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FAMILIA ESSENCIA E MULTIDISCIPLINARIDADE Coordenacao HELENA REBELO PINTO JOSE MIGUEL SARDICA Universidade Catdlica Editora, Lisboa 2016 Titulo Coordenadores Colegio Revisio Editorial Capa Concegio grafica Depésito Legal Data Tiragem ISBN DIGA NAO. ACOPIA Familia Esséncia e Multidisciplinaridade Helena Rebelo Pinto José Miguel Sardica Varia © Universidade Catélica Editora Anténio Bris Ana Luisa Bolsa | 4 ELEMENTOS Sersilito-Empresa Grifica, Lda, 414907/16 outubro 2016 500 exemplares, 9789725405239 Universidade Catélica Editora Palma de Cima 1649-023 Lisboa Tal. (351) 217 214 020 | Fax. (351) 217 214 029 uce@uceditora.ucp.pt | www.uceditora.uep.pt FAMILIA Familia :esséncia e mulidisciplinariedade / coord. [de] Helena Rebelo Pinto e José Miguel Sardica, ~ Lisboa : Universidade Catélica Editora, 2016. = 400 p.; 24 om. — (Varia). ISBN 9789725405239 I~ PINTO, Helena Rebelo, coord. Il - SARDICA, José Miguel, coord. Ill = Col. CDU 316.356.2 Capitulo 5 Questées atuais de Direito da Familia Rita Lobo Xavier Familia ou familias? A pergunta pode parecer anédina ou superficial, mas a resposta marca hoje uma clara distingio entre aqueles que se referem 3 Familia como uma instituigio natural, anterior a qualquer organizagio politica ou legal, € os que apenas aceitam falar de uma diversidade plural de relacionamentos, socialmente construfdos e de relevancia equivalente. De igual forma, também a propria designagio de um ramo do Direito como Direito da Familia é muitas vezes substituida por outras, como Direito de Familia ou Direito das familias. A opgio por mencionar a Familia est4 subjacente uma compreensio desta realidade humana: a Familia nio € meramente o produto de uma cultura, © resultado de uma evolugio, um modo de vida comunitirio ligado a uma certa organizagio social num determinado momento histérico. A Familia é “a estrutura institucional priméria de identificagio do ser humano”, estrutura que exprime as suas exigéncias € necessidades antropol6gicas fundamentais e que é “intrinsecamente juridica” (D'Agostino, 2003). Juridicidade intrinseca da Familia Para compreender a juridicidade constitutiva ou intrinseca da Familia deve comegar por aceitar-se a dimensio normativa da propria natureza humana, © ser humano tem uma natureza propria, que deve respeitar porque comporta uma dimensio normativa (de deverser), no sentido de incluir um principio de orientacio ao bem do ser humano, & sua realiza¢3o como pessoa. Um exemplo ‘lustra melhor esta afirmacao. Poderei afirmar que corresponde 4 natureza da pessoa humana que os filhos pequenos sejam cuidados pelos seus progenitores; assim, também poderia afirmar que € natural que os pais cuidem dos seus filhos pequenos. Mas 0 que pretendo significar com natural? Referir-me-ei a um fendémeno esponténeo? Ou a um fendmeno estatisticamente comprovado € comprovavel, isto é, que ha uma grande percentagem de progenitores que agem assim? Nio é neste sentido que emprego a palavra natural. Na verdade, s6 a compreensio da dimensio normativa da natureza humana, como principio de orientagdo ao bem do ser humano, me permite fundar esta afirmagio: € bom que os pais cuidem dos seus filhos pequenos, porque esse cuidado & proprio da natureza humana, é um elemento constitutivo da maternidade ¢ da paternidade: ou seja, faz parte da natureza de ser pai e de ser mie cuidar do filho pequeno, faz parte do que deve ser um pai ¢ uma mie. Esta compreensio permite-me reconhecer a juridicidade constitutiva ou intrinseca da relacio familiar de maternidade e de paternidade: tendo em vista o bem da pessoa humana e da sociedade, deve ser assim. Deste ponto de vista, a validade da lei positiva que regula a relagio paterno/materno-filial procede do reconheci- mento deste deversser, 0 que acontece, no caso portugués, com as normas dos artigos 36.°, n.° 5, da Constituicao da Repitblica Portuguesa (CRP) (“Os pais tém 0 direito e o dever de educagio e manutengio dos filhos"), 1878:°, n.° 1, do Cédigo Civil (CC) (“Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela seguranga e satide destes, prover a0 seu sustento, dirigir a sua educagio, repre- senti-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”). Seré precisamente porque este dever-ser decorre da propria normatividade da natureza humana que a generalidade dos pais ¢ das mies em Portugal o assumem, a maior parte das vezes ignorando que este também Ihes é imposto pelas leis da Reptiblica Portuguesa. Do exposto decorre também a compreensio da dimensio intrinseca de jus- tiga de todas as relagdes familiares. Justica, no sentido do pensamento presente na cultura ocidental (apreendido pelo Direito Romano clissico, e, fiundamen- talmente, de base aristotélico-tomista): no sentido de dar a outrem 0 que Ihe é devido (suum cuique tribuere, na célebre formulagio atribuida a Ulpiano). Neste sentido, para além de supor alteridade e reciprocidade, no contexto familiar, aquilo que € devido é a propria pessoa e é devido porque se € pessoa: 08 pais devem-se aos filhos pequenos, 0 marido deve-se 4 mulher € esta a0 marido, os filhos devem-se aos pais idosos. A abordagem do problema da regulagao legal da Familia nio pode deixar de ter presente esta dimensio (normativa) de Justiga: de justica comutativa, desde logo, mas também de justiga geral ¢ de justiga distributiva, uma vez que tem em vista o bem do outro e o bem da comunidade (Xavier, 2013). Pressupostos da abordagem juridica da Familia A Familia realiza duas fumgdes primérias: a fiangio de solidariedade entre geracdes, em geral, € em