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snitt2023, 17:47 PDFs viewer O “SISTEMA LITERARIO” Jtamar Even-Zohar Tradugio: Luis Fernando Marozo! ‘Yanna Karla Cunha* Revistio Linguistica: Raquel Bello Vazques . A extensiio do “sistema literério termo “sistema” é problematico devido a seus mnitos usos. Quando falamos do “sistema da literatura” (ou do sistema literiio) € ficil confundi-lo com o uso popular de “sistema” em expressdes tais como “o sistema politico”, que denota vagamente “o conjunto assumido das atividades politicas”. O uso desse temo em tais expressdes correntes é claramente a~ tedrico: nele nao ha compromisso com nenhuma aproximagao tedrica especifica a pesquisa desse “sistema”. Na teoria dos polissistemas, no entanto, o termo supde um compromisso com o conceito de “sistema” do fimcionalismo (dindmico), isto é, a rede de relagdes que podem hipotetizar-se (propor como hipétese) para um conjunto dado de observiveis (“eventos”/ “fenémenos”) . Isso implica que “o conjunto de observaveis assumidos” nao é uma “entidade” independente “na realidade”, pelo contririo, ¢ uma entidade dependente das relagdes que alguém esteja disposto a propor. A luz dessa dependéncia a teoria pode permitir um uso mais flexivel do termo “sistema” como uma expressiio abreviada, que se entende como representagio da expresso mais ampla, Em lugar da expresso explicita [4] “o conjunto de dados observaveis que se supde govemnado por uma rede de relagdes (ou seja, aqueles para os quais é possivel hipdteses de relagdes sistémicas), e a que. em vista da nos penmitimos usar a natureza de tais relagdes hipotetizadas, chamaremos ‘lterdrio expressio abreviada [B]: “o sistema literario”. 2 Professor Adjunto de Literatura na Universidade Federal do Pampa/Campus Jaguario Mestcanda em Historia da Literatura na Universidade Federal de Rio Grande ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 12a snitt2023, 17:47 PDFs viewer Assim, o uso “sistemistico” dessa expressio rejeita claramente a reificagao a priori do “conjunto” a que se refere. De modo breve, o significado de “sistema literdrio” para a teoria dos polissistemas pode ser formulado assim: ‘A rede de relagdes hipotetizada entre uma certa quantidade de atividades chamadas “literdrias”, e consequentemente, essas atividades observadas através dessa rede. ow © conjunto de atividades — ou qualquer parte dele — para que relagdes sistémicas que findamentam a opgio de consideri-Ias “literdrias” podem ser hipotetizadas ‘A pergunta que surge na continuagdo nao é “O que € o sistema literdrio?”, mas “Quais so as atividades que, a partir de um ponto de vista teérico, poderiam se considerar regidas por relagdes sistémicas literirias?”. Do ponto de vista da teoria dos polissistemas, tal como foi descrita acima e nos meus trabalhos prévios (Even-Zohar 1990a; 1990b), “O” sistema literdrio nao “existe” fora das relagdes concebidas para operarem nele e para ele. Desse modo, tanto faz se nos servimos de um concepsio couservadora do “sistema”, ou se adotamos 0 conceito dinamico (polissistema), nao ha um conjunto de “observaveis” que “seja” a priori uecessariamente parte desse istema”. Advogar pela inclusio ou exelusio de certas circunstancias/earateristicas no “sistema” nfo & uma questio da deserigao sistémica da literatura, mas um problema do maior ou menor éxito que pode se aleancar mediante um procedimento ou outro do ponto de vista da adequagao teérica. “A adequagao teériea”, certamente, deve se defender em cada caso especifico, razao pela qual nfo se pode ter um acordo a priori acerea das atividades que devem ou néo ser consideradas “parte da literatura”. “A eleigdo entre considerar uma varidvel exdgena e torné-la endégena, uma varidvel determinada pelo sistema de fungdes, é questio de relevaneia e conveniéncia” (Machlup 1981:4). Onde nos leva este argumento? Claramente, nos leva a admitir que um acordo sobre a compreensio de nogdes tedricas tais como “sistema” ou “polissistema” nado conduz necessariamente a um acordo acerca do leque de fendmenos para os quais se cré que o ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer “sistema” esta “em vigor”. Junto aos distintos desenvolvimentos da teoria do (poli)sistema desenvolveram-se efetivamente diferentes visdes desse leque, mas estas nfo foram transformadas em parte integrante da teoria. Inicialmente, a teoria dos polissistemas era capaz de desenvolver suas visdes dos processos literérios ainda que a gama de fitores que assuinia como participantes nesse “polissistema” estivesse limitada tao somente a tragos textuais, enquanto que todos os demais fatores envolvidos eram considerados mais “restrigbes” do que “fatores” do polissistema. No entanto, e porque no coragao mesmo da teoria