto ficavam as nossas caras. Realmente, nao era preciso falar alto para ser ouvido; cochichavamos os dois, e eu mais que ela, porque falava mais; ela, as vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta a mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, ¢ pude ver, a furto, 0 bico das chinelas; mas foi sé o tempo que ela gastou em sentar-se, 0 roupao era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Concei¢ao disse baixinho: : i g i g , — Mame esta longe, mas tem um sono leve; se acordasse agora, coitada, tao cedo nao pegava no sono. — Eu também sou assim — 0 qué? — perguntou ela, inclinando 0 corpo para ouvir melhor. ui sentar-me na cadeira que ficava av lado do canapé e repeti-lhe a palavra, Riu-se da coincidéncia; também ela tinha o sono leve; éramos trés sonos leves. — HA ocasides em que sou como mame; acordando custa-me dormir outra vez, rolo na cama a toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada. — Foi o que Ihe aconteceu hoje. — Nao, nao, atalhou ela, Nao entendi a negativa; ela pode ser que também nao a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma histéria de sonhos, e afirmou-me que s6 tivera um pesadelo em crianca. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatow-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pelas horas nem pela missa. Quando eu acabava uma narragao ou uma explicacao, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me: 243 — Mais baixo, mais baix« Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, ¢ lembra-me que os tornou a fechar, nao sei se apressada ou vagarosamente. Hé impressGes dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas ¢ que, em certa ocasiao ela, que era apenas simpétiva, ficou linda, ficou lindissima. Estava de pé, os bragos cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; nao consentiu, pds uma das maos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede. — Estes quadros estao ficando velhos. J4 pedi a Chiquinho para comprar outros. Chiquinho era 0 marido. Os quadros falavam do principal negécio deste homem. Um representava “Cleépatra”; nao me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo nao me pareciam feios. — Sao bonitos, disse eu. — Bonitos séo; mas esto manchados. E depois, francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas s4o mais préprias para sala de rapaz ou de barbeiro. — De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro. — Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de mocas e namoros, e naturalmente 0 dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de familia é que nao acho préprio. E 0 que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja 0 que for, nao gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Concei¢ao, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, nao se pode por na parede, nem eu quero. Estd no meu oratério. A ideia do oratério trouxe-me a da missa, lembrou- me que podia ser tarde e quis dizé-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com docura, com graga, com tal moleza que trazia preguiga 4 minha alma e fazia esquecer a missa 0 Realismo e os realismos de todos os tempos: Qs criticos Antonio Candido e José Aderaldo Castelo explicam por que 0 uso da palavra Realismo para designar 0 movimento lterdrio da segunda meta- de do século XIX 6 inadequado: A designagdo de Realismo, dada a esse e a igreja. Falava das suas devogGes de menina e moa. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeios, reminiscéncias de Paquet, tudo de mistura, quase sem interrup¢4o. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negécios da casa, das canseiras de familia que Ihe diziam ser muitas, antes de casar, mas nado eram nada. Nao me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos. JA agora ndo trocava de lugar, como a principio, e quase nao safra da mesma atitude. Nao tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar a toa para as paredes. — Precisamos mudar o papel da sala, disse dai a pouco, como se falasse consigo. Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético ou o que quer que era que me tolhia a lingua e os sentidos. Queria e ndo queria acabar a conversagao; fazia esforgo para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a ideia de parecer que era aborrecimento, quando nao era, levava-me os olhos outra vez para Concei¢do. A conversa ia morrendo, Na rua, 0 siléncio era completo. Chegamos a ficar por algum tempo, — nao posso dizer quanto — inteiramente calados. 0 rumor tinico e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, DAA movimento, inadequada, pois 0 realismo ‘ocorre em todos os tempos como um dos polos da criagao literdria, sendo a tendéncia para reproduzir nas obras 0s tragos observados no ‘mundo real — seja nas coisas, seja nas pessoas e nos sentimentos. Outro polo é a fantasia, isto 6, a tendéncia para inventar um mundo novo, diferente e muitas vezes oposto as leis do mundo, Os autores e as modas literérias oscilam incessantemente entre ambos, ¢ é da sua combinacdo mais ou menos variada que se faz.a literatura. (Presenga da literatura brasileira. 