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INTRODUGAO (O que se entende por cultura — A veriedade de sentidos que se atribuem Sc, Paswra TA concepsto antonniea de caltra — A comreensioy tab tase térmo, dos elementos materials e imaterials da ‘pelo once de vaura =A Hates da eultara son elementos imateraa As concepedes nasionalista © universalist: da, cultura — Civilieacio © cultura — © ponto de vista em que me coloquel para estudar a culturn no ‘Brasil — Os fetdres culeurais: fisicos,raciais, téenicos e econdmices, socials © histGricos — © eonceito da civilizacao brasileira — As diversas manifestagses da cultura no Brasil — A edacagdo, tranamisio da cultura — Uma obra de Sintese — Av dificuldades de um trabalho dema naturera — "Uma hora de sinteae supe anos de andlise” — A falta ou a ingficitncia de monografias espe- ializadas — A utlidade de uma visio de conjunto, tao perfeta quanto possivel, S PALAVRAS também viajam, emigram freqtientemente de um povo para outro e, quando n&o ultrapassam as fronteiras de um Estado ou os limites da lingua em que se formaram, atravessam as classes ¢ os grupos sociais, colorindo-se de “‘tonalidades distintas que nelas se fixam e acabam por Ihes aderir”, e sio provenientes ou da mentalidade particular dos grupos, ‘coexistentes no interior de uma sociedade, ou do génio do povo a cuja lingua $e transferiram. Assim, enquanto a acao geral de uma sociedade tende a uni- formizar a lingua, modelando-a & sua imagem, a acio dos grupos particulares tende a diferenci4-la, ao menos quanto ao vocabulario. “Cada ciéncia, arte, officio, compondo sua terminologia, marea com seu caréter as palavras da lingua comum”. ! © vocabulério de uma ciéncia constitui-se, pois, ora com neolo- gismos, isto é, com palavras criadas especialmente para designar idéias e nogSes novas, ora pela introduc&o, na terminologia cientifica, de vocébulos verné- culos ou adventicios j4 em circulaco, tomados a lingua comum, com sentidos determinados. Mas, como a significacao de uma palavra de uso corrente, segundo observa A. Meiuet, “é definida pelo conjunto de nogdes as quais 8 palavra se associou € as associacdes diferem evidentemente segundo o grupo em que é empregada”,? térmos como civilizaco e cultura, ambos de criacio ¢ de uso recente, transladados para o vocabulério especial, continuam a opor. aos esforcos dos homens de ciéncia, para lhes precisar o sentido, a riqueza das nogdes que evocam ou a variedade de sentidos que comportam na lingua geral. Dai os acepgSes diferentes, mais ou menos arbitrérias, ora restritas ora am: pliadss, com que figuram, com nuancas diversas, em obras de caréter cientifico. ‘A palavra civilizacdo, cujo emprégo, em texto francés, parece remontar ao T Baan (toast) — Essai do sbmentigue (Scene de sgafcations), Se ion, pl. 265, Hachette, shen RBH (A) — Comment is mote changent de sens. L’Aane soca, 1, 1905-1906, A CULTURA BRASILEIRA ano de 1766 e que servia para marcar um estado contrério barbiiie, estabe- lecendo uma distincfo entre povos policiados e povos selvagens, passou também fa designar, na linguagem etnolégica, em francés, como 0 térmo cultura em inglés, “o conjunto dos caracteres que apresenta aos olhos de um observador a vida coletiva de um grupo humano”, primitivo ou civilizado. Uma e outra, ivilizagio ¢ cultura,® no vocabulério etnologico ¢ sociolégico em que se in- corporaram, serviam para designar duas nogdes diferentes que se defrontam, disputando-se 0 predominio. De fato, para CLARE WISSLER,‘ que empreendeu estabelecer um “‘sistema ivo dos processos de civilizario humana e dos fatores que para ela contribuem”, a cultura se apresenta ccmo o modo de vida social, a parte do to humano que, proveniente do meio exterior, material, intelectual € histérico, “faz dos individuos o que éles se tornam”, O conceito de cultura, no sentido anglo-americano, ampliou-se como o de civilizacao em francés, pas- sando a abranger nfo 6 08 elementos espirituais, mas todos os modos de vida , portanto, também as caracteristicas materiais da vida e da organizacio dos diferentes povos. Se nessa acepcao mais larga re compreendem, sob o mesmo térmo, tanto os produtos da atividade mental, moral, artistica ¢ cientifica, como as bares materiais da evoluco social, todos 08 povos, desde as sociedades pri- mitivas, de orgenizaco embrionéria, até &s sociedades mais altamente evo- Iuidas, possuem certamente uma cultira, na concepsao antropolégica adotada por WISSLER e outros antropélogos © etnélogos norte-americanos, Mas cssa ‘concepgio que estende o nome de cultura as bases materiais da sociedade © ‘is suns técnicas, se logrou uma grande aceitacio entre sébios americanos, tem ‘a3 suas origens na Inglaterra com 3 trebalhos de E, B, Tyzor, ¢ da longa série de seus sucessores. Jé 0 antropélogo inglés, quinze anos antes, entendia por cultura de um povo “um complexo que Compreende os conhecimentos, as erencas € as artes, moral, as leis, os costumes © todos os denisis habitos e aptiddes (any capabilities and habits) adquiridos pelo homem na qualidade de membro de uma sociedade”. Pode parecer & primeira vista que nessa definicio niio ve faz referéncia, 90 menos muito clara, ao elemento material; mas se se con- siderar que “costumes, artes ¢ hébitos” comportam certamente elementos materiais, ser fécil reconhecer que a Palavra assume em TyLoz, em que 08 americanos se inspiraram, o mesmo sentido lato de sta concepeio antropo- 6gica de cultura, Assim, as duas admirdveis instituigbes que sio a seco antropolégica do Museu da Universidade de Oxford, obra considerivel de TvLoR e de A. BALFOUR, e mais tarde a do American Muscum of Natural History, com CLaKk WISsLER, chegaram, depois de longas pesquisas e debates, a estabelecer uma mise au point geral ¢ ao mesmo tempo uma “anélise mais aprofundada da nogio de civilizacdo ¢ do seu conteédo”. Uns ¢ outros, da escola de antropologia cul- tural de Oxford e do Museu Americano, abrangem, soba denominagdo de cul- i yeneayest i f "tax anes tcatn om ees de sign ncn “ce Sav ga, an ci db oe sf capes tas stm, doe cna” Are ar Braue nan (C) — Man snd culture in Ameren, Bw York, London, Warrap, 1925, Le i INTRODUGAO 3 ura, todo 0 “modo de vida social”, 0 modo de vida de um povo como um todo, dando a essa palavra a maior extensfo que era suscetivel de tomar, Certa- mente, as concepcdes antropolégicas de cultura, segundo ésses sibios ingléses ¢ americanos, se diferenciam em alguns pontos, mas