dos polissistemas reside a ideia de que nao se pode dar conta dos conjuntos de modo produtivo se considerados separadamente, a teoria dos polissistemas foi gradualmente empurrada a ampliar o leque de fatores que se reconhece como “pertencentes ao sistema”. Creio que no caso de Tynjanov, a quem esta perfeitamente justificado considerar o verdadeiro pai do enfoque sistémico, o leque de observiveis para os quais 0 “sistema literdrio” era uma nogio vilida estava mais ou menos/de alguma forma estreitamente ligada 4 ideia de “textos”. A nogao de pretextos/pré-textos, isto é, “modelos”, emerge em seus estudos em relagao com a nogao de “sistema” de um modo unicamente implicito. Assim, eventos “mais remotos” como © conjumto de atividades relacionadas com os diversos fatores da produgdo de textos estio ligados com a ideia sistémica somente de maneira implicita (embora estejam amplamente discutidos em seus escritos). Manter que Tynjanov “concebe a literatura” como um “sistema” pertencente a totalidade da produgao e consumo literdrios (qualquer que seja a natureza desses) seria correto sé como inrerpreracdio estendida (e adequada, acredito) de sua obra, nao como citagao direta deste. Basta ler a maioria das deserigdes clissicas do Formalismo Russo para dar-se conta de quio implieitas, estio, de fato, as ideias de Tynjanov. Se estivessem mais explicitas, nio haveria necessidade de expé-las uma ¢ outra vez diante de toda a classe de leituras errdneas ¢ miopes ‘Uma postura mais clara, ainda que de modo algum completamente explicita, é a que adota © colega mais proximo de Tynjanov, 0 membro do grupo Formalista de pensamento mais metodolbgico e teorico: Boris Ejxenbaum (Eikhenbaum). Em sua obra, a “literatura”, claramente concebida em termos fimeionalistas, j4 nao é “textos”, como nos primeiros anos 4 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer do Formalismo, nem, de modo vago, “textos cuja produgdo est constrangida por normas que regem a atividade literdria dominante”, e sim a totalidade, ou melhor, a rede dessas atividades. Para enfoques retrdgrados da literatura, estas posigdes (que cristalizaram por volta dos vinte aproximadamente) se consideravam uma “‘traigiio” ao “verdadeito espirito do Formalismo”, que presumivelmente deveria concentrar-se no produto “final” (¢ dai o mais importante, por assim dizer) que a literatura pode produzir: a “propria obra”. Os principais estudos desta porgao da obra de Ejxenbaum a descrevem como o resultado da pressiio que exercem os inimigos do Formalismo, sobre tudo 0 “Marxismo vulgar” da Epoca. O hoje classico ensaio de Ejxenbaum “Entomo Literario” (1929) ¢ entendido, pois, como uma hipécrita concessio a seus adversarios (como uma tentativa de sobreviver e salvar 0 projeto mais valioso do Formalismo tardio, o Instituto para o Estudo da Literatura de Leningrado) ‘Nada mais longe da verdade, Ejxenbaum nao fez concessdes a adversirios politicos: estava simplesmente extraindo de modo gradual as conclusées do ponto de partida de Tynjanov e dele mesmo. Desde seu primeiro “manifesto” fimeionalista (os trabalhos de alunos reunidos € editados por ele e por Tynjanov [Ejxenbaum e Tynjanov 1926]), © caminho conduz diretamente a obras posteriores em que 0 “produto” literdrio ¢ discutido, analisado ¢ deserito em termos da complexa rede de relagdes que o condicionam. Este desenvolvimento nfo se produziu casualmente: Ejxnenbaum estava claramente insatisfeito com as solugdes vagas que foram propostas para explicar as relagdes entre a “literatura” e outros sistemas na cultura, Ainda que Tynjanov deixasse claro que a “literatura” é tanto auténoma como heterdnoma, ou seja, que regula a si mesma ao mesmo tempo em que esta condicionada por outros sistemas, nfo prestou atencio suficiente a formulagio dessa heteronimia, Para Ejxenbaum, este é precisamente 0 ponto que nis deve ser iluminado/focado quanto as regularidades da literatura. Portanto, o mais importante para ele foi averiguar a classe de relagdes existentes entre as leis que regem a produgao de textos literitios, deduzidos de tais textos, e as forgas que geram estas leis, as promovemn ou as fazem desaparecer. Foi desse modo que emergiut a nogao de “vida literéria” (2y1), nfo como fator “ambiental” no sentido de “contextual” (como pode concluir-se erroneamente do ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 4124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer titulo da tradugao inglesa do primeiro ensaio sobre o tema citado antes), mas como parte essencial das intrineadas relagdes que regem o agregado de atividades que constituem a “literatura”, Do verdadeiro ponto de vista de Ejxenbaum, o “sistema literdrio” compreende, assim, uma gama de eventos/fatores muito maior do que