7. ed. Kio de Janei- 0/80 Paulo: Difel, 1978. v.2, p.94) pinacotece do Estado de Sao Paulo i Descanso do modelo, de Almeida Jinior. que me acordou daquela espécie de sonoléncia; quis falar dele, mas nao achei oi eee ey estar devaneando, Subitamente, ouvi uma pancada na janela do lado de fora e uma voz que | “Missa do galo! missa do galo! at — Aj est o companheiro, disse ela, levantando-se~Tem graca; vocé 6 que ficou de ir acordé-lo, ele € que vem acordar vocé. Va, que hao de ser horas; adeus. ELER SRA SOY — Jé serdo horas? perguntei. ste — Naturalmente. — Missa do galo! repetiram de fora, batendo. — Vi, v4, nao se faga esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanha aS E com 0 mesmo balanco do corpo, Concei¢ao enfiou pelo corredor adentro, pisando mansinho. Saf a rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa a figura de Concei¢ao interp6s- se mais de uma vez entre mim e 0 padre; fique isto a conta dos meus dezessete anos. Na manha seguinte, 20 longo, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja, sem excitar a curiosidade de Conceigao. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversagao da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em marco, o escrivao tinha morrido de apoplexia. Conceigdo morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais, tarde que casara com o escrevente juramentado do marido. (Machado de Assis — Contos. 10. ed.580 Paulo: Aca, 1983. p. 81-5) alcova:o quarto de domi, canapé: espe de sof com at ‘apoplexia:derame cerebral encestoe bragos. ébrio: bibsdo, ” arredor: fasta. comborga: erante espaldar: 25 costs da cada 4 socapa: dstargadamont apontada desde a me Ultima geracao romantic a literatura volta anos 1860-70, revela a ja para 0 seu tempo, 0 ores RNn 6 —<——$$—$———————— que caracterizaria 0 Realismo alguns anos depois. S80 exemplos dessas tendéncias a objetividade nas descricdes em certos romances, a denuncia Luzia-Homem no cinema de problemas sociais, como em Senhora, Luciola e O Cabeleira, e 0 senti- Baseado na obra de Domingos mento libertério e reformador, como na poesia social de Fagundes Varela Ofimpio, o fime Luzia-Homem (1987), e Castro Alves. dirigido por Fabio Barreto, conta a his- Essas obras, em parte jd distanciadas de algumas posturas iniciais do teria de Luzia (Ciducla Ohana), uma Romantismo, como o exotismo, a fuga da realidade, 0 “mal do século" e | moga com mados e valores mascul- Outras, representam o inicio de um processo que culminaria numa forma nos que fora criada por um vaqueio, diferente de sentir e ver a realidade, menos idealizada, mais verdadeira e | depois de, em crianca, ter visto sua critica: a perspectiva realista. familia ser assassinada por jagungos. Entre nossos escritores realistas, destacam-se Machado de Assis | Sua dureza e sua sede de vinganga, e Raul Pompeia. Apesar disso, a obra de ambos os escritores apresenta porém, sao abaladas pela descoberta uma singularidade que transcende a classificacdo muitas vezes redutora_ 4 amor das estéticas literdrias. Em paralelo a inclinacao realista, alguns autores brasileiros, influen- ciados pela experiéncia de Zola, cultivaram 0 romance de tese, isto &, 0 romance naturalista, que procurava provar uma teoria cientifica a respeito do comportamento humano. Como se a ficcdo e suas personagens fos- sem um laboratério de experiéncias cientificas, os escritores naturalistas utiizavam conhecimentos da Biologia, da Psicologia e da Sociologia para explicar casos patoldgicos individuais, perdendo, muitas vezes, 0 todo da tealidade brasileira. ‘Apesar de o Naturalismo, em razao de seu determinismo, ser, mui Cena do filme Luzia-Homem. tas vezes, estreito e reducionista para lidar com a complexidade dos com- portamentos humanos, foi ele que, pela primeira vez, pos em primeiro plano o pobre, 0 exciuida, o negro € © mulato discriminados, 0 individuo vitimado por doencas fisicas e mentais, além de retomar antigos temas, como 0 celibato, sob a ética cientifica da época. No Brasil, 0 primeiro romance naturalista publicado foi O mulato (1881), de Alutsio Azevedo. Além desse escritor, também cultivaram a prosa naturalista: Rodolfo Tedfilo (A fome, 1881); Inglés de Sousa (O missiondrio, 1882); Julio Ribeiro (A carne, 1888); Adolfo Caminha (A normalista, 1892, e O bom crioulo, 1895). ‘Avertente regionalista, langada pelos roménticos, é retomads pelas obras Luzia-Homem (1903), de Domin- g0s Ollmpio, e Dona Guidinha do Poco (1952), de Manuel de Olivera Paiva, obras que aprofundam a andlise da relacdo do homem com 0 meio natural e social do sertao. Machado de Assis: 0 grande salto na ficcao brasileira Machado de Assis (1839-1908) nasceu no Rio de Janeiro. Mestico, de origem humilde — filho de um mulato catioca, pintor de paredes, e de uma imigrante acoriana —, apesar de ter frequentado apenas a escola primaria e ter sido obrigado a trabalhar desde a infancia, alcancou alta posi¢ao como funciondrio publico e gozou de conside- aco social numa época em que o Brasil ainda era uma monarquia escravocrata. 