tém de comum inclufrem na cultura os elementos materiais e espirituais. A defini¢dio antropolégica de cultura, cujas origens remontam, como vimos, aos trabalhos dos primeiros antropélogos ingléses Tyzor outros, ¢ que partilham, nos Estados Unidos, ‘antropélogos eminentes, como Lowte, KRozsrr, GOUDENWEISER ¢ WISSLER, 8 caracteriza nitidamente pelo fato de se encerrarem sob 0 térmo cultura niio 86 og habitos ¢ os produtos da atividade mental de um pove como também 8 elementos materiais. Mas se TYLOR tendia antes a limiter a cultura aos elementos imateriais, ao menos preponderantes no seu sistema compreensivo de cultura, C. WISSLER de um lado, exclui da cultura a linguagem, que ora incorpora como parte integrante do sistema cultural, ora coloca & parte, para incluir sob ésse térmo todos os fendmenos sociais, excecdo feita dos fatos mor- fol6gicos de tudo que se entende por morfologia social na concepgiio de DuR- KHEIM, e que le considera como pertencendo ao “homem” e ao ‘meio geo- gréfico”. Tem razfio, pois, M, MAvss em eriticar essa oposicao que estabelece WisstER entre o homem ea cultura, ¢ essa divisdo entre a linguagem, a socie- dade © a cultura, que the parecem igualmente falsas ¢ suscetiveis, por isto, de suscitarem antes confusées do que claridades na apreciacdo dos fendmenos de cultura € de civilizagio. Os sociblogos franceses, desde DuREHEDS, comenta M. Mauss, “consi- deram em conjunto todos os fendmenos sociais e j& nfo podem mesmo con- ceber essas divisSes. Para a sociologia, esta diade —homem ¢ cultura nio € senfio uma outra maneira de descrever 0 “homo duplex”, o ser social ¢ 0 ser psico-fisiolégico que € 0 homem. E téda abstracto que dividisse o ser social 0 ser humano seria perigosa. © homem no é concebivel sem a sua cultura, ou nfo é um homem. E a cultura, ainda assim entendida, no € seno uma ‘outra palavra, para designar a sociedade que € to inerente ao “homo sapiens’ como urna natureza, E enfim, ndo hé lugar para distinguir e separar ondiversos elementos da fisiologia social, nem uns dos outros, o direito por exemplo da religifo, nem da morfologia”. A essas criticas de M. Mauss as abstragies © divisdes, nem sempre constantes, em que se funda a teoria de C, WISSLER, aligs verdadeiramente fecunda e rica de sugesties, acrescentam-se as que le- vantam a idéia fundamental de englobar, sob a mesma rubrica de cultura, o8 elementos espirituais © materiais da sociedade. No se pode conteitar a exis- téncia de relagdes entre a cultura propriamente dita com as bases materiais da sociedade e as suas técnicas, nem o interésse que apresenta a investigacio s6bre 0 comportamento material, técnico ¢ econtimico, das sociedades ¢ as bases materiais désse comportamento. Mas, sem negar o. papel dos fatéres materiais sdbre a evolucio dos grupos humanos ¢ a utilidade désses estudos que nos podem fornecer pontos de partida pera o conhecimento de importantes realidades sociais, parece a alguns arbitrério ¢ ilegitimo abranger,.sob a mesma denominacio, as bases materiais da sociedade ¢ a sua atividade verdadeira- mente cultural (artes, letras e ciéncias), além de perigoso por falsear a nocio de cultura no seu sentido restrito ¢ favorecer uma interpretagio material, sendio materialista, da evolugio social e da histéria do pensamento humano, © térmo cultura, no sentido antropolégico, lembra-nos P. ARBOUSSE Bas- ‘ripe, “conquistou na lingua anglo-americana direito de cidadania, ao passo que em Franca encontrou resisténcias decididas, por j& significar fortemente af outra realidade bem espiritual. Na Alemanha 0 seu sentido oscilou, ator- hg ound ofl niu antis aman of inthe et the basi phanocinon wel tare (6 Wise Wa aa Calter vag Be A CULTURA ASILEIRA mentado, do sentido cléssico ¢ impessoal ao naciénal que se achava estreita- ‘mente ligado ao sentido antropolégico”. Uma vez adotads, porém, a palavra neste sentido geral, com o térmo, na sua nova acepcao desmedidamente am- Pliada, difundiram-se as expresses “‘érees de cultura, camadas de cultura, Gifusio de culturas, conflitos de cultura” e outras como as nodes de complexos € de tracos culturais, algumas das quais, como por exemplo, “‘camadas.de ci- villzagio” (Kulturschichten), “éreas de civilizagio” (Kulturkreise), j4 em pregadas por F. GRAEBNER, assistente de W. Foy, diretor do Museu de Etno- ‘erafia.de Colénia, no seu trabalho sbbre o método etnolégica,” em que a etno- Joga s¢ apresenta, na sua concepcdo tdo discutida, como “a ciéncia das camadas ¢ das freas de civilizagao”. Segundo observa M. Mauss, é C. Wisster um dos americanos que, sob a inspiracio dos etnélogos alemiies ¢ especialmente de GragBNER, mais manejaram o principio das Greas de civilizagio, dos centros de invencio ¢ das vias de difusdo, como as nogies de complexos © de tracos. © éxito que alcancaram essas concepgdes, em que se desenvolveu a acepcio antropolégica de cultura, prende-se, de um lado, ao fato de se tornarem mais suscetiveis de descricio cientifica os objetos materiais “mais facilmente per- ceptiveis, mensurdveis, classificiveis como 0 so", e, por outro, ao de forne- cerem 03 elementos materiais ¢ fatéres antropoldgicos “indiscutiveis pontos de partids muito mais seguros do que as representagdes coletivas, crencas, teadighes, organizacio social, certamente suscetiveis de anélise tratamento objetivo, mas “!passiveis de interpretacdes tendenciosas e mesmo de serem sim- plesmente forjadas”. A marcha para a objetividade, “observavel em tédas as ciéncias, principalmente nas mais recentes, desejosas de afirmar seu cardter cientifico (as palavras so ainda de P. ARpousse BastiDe), favorece essa ten- déncia de partir dos fatos materiais ¢ do conhecimento rigoroso e seguro que permitem". Mas na Franca a defini¢ao antropolégica de cultura, com a ampli- tude que @ palavra ganhou, abrangendo, no seu significado, tanto os produtos imateriais do espirito, como os habitos de vida, os utensilios, aparelhos e ins- trumentos, afigurou-se uma violacdo do seu sentido corrente © tradicional e um deturpamento do vocébule, empregado para exprimir as criagbes mais altas do espirito humano. Certamente, 0 emprégo do térmo, com ésse sentido geral, corresponde, ‘como pondera SAMUEL H. Lowntz, a uma necessidade especifica da antropo- logia © da etnologia, —“‘a necessidade de um vocibulo que significasse tédas ‘as realizagées materiais ¢ imateriais de um agrupamento humano, sem levar em conta 0 seu nivel de evolugao social”. Entre criar