é aceito normalmente nos estudos literarios convencionais. Para ele, nao tinha sentido falar dos famosos aspectos “extrinsecos” e “intrinsecos” no sentido primitivo defendido por Wellek (quem, infelizmente, nunca se preocupou plenamente em estudar 0 Formalismo Russo), Nesse sentido, como defendi no Colloque International Ejxenbawn, Ejxembaum. desenvolveu efetivamente uma visio muito préxima aos campos literdrios de Bourdieu, ou seja, a literatura como agregado de atividades, que em termos de relagdes sistémicas se comporta como um todo, ainda que cada atividade separada dentre elas (ou qualquer parte delas) possa participar ao mesmo tempo de algum outro todo, sendo regida nele por leis diferentes e estando correlacionada com diferente fatores. So as leis do “sistema” especifico (0 agregado de atividades para o qual a “sistemicidade” pode ser hipotetizada) as que explicam sua natureza e comportamento. Assim, a “prodngio de textos” nao se identifica de modo simples com “a produgao de qualquer outra coisa”, ¢ o mesmo vale para o resto dos fatores implicados. Escritores, revistas literérias, critica literiria (no sentido restrito) so todos fatores literdrios. Endo ha possibilidade de determinar previamente que atividade dentre estas é, num dado periodo, “a” literéria por exceléncia, © Umesquema do sistema literdrio Gostaria de tomar emprestado 0 famoso esquema de comunicagio ¢ linguagem de Jakobson (1980 [1956]; Jakobson 1960: esp. 353-356), adaptando-o ao caso da literatura, Pode produzir assim a seguinte tabela de fatores implicados no (polisistema literirio (com os termos de Jakobson entre colchetes): ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer INSTITUICAO [contexto] REPERTORIO [cédigo] PRODUTOR [emissor] [receptor] CONSUMIDOR (Cescritor”)(“leitor) MERCADO [contato/canal) PRODUTO [mensagem] Certamente, nfo existe uma correspondéncia univoca entre as nogdes de Jakobson e as “substituigdes” sugeridas por mim, uma vez que o ponto de partida de Jakobson é 0 enunciado/a enunciagao isolado, observado do ponto de vista de suas restrigdes. O que busca aleangar com seu esquema é a apresentagao “dos fatores constitutivos de qualquer fato de fala, em qualquer ato de conmnicagio verbal” (Jakobson 1960:353). A diferenga mais importante reside talvez em minha introdugio da “instituigdo” na qual Jakobson tem. “contexto”, com o que ele quer significa “o CONTEXTO ao qual se faz referéncia” (“referente” em outra nomenclatura, em certa medida antiga), abarcdvel pelo receptor, tanto no sentido verbal como capaz de ser verbalizado (ibid.). Do ponto de vista de Jakobson, o fato de que emissor e receptor tenham “um CODIGO total, ou ao menos parcialmente, comum” a ambos (ibid.) ¢ suficiente para compreender como podem se comunicarem, enquanto que as restrigdes das instituigdes socioculturais sobre a natureza desse “codigo”. podem se considerar marginais, ou, dito doutro modo, podem estar ineluidas implieitamente na mesma nogio de “cédigo”. Sem algum tipo de acordo, nao hi como hipotetizar um cédigo comum, ¢ nao é possivel alcangar nenhum acordo sobre uma base exclusivamente individual, isto é, sem a interferéneia de algumas instituigdes socioculturais. Assim, 0 esquema que sugiro, ainda que possa se ocupar também de qualquer intercambio literdio individual, est4 pensado principalmente para representar os macros-fatores implicados no funcionamento do sistema literati. Apesar disso, acredito que, junto a conveniéneia de adotar tal esquema, € 0 quadro de pensamento de Jakobson que € mais pertinente para minha proposta em termos gerais, apesar de algumas diferengas no grau de detalhamento, O que importa, sobretudo, & 0 enfoque geral de Jakobson: a visto de Jakobson ao longo de sua vida foi que “a linguagem 27 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer deve ser pesquisada em toda a variedade de suas fimgdes” (ibid). Esta afirmagao aparentemente trivial distingue inequivocamente a tarefa Linguistica, literéria e semidtica de Jakobson de varias outras tendéncias de nosso tempo. Suas preocupagdes rejeitam os modelos reduzidos (perpetuados durante bastante tempo) para os quais um sistema de signos é uma pura estrutura (ou ao menos poderia, ou deveria ser estudado como tal). Todas as constrigdes possiveis que podem regé-lo so “fatores extemos”, seu “contexto” ou “entomo”. Em tais modelos, se alguém chega finalmente a um ponto em que esta disposto a transcender os limites da estrutura pura, isto é, em que alguém esta disposto a levar em consideragao 0 papel da relagio entre o produtor o consumidor de um emunciado, isso somente pode ser feito acrescentando mais uma rama 4 “linguistica propriamente dita” nese caso particular a da “pragmatica’ (a “sociolingitistica” ¢ a “psicolingtistica” so mais alguns exemplos dessa classe). Para Jakobson, ao contrario, estudar “a linguagem” inclui. tanto a conseiéneia como a consideragdo de todos estes fatores, que devertio ser pesquisados em suas relagdes miituas mais do que como eventos distintos. Certamente, pode-se defender que, em termos de “relevancia e conveniéncia” (Machlnp 1981 jtado acima), 0 abrangente modelo de Jakobson nfo é de modo algum superior a priori aos modelos implicitamente criticados aqui. As fionteiras entre a “relevaneia” de uma variivel e sua “itrelevineia” dependem da classe de trabalho que alguém esta interessado em fazer em um campo particular, isto é, jd no nivel das pressuposigdes de uma teoria. Enquanto que, para algumas tendéncias como a linguistica saussuriana dificilmente se pensava o estudo da linguagem como uma pesquisa de sua variedade ineoerente, porque © que contava era entender como “a linguagem funcionava em principio”, a tendéneia representada pela cigneia da linguagem jakobsiana sempre esteve mais atraida precisamente por sna ineoeréneia, O porqué de uma tio evidente cristalizagdo destas discrepancias nio est no ambito deste ensaio, se bem que os entomes socioculturais contribuiram sem divida em grande maneira @ promover uma ou outra tinha de pensamento, Assim, enquanto heterogeneidade incoeréneia podem ter sido parte de uma forma comum de conseiéneia na propria imagem cultural de checos e russos durante as primeiras décadas desse século, na francesa foram 28 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 2a snitt2023, 17:47 PDFs viewer (ou seguem sendo) fortemente ignoradas ou consideradas inregulares (on “irrelevantes”) Contudo, uma vez que tais ambientes determinaram alguns pontos de partida opcionais para algumas teorias, as modificagdes a nivel teérico devem ter lugar no Ambito mesmo do pensamento tedrico. Parece que foi dessa natureza o caminho que conduziu ao tipo de enfoque representado pelo esquema de Jakobson, Depois de tudo, 0 Formalisma Russo comecou com um modelo do fato literiirio enormemente estreito ¢ reduzido, do que a “literatura” estava, para todos efeitos, excluida. Foi principalmente seguindo a ldgica interna da prematura teoria formalista da literatura como o Formalismo Russo se transformou de um enfogue a-histdrico, claramente textocéntrico, no qual os fatos por cima do texto so considerados o fator principal, ¢ a mudanga é considerada um traco interno do isto é, nao-sistémico em termos saussureanos. “sistema” mais do que “uma forga externa’ Embora Ejxenbaum (1927) exagera claramente a suavidade e a totalidade desse processo, sua famosa descrigfo é bastante exata em principio. Pois quando Shklovskij chegou a conelusio de que a “automatizagao” un procedimento dependente do tempo, transformou sna hipétese da “desmutomatizagao” da historia e sobre esta epifania construit sua famosa hipétese da mmdanga literdria (“a segunda lei de Shklovskij”). Nesta fase, nao podiam ser considerados tracos individuais de um ou outro texto como forgas reais de tal mecanismo, de modo que, inevitavelmente, Shklovskij comegou a fazer generalizagdes sobre os eventos supra-textuais: normas ¢ regras gerais, com a ajuda das quais pode se gerar em uma ou outra fase qualquer, um texto individual. E quando propds explicitamente que a fonte de novas “formas” (que na realidade queria dizer unidades complexas, mais do que a nocio corriqueita e intuitiva de “forma”) poderia ser agdes nao reconhecidas da produgao cultural, estava na realidade estabelevendo uma visio da presenga de certo inventério pactuado na cultura, cuja utilizagao é permitida ou proibida por certos possuidores do poder. Shklovskij, geralmente apresentado como o mais textocéntrico dos tebricos do Formalismo Russo, na realidade abriu caminho para a libertacio do Formalismo de suas etapas iniciais. Nao é ficil explicar que tal tansformagdo ocorreu no Formalismo Russo e aio, por exemplo, na “Nova Critica” ou no “Estruturalismo Francés”, Contudo, me aventuratia a dizer que os marcos académicos em que operava esses grupos eram completamente diferentes. Somente o Formalismo Russo trabalhava em certa harmonia com os 29 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer procedimentos comuns da ciéneia por estar interessado em construir uma ciéneia da iteratura, enquanto que os outros grupos nfo tinham isso em mente Quando Shiklovskij se deu conta de que stias suspeitas a respeito da “automatizagdio” eram. insustentaveis em termos sociohist6ricos, nao hesitou em tirar concludes, ainda que estas fossem marcadamente incompativeis com seu proprio ponto de vista. Nada comparavel ocorren em outras tradigdes “literdrias”: quando membros mais recentes da conmmnidade literaturologiea descobriram