45 Foi tipdgrafo e revisor em editora. Admitido 4 redacao do Correio Mercantil, comecou a publicar seus escritos em varios jornais e revistas. Na década de 1860, escreveu todas as suas comédias e os versos ainda roménticos de Crisdlidas. 2 Em 1869, casou-se com uma senhora portuguesa de boa cultura, Carolina \ Xavier de Novais, sua companheira até a morte e que Ihe iria inspirar a persona- gem Dona Carmo, de Memorial de Aires. Machado de Assis foi jornalista, critico literario, critico teatral, teatrdlogo, poe- ta, cronista, contista e romancista. De sua extensa e variada obra sobressai o Machado de Assis contista e ro- mancista, preocupado nao s6 com a expressdo e com a técnica de composicao, o mas também com a articulacdo dos temas, com a andlise do cardter e do com- 5 portamento humano. Caricatura de Machado de Assis. 301) Podemos identificar em sua produc dois grupos de O Rio de Janeiro de Machado de Assis obras, porém, sem prejulzo de O cenério das obras de Machado de Assis 6 0 Rio de Janeiro do final do século. sua perfeita unidade. Ao primei- 0x, entao com 138 mi habitantes. I) Bulb petienicem Messe Hoje, com mais de 6 mihées de habitantes, a cidade ainda conserva resquicios fo, Helena, A mao e a lua, : do cenério imortalizado nas obras do esoritor. laid Garcia, obras que apresen- Machado morou e morreu na rua Cosme Velho, no bairro de mesmo nome, zona tam caracteristicas mais gerais 5.4 da cidade, onde se toma o trem para ir ao Cristo Redentor. A rua do Ouvidor, que do romance do século XIX do aparece em varios de seus contos, 8 ponto de encontro de intelectuais e situa-se no que propriamente da heranca contro, Arua de Matacavalos, onde nasce a paixao de Bentinho e Capitu, fica no bairro romantica da Gloria. Memérias pdstumas de Conheca mais sobre a geografia do Rio de Janeiro mostrado nas obras de Ma- Brds Cubas marca 0 inicio de —_chado lendo Rio de Machado de Assis — Imagens machadianas do Rio de Janeiro, de uma segunda etapa da produ- Mario GasaSanta (Casa da Palavra), co de Machado de Assis. A partir dessa obra ele se revela um génio na anilise psicolégica de personagens, tomando-se ‘© mais extraordinario contista da lingua portuguesa e um dos raros romancistas brasileitos de interesse universal, conforme atestam as inumeras traducdes das suas obras mais represen- tativas. Nesse grupo incluem-se 0s romances Quincas Borba, Dom Casmurro, Esati e Jacé e Memorial de Aires. Machado de Assis escre- Fonte: Adaptado de Folha de S Paulo, 20/12/2007. veu por volta de duzentos con- tos. Como ocoreu com 0 romance, 0 conto machadiano estreou em pleno Romantismo (Contos fluminenses, 1869) e sofreu significativa mudanca de perspectiva e de linguagem a partir da coletanea Papeéis avulsos (1882), obra que representa para o género a mesma revolucao que Memdrias péstumas de Brés Cubas significou para 0 romance. Entre seus intimeros contos, destacam-se "O alienista’, “Missa do galo”, “A cartomante”, ‘Noite de almi- rante’, “Teoria do medalhao’, “O espelho’, “Cantiga de esponsais’, “Serenissima repuiblica’, “Verba testamentaria’. Perspicaz e quase ferino na andlise da alma humana, Machado de Assis criou uma obra extremamente inovadora, que permanece viva e atual, gerando polémicas e conquistando a estima de sucessivas geracées de leitores. Memérias péstumas de Bras Cubas: a ruptura do romance Publicado em folhetim em 1880, na Revista Brasileira, e editado em livro no ano seguinte, Memérias pés- tumas de Brds Cubas € a autobiografia da personagem Bras Cubas, que, depois de morto, resolve escrever suas memérias. Intitulando-se “defunto autor’, Brés Cubas propte-se a fazer a retrospectiva de sua vida, o que realiza com o distanciamento crtico e irdnico de quem jé n&o se prende as convencées sociais. Assim, entre os fatos narrados, destacam-se: os amores juvenis de Bras Cubas por Marcela, uma mulher vulgar a quem ele amou e por quem foi amado durante “quinze meses e onze contos de réis”, suas aspiracdes & vida literaria e politica; sua amizade com o fildsofo Quincas Borba; 0 caso com Virgllia — de quem quase se tornou marido, num casamento arranjado, e de quem mais tarde se tornaria amante; o casamento de Virgilia com seu rival Lobo Neves. Os textos a seguir pertencem ao romance Memorias péstumas de Brds Cubas, e mostram o reencontro de Bras Cubas e Virgilia, ocorrido quando ela chega de Séo Paulo com Lobo Neves, seu marido. 302

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