um térmo novo e atri- buir um novo sentido 2 uma palavra, corrente em varias linguas, preferiram 98 antropélogos essa Itima solucdo, dando ao vocdbulo cultura esse significado ‘amplamente compreensivo. Estavam no seu dircito e nio fizeram mais do que adicionar ao térmo mais uma outra acep¢io aos varios sentidos, muito diferentes, em que j4 era empregado fessas linguas;? mas essa nova acepcio vai tanto a0 arrepio da corrente que, nessa palavra, rola do pasado carregada de espiritualidade, que, pera e fazetmos compreender, no seu significado an- ‘tropolégico, precisamos sempre lembrar o sentido em que a usemos, se a na- tureza da obra ou do trabalho nao é suficiente para indici-lo com exatidio. E que a palavra cultura, no sentido com que se transladou para a terminologia INTRODUGAO ‘Ora, 0 ponto de vista em que nos colocamos para escrever esta obra, € que nos fornece a concepcio cléssica, francesa ¢ alemi, de cultura, jé clara- mente enunciada por G. Huwmotpt, quando estabeleceu a distincéo entre ‘cultura ¢ civilizagio, Entendemos por cultura, com Humpoupr, ésse estado moral, intelectual © art{stico, “em que os homens souberam elevar-se acima das simples consideragdes de’ utilidade social, compreendendo o estudo desin- teressado das ciéncias e das artes”. A vida da sociedade reduz-se, certamente, ‘a um sistema de fungdes que tendem a satisfacio de suas necessidades funda- mentais, ¢ entre as quais a funcio econémica visa atender as necessidades ma- teriais ¢ a funcdo politica (para darmos apenas dois exemplos) tem por fim “defender @ existéncia da sociedade, tomada como conjunto ¢ também como reunio de grupos particulares”, regulando as relacdea dos individuos e grupos entre si, € déstes com o todo, Estado ou nacio. Mas uma sociedade, se quer Preservar a sua existéncia e assegurar o seu progresso, longe de contentar-se ‘com atender as exigtncias de sua vida material, tende a satis cessidades espirituais, por uma elite incessantemente renovada, de individuos, sébios, pensadores e artistas que constituem uma certa formagio social, acima das classes e fora delas. Assim, “‘criar a atmosfera espiritual sem a qual a sociedade no poderia respirar, oslagos espirituais sem os quais cla niio seria tuna, 0 tesouro dos bens espirituais sem os quais nfo poderia subsistir, tal & precisamente, observa ARNost BLAHA, a tarefa da funcio intelectual”. Essa funcdo €, por conseguinte, uma funcdo de producdo, de circulagio ¢ de organi- aso no dominio espiritual: criadora de valores ¢ de bens espirituais, com que instaura um domfnio que é uma patria e um asilo para todos, a inteligéncia néo 86 08 distribui e se esforca por torné-los aceesiveis a um maior ndmero possivel, como empreende a organizacdo da sociedade, segundo pontos de vista espirituais, “atingindo a sua mais alta expresso quando empreende organizar a vida moral”, A cultura, pois, nesse sentido restrito, © em tédas as suas ma- nifestactes, filos6ficas e cientificas, artisticas e literirias, sendo um esforco de criacio, de critica e de aperfeicoamento, como de difusdo ¢ de realizacto de ideais ¢ valores espirituais, constitui a func3o mais nobre e mais fecunda da sociedade, como @ expressiio mais alta e mais pura da civilizagao.!? Assim, limitado 0 conceito de cultura ou, por outras palavras, tomado ésse térmo no seu sentido clissico, 0 estudo que fazemos incide diretamente sbbre a produgo, a conservacio eo progresso dos valores intclectuais, das idtias, da cigncia ¢ das artes, de tudo enfim que constitui um esforco para o dominio da vida material e para a libertagio do espirito. E, como o nivel social e espi- ritual dos intelectuais, sibios, pensadores ¢ artistas, nio € sdmente imputével a certas auperioridades bio-psicolégicar estritamente ligadss & natureza indi- vidual, mas a intensidade de ago maior ou menor das influéncias civilizadoras, e-em conseqiiéncia, como no pode haver criacdo espiritual onde faltam est{- mulos & vida do espfrito ou nfo sio suficientemente apreciados os valores ¢s- pirituais, o estudo da cultura, na variedade de suas formas, como na sua ex- tensio ena tua intensidade, ¢, por si mesmo, uma Jur viva que ae projetastbre anatureza, a focca eo grau de uma civilizacdo. Esse estudo que forma como que 0 cerne ou a medula da obra, é precedido de uma anilise dos fatdres de tOda ordem que condicionam a produgdo dos fenémenos culturais, cientificos € estéticos, e contribuem, portanto, para explicé-los; e seguido de uma expo- ‘sigdo das instituicdes educacionais, de ensino geral e especializado, destinadas a transmissio metédica da cultura sob todos os seus aspectos.. E esta, ao pa- recer, uma ordem légica, psicologica e genética a um tempo} pois, se a cultura ‘pressupée ¢ implica um complexo de condipdes que estabelecem o clima social 12 in Ausom, ams (Ben, Unive Mawar) — Ke proton de Lintletue! In “Reve oteraticnle Se Soilogie”, $e. mnnee, ne VIEVETL pg. 801, SulletoAout, 195 a A CULTURA BRASILEIRA € histérico favordvel ao florescimento das letras, ciéncias e artes, e cujo estudo é nfo sdmente ‘itil, mas indispensivel A compreensio dos fenémenos de cul- tura, o sistema educativo que, em cada povo, se forma para conservar ¢ trans- mitir 0 patriménio cultural, constantemente renovado e enriquecido através de geracdes sucessivas, tende a desenvolver-se ¢ a complicar-se na medida em que aumentam as criagées do espitito nos varios dominios da cultura e da ci- vilizagio. E preciso, para compreendé-la ¢ explicé-la, situar a cultura nacional no seu quadro geogriifico, social e histérico, acompanhé-la nas diferentes etapas de sua evolucio, nas suas orientacdes © tendéncias, para mostrar, em sequida, quais as instituigdes que'se organizaram, prepostas ao fim de transmiti-la, jé sistematizada, de geragio em geracdo para assegurar a sua continuidade no tempo, a sua’ unidade, a sua difusdo © os seus progressos. Antes de entrar, pois, no estudo da cultura propriamente dita que cons- titui a parte central do livro, pareceu-nos necessirio proceder & anélise das grandes influénciss que puderam agir sbbre a produco dos fatos de cultura, ‘como sejam o meio fisico ¢ étnico (0 pals ¢ a raca), 0 meio econdmico, social ¢ politico, o meio urbano (tipos ¢ vida das cidades) ¢ a mentalidade particular do povo, determinada esta, por sua vez, por todos ésses elementos que condi- cionaram a sua formacio. Essas diversas ordens de fenémenos podem tédas, em proporcées variaveis, ter uma