relagio aos filhos, em especial; ¢ a fungio de solida- riedade entre sexos, particularmente no que respeita ao seu compromisso e empenhamento em ordem a realizagio da primeira fungio (D'Agostino, 2003; Donati, 2003; Swennen, 2013). A regulacdo destas duas fungdes pode ser dei- xada a cargo dos préprios individuos, das familias, das comunidades, ou daquilo a que hoje se chama sociedade civil. A disciplina das relagdes familiares por parte dos poderes piiblicos é um fenémeno muito antigo, mas, como legalizagiio propriamente dita, desenvolveu-se sobretudo a partir do século xviii, Se quiser- mos referir-nos 20 Direito da Familia como regulagio de origem estadual das fungdes reconhecidas 4 Familia e como ramo do Direito Civil, estaremos entio a falar de algo muito mais recente. Os problemas juridicos da Familia emergem da propria natureza das relacdes humanas, independentemente do local onde se desenvolvem ou da nacionali- dade dos seus membros. Todavia, as leis que regulam a constitui¢ao, contetido extingdo das relagdes familiares podem ser muito distintas, traduzindo diferengas sociais, culturais e do proprio pensamento juridico pressuposto por tal regulagio. A apreciacio da validade da regulagio legal das relacdes familiares, em cada momento histérico ¢ em cada lugar, deve partir da realidade antropolégica que Ihes é subjacente — a diferenciagdo e a complementaridade da identidade sexual do homem ¢ da mulher como pressuposto da renovacio das geragdes — ¢ no pode deixar de aceitar que existe uma regulagio intrinseca da Familia que é, em si mesma, juridica (D’Agostino, 2003; Xavier, 2012). Novos paradigmas da regulagao legal das relagdes familiares © momento regulativo encara hoje dilemas de enorme importincia e dificil discernimento: 0 reconhecimento da dimensio comunitaria das relagdes familiares ¢ 0 respeito pelos direitos individuais; a referéncia a um modelo de comunidade € 0 respeito pelo pluralismo; 0 enquadramento institucional e a autonomia privada; 0 reconhecimento legal de situagdes de facto e 0 plano da validade juridica na perspetiva da justiga (Xavier, 2003). Sio identificaveis algumas tendéncias contraditérias ¢ pontos de tensio relativamente a intervencdo da lei nas relagées familiares. Em primeiro lugar, vetifica-se uma tensio entre a invocacio dos direitos subjetivos ¢ o interesse coletivo decorrente do reconhecimento da Familia e das suas fungdes sociais imprescindiveis, A consideragio do ambito pessoal ¢ intimo das relagdes familia~ res ¢ da sua natureza privada suporta a defesa da deslegalizagio, da privatizagao e da contratualizagio das mesmas. No entanto, a aten¢io as relevantes fungdes sociais da Familia apela 4 intervengio do pablico no Ambito do privado ¢ 3 consequente regulacio legal (Xavier, 2014a). No plano politico, 0 respeito pelo pluralismo comegou por justificar a neutralidade da intervengio estadual e acabou por dar origem a defesa do mul- 106 | Familia: Esséncia e Multi tifamilismo ou poliformismo familiar. As questdes da familia passaram a ser elementos de luta politica ¢ ideologica, muitas vezes tingida de preconceitos de sinal contrério e desejosa de promover um pensamento tnico. Reconhece-se igualmente uma progressiva consciencializagio de que a abordagem das questdes familiares por instrumentos técnico-juridicos € for- cosamente muito limitada. Os atuais estilos de vida e de convivéncia afetiva € sexual estio associados a formas muito diversificadas de viver as relagdes de vida em comum, apelando para a liberdade, a privatizagao crescente ¢ a deslegaliza~ cio. O afeto € hoje apontado como o novo paradigma no Direito da Familia, e, inclusivamente, como um dever juridico. Contudo, a redugio das relagdes familiares aos afetos pode conflituar com a responsabilizagio pelo outro ¢ pelos compromissos assumidos, isto é, com a prote¢io dos vinculos juridicos. E, para~ doxalmente, os que pretenderam viver as suas relagdes afetivas longe do Direito reclamam ulteriormente cobertura legal para as'situagdes de facto, em atengio as expectativas supostamente criadas. Por outro lado, as op¢des individuais quanto aos estilos de vida e de convivéncia afetiva e sexual nao deixam de ter impacto no plano social e no plano do bem comum, uma vez que afetam o faturo da sociedade, estando igualmente implicados aspetos de justiga e de solidariedade (Xavier, 2014b). Noutras longitudes, como no Brasil, por exemplo, a tutela dos afetos tem levado a situagdes extremas de legalizagio das convivéncias afetivas ¢ homoafetivas ¢, mais recentemente, tem sustentado inclusivamente tentati- vas de legalizagdo de unides poligimicas, denominadas como pluriafetivas ou poliamorosas (Silva, 2013). Surgiram também projetos de reconhecimento legal da ideologia do multifamilismo, nomeadamente quanto aos relacionamentos paralelos — em simultineo com um casamento ou uma unio de facto — e aos direitos ¢ deveres das familias pluriparentais e das familias recompostas. No que diz respeito protegio das criangas, a opgio é clara ¢ j4 assumida pela comunidade e pela consciéncia juridicas: as criangas devem estar no centro do Direito da Familia, Existem algumas tentativas de autonomizacio de um ramo do Direito com a designago de Direito das Criangas, assente no pres- suposto de que o Direito da Familia representa apenas a defesa dos interesses dos adultos. Esta visio parece um pouco distorcida, uma vez que deixa na sombra o direito de cada crianga a vida familiar ¢ & integragio na familia de origem, focando-se nos casos em que existem abusos violéncias. O processo de autonomizagio do Direito das