a rigidez do “Estruturalismo” (Francés), nao puderam encontrar caminho para avangar dentro de suas fronteiras (fosse modificando, ampliando ou dando maior elasticidade a seu quadro conceitual), assim tiveram que inventar o “pés- estruturalismo” (sem saber que nmuitas das generalizagdes desse enfoque ja tinham sido claramente formuladas por partes do “Estruturalismo” nos anos 20 do século XX). Neste enfoque, o “sistema literirio” compreende como “internos” mais que como “externos” todos os fatores implicados no conjunto de atividades a que a etiqueta “literaria” pode se aplicar com maior convenigncia que qualquer outta. O “texto” jé ndo € 0 tinico, nem necessariamente o mais importante em nenhum sentido, aspecto, ou inclusive produto desse sistema. Além disso, este quadro requer que nao existam a priori hierarquias da importincia relativa dos supostos fatores. Basta reconhecer que so as interdependéncias entre estes fatores © que os permite funcionar. Assim, um CONSUMIDOR pode “consumir” um PRODUTO produzido por um PRODUTOR, mas para o “produto” ser gerado (0 “texto”, por exemplo), deve existir um REPERTORIO comum, cuja possibilidade de uso est determinada por uma certa INSTITUICAO. E deve existir também um. MERCADO no qual ele possa ser transmitido, Na descrigao dos fatores emumerados, no se pode dizer de nenhum deles que funcione separado, ¢ a classe de relacdes que podem ser detectadas cruza todos os possiveis eixos do esquema. © Produtor e produtores Prefere-se aqui “produtor” a “escritor” porque a nogdo de “escritor” suscita imagens muito especificas que podem ser inapropriadas (vid. Viala 1985). 30 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer Tem havido uma grande auséncia de teorias da literatura do ponto de vista da producdo. Infelizmente, quando a tradigio cultural de colocar 0 escritor no centro da literatura foi abolida, e comegou a impor-se 0 estudo “textocéntrico”, os velhios modelos exegéticos invadiram 0s novos métodos “interpretativos” que surgiram para concentrar-se_na “compreensao do texto”. Esta classe de “compreensio”, certamente, deu por certo que 0 texto existe de alguma maneira que nio é necessério questionar, muito menos pesquisar, pois esta “ai”, e todo o que nos fica (a nés mortais) & decifrar seus segredos. Inclusive certos projetos muito sofistieados de deserever “como um entendedor entende” um texto mostravam completa falta de atengio, indiferenga e ativa oposigio a uma possivel correlagdo entre a opgao de consumo e o produtor. A “oposigao ativa”, expressada na forma de promunciada rejeigao aos direitos do escritor, baseou-se em um papel bem mais reduzido outorgado ao produtor, que na realidade ¢ concebido como uma imagem especular da compreensfio. Em tal qualidade, o papel do produtor foi reduzido ao que este tem a dizer sobre seu produto, © que na sequéneia foi rejeitado por nio ser confivel. E compreensivel, certamente, que as “explicagdes” triviais dos géneros do texto, das “intengdes” do produtor que dizem respeito a ele, resultado da tradigdo histérico-biogrfica tenha repugnado as novas geragdes de estudiosos da literatura, Nao era possivel considerar procedimentos “seguros” nem a “inspirag3o” mistica, por um lado, nem a psicologia pretensiosa e simplista, por outro. Pelo contririo, parecia mais fieil defender uma correlagao entre nossa compreensiio dos textos e seus hipotetizados tragos “objetivos”. Niio obstante, quando surgiram de novo questes de ordem supra-textual, os parimetros de produgio regressaram a agenda dos estudos literdrios. As novas teorias historias sobre “o sistema literdrio” tinham que incorporar explicitamente 0 produtor, tentando elaborar agora explicagdes mais convincentes. A capacidade dos pais da teoria dos polissistemas (especialmente Boris Ejxenbaum) para ligar com éxito 0 produtor — como forga a um tempo condicionante € condicionada - aos outros fatores que operam no sistema, tornou possivel tentar correlaciouar as teorias da literatura baseadas no “entendedor™ com as baseadas no produtor. 