determinada relagdo com os fatos culturais, rnflo 86 por lhe fornecerem assuntos, mas, sobretudo porque os provocam € orientam, agindo sobre éles & maneira de causas ou de fatéres, e podem ainda, quanto a certas categories de fenémenos (econdmicos, urbanos, espirito cole- tivo) sofrer contra-golpes e reacties dos fatos de cultura e receber déles um impulso determinado, B por isto que, em ver de os jlgarmos como causas verdadeiras, preferimos consideré-los como tum complexo de fatéres ou de con- igdes, subetituindo o conceito de causa pelo de correlacio entre os fenémenos que constituem 0 objeto principal do estudo € 0s que 0s.condicionam © con- 2 A CULTURA BRASILEIRA ideais que aquelas trazem consigo, compreender-se-A que "“ésses ideais, como observou P. FAUCONNET, nunca talvez seja mais facil apreendé-los do que ‘quando se assiste & sua transmissio.” No que uma geragdo faz para criar os seus sucessores, hi certamente ocasidio para se surpreender o segrédo de sua alma e tracar o quadro de uma sociedade, vista através de seu sistema de edu- cagho. B por isto, pelos elementos que o estudo da educaciio fornece & anflise peicolégica ¢ social do carfter coletivo, que 0 socidlogo francés considera jus- tamente a histéria da educacio como f a i i eels INTRODUGAO relativamente a cada uma das manifestagdes culturais, através 4 A CULTURA BRASILEIRA de estudos monogrificos, perdem assim muito de sua forca explicativa ¢ficam necessiriamente incompletas. Por mais dificil que seja, € possivel, nfo s6 pela utilizagio dos materiais conhecidos, mas, com as impresses recolhidas da reflexio sObre os fatos, tracar o quadro provisirio da cultura no Brasil, sem dela fazer uma caricatura, t20 do gésto dos pessimistas que niio situam 0 es- forgo brasileiro no seu clima social e histérico, nem apresentar um retrato li ‘songeizo, que podia'ser agradavel a vaidade nacional, mas nilo serviria para nos abrir o8 olhos sobre a realidade e conduzir-nos o-esforco empreendido pela bertacdo do espirito, Assim uma tal obra seria desde logo uma “tomada de conscitncia”” de nés mesmos, desde que sériamente pensada, construida e do- cumentada; e, com todos os defeitos decorrentes da escassez de material do- cumentério, em que se pudesse apoiar, teria realizado o seu destino se fosse capaz de renovar o interésse pelo assunto e de suscitar um dia a sintese ma- fistral que 86 se tornard possfvel com o desenvolvimento dos trabalhos prepa- rat6rios de erudicdo ¢ de pesquisas. Ja de um ponto de vista mais geral que ‘abrange tOda a histéria do pais, escreveram JoXo Riseiro, PANDIA CALGGERAS CAPITULO IV A renovacio e unificagao do sistema educative © movimento de renovagio educscional ¢ sua repercusséo no Brasil — A seforma de 1928, no Distrito Federal — A revoluyso de 1930 — Criaac o ‘Ministério da Educacdo — A reforma Francleco Campos — A reorganizaglo 4o ensino secundério © superior — A questo do ensino religioro — A Tgreja e © Estado — © Manifesto dos pioneiros da educagio nova — AV Conferéneia ‘Nacional de Edueacso — Pela reconstracgo educacional do Brasil — Conflito de tendtacias — A politica escolar do Distrito Federal (1952-35) — Novas instituigdes cultural ¢ cientiicas — A fundacio da Universidade de Sto Paulo =A primeira Faculdade de Filosofia, Citncias ¢ Letras — A Universidade do 390 ___ A CULTURA BRASILEIRA nacionais e estrangeiras, ela marcou, nos dominios da educacio, um perfodo Tevolucionério, no 96 pelas idéias francamente renovadoras que a inspiraram ‘© que, por ela, entraram em eireulacio, como pela fermentepio de idéias que provocou ¢ peio estado socisl que estabeleceu, de trepidacio dos espiritos, de s6fregas impaciéncias e de aspiracoes ardentes. Nenhuma outra, de fato, até 1930, imprimiu a0 nosso sistema de edueagio uma direrio social, tanto quanto nacionalista, mis vigorosa, nem levou mais em conta, no conjunto como nos seus detalhes, a funcdo social da escola; nenhuma outra atendew mais ao enti ‘quecimento interno da escola e ao alargamento de seu raio de acio; nenhuma outra procurou articular mais estrcitamente as atividades escolares com a fa- rilia, com os meios profissionais interessados, com a vida nacional e as neces- aisles ma Savienasionen=vinmmnme - * A RENOVAGKO E UNIFICAGKO DO SISTEMA EDUCATIVO. son ‘se comprometeu, com ela, apenas a posicéo dos reformadores presos a fér- fmulas teenices © a umm tempo dogmiticos nos seus principios e empiristas na ‘sua acio; foram os proprios sistemas escolares tradicionais que se abalaram 392 ‘as evolugdes da vida econémice € a agitacdo de idéias que se propagavam da Europa ¢ dos Estados Unidos, acarretavam transformagées da mentalidade, como deviam determinar as de instituigdes ¢ crencas caracteristicas da vida brasileira, criando uma atmosfera francamente revoluciondria nos grandes centros urbanos. A Revolugo de 30 foi, nesse processo revolucionério, uma das fases culminantes ¢ decisivas. Preparada e desencadeada, porém, por uma alianga de grupos politicos de tendéncias as mais diversas, que se disputavam 4 primazia ¢ foram sendo, uns apés outros, anulados pela propria revolucio, € nfo trazendo, porisso mesmo, para impé-lo € exeeuté-lo, um programa politico definido de aco escolar e cultural, ela nio teve uma orientacdo uniforme, mas teve, de inicio, dois efeitos de grande aleance, no dominio da cultura e da educacio. Intensificando a mobilidade social ou, por outras palavras, a mi- ‘grag de pessoas, como de idéias ¢ de tracos culturais, de um grupo ou de uma classe social para outra, ¢ elevendo ao poder “homens novos”, nem sempre com {déias firmes, mas com menos compromissos, trouxe, entre outras conseqaéncias, ‘uma ripida mudanga social, a desintegracio dos costumes tradicionais do velho padrao cultural e maior complexidade nas relacdes sociais; e, rompendo as Tinhas da clivagem social entre os vérios grupos e classes, contribuiu podero- samente néo 86 para uma ‘“democratizacio” mais profunda como também para uma intensidade maior de trocas econémicas ¢ culturais. As idéias novas, ja em circulacdo, difundiram-se com mais rapide quer pelo impulso que thes deu a propria mobilidade social, favorecida pela revo- luglio e por suas conseqiéncias, quer pela demora na elaboragao dos principios fundamentais de uma nova politica nacional de cultura, entrando em contatos freqlentes que facilitavam tanto as fusdes ¢ interpenetragies, como os con- flitos de culturas e tendéncias diversas. Nessa atmosfera de efervescéncia de idéias, Lounenco Frio que fondara em 1929, numa casa editdra de Sao Paulo, a excelente Biblioteca de EducacSo, publica a sua Introdug&o ao estudo da Escola Nova (1930),—o melhor ensaio em lingua portuguésa sibre as bases biologieas € psicologicas das novas teorias de educacdo; ¢ 0 autor desta obra que em 1929 justificava em um de seus livros a reforma do ensino, de que teve @ iniciativa ¢ a responsabilidade, no Distrito Federal (1928), traca em Novos caminhos e novos fins (1931) os principios por que se orientou a nova politica de educacio, adotada na reforma escolar da capital do pais, e funda em 1931 uma Biblioteca Pedagogica Brasileira, de que as Atualidades Pedagégicas cconstituem uma das séries principals.’ Nesse mesmo ano, trés representantes do pensamenta catélico criticam acerbamente as novas tendéncias em um fo- theto Pedagogia da Escola Nova, editado pelo Centro D. Vital de Séo Paulo. No dominio das realizagoes, sobrepujam a tddas as outras iniciativas dos Es- tados, as reformas parciais emapreendidas em 1931 em So Paulo por LouRENcO ‘A RENOVACAO E UNIFICACAO DO SISTEMA EDUCATIVO _398 servigos de estatistica ¢ as associacdcs pericscolares.' Embora tenha ficado ito curta a experiéncia (1930-1931) para que se pudesse estimar com pre-~ Gisio 0 conjunto de seus resultados, foi certamente a reforma LOURENCO FiLsio, em So Paulo, no primeiro ano do govérno revolucionério, uma das iniciativas mais importantes integradas no movimento renovador da educagio, ‘Mas, com ser éste,—o de facilitar ¢ intensificar a circulacto de idéias ¢ as trocas culturais—, um dos efeitos imediatos ¢ um dos mais fecundos da Revoluclo, que contribuiu para @ propagacdo de todos os ideais revolucio- nérios, teve ela outra conseqiéncia que ndo podia ficar também sem profunda epercussilo nos dominios da vida cultural © pedagSgica do pais. ‘Trazer, nfo trazia a Revolugio, que desfraldou o estandarte liberal, um programa de po- Itica escolar nitidamente formulado ‘ou mesmo implicito num plano de reor- ganizaclo nacional que se propusesse executar quando as armas vitoriosas concentrassem nas mios de seus chefes os poderes da Naciio. Nem prevalecia, ‘a nfio ser em alguns dos grupos revolucionérios, de tendéncias mais avangadas, a idéin de que a posse do poder formasse a condicéo suficiente para grandes ‘transformagées sociais, cconémicas ¢ pedagégicas. No entanto, jé se havia criado uma conscitncia educacional; ¢ algumas aspiracdes de cultura, como a criacdo de um Ministério de Educacdo, a reorganizacio do ensino secundério € superior © a instituiciio de universidades, jé se integravam no programa de ‘uma corrente bastante forte para deixar de influir sObre o govémo revolucio- nério, e encontravam, no novo ambiente, as condigies mais favordveis & sua execusio. O Govérno Provisério criou, de fato, em 1930 o Ministério de Edu- cago ¢ Saiide que, segundo vimos, no foi mais do que um acidente episSdico € passageiro nos comegos da Repiblica, ¢ veio a constituir-se, com a solidez ¢ os progressos de sua organizacdo, um dos ministérios mais importantes no govémo revolucionfrio. No eminente reformador do ensino primério ¢ normal de Minas Gerais, o Sr. Francisco Campos, —um dos Iideres da Revolucio, encontrou 0 chefe do Govérno Provisério, St. Dr. Gzrdtio VARGAS, 0 homem talhado pela sua inteligéncia ¢ pela sua cultura, como por seu prestigio nos novos quadros politicos, para assumir o cargo de Ministro de Estado dos Ne- g6cios de Educacio ¢ Satide Pablica, de que tomou posse no dia 18 de novembro de 1930, afirmando, na sua incisiva alocugao, que sanear ¢ educar 0 Brasil cons- tituia “o primeiro dever de uma revolucdo que se féz para libertar os brasi- Ieiros””. A primeira reforma que empreendeu 9 novo Ministro ¢, sem divida, fa de maior alcance entre tédas as que s¢ realizaram, nesse dominio, em mais ‘de quarenta anos de regime republicano, foi a do ensino superior, que FRAN- cisco CaMPos reorganizou em novas bases © com grande seguranga ¢ largueza de vistas A parte central dessa reforma tracada no decreto n° 19 851, de 11 de abril de 1931, ¢ verdadeiramente inovadora de nosso aparelhamento de cultura é © estatuto das universidades brasileiras em que se adotou “como regra de or- ‘anizagio do ensino superior da Repiblica o sistema universitério”, e se exigiu para que s¢ fundasse qualquer universidade no pais, ‘‘a incorporasio de, pelo ‘menos, trés institutos de ensino superior, entre os mesmos incluidos os de Di- reito, de Medicina e de Engenharia ou, ao invés de um déles, a Faculdade de Educago, Ciéncias ¢ Letras”. Esta iltima particularmente, escreve FRAN- ‘cisco CAMPOS, referindo-se A nova organizaco da Universidade do Rio de ‘Janeiro, “‘pela alta funsio que exerce na vida cultural, € que da, de modo mais Stee a Lowrance Fue Anutrio de, Enaine de Estado de Sto ‘este egead la rol 28 Rea Jee, ASAI, Ske Pela" Broa, 2083, 304 A CULTURA BRASILEIRA acentuado, ao conjunto dos institutos reunidos em Universidade, o cariter prépriamente universitério, permitindo que a vida universitéria transcenda os limites do interésse puramente profissional abrangendo, em todos os scus as- Pectos, os altos e auténticos valores de cultura que & Universidade confere 0 cariter eo atributo que a definem e a individuam”. Atendia-se désse modo a uma viva aspiracio, velha de um século, e pouco antes claramente formulada e defendida com ardor em artigos ¢ depoimentos do inquérito sbbre a instrugao piblica em Sao Paulo, organizedo © dirigido em 1926 pelo autor desta obra, € no inquérito promovido em 1928 1929 pela Associagio Brasileira de Edu- dagio sbbre 0 problema universitério brasileiro.’ Nao se instalou a Faculdade de Ciéncias, Letras ¢ Educacao que se criou por aquéle decreto e devia orga- nizar-se como a espinha dorsal da Universidade do Rio de Janeiro, limitada ‘até entiio ao ensino de dircito, de medicina ¢ de engenharia; mas, com 0 pri- meiro Estatuto das Universidades brasileiras, se abriram as mais largas pers- pectivas nilo 96 a formacio do magistério secundério como ao desenvolvimento da cultura nacional sob todos os seus aspectos. O govérno que instituiu o en- sino universitario no Brasil, nfo podia deixar de enfrentar a reconstrugio do ensino secundério, sdbre cuja solider ¢ eficitncia repousa todo 0 ensino de nivel superior, profissional ou desinteressado: uma semana depois, a 18 de abril de 1931, assinava o chefe do Govémo Provisério, por proposta de FRANCISCO Casros, 0 decreto n.* 19890 que imprimiu ao ensino secundério a melhor organizacdo que j4 teve entre nés, clevando-o de um simples “‘curso de pas- sagem” ou de instrumento de acess0 20s cursos superiores, a uma instituicao de carter eminentemente educativo, aumentando-Ihe para sete anos a duracio do curso ¢ dividindo-o em duas partes, —a primeira, de cinco anos, que é a comum ¢ fundamental, ¢ a segunda, constituida de um curso complementar, de dois anos, destinada a uma adaptacéo dos estudantes as futuras especializagtes profissionais A criagio de um Ministério especializado para os servicos de educacéo © satide, ¢ a mudanca pela de “‘educacio” da ctiqueta ministerial “instrucfo” ou “instrugio piiblica”, com que, nos comecos do regime (1890) se organizou o Ministério ocupado por BaNyammm Consranr, ¢ que sempre acudia, como a denominacéo mais apropriada, t8das as vézes que surgia a idéia da restauragao dessa Secretaria de Estado, denunciavam, certamente, uma consciéncia edu- cacional mais profunda e um interésse mais vivo pelos problemas da educagio quase dez anos, lavrava em t6rno dos problemas pedagégicos e culturais, atingiu, porém, o seu maior grau de intensidade, n&io com essas reformas com que se satisfaziam algumas velhas aspiracdes ja claramente enunciadas, mas com a rejeigiio pelo novo govérno, da politica de neutralidade escolar, consagrada A RENOVACAO E UNIFICACAO DO SISTEMA EDUCATIVO 395 pais Cimetiteicto de 1861, « & lettnieto do endno religion nan escola p6- blicas. O decreto do Govérno Provisério, instituindo nas escolas oficiais o longos e acirrados, aprofundando a linha de demarcacio entre a maior dos reformadores, em cujo programa figurava a laicidade do ensino, ¢ os catélicos que tomaram posigies na defeea de pontos capitais do seu escolar, ¢, especialmente, do ensino religioso nas escoles piblicas. Pert casticm an metrn exei Jo avis sda ecomcinde con vier te precisio no Cédigo de Direito Canénico, promulgado em 1917 e, ainda mais Fecentemente, na enciclica de Pio XI (1929), em que reaparecem os principios ‘6 assinalados nesse Cédigo se proibe aos catélicos a freqiéncia as escolas niio 96 hostis as suas crencas mas mesmo Aquelas que tivessem por programa a neu- tralidade escolar em matéria religiosa. A Igreja que se havia mantido em ati- tude de espectativa senfio de desconfianca, em relacdo ao movimento de re- formas pedag6gicas, langou-se na batalha, desfechando uma ofensiva contra 08 iiltimos reformadores, que aliés nunca admitiram “fosse permitido nos professores ofender, de qualquer modo, os sentimentos religiosos dos alunos”, mas cuja atitude, em face dessa questio de neutralidade escolar, atrafa sobre les a suspeita, raramente fundada, de defenderem doutrinas 'materialistas ou extremadas. Esses dois grupos entraram francamente em conflito, ntlo s6 quanto a Pontos de vista doutrindrios, relativos aos problemas pedag6gicos e as relacoes entre o Estado e a educacio, mas particularmente quanto execucio do deereto s6bre o ensino religioso que ocorreu a principio numa atmosfera carregada de suspeitas e de prevencSes. Em 1931, publicava o Centro D. Vital, num pe- queno volume, uma série de artigos de combate, sob o titulo de Pedagogia da Escola Nova; Tristio De ATAfDE lancava o seu livro Debates pedagé¢icos; © Pe. Leonet FRANCA, ilustre jesuita, retomava em sua obra fundamental Ensino religioso e ensino leigo, a questo do entino religioso, estudando-a ‘a tOdas as luzes e com abundante documentacdo; ¢ reunia-se, na Ctiria Metro- politana, da capital paulista, o primeiro Congresso Catélico de Educagio, pro- movido pelo Centro D. Vital de Sfo Paulo Na maior parte dos trabalhos que entio se publicaram, como nas teses defendidas nesse Congresso, as idéias mais ardentemente combatidas pelos catélicos que definiram a sua posico em face do Estado e da escola oficial, foram a da Iaicidade do ensino, a da coedu- aco dos sexos ¢ a do monopétio da educacio pelo Estado. As pretensdes totalitirias do Estado em matéria escolar pareciam, no entanto, encontrar mesma resistencia da parte dos cat6licos como de varios Iideres ¢ reformadores contram o ambiente favorivel ao seu desenvolvimento natural e aos seus pro- aressos em tédas as diresées. A luta que dat por diante se travou em témno das 295 A CULTURA BRASILEIRA fases de seu desenvolvimento. Ainda no memorial que mais tarde, em 1933, foi apresentade & Comiss2o Constituinte, resumiam os catélicos, numa exposicéa firme ¢ serena, as suas reivindicagées principals, pedindo, entre outras medidas, se considerasse a religido, como matéria de ensino nas escolas publicas (art. 4) para os alunos cujos pais ou tutores houvessem manifestado explicitamente ‘a sua vontade a respeito(§ 1.°)e proclamando (art. 2, § 1.*), sob o fundamento de ser a familia anterior ao Estado, que aos pais incumbe o dever ¢ assiste- 0 direto natural de educar os fihos, podendo cumprir ésse dever nas escolas pi Dlicas, nos estabelecimentos particulares ou no lar doméstico."* Foi, pois, a questo do ensino religioso, reposta pelos reformadores, que desencadeou ou tornou mais aspera a luta que, se niio teve por fim, teve certa- mente, como uma de suas conseqiiéncias, criar uma incompatibilidade quase irredutivel entre a idéia religiosa e a idéia renovadora da educagiio. Nos co- megos do regime, quando a Constituicio de 1891 consagrou o principio de lai- cidade do ensino, a campanha contra a politica de neutralidade escolar havia produzido efeitos semelhantes. A luta que entilo se travou parecia ter por ob- jetivo, no seu esforco, criar entre a idéia religiosa e a idéia republicana um féss0 cada vez mais profundo e ruinar assim, na alma popular, com 0 concurso dos poderes piblicos, as crencas tradicionais da Nacéo. Tao longe, porém, de ‘combaté-las estavam os reformadores de 1928, no Distrito Federal ¢ em Minas Gerais, que, por vrias vézcs, fizeram sentir em discursos ¢ entrevistas a neces- sidade © 0 dever de o Estado respeitar as fontes de vida moral e religiosa, em ‘que tantos homens alimentam a energia necesséria para se dedicarem melhor 0 interésse geral € a0 servico piiblico. Retomando o principio de laicidade, aliés na vigéncia do regime que o instituiu (estava ainda em vigor a Consti- tuiclo de 1891), de forma alguma confundiam ou pretendiam confundir a im- parcialidade entre as diversas confissdes religiosas em uma naglo em que jt no existia a unidade de crengas, com 0 ““laicismo” que faz da irreligido uma espécie de religiéo do Estado. Como quer que seja, as divisdes se acentuaram de tal maneira que nao foi possivel estabelecer uma “zona de concordancia’” entre os dois grupos, na IV Conferéncia Nacional de Educacio, reunida de 13 a 20 de dezembro de 1931, ¢ a que 0 chefe do Govérno Provis6rio ¢ 0 Mi- nistro da Educagio e Saide confiaram a incumbéncia de definir os principios da educacio” ¢ a “formula mais feliz” em que se pudeste exprimir a politica eacolar da Revolugio. Os debates travados em témo das questdes fundamentais postas pelo govérno da Replica evidenciaram as dificuldades em que a As- sembléia se encontrava para resolvé-las © que a levaram a deixd-las sem res- posta, para matéria de discussdo em novo Congreso, Jé nfo se podia alimentar fa esperanga, alis iluséria, de se constituirem os educadores numa organizacio que fésse no um “partido”, mas uma “associscSo nacional” em que se agru- assem todos, sem distincdo de religiio c de partido, para tragarem uma po- Iitica escolar ¢ cultural que fésse o programa do govérno, na parte educacional, para a obra de reorganizagao do pats. Dessa situacio de perplexidades ¢ hesitacées, como de susptitas ¢ divér- xéncias, € que nasceu, num dos grupos em que se dividiu a assembléia a idéia de confiar ao autor desta obra a incumbéncia de, como reformador ¢ intéxprete da nova corrente de pensamento pedagégico ,“‘consubstanciar num manifesto (08 novos ideais ¢ fixar dessa maneira 0 sentido fundamental da politica brasi- 12 v.01 problemas de adacego.n Constitute, Memorial ectentdo sant ox micron ptcesers bchceacs csi do DaneitaPedere coe Watedon eral as A RENOVAGAO E UNIFICACAO DO SISTEMA EDUCATIVO 397 leira de educacio”.!! Essa resolucio da corrente ideolégica, cujos principios € aspiragies NGnmeGa DA CUNHA FROTA Pessoa, entre outros, defenderam com ardor € preciso, foi comunicada ao reformador do ensino no Distrito Fe- eral, que entio se achava em Sio Paulo ¢ accitou a miso em que o inves ‘ticam e a tarefa que Ihe reservaram os partidarios, naquela assembiéia, de uma ‘nova politica de educaclo no Brasil"? No manifesto dos pioneiros da edueacio ‘nova, apresentado a0 povo ¢ 20 govémno ¢ publicado em 1932, no Rio de Ja- ineiro e em Sio Paulo, com a assinatura de numerosos professores, langaram-s¢ as diretrizes de uma politica escolar, inspirada em novos ideais pedagdgicos | secisis € planejada para uma civilizacao urbana ¢ industrial, com 0 objetivo de romper contra as tradicées excessivamente individualistas da politica do ‘pais, fortalecer os lagos de solidariedade nacional, manter os ideals democré- ticos de nossos antepassados e adaptar a educacio, como a vida, ‘ds transfor- maces sociais ¢ econémicas, operadas pelos inventos mecinicos que governam faa forcas naturais ¢ revolucionaram nossos habitos de trabalho, de recreio, de comunicagio ¢ de intercimbio”."" A defesa do principio de laicidade, a nacio- nalizacdo do ensino, a organizacio da educacdo popular, urbana ¢ rural, a re- ‘erganizagio da estrutura do ensino secundario e do ensino técnico e profissional, a criaglo de universidades ¢ de institutos de alta cultura, para o desenvolvi- mento dos estudos desinteressados da pesquisa cientifica, constitufam alguns dos pontos capitais désse programa de politica educacional, que visava forti- ficar a obra do ensino leigo, tornar efetiva a obrigatoriedade escolar, criar ou estabelecer para as criancas o direito a educacao integral, segundo suas aptiddcr, facilitando-Thes 0 acesso, sem privilégios, ao ensino secundério € superior, ¢ alargar, pela reorganizacio ¢ pelo enriquecimento do sistema escolar, a sus esfera ¢ os seus meios de acio. E, como hoje mais do que nunca o ensino em geral pode ser comparado a um jogo de xadrez em que ““o deslocamento um pidio acarreta uma mudanca geral da situacao sobre todo o tabuleiro’ procurou-se estabelecer uma como que “orquestracao” do sistema escolar, no sentido de articular e harmonizar tédas as pecas do sistema e levar em conta ‘as mituas repercussdes dos ensinos dos diversos graus ¢ tipos ¢ as reagdes das instituigdes umas sbre as outras. Seja qual for 0 ponto de vista em que nos coloquemos, para apreciar ésse documento ¢ que nos poder levar @ combaté-lo ou a apoid:lo, nao se pode contestar que no manifesto de 1932, —A reconstruco educacional no Brasil”, se analisa o problema da educacao nacional sob tados os seus aspectos, se de- finem os princfpios e se tracam, pela primeira vez, as diretrizes de um pro- grama geral de educacio, cujas pecas articuladas entre si, num plano sistemé- tico, sao subordinadas a finalidades precisas que atuam sdbre todo 0 conjunto. Ja havia chegado certamente, — escreviamos em 1932, na introdugiio a ésse documento pablico, —‘‘o momento de definir, circunscrever ¢ dominar o pro grama da nova politica educacional por uma vista organica e sintética das ‘modernas teorias da educacao, na qual, extraida a esséncia das doutrinas, se 398, A CULTURA BRASILEIRA ‘208 novos fins € necessirios para realizilos”.!" A idéia de um sistema com- pleto de educacio com uma estrutura orgainica, e a construco, em consequiéncia, de um sistema de ensino, flexivel ¢ tanto quanto possivel unificado em todos os graus ¢ no qual teoria ¢ pratica sio estreitamente conjugadas; a unidade de uma politica nacional, dominando, pelos prineipios ¢ normas gerais fixados pela Unifio, a variedade dos sistemas escolares regionais; o papel que atribui ‘a0 Estado, como érgio verdadeiramente capaz, nas condigdes atuais, de rea- lizar o trabalho edueativo; a prioridade conferida ao principio de atividede © & livre pesquisa; a penetracdo de todo o ensino pelo espirito cientifico © a rees- truturaco do ensino secundario em vista do desenvclvimento do ensino téc- nico ¢ profissional, do a ésse documento piblico uma importancia que ndo se pode deixar de reconhecer e ainda nfo foi devidamente apreciada nes suas conseqiiéncias reais, ndo s6 no dominio do pensamento brasileiro, em matéria ‘escolar, como também no terreno das realizacdes, sob a influéncia direta, con- fessada ou nfo, de muitos de seus principios fundamentais. “O grupo de edu- cadores, que acaba de lancer o manifesto, contendo 0 esbdgo de uma politica ‘educativa, abriu uma nova fase de aco construtora no dominio das idéias”,— observava em 1932 AZEVEDO AMARAL que reconhecia, nesse mesmo artigo, ter ‘ido 0 manifesto “Yo primeiro pronunciamento de expoentes da cultura nacional no sentido de determinar diretrizee nitidas A solucio de um problema, nesse perfodo de necessiria renovacdo da vida brasileira’.! Nao foi o manifesto ‘apenas uma “‘declarac3o de principios", que teve grande repercussio e suscitou numerosos debates; nem sdmente um documento pelo qual um grupo de edu- cadores tomou posicdes em face dos mais graves problemas da educagao na- cional; mas ainda um vigoroso esférco para constituir uma nova politica edu- cacional e propor & execucdo um dos mais largos planos escolares que j& ee tra- saram no A IV Conferéncia, em cujos debates se levantou a idéia de uma declarecio de princfpios ¢ de um programa de politica educacional; o manifesto dos pio- neiros da educaco nova, lancado logo depois, em 1932, ¢ a V Conferéncia Na- cional de Educaco que se reuniu em Niter6i, nos Giltimos dias désse ano, ¢ foi ‘a mais notével das que se reelizaram por iniciativa da Associacao Brasileira de Educagio, constituiram, sem dévida, o ponto culminante da grande cam- panha, iniciada com a reforma de 1928, pela renovacdo pedag6gica © por uma politica escolar de cardter nacionel, nas linhas gerais de seu plano © nos seus objetivos essenciais. Nessa Conferéncia, realizeda sob o patrocinio do govérno do Estado do Rio, quando era diretor geral de instrucio Crso KELLY, ndo ‘se colheram sdmente os proveitos que se obtém nesses encontros periddicos, e consistem, sobretudo, num alargemento de horizonte mental e numa aproxi- magiio maior dos homens para miitua compreensic: “o conhecimento pessoal direto de pessoas ocupades no mesmo officio, que se desconhecem ou mul se conhecem, estreitando simpatias, alicergando amizades, entrelagando anscios comuns ¢ plantando na imensidéo désse Brasil distenso, segundo a expressio vigorosa de FRaNctsco VENANcro Frito, pegoes firmes de uma ponte de co- operacto ¢ solidariedade & obra urgente da educacio dos brasileiros’". Tendo como objetivo principal senZo finico, apreciar sugestdes de uma politica escolar ¢ de um plano de educacio nacional para © ante-projeto da Constituicio, a V Conferéncia reunida em Niteréi discutiu e aprovou, depois de longo estudo pela Comissio dos 32, 0 plano da educagio nacional, elaborado pela Comissio WA reconatrupso educations! no Brasil. Ao porous govtens, Manifest ov posse da ecacto soa. ‘Cop Bator Races, S80 Pas, 852, pat 3. dealt MEET Aaaaase © Evade + Bavensta tm “0 Jal do ln de Jno, de 27 de marco A RENOVAGKO E UNIFICACAO DO SISTEMA EDUCATIVO 399 dos 10, © destinada a reconstrucéo em novas bases, do sistema de educactio € cultura no pais. A Comissio dos 32, a cuja presidéncia foi elevado 0 autor desta obra que ja faria parte da Comisséo dos 10, teve como relatores Lov- RENCO FILHO, o reformador do ensino em S80 Paulo em 1931, ¢ Anisio Txi- “2XEIRA, que jé se empenhava a fundo nas reformas escolares do Distrito Federal, ‘As diretrizes por que se orientou o novo programa educacional; os debates iniciais que provocou o exame de um problema verdadeiramente complexo como 0 da educaclo ¢ a intransigencia na defesa de pontos de vista divergentes tendo opostos, acentuaram a cisfo que logo se declarou, ma segunda sessdo pleniria, e que deslocou para a nova corrente do pensamento educacional o predominio na assembléia, com a rentincia do presidente FERNANDO DE Ma- GALHAES © a aclamacio do nome de LoureNco Frixo, para substitui-lo, na diregdio de seus trabalhos. Bsses dois grupos mantiveram-se abertamente em oposicio até 1937, — ‘ano em que o golpe de Estado cortou pela autoridade 0 conflito, amainando as polémicas, arrefecendo as paixdes ¢ impondo, como linha de conduta, no dominio ‘educacional, uma politica de compromissos, de adaptagio e de equilfbrio. Nem ‘por ter atingido 0 seu perfodo de maior acuidade entre 1928 e 1933, deixou de esenvolver-se ésse conflito de tendéncias, variando a luta segundo as regides, © gran de preparacdo do professorado € segundo a natureza ¢ intensidade das felattacies, ‘No ve pose, portm, circanscever o dominio deveas Intas, no terreno pedagégico, a uma discordancia ou oposicao entre a politica escolar da Igreja ¢ a nova politica de educasio, que adotava, como pontos de programa, SGesse atacote svodie 5x aque, comes condorsite © 5 Jcidade- Gs ‘Essas lutas complicaram-se, sem dévida, tornando-se mais ésperas Sess as tox damenrsivionsin tows conten to Uaclogin da saqaeraa'e de direita, comunistas ¢ fascistas, que fundaram na Europa, sobre o regime de ‘um partido e em nome de um ideal de classe, de raga ot de nacio, o Estado to- talithrio destinado a fazer a guerra eo capitalismo ou ao marxismo e que entlo repercutiu no Brasil mais ou menos violentamente, pela organizagao ¢ pelas atividades de partidos extremistas, Mas, desencadeadas pela reacéo da Tgreja contra algumas das idéias reformadores; sacudidas ¢ turvadas pelos choques de doutrinas extremadas, ¢ de tentativas de infiltracdes de partidos subver- sivos, esas campanhas de renovacio escolar tiveram, nas suas origens, ¢ con- servaram, em todo o seu curso, & oposicao, que € um fato normal e ccnstante em tédas as sociedades, entre novos e velhos, entre tradicionalistas ¢ renova- dores, € que, tendo-se mantido larvada ou mal dissimulada, no primeiro mo- mento, se tomou aberta quando surgiram as circunsténcias favordveis As re- presilias € as resistencias, No livro O rejuvenescimento da politic ‘que se publicou, em 1932 0 inquérito feito na Franca entre intelectuais que nao podiam ter nem menos de 30 nem mais de 40 anos, e entre os quais figu- ravam DANTEL Ros, ANDRE WURMSER, Prerre Cot, MARCEL D#AT, ROBERT GaRRIc € outros, fé2-se sentir em diversas respostas a resisténcia apresentada {As inovagGes pelos velhos como a necessidade de se combater a intervencio dos ‘velhos na politica, que dificultam a renovacéo de todos os valores.!* “As re- volugées esto cheias de velhos que impedem a obra renovadora (observava um); € preciso, pois, rejuvenescer a revolucdo para que se rejuvenesca a polf- tica. Homens mocos ¢ realizadores para as posigdes, reclamava outro. Es- tamos em face de um conflito entre duas mentelidades, uma que luta porque esti morrendo, outra que luta porque est nascendo”, concluia um tereeiro, Por outras palavras que tédas indicavam o obstaculo as vézes invencfvel oposto pela rotina € pela tradigfo A instauracéo de idéias renovadoras. WY, Le Rajeuninement de ta poltioues Eeitcos R. A. Cerin, Pain, 1902,

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