Criangas é indissociavel do ambiente indivi- dualista que favorece 0 obscurecimento da dimensio comunitiria presente na designagio Familia. A esta luz pode compreender-se a preferéncia de alguns por outras expresses que apelam a representacio coletiva do individuo, como é 0 caso da referéncia 3 Crianga, i Mulher ou ao Idoso. Mais do que de direitos das criangas, deverfamos falar dos direitos dos filhos, abordagem que, sem deixar de afirmar os seus direitos pessoais, reconhece igualmente que o pai ¢ a mie sio os primeiros garantes naturais desses direitos, pelo que as suas responsabilidades no devem ser transferidas para as instincias publicas, confirmando a integragdo da crianga na familia e 0 direito 4 sua identidade pessoal e ao conhecimento das origens (Xavier, 2014a). A atencio especial dispensada aos direitos das criangas est4 também asso- ciada ao fendmeno da idealizagio da crianga e da idealizago das figuras do pai e da mie, que, por vezes, poderdo ajudar a explicar o némero elevado de crian- as a cargo das entidades pablicas. A abordagem das criangas apenas no plano dos direitos leva muitas vezes a0 esquecimento de que o seu desenvolvimento e autonomia progressivos pressupdem a assuncio de deveres para com os outros membros da sociedade. No entanto, frequentemente, 0s juizos sobre a atuagdo dos progenitores sio demasiado severos, rigidos, inflexiveis e desligados da reali- dade do quotidiano da vida familiar. E preciso ter presente que ser pai ¢ ser mae requer uma aprendizagem e pressupde riscos ¢ falhas, pelo que os respetivos comportamentos devem ser apreciados de forma global e muito humana A crianga idealizada é também, frequentemente, a crianca programada, sele- cionada, ¢ mesmo a crianga-projeto, o que, na realidade, manifesta a verdadeira centralidade dos interesses dos adultos. A este propésito, lembro o principio da beneficéncia procriativa, que foi proclamado por Salvulescu no contexto da selecio pré-implantatéria de embrides: os pais devem escolher a melhor crianga para que venha a ter a melhor vida possivel, sendo certo que esta selegio ser realizada segundo a perspetiva dos adultos ¢ implicard a eliminagio dos que nao so escolhidos (Savulescu & Kahane, 2009). Os direitos humanos e o Direito da Familia A abordagem das relagdes familiares do ponto de vista dos direitos huma- nos tem grandes virtualidades, nomeadamente a de sublinhar as obrigagSes que os Estados tém para com as criangas ¢ os adultos vulneraveis ¢ a de enfatizar as obrigacdes que os membros da familia tém uns para com os outros. No entanto, para além de deixar na sombra alguns aspetos importantes da realidade humana subjacente, também nio resolve as dificuldades inerentes 4 aplicagio da metodologia dos direitos humanos no contexto desta comunidade basica, concretamente no que se refere 4 compatibilizacéo entre os direitos individuais dos seus membros (Choudrhry & Herring, 2010). A consideracio dos direitos individuais ¢ a igualdade de tratamento entre o homem ¢ a mulher foi recentemente abordada pelo Tribunal Constitucional, 10a | Familia: Esséncia e Multiaisciplinaridade no contexto da disctiminagio em fangdo do sexo, a propésito do direito 4 autodeterminagao parental e da diferenca de regimes quanto ao reconhecimento da paternidade e da maternidade contra a vontade dé progenitor (cf. 0 Acérdio n® 346/2015, de 23 de junho, processo n.° 85/15, 2.* Secedo; relator: Con- selheiro Joio Cura Mariano; fonte: URL: htep://www.tribunalconstitucional pt/tc//te/acordaos/20150346.html), O objeto do recurso de fiscalizagio da constitucionalidade restringia-se 4 questo da constitucionalidade das agdes de reconhecimento judicial da paternidade, previstas nos artigos 1865.°, n.° 5, € 1869.° do CC, na interpretagio de que é possivel proceder ao reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso progenitor. A argumentagio do recorrente fundava-se na alegagio de que 0 homem é discriminado relativamente 4 mulher porque esta “é livre de nao ter um filho gue o homem quer, como também ¢ livre de © ter quando 0 homem nio o quer”. Na verdade, nfio é criminalmente punida a interrupgdo voluntiria da gravidez decidida pela mulher até 4 décima semana de gesta¢io, nos termos do art? 142.8, n° 1, do Codigo Penal, e a vontade do homem nunca é tutelada, quer este pretenda que o filho nasa ou no. No entanto, apés 0 nascimento da crianga, é possivel obter-se o reconhecimento da paternidade contra a vontade do homem, Nesta ordem de ideias, as normas do CC aplicaveis ao estabeleci- mento nio voluntirio da paternidade, quando forem interpretadas no sentido de que é possivel proceder a averiguacio oficiosa e/ou reconhecimento judicial da paternidade contra a vontade do pretenso pai, violam o n,° 2 do artigo 13.° da CRP, que proibe a discriminacio em funcio do sexo, devendo como tal ser declarada a respetiva inconstitucionalidade. © Tribunal Constitucional salientou que o direito a0 conhecimento da paternidade biolégica, assim como o direito ao estabelecimento do respetivo vinculo juridico, cabe no ambito de protegio quer do direito fundamental & identidade pessoal (artigo 26.°, n.° 1, da CRP) quer do direito fundamental de constituir familia (artigo 36.°, n.