You are on page 1of 12
O COTIDIANO DE UMA ESCOLA PUBLICA DE 1° GRAU: UM ESTUDO ETNOGRAFICO* ANTONIO DOS SANTOS ANDRADE do Depto. de Psicologia/UFU RESUMO © cotidiano de uma escola pablica de 12 grau om Uberiéndia (MG) foi estudado através de técnicas etnogréficas, para compre fender como ae produz 0 fracasso escolar. A partir dos resultados ‘obtidos,revela-se uma cinamicainta-escolar marcada por confi 103 € antagonismos, identificados nos ues niveis bésicos que 2 ‘aracterizam: entre professores o “especialistas", entre professo- res e alunos @ entre o conhecimento académico @ o conhecimen- to cotidiano. Estes confit s4o considerados como consttutivas da cialética do cotidiano da escola piblica de perfeia, Apresen- tam-se sugestdes para uma atuaco do profissional escolar como forga progressista no interior desta instituigdo, buscando va transtormacio, ABSTRACT ‘This ethnographic study of everyday life In a public elementary ‘school in the State of Minas Gerais, Brazil sims at understanding ‘how schcol faliur is produced. Tho results show an intra-sehool ‘dynamics featuring three basic levels of contits and antagonism: between teachers and “specialists, teachers and students and between academic knowledge and everyday knowledge. These Conticts are considered as constituents of everyday dialetics of public schools in similar situations. Suggestions are put forward egarding the participation of school professionals as progressive actors within the institution, aiming at its transformation, * Este artigo ¢ condensado da tose do autor (Andrade, 1986), que contou com apoio do INEPMEC para as auxiliares de pesquisa Aurea do Fatima Oliveira, lone Aparecida Siva, Luzia Aparecida da C. Borges, Marla de Fatima O, Aveiro, Maria Rodrigues Naves e Marta ‘Aparecida Assusna. Cad. Pesq., So Paulo (73): 26-37, malo 1990 ‘As pesquisas sobre as causas da repeténcia @ da evaséo na escola pdblica de 12 grau acumuiaram um grande volu- me de dados, principalmente nas titimas décadas. Apesar disto, a situacéo da produtividade da escola publica cont- nua a mesma. A literatura parece nao ter consequido pro- duzir resultados que lever a uma superagao deste proble- ‘ma fundamental da educagao no Brasil Questées colocadas no inicio, ow na metade deste ‘século, continuam validas até hoje, conforme revela Patto (1968). Para esta autora, 0 grande entrave destas pesqui- ‘sas reside sobretudo na incapacidade de se livrarem de pressupostos preconceltuosos em relacao & crianga.po- bre, tipicos das publicagbes do inicio deste século!A utl- ago de uma fundamentagao tecrica merxista, muito fre- ‘iene nas pesquisas das duas citimas décadas, parece ‘do ter sido suficiente para que superassem o postivismo ‘ou neoposttvismo, que as tem levado @ uma abordagem segmentada da realidade educacional Rockwell e Ezpeletia (1983 ¢ 1985; Ezpeletta © Rock- well, 1989 e 1986; Rockwell, 1982; Ezpeletta, 1984) também tém insistido na necessidade do desenvolvimento de no- vas alterativas tedrico-metodolégicas para a pesquisa ‘educacional, Propoem sclugoes semeihantes.& de Palto (1988), ao defenderem que a saida para a pesquisa educa- Cional se encontra no desenvolvimento de uma abordagem ‘e6rico-metodol6gica inspirada pela sociologia da vida co- tidiana de Agnes Heller (1972, 1977, 1978, 1982 e 1983). Rockwell (1986) realizou uma reviséo critica da iteratu- ra resutante da utilzagéo de técnicas etnogrdficas na pes- guisa educacional, onde mostra a insuficiéncia das corren- tes de pesquisa que ali se consituram. Em seguida, pro- p62 uma alternativa teGrico-metodoligica onde detende a Tealizagéo de estudos etnogréficos que, contrastando com ‘as caracteristicas das correntes revisadas, busquem: “complementar as informagdes de campo com informa- ‘9608 relativas a outras ordens sociais"; interpretar @ expli- ‘car estes dados “a partir de elementos externos & situagao Panicular’; “integrar a informagdo histérica local (docu- ‘mental e ora!) e geral com a andlise etnogréfica”; “construit ‘categorias que revelem tanto a interagéo como a disténola centre a escola e sua ambiéncia social’; partic de uma “con- ‘cepgdo de mundo e da prética como incoerentes e contra- {it6rias, coexistindo nelas sentidos divergentes, cujos mo- tivos se encontram unicamente no rastreamento de sua histéria"; conceber “os objatos de estudos signficativos ara a pesquisa etnogréfica” sempre como “processos socials Neste artigo apresentamos os resutados de uma pes- quisa na qual buscamos dar conseqdéncia & alterativa te¢rico-metodolégica acima, em uma escola pablica da periferla do municipio da Uberlandia (MG), onde por tr8s anos participamos de sua vida cotidiana, para compreen- der como se produz o fracasso escolar, especialmente nas duas primeiras séries do 12 grau AESCOLA ESTUDADA Na zona urbana da cidade de Uberlandia (MG), 0 ensino pablico de 12 grau é da responsablidade da rede estadual, coordenada pola Delagacia Regional de Ensino, que conta- ‘va, om 1986, com 57 escolas de 12 grau. (A Secretaria Cad. Pesq. (73) malo 1990 Municipal de Educagao mantém 45 escolas de 12 grau na zona rural, apenas duas escolas de 1° grau @ 2¢ inst ‘¢6es do ensino pré-escolar na zona urbana) ‘A escola estudada pertence & rede estadual e situa-se fem um dos bairros periféricos da cidade. Inolul salas de primeira & quarta séries do 1? grau, funcionando em dois ‘urns, matutino e vespertino. A noite, funcionam apenas algumas sales de afebetizagao de aduitos. O total de tu ‘mas de primeira & quarta série no ano de 1982 era de 24, tendo sido amplado em duas turmas nos dois. anos seguintes. © espago fisico da escola muito pequeno para 0 numero de séries que funcionam em. seus dois tures, Dispondo de apenas 11 salas de aula, a dregao vé-se obrigada a ocupar locals destinados a outros fins como locais de reunido, biblioteca etc. A sala da diragéo serve também para vice-dirego. Ao lado da quadra de esportes hha um patio coberto que acomoda em um canto algumas ‘mesas de aivenaria, onde se serve a merenda escolar para as criangas, e que também 6 usado como sala de aula Este patio de merenda era sempre ocupado pela “classe especial” ou pelas classes de repetentes, Algumas peque- nas ampliag6es, tr6s salas de aula @ uma para reunices, foram conseguidas pola direcéo a partir de gestbes junto a entidades filantropicas @ & prefetura municipal, nos dois uitimos anos de nossa convivéncia com a escola. (© material escolar — carteiras, mesas, louses — 6 muito precério, velho e de péssima qualidade. A cada ano, a escola recebe algumas carteras, que substtuem as mais antigas, jé sem condigdes do uso. H4 muita falta de mate- vial de consumo: papel sulfite, metrizes para mimedgrafo, lépis, borrachas, cademos @ ivos. Os procedimentos utilizados Os papéis assumidos pelo pesquisador dentro da escola evoluiam, com © passar do tempo, no sentido de um ‘aumento em panicioagao @ envolvimento com o cotidiano da escola, No primeiro semestre da pesquisa, as observagoes, a pedido da diregéo da escola, foram realizadas na “classe ‘especial’, turma constituida intelramente por alunos repe- tentes da primeira série, alguns com grande nimero de repetBncias. Com a nossa presenca frequente na escola, sentimos ‘que a maior familaridade propiciava-nos 0 acesso’a novos dados e novas informagbes. Mas a8 quest6es mais cru- ciais e mais confitivas da escola S6 nos foram reveladas quando passamos a coordener grupos de professores, também por solictag&o da administragéo, principaimente quando seus integrantes passaram a se beneficiar de nos- 08 encontros semanais. ‘A compreensao permanecia ainda ao nivel da escola, como um todo. Sobre a relagao professor-aluno, tinhamos muito pouca informac&o! Dal a op¢4o, iniciada no terceiro ano da pesquisa, de colocar estagidrios dentro da sala de ‘aula como observadores participantes, no papel de auxiia- res do professor, presentes todos os dias da semana. Esta ‘0p¢a0 resullou de um pedido dos préprios professores, no encerramento das atividades dos grupos aotinal do segun- do ano de pesquisa, para os aunliarem naimplantagao das conclusdes alcangadas nas discussoes. e ullizando algumas das Ctogorias propostas por Rockwell (1882) em sua andlise do cotidiano de escolas pri © primeiro, mais geral e abrangente, o da organizagao_ ‘escolar, inciui as disputas entre o segmento administrative (iregéo, vice-diregéo, supervisdo pedagégica @ orienta {¢80 educacional) ¢ os professores. O segundo, da prética docente, ocorre na interagao professor-aluno. O terceiro se 44 entre 0 conhecimento cientfico transmitido pela escola 0 conhecimento cotidiano adquirido por alunos e profes- sores, referindo-se ao conhecimento escolar. ‘A ORGANIZAGAO ESCOLAR As relagoes de poder na escola AA tarefa de buscar recursos junto as autoridades muni pais © érgdos filantrépicos afastava a dirego do cotidiano ‘da escola. As atividades de direcéo passavam a ser realiza- das pela vice-

You might also like