31 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 0124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer ‘Nao obstante, enquanto que em nossa cultura contemporinea parece estar claro o que é que © “produtor” produz, niio é absolutamente assim do ponto de vista de nossa teoria, Pode ser ‘itil pensar os “textos” como o resultado tiltimo da atividade do produtor literdrio, mas, por outro lado, o papel de gerador de textos na soma total da produc pode de fato ser bastante pequeno: em periodos ¢ culturas, por exemplo, nos quais a tarefa principal do produtor literdrio é interpretar ou recompor textos estabelecidos, ou quando a “mercadoria principal” aberta ¢ oficialmente s6 é “o texto”, mas na realidade, a verdadeira mercadoria se encontra em uma esfera sociocultural e psicolégica completamente diferente: a produgdo politica e também interpessoal de imagens, estados de animo e opgdes de ago. De fato, em tais periodos, o produtor literario nao ¢ alguém mal pago cuja fungao é entreter e que atua mais ‘ou menos forgado no salio real em presenga de bébados ruidosos, ¢ sim € alguém cuja demanda ao poder nao é menor @ de qualquer outro agente politico central. Assim, o tal produtor esté vinculado a um discurso do poder moldado segundo certo repertério aceitivel € legitimado, Consequentemente, no hi razio para separi-lo tio declaradamente de todas as classes co-presentes de discurso de produtores adjacentes na mesma commnidade. De fato, tal diferenciagao nfo somente di uma imagem do passado insustentavelmente anacr6nica, como tampouco seria adequada para o tempo presente. E certo que dificilmente se pode encontrar um caso no qual um produtor tenha aberto caminho a uma posigao segura sem produzir textos, mas o niimero de textos e sua circulagdo tornam-se secundirios diante de outros parémetros que regem o sistema, Obviamente, esses produtores nao estdo confinados a um sé papel na rede literiria, mas. podem, e de fato sio empurrados a participar de um conjunto de atividades que, em certos aspectos, podem tomar-se parcial ou totalmente incompativeis entre si, Nao nos encontramos meramente com “um produtor”, ou to s6 com um grupo de “produtores” individuais, mas com grupos, ou comunidades sociais, de pessoas envolvidas na producio, organizadas de diferentes formas e, em todo caso, nao menos interrelacionadas umas com outras que com seus consumidores potenciais. Como tais, constituem parte tanto da instituigdo literéria como do mercado literitio. ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 24 snitt2023, 17:47 PDFs viewer ‘As atividades aparentemente grupais dos produtores, em contraposigao com a individualidade proeminente — certamente nos casos mais Sbvios, mas também nos mais sutis -, de modo algum podem deixar-se de lado ao explicar os variados eventos literrios (a qualquer nivel, ineluindo o nivel mais privado da produgio de textos individuais) como dependentes da formulagao de normas e do estado de coisas no repertorio. Embora muitos estudiosos da literatura aceitam uma visfio assim sem demasiada resisténcia, na pratica presenciamos um desconforto ao enffentar-se com as implicages de um enfoque semelhante em outros niveis de anzilise. As condigies e construgdes do mundo dos produtos literdrios, consideradas “externas” ao sistema, effmeras ou modos secundarios de organizagao, sao persistentemente ignoradas ou relegadas para os “sociélogos”, inclusive por aqueles para quem o produtor individual, embora apenas desejavel, é inevitavel, © Consuanidor e consumidores A teoria literdria classica tem como hipétese um “leitor” como aquela entidade para a qual, a literatura é produzida, Nao obstante, seria altamente inadequado pensar os modos no quais a literatura funciona do lado do usuario, ou seja, para seus “consumidores”, somente em termos de “leitura”. Nao porque ao longo da historia grande parte do consumo de textos fosse levado a cabo mediante a audigdo, mas sim porque 0 “constmo”, como a produgiio, no esta necessariamente circunserito, nem sequer ligado nem a “leitura’” nem a “audigao” de “textos”. © “consumidor” como o “prodntor”, pode se mover em varios niveis como participante nas atividades literdvias. Para comecar, 0 consumo direto de textos integrais foi e segue sendo periférico para a maioria dos consumidores “diretos” de “literatura”, sem falar dos “inditetos”. Todos os membros de qualquer comunidade sio a0 menos consumidores “indiretos” de textos literdrios. Em tal qualidade, nés, como membros da comunidade, simplesmente consumimos uma quantidade de fragmentos literdrios, digeridos e transmitidos por variados agentes culturais e integrados no discurso diario. Fragmentos de velhas narragdes, alusdes ¢ fiases feitas, pardbolas e expressbes cunhadas, todo isto e muito mais constitui o repertério vivo depositado no armazém de nossa cultura. ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 12124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer Quanto aos consumidores “diretos”, ou seja, as pessoas voluntaria e deliberadamente interessadas nas atividades literirias, nfo é claro se 0 grosso das pessoas desse grupo (minoritério) est fandamentalmente preocupado pelo ato de ler ou em participar de varias, outras formas no sistema literirio. Quantos daqueles que itiam conhecer um célebre escritor ow escritora realmente leram sua obra? Ou quantos 0 terdo lido de tal modo que Ihes permita ao menos uma discussio semi-profissional em certo modo sobre a obra? Os consumidores de literatura (como os de miisica, teatro, balé ¢ muitas outras atividades sdcio-culturais institueionalizadas) consumem frequentemente a fungao s6eio-cultural dos atos envolvidos na atividade em questo (que as vezes assume abertamente a forma de “acontecimento” [“happening”)), mais do que © que € concebide como “o produto” Realizam esta forma de consumo inclusive quando obviamente consomem “o texto”, mas a questio aqui é que podem realizé-la ainda que nenhum consumo de textos esteja envolvido. Penso que nio é nevessirio desenvolver exaustivamente este ponto vista da contribuigao de varios socidlogos e estudiosos da cultura neste campo (Vid. principalmente Bourdieu 1971, Viala 1985, Lafarge 1983), Nao ha necessidade de ser cinico, como Baudelaire, para quem como deduziu Lafarge, "O importante é estar no teatro” (Lafarge 1983: 75), para reconhecer 0 fito de que (a) 0 consumo textual pode ser mais um aspecto do consumo literdrio em geral e que (b) inclusive no caso de “consumo direto” por um grupo de devotos niio existe o consumo de ‘um finico produto “puro”. Na proposta de Lafarge (ibid: 84), "A anélise da literatua como Jeitura nos mostra que o fato de falar de uma atividade como conjunto e nao somente como produto. © consumo da literatura faz parte das preferéneias culturais gerais. Como 0 consumo de ficgdes depende de um saber adaptado ( dito de outro modo: do habito de consumo), é compreensivel afirmar que seria abusivo entender que as narrativas ficeionais interessam por elas mesmas, independente do valor que Ihes séo creditadas." Como com os “produtores”, mas com acordo maior neste caso (do ponto de vista das tradigdes culturais ao menos), nao existem s6 consumidores individuais no sistema literério, mas também consumidores como grupo, para os quais nossa tradigao cultural tem uma 4 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, +3124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer denominagao comum: o piiblico. Em geral, foi necessdria menos persuasio para que se reconhecesse 0 papel do “piiblico” no sistema. Menos acordo existe, certamente, sobre as correlagdes entre “o pliblico” € os outros fitores do sistema, isto é até que grau sua existncia e modelos de comportamento podem ou nfo determinar 0 comportamento (ea natureza) dos demais fatores implicados. + Instituigio A “instituigdio” consiste no conjunto de fatores implicados na manuteng&o da literatura como atividade socio-cultural. E a instituichio que rege as normas que prevalecem nesta atividade, sancionando umas e rejeitando outras. Potenciada por outras instituigdes sociais domiinantes ¢ fazendo parte delas, remunera e penaliza os produtos e agentes. Como parte da cultura oficial, determina também quem e quais produtos sero lembrados por uma comunidade durante um maior periodo de tempo. Em termos especificos, a instituigao inelui pelo menos parte dos produtores, “criticos” (em qualquer formato), casas editoriais, periédicos, clubes, grupos de escritores, corporagées do governo (como gabinetes ministeriais e academias), instituigdes educativas (escolas de qualquer nivel, inctuindo as universidades), os meios de comunicagdes de massa em todas suas facetas, ete. Naturalmente, esta enorme variedade nio produz um corpo homogéneo, capaz, por assim dizer, de atuar harmonicamente e com éxito para impor suas preferéncias, Dentro da institui¢dio existem lutas pelo dominio, de modo que em cada ocasifio um ou outro grupo consegue ocupar 0 centro da instituiglo, tornando-se o grupo dominante. Contudo, pela variedade do sistema literério, diferentes instituigdes podem operar a0 ‘mesmo tempo em diferentes segdes do sistema. Por exemplo, enquanto certo grupo de inovadores pode ter ocupado 0 centro da instituigdo literdria, escolas, igrejas e outras corporagdes e atividades sécio-culturais organizadas podem obedecer ainda a certas normas que tal grupo ja nao aceita mais. Assim, a instituigao literdria nfo esté unificada. E, neste sentido, nio consiste em um edificio em uma determinada mua, ainda que seus agentes possam ser detectados em 35 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, s4i24 snitt2023, 17:47 PDFs viewer edificios, ruas e cafés (vid., por exemplo, Hamon e Rotman 1981, com todas as reservas devidas; também Lottman 1981). Mas qualquer decisio tomada, a qualquer nivel, por um agente do sistema depende das legitimagdes e restrigdes feitas por segdes coneretas da instituigdo. A natureza da produgdo, assim como a do consumo, esta regida pela instituigao; naturalmente, na medida em que, dadas as correlagdes com todos os demais fatores operando no sistema, seus esforgos tenham éxito. Novamente, a formulagio de Bourdieu & muito pertinente