° 1, da CRP). Parece assim poder concluir-se que o direito do filho ou filha ao estabelecimento dos vinculos juridicos da paternidade ¢ da maternidade, em correspondéncia com a verdade biolégica, & incompativel com o reconhecimento de autodeterminagio parental neste dominio. Também resulta do Acérdio a necessidade de protegio ¢ de preser~ vacio da potencialidade de vida familiar para a crianga em causa. No enten- dimento do Tribunal Constitucional, “nio faz qualquer sentido que, numa pretensa logica de compensagdo, aquele a quem nio se assegurou a participagio naquela decisio, fique liberto do dever de assumir a paternidade do filho que, entretanto, nasceu, sob invocago do principio da igualdade. Tal solugo nio 6 nio é exigida pelo principio da igualdade, o qual tem como pressuposto a qualificagio das situagées em comparacio como iguais, como seria ela propria geradora de desigualdade ¢ redundaria num sacrificio injustificado do direito fundamental de uma pessoa jé nascida ver estabelecido 0 vinculo juridico da paternidade”. A importincia de determinar o tertium comparationis na revérica contras- tante, como operagio subjacente ao juizo sobre a realizagio da igualdade, resulta da declaracio de voto do Conselheiro Pedro Machete, que votou no sentido da decisio por considerar que no existe uma discriminagio do homem em fangio do sexo. Na questio que ocupava o Tribunal, a razio do tratamento diferenciado quanto a0 estabelecimento da filiacio “é © direito a identidade pessoal do filho ou filha ¢ 0 seu direito a constituir familia”, ndo os direitos dos progenitores (cf. A declaragio de voto do Conselheiro Pedro Machete publicada com a decisio do Acérdao do Tribunal Constitucional em URL: http://www. tribunalconstitucional.pt/tc//te/acordaos/20150346.html) O discurso da igualdade de direitos das pessoas com orientagio homossexual e 0 seu impacto na lei portuguesa No Ambito da regulagao legal das relagdes familiares, a consideragio dos direitos humanos, se impulsionou, por um lado, 0 reforgo da autonomia privada, a deslegalizagio © a contratualizagio, conduziu, por outro lado, a imposicdes de status familiar e de igualdade no direito de acesso a0 mesmo. Isto é parti- cularmente nitido quando se considera a pressio exercida para a alteracid. das leis que regulam as relages familiares, como efeito da reivindicago de direitos de acesso ao casamento e A parentalidade por parte dos grupos defensores dos direitos das pessoas com orientagio homosexual (Xavier, 201 4a) Nas sociedades ocidentais contemporaneas, o dever de respeitar o direito 3 autodeterminagio no plano da sexualidade e a liberdade de escolha no Ambito dos comportamentos sexuais ¢ formas de vida, de acordo com as preferéncias sexuais de cada um, é hoje consensual, sendo proibidas as discriminagdes com base nas preferéncias sexuais. A defesa da igualdade dos direitos das pessoas com orientagio homossexual no plano individual foi transposta para o plano das relagdes familiares, conduzindo a reivindicagio do direito a constituir relagdes familiares de vida em comum, num primeiro momento, ¢, ulteriormente, do direito de constituir relagdes de filiagio correspondentes as opgdes individuais no campo da sexualidade, designadamente pela via do acesso & adogio conjunta € a proctiagio medicamente assistida, A questio reside em saber se 0 direito de escolha relativamente aos comportamentos homossexuais implica o direito a que as formas de vida correspondentes a estes comportamentos sejam reco- Muttidiscipinaridade nhecidas como familiares; e se a tutela dos direitos das criangas envolvidas sera compativel com o direito 4 autodeterminagao dos adultos. Na verdade, como se vit, a instituigdo juridica da Familia refere-se 4 realidade antropolégica sub- jacente, enquadrando as relagdes de comunhio entre um homem e uma mulher € 08 filhos por eles gerados, relacdes primordiais que identificam cada individuo ¢ de que dependem todas as outras. © principio da igualdade e a proibigio da discriminagio com base na orientagio sexual foram invocados para forcar alteragdes na regulagio legal das relagdes familiares com vista 8 sua adequagio 4 realidade destas pessoas, jul- gada necessirias para eliminar discriminagées. Na ordem juridica portuguesa, a Lei n.° 7/ 2001, de 11 de maio (que adota medidas de prote¢o das unides de facto), reconheceu relevancia juridica equivalente as unides de facto entre pessoas de sexo diferente e do mesmo sexo, sobretudo a partir das alteragdes introduzidas pela Lei n.° 23/2010, de 30 de agosto (alteragio 4 Lei das Unides de Facto); e a Lei n.° 9/2010, de 31 de maio, veio permitir o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, prevendo expressamente que tal permissio no implica “a admissibilidade legal da adogdo, em qualquer das suas modalidades, por pessoas casadas com cénjuge do mesmo sexo” (artigo 2.°, n.° 1). A consagracio legal da irrelevancia da diferenciagio sexual para efeitos da constituig¢io da relagio familiar conjugal constituiu uma rutura com o enquadramento juridico-positivo do casamento civil, que deixou de incluir um dos elementos essenciais da instituigio (Patto & Almada, 2010; Xavier, 2012). O essencial no instituto do cisamento, e 0 que The da valor como tal, no é a circunsténcia de os dois contraentes terem a finalidade de viverem em comum. B precisamente o facto de essa vida em comum, que os contraentes querem e a que se obrigam, ter o potencial particular de poder constituir a célula bisica da sociedade, isto é, de constituir a unidade estruturante ¢ funcional da sociedade. E s6 0 6, em abstrato, pela possibilidade virtual de geracio ¢ socializagio dos membros da sociedade e do seu enquadramento intergeracional. O enquadra- mento geral € abstrato da comunhio de vida entre pessoas do mesmo sexo até pode ser importante na perspetiva de possibilitar © direito ao desenvolvimento da personalidade dos individuos, mas é totalmente inatil do ponto de vista da estruturagio ¢ funcionamento da sociedade. Toda a instituigdo do casamento foi afetada pela prépria lei, uma vez que deixou de poder ser reconhecida e vivida com todas as suas caracteristicas, iniciando-se 0 processo da sua erosio na cons- ciéncia juridica geral, o que seri nocivo para toda a sociedade (Xavier, 2012). No que diz respeito & relacio de filiacio, ¢ importante referir 0 projeto de Lei n.° 278/XII, apresentado pelo Partido Socialista na XII Legislatura, que se propunha estabelecer um regime juridico designado por coadocio, que permiti- Parte Il - A Familia ne Sociedade Contemporanea | 111 ria a uma pessoa adotar plenamente o filho, biolégico ou adotado, do cénjuge do mesmo sexo ou do companheiro do mesmo sexo com quem vivesse em unio de facto. O resultado final seria que, em relagao a’algumas criangas, fossem cons- tituidas relagdes equiparadas as da filiagio com duas pessoas do mesmo sexo. Tais relagdes integrariam o assento de nascimento da crianga, do qual constaria uma informagio diversa da que é evidenciada para a generalidade dos cidadaos, para quem continuariam a ser identificados um pai e uma mie, ou apenas um dos progenitores, quando 0 outro fosse desconhecido. Este projeto foi aprovado na generalidade discutido em Comissio, acabando por ser rejeitado pela maioria dos deputados na votagio final. O proceso legislativo apelou a discussio sobre 0 conflito entre os direitos e os interesses dos adultos e os direitos e interesses das criangas, e entre os distintos direitos que se devem reconhecer as proprias criancas (Loureiro, 2013). Estaria em causa a protegao dos direitos da crianga identidade pessoal, a0 desenvolvimento pessoal ¢ ao respeito pela vida familiar, bem como a questo de saber se este tltimo direito envolve, ou nao, o direito a ter um pai ¢ uma mie. Estava ainda presente averiguar se uma crianga terd 0 direito a ser adotada em termos equivalentes aos da filiagdo natural, tendo em conta também os seus direitos 4 identidade pessoal e ao desenvolvimento pes- soal. O regime proposto traduzir-se-ia afinal na extensio das responsabilidades parentais do progenitor, titular exclusive das mesmas, ao respetivo companheiro ou ao cénjuge, o que implicaria, do ponto de vista substancial, uma limitagao voluntiria ou um ato de disposi¢io das mesmas, surgindo também a questio de saber se ser pai ou ser mie de um/a filho/a integra o direito de dispor desse estatuto, concretamente, se inclui o poder de estender tal estatuto a outra pessoa. Por outro lado, caberia perguntar se a autodeterminacio do pai ou da mie nao esti limitada pelos direitos do/a filho/a, direitos esses que no dependem das circunstincias de facto da vida do pai ou da mie, das suas opgdes de vida, ou do ambiente em que esta inserido/a. Desta tentativa de criac4o legal de uma nova situagao familiar iria resultar a dissociagio do trio mie-pai-filho/a, desprezando-se a complementaridade sextial que esta na origem da concegio dos seres humanos e que deve acompa- nhar a sua gestacdo € socializacio, bem como a correlaco entre a maternidade ca paternidade ¢ a sua importincia, inclusivamente simbélica, para a construgio da identidade pessoal de cada ser humano. Com efeito, quando a lei positiva aponta duas pessoas como titulares das responsabilidades parentais nao 0 faz por acaso, mas porque na gerago de um filho estio sempre envolvidos um homem e uma mulher, nio se tratando de um trio fixado aleatoriamente. Na ver- dade, a lei limita-se a reconhecer a correlagao entre paternidade e maternidade, conceitos que no sio abordados como auténomos e de reparti¢ao aleatoria Familia € cia e Multidisciplinaridade (Xavier, 2014b). © regime proposto criaria uma situacio de desigualdade, no plano da titularidade das responsabilidades parentais, entre as criangas coadotadas € as outras criangas, por consideragio com as preferéncias ¢ circunstincias de vida dos adultos que as cuidam, o que é inaceitével pelo risco de aumento da vulnerabilidade das criangas abrangidas. Outra alteragio legislativa ocorreu por meio da Lei n.° 137/2015, de 7 de setembro (altera 0 Cédigo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 47 344, de 25 de novembro de 1966, modificando o regime de exercicio das responsabilidades parentais). Poi aditada a0 Cédigo Civil uma nova disposicio, 0 artigo 1904.°-A (exercicio conjunto das responsabilidades parentais pelo Ginico progenitor da crianca ¢ pelo seu cénjuge ou unido de facto). Este diploma prevé que, quando a filiagio se encontre apenas estabelecida quanto a um dos progenitores, as res ponsabilidades parentais possam também ser atribufdas, por decisio judicial, a0 cénjuge ou unido de facto deste, que as exerceri, neste caso, em conjunto com © progenitor. A letra da lei refere-se a0 “exercicio conjunto das responsabilida des parentais” ¢ 3 “corresponsabilidade”, passando a poder verificar-se, a pedido do progenitor e do seu cénjuge ou unido de facto, de sexo diferente ou do mesmo sexo, a assun¢io conjunta de responsabilidades parentais relativamente 4 mesma crianca. Resulta do n.° 5, do artigo 1904.°-A, que a rutura entre o progenitor e 0 seu cénjuge ou unido de facto, que exerciam responsabilidades parentais em conjunto, desencadeard um proceso de regulagio das responsabi- lidades parentais. A remissio expressa para 0s artigos relativos a regulacio das responsabilidades parentais parece envolver que seri tido em conta o direito da crianca a manter uma relago de grande proximidade com ambos os correspon- sdveis, inclusivamente mesmo que nao seja essa a vontade do progenitor; e que © Tribunal teri de ponderar a situa¢do de ambos numa situagio de paridade, isto é, sem ter em consideragio 0 facto de apenas um deles ser 0 progenitor, 6 que port em causa a primazia do titular das responsabilidades parentais, isto 6, daquele que gerou o filho. Esta alteracdo legislativa representa afinal uma forma de contornar a nio aprovacio do projeto sobre a coadocio, atrés mencionado, uma vez que permite alcancar 0 mesmo resultado pratico no que diz respeito a0 exercicio conjunto das responsabilidades parentais por parte de duas pessoas do mesmo sexo relati~ vamente ao filho ou 4 filha de uma deias, embora formalmente no se permita a inscrigdo no registo civil de duplas paternidades ou de duplas maternidades, nem se prevejam efeitos sucessérios. Este diploma criou ainda uma nova rela parafamiliar, a0 acrescentar como novo impedimento ditimente relative & celebracio do casamento, a “telagio anterior de responsabilidades parentais” familiar ou, pelo menos, Parte Il - A Familia na Sociedade Contemparanea | 113 [artigo 1602.°, b), do CC]. A lei admite que se cria um vinculo entre uma pessoa ¢ 0 filho do seu cénjuge ou unido de facto que no cessa por efeito da vontade do progenitor, do divércio ow da rutura da vida em comum. © novo impedimento dirimente relative supde a proximidade da relagio da crianga com a pessoa que exercet responsabilidades parentais, a ponto de a propria lei a assimilar a uma relagdo familiar (equivalente as relagdes de parentesco e afinidade mencionadas nas outras alineas do artigo 1602.° do CC). Note-se, contudo, que 0: impedimento ja existia relativamente a afinidade na linha reta [artigo 1602.°, 3, do CC], por isso, 0 padrasto ou a madrasta j4 ndo podia casar-se com 0 enteado ou enteada. No entanto, enquanto a relacio de afinidade cessa com a dissolugio do casamento do progenitor por divércio, esta nova relagao que se estabelecera entre a pessoa corresponsivel ¢ a crianga no cessa (cf. artigo 1585.° do CC). A mudanga de legislatura, em outubro de 2015, trouxe a oportunidade de reunir uma maioria de deputados favoriveis ao discurso igualitarista, dando suporte a aprovacio de um diploma que permite a adogio conjunts de criangas por pessoas do mesmo sexo, descrito no titulo como lei que “Elimina as discri- minagdes no acesso adogio, apadrinhamento civil ¢ demais relagdes juridicas familiares [...]. © Estado, no ambito dos seus especiais deveres em matéria de protecio ¢ assisténcia as criangas privadas do seu ambiente familiar original (arts 69. da CRP ¢ 20.°, n.° 1, da Convengio dos Direitos das Criangas), passara a intervir na constituicdo de relagées juridicas, que as privam de alguns dos seus direitos fundamentais, em nome da satisfago de interesses de paternidade e maternidade de adultos com orientagio homossexual. Trata-se de uma escolha politica que altera profandamente o espirito do instituto da adogao, até agora destinado a beneficiar a crianga com um vinculo em tudo semelhante ao da sua filiagio biolégica, envolvendo a discriminago das criangas adotadas por pessoas do mesmo sexo em relagio a globalidade das criangas.'Tal escolha nio deixa de poder vir a ser revista, no faturo, pelo mesmo legislador, embora seja de lamentar que os direitos das criangas possam ser afetados ao sabor ¢ ao ritmo das maiorias parlamentares. Direito & autodeterminagio parental, parentalidades, multiparentalida- des e direitos do/a filho/a A argumentagio subjacente as exigéncias do principio da igualdade de direitos das pessoas com orientagio homossexual no plano das relagdes fami- liares baseou-se no reforgo das semelhangas e na diminuigdo das diferencas que existem entre as unides de duas pessoas de sexo diferente e as unides de duas a mila: Esséncia e Multiaisciplinar dade pessoas do mesmo sexo. Sustentou-se que duas pessoas que optam por compor- tamentos homossextiais podem manter entre si formas de vida em comum que reproduzem as que a lei considera como relacdes familiares quando se verificam entre duas pessoas de sexo diferente, sendo-lhes equivalentes. No Ambito das relagdes entre dois adultos, foi reivindicado 0 direito de acesso a0 casamento por duas pessoas do mesmo sexo, sustentando-se que dois adultos do mesmo sexo poderiam manter entre si uma vida em comum estével, equivalente & do casamento entre um homem ¢ uma mulher. No Ambito das relagdes parentais, reivindica-se © direito 4 autodeterminagao parental, ultrapassando-se 0 obsté- culo natural & geragéo de um filho em comum por duas pessoas do mesmo sexo, através do acesso a adocio conjunta, 4 procriagio medicamente assistida com dador ou a chamada gestacio de substituicao. Tem sido sublinhado 0 paradoxo presente na argumentagio dos autode- nominados movimentos LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender) que, a respeito das reivindicagdes relativas ao reconhecimento do diteito a constituir relacdes familiares, reclamam simultaneamente o direito a diferenga ¢ o igual tratamento incompativel com aquela diferenca (Cid, 1998). estratégia reivindi- cativa prossegue um percurso argumentativo sustentado em frentes diversificadas e suportado em abordagens multidisciplinares, das quais é de destacar a defesa da chamada teoria do género (Loureiro, 2013). Esta abordagem tenta desconstruir a diferenciacio sexual binaria homem-mulher ¢ a sua ligaglo 3 reprodugio humana, sustentando que se trata de uma construgao cultural (Elésegui Itxaso, 2002). A partir daqui, intenta edificar uma diversa distingio no ambito sexual, esta sim totalmente artificial ¢ culturalmente justificada, que se refere ao género como opgio individual e as preferéncias e comportamentos sexuais como fené- menos identitérios © conceit de orientagdo sexual ¢ as categorias relacionadas, como pessoa homosexual ¢ heterosexual, so usados para construir a ligagio entre desejo sexual, preferéncia ¢ atragaio uma identidade pessoal, quando a verdade € que no existem dados cientificos para apoiar tal sugestio, Pelo contririo, no que diz respeito 4 sexualidade e 4 identidade, a distingao fandamental e mais importante é a de que o ser humano é homem ou mulher. Cada pessoa tem o direito de escolher como quer viver e de adotar formas de vida em comum correspon dentes a esas escolhas. Nao se pode negar 0 nascimento de sentimentos de identidade ¢ de pertenga a uma comunidade, sendo frequente a autorreferén- cia em termos de grupo como comunidade gay ou comunidade LGBT, para além da sua atuagio como lébi. Também nao se podem desconhecer os casos — anémalos ¢ felizmente pouco frequentes — de pessoas que nascem com 0 sexo nio especificado, pessoas que passaram a ser designadas pela expresso inter Parte |i - A Familia na Sociedade Contemporanea 118 sexuais que substituiu a palavra hermaffoditas, mais comum até ao momento atual. O que pretendo afirmar € que a expressio orientagio homosexual no descreve uma espécie particular de individuos, de pessoas diferentes, indica ape- nas preferéncias, desejos, comportamentos, atitudes ou estilos de vida © discurso argumentative dos movimentos LGBT no ambito das relagdes familiares chega ao ponto de apresentar, de forma unitiria e uniforme, a grande variedade de preferéncias LGBT. Quanto a este aspeto, nio pode deixar de se referir que préprios membros das organizagées LGBT contestam a abordagem da oposi¢ao hetero/homo, sendo cada vez mais salientada a variedade de situa~ g6es e a inviabilidade da construgio identitéria. A especificidade dos autodesig- nados como bissexuais e a emergéncia de casos assumidos de transsexualismo e de transgenderismo como fenémenos identitarios ¢ politicos ttm demonstrado © paradoxo de construir identidades (fixas) sobre a impossibilidade de qualquer identidade (fixa). O discurso igualitarista tenta impor uma visio particular da sociedade ¢ da Familia focada nos direitos individuais que ¢ fortemente politizada e escamo- teia a propria realidade, rejeitando qualquer opiniao distinta ¢ forgando uma atitude voluntarista no ambito da producio legislativa que visa a conformacio da sociedade segundo esta perspetiva tio particular. No entanto, no ambito das leis sobre a Familia, nio pode deixar de se concluir que o direito ao desenvol- vimento da personalidade ¢, mais concretamente, o direito 4 autodeterminacio sexual, ¢ a proibigo da discrimina¢do em fangGo da orientagZo sexual no exigem o reconhecimento de todas a situag6es de vida em comum e de todas as relagdes afetivas duradouras como equiparaveis, nem impée a sua igual protecio como manifestagdes de vida familiar. Os seres humanos so sempre gerados por um homem e por uma mulher, € a generaliza¢io das relagdes homossexuais envolveria o risco de extingao da espécie humana. A propria recusa por parte dos movimentos LGBT daquilo que designam por heteronormatividade nao implica a rejeigdo da heterofamilia, padrio segundo o qual pretendem construir os seus sonhos familiares. As limitagdes da retérica da igualdade de direitos das pessoas com orien~ tagio homosexual no ambito das relagdes familiares sdo mais evidentes nas situagdes em que nio estio em causa apenas relagdes entre adultos, mas existem também criangas envolvidas. O reconhecimento do direito 4 autodeterminagdo no plano sexual nao implica necessariamente 0 direito de duas pessoas do mesmo sexo estabelece- rem vinculos juridicos de natureza familiar conjunta e simultaneamente rela~ tivamente a uma mesma crianga, ainda que se trate de filho(a) biolégico(a) de uma delas. Na verdade, isso apenas serd possivel como mera construgio juridiea Esséncia e Multidiscioin e pela via da privacdo da crianga da potencialidade de estabelecer vinculos juridicos com um dos progenitores. © desejo de duas pessoas do mesmo sexo de terem um filho em conjunto apenas pode ser satisfeito, realizado ¢ protegido A custa dos direitos da crianga envolvida, nomeadamente, privando-a do direito de conhecer os seus pais € de ser educada por eles, direito garantido pela Con- vencio sobre os Direitos da Crianga. O facto de os adultos terem constituido entre si uma relagdo do tipo familiar ou equiparada nao Ihes atribui o direito de privar uma crianga dos seus direitos. Apesar das intengdes benevolentes, 0 cui- dado ¢ 0 afeto que eventualmente irio proporcionar 4 crianga so insuscetiveis de substituir o seu direito a vida familiar, ainda que apenas em poténcia, nao reparando a violacio dos seus direitos que Ihe é infligida. © direito 4 autodeterminagio parental, na vertente positiva traduzida no direito a procriar, s6 € passivel de ser garantido em face de uma relacio entre um homem ¢ uma mulher, sendo infundada a alegagio de disparidade de tratamento quando estejam em causa relagdes homossexuais. A permissio de duas pessoas do mesmo sexo serem consideradas como pais ou mies da mesma crianga envolve a construcio de um estatuto de filiagio completamente diferente, que nio apenas prescinde totalmente do vinculo biolégico, como ja acontece na relacio de adogio, mas também da adesio 3 realidade antropolégica subjacente a geracdo de um ser humano. Do exposto resulta que nio existe qualquer discriminacdo com base na orien— tagdo sexual quando se restringe © estabelecimento da filiagio 4 paternidade e & maternidade, em correspondéncia com a base antropolégica da geragio. Na ver~ dade, a proibigio da discriminagao com base na orientagdo sexual, especificamente em conexio com o diteito & vida familiar, significa a proibi¢ao de conceder um tratamento diferente a pessoas em situagdes similares sem uma justificacio objetiva ¢ razoAvel, estando-Ihe subjacente a ideia de que todos os seres humanos sio iguais © merecem tratamento igual. Nao existiré qualquer discriminago porque a diferenca de tratamento é plenamente justificada, isto é, a distingao ¢ adequada, hecessiria e razoivel para atingir a finalidade visada com o estabelecimento da filiagio. Na verdade, o estabelecimento da filiagio nio se reduz ao acesso. a uma comunidad de afetos, nem a um mero estatuto juridico consubstanciado em deveres € direitos reciprocos, nio podendo deixar de ser confrontado com os direitos de cada pessoa ao conhecimento da ascendéncia biolégica verdadeira, ao proprio direito a constituir familia ¢ ao respeito pela vida familiar. © direito da crianga ao estabelecimento do vinculo juridico da paternidade da maternidade € incompativel com o reconhecimento de eventuais direi- tos de autodeterminago das pessoas com orientagio homosexual no ambito parental. A constituigo de vinculos de dupla paternidade ou de dupla materni- ontemporanes | 117 dade relativamente a uma crianga sera, em si mesma, geradora de desigualdade ¢ redundaré em sacrificio injustificado dos direitos da crianga, nomeadamente do direito a que sejam estabelecidos os vinculos'juridicos da paternidade e da maternidade. Com vista a alcancar tal resultado, pretende-se que o estabeleci- mento dos vinculos de filiagio deixe de reportar-se 4 dualidade maternidade/ /paternidade correspondentes 4 geragio de um filho. Para exprimir vinculos supostamente equivalentes, foram construidos neologismos a partit do vocdbulo parents, comum 4s linguas francesa e inglesa: parentalidades, homoparentalidades, multiparentalidades. Estas novas expressdes desligam o vinculo juridico da filiagio da condig&o de progenitor e manifestam a convicgio de que cada crianga inte- gra a familia que corresponder ao seu ambiente factual, devendo beneficiar dos respetivos registo e efeitos. Por vezes, estas situagdes sio designadas como fami- lias arco-iris, traduzindo implicitamente a ligacio com os movimentos LGBT que usam como simbolo identificativo a gradacio continua de cores espectrais, correspondente ao fenémeno 6tico de decomposi¢io da luz solar. Para além do estabelecimento de vinculos de dupla paternidade e de dupla maternidade, hé noticia, noutros paises, de situacdes de multiparentalidade legal- mente permitida (por exemplo, o estabelecimento de vinculos juridicos de uma crianga com duas mulheres como mies ¢ um homem como pai). Situagio dife- rente sera a possibilidade de virem a ser geradas criangas com trés progenitores genéticos por via da utilizagio da chamada mitochondrial replacement technology Em fevereiro de 2015, 0 parlamento britinico autorizou que fossem criados os primeiros embrides humanos com trés ADN, através da técnica da transferéncia nuclear; no entanto, ainda nao sio para j4 as primeiras tentativas de utilizar estas técnicas para gerar um bebé. A utilizacio desta técnica para gerar um ser humano suscita numerosas e relevantes objegdes éticas, muito embora a tinica razio para prosseguir neste sentido seja o mero desejo de duas pessoas terem uma ligagao genética com a crianga de quem querem cuidar como filho/a. A legislagio portuguesa nao admite a inscricio de dupla paternidade ou dupla maternidade no assento de nascimento de uma crianca. Na atual lei que regula a procriagio medicamente assistida (PMA) (Lei n.® 32/2006, de 26 de julho), as técnicas de PMA so apresentadas como solugdes para a infertilidade dos casais que pretendem ter filhos, salvaguardando-se no essencial os direitos dos filhos coneebidos através destas técnicas, nomeadamente o direito a ter um pai € uma mie ¢ a estabelecer as respetivas relagdes juridicas de paternidade de maternidade. Para tanto, 0 acesso as técnicas é limitado a casais heterossexuais. com uma relacio estavel, isto é, casados ou em unido de facto, excluindo-se como beneficidrios duas pessoas do mesmo sexo e sendo proibido 0 recurso a gestagio de substituigio ia: Esséncia e Multiaisciplinaridade Durante o ano de 2016 serio apreciadas varias iniciativas legislativas no sentido do alargamento do ambito dos beneficidrios das técnicas de PMA, de modo a permitir a igualdade de direitos no acesso’ as mesmas. Em todas elas se pretende realizar 0 pretenso direito a ter filhos através das técnicas de PMA como um direito que cabe.a cada cidadio, mesmo que desacompanhado de outra pessoa do sexo oposto que partilhe 0 mesmo desejo de ter um filho/ /filha. £ suftagado 0 entendimento segundo o qual todas ¢ cada uma das técnicas de PMA devem ser encaradas como procedimentos alternativos 4 reprodugio natural, devendo 0 acesso as mesmas ser configurado como um direito geral, pelo que caberé ao Estado assegurar 0 seu exercicio a cada um dos cidadaos. Contudo, no ambito da aplicagdo das técnicas de PMA deveria estar presente a consideragio do ser humano que vai ser gerado neste contexto, devendo até ser ponderada especialmente a sua situagio, uma vez que o objetivo final é 0 seu nascimento, sendo ele o primeito beneficiario das téenicas ¢ 0 mais carecido de protegao. Bibliografia AAWV. (2010). Léxico da Familia, Termos ambiguos ¢ controversos sobre Familia, vida ¢ aspectos étcos. 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