nesse assunto: © que “faz as reputagdes” nido & como acreditam ingenuamente os Rastignaes da provineia, tal pessoa influente, tal instituigio, revista, semandrio, academia, ceniculo, marchante, editor, nem mesmo © conjunto dos que as vezes so chamados “personalidades do mundo das artes ou das letras”, & o campo de produgio como sistema de relagdes objetivas entre os seus agentes ou as suas instituigdes e como lugar de lutas pelo monopélio do poder de consagracéio onde se engendra continuamente o valor das obras ¢ a crenga nesse valor. (Bourdieu 1977: 7). © Mercado © “mercado” é 0 conjunto dos fatores envolvidos no comércio de produtos literdrios e na promogio de tipos de consumo. Isto inelui nfo s6 instituigdes abertamente dedicadas a0 intereambio de mercados, tais como livrarias, clubes de leitura ou bibliotecas, como também todo os fatores que participam no intercmbio semitico (“simbélico”) no qual estas estio envolvidas, junto com outras atividades relacionadas, Enquanto € a “instituigaio literdria a que pode tentar dirigir e ditar as classes de consumo, determinando os pregos (valores) dos varios artigos produzidos, nfo é a classe de interagio que é capaz de estabelecer com o mercado © que determina seu éxito ou fiacasso. Na realidade sdcio- cultural, 0s fatores da instituigao literdria e os do mercado literério podem naturalmente entrecruzar-se no mesmo espago: 0s “saldes” literdrios, por exemplo, so tanto institnigdes como mereados. No entanto, os agentes especificos que desempenham 0 papel de uma instituigio, ou de um mercado, ou seja, os comerciantes ou seus clientes, podem nao justapor em absoluto. Uma escola normal, por exemplo, é um brago da “instituigdo”, por sua capacidade de vender o tipo de propriedades que © grupo/estabelecimento dominante 36 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 9124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer (ou seja, a parte central da instituigao literdria) deseja vender aos estudantes. Os professores, fimeionam na realidade como agentes de mercado, ou seja, comerciantes. Os elientes que, quer queiram quer nao, se transformam em algum tipo de consumidores, sio os estudantes. As instalagdes que oferece a escola, incluidos os modelos de interacHo fixos, constituem na realidade 0 mercado strictu sensu. 10 obstante, todos esses fatores em conjunto podem, para os fins de nna andlise mais apurada, ser vistos como o “mercado”. Seja um salfo literdrio, uma corte real ou uma praga de um mereado medieval onde os produtores tratem de fato de vender seus produtos, ou seja por meio de agentes tais como titicos literdrios, editores, professores, ou outros promotores, na auséncia de um mercado socio-cultural nao ha espago para que nenhum aspecto das atividades literdrias possa se assegurar. E mais, um mereado restrito diminui naturalmente as possibilidades de a literatura evoluir como atividade socio-cultural. Desse modo, fazer com que 0 mercado floresga & do maior interesse para o sistema literirio, © Repertério “Repertério” designa o conjunto de regras e materiais que regem tanto a confeccao como 0 uso de qualquer produto. Estas regras e materiais sio indispensiveis para qualquer procedimento de produgao ¢ consumo. Quanto maior seja a comunidade que confecciona e usa dados produtos, tanto maior deve ser 0 acordo sobre semelhante repertério. Embora os interlocutores (emissor ou receptor) em uma situacio especifica de intereambio (comunicagao) nfo necessitem obrigatoriamente um grau absolutamente idéntico de familiaridade com um repertério especifico, sem um minimo de conhecimento compartilhado no haverd virtualmente intercdmbio. “Pre-conhecimento” e “acordo” sio, pois, as nogdes chave do conceito de repert6rio. Em termes linguisticos tradicionais, um repertério 6, pois, a combinagao da “gramétiea” e do CODIGO, podia ter servido para o mesmo propésito se nfo fosse pelas tradigdes existentes -xico” de uma determinada “lingua”. O termo da comunicagao adotado por Jakobson, nas quais 0 “codigo” se aplica somente a “regras”, no a “materiais” (“elementos”, 37 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 6124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer “unidades”, ou seja, “Kéxico”). O mesmo vale para a lingua de Saussure, ou para termos tais, como “paradigmtica” ou “eixo de selegao” Se “textos” sto considerados a mais evidente manifestagdo da literatura, 0 repertério literario & 0 conjunto de regras ¢ unidades com as quais se produzem ¢ entendem textos especificos. E, na expressiio de Avalle, “o universo dos signos literarios, como um conjunto de materiais utiliziveis para a confecgao de certos tipos de discurso” (Avalle 1072: 218) Se, por outro lado, se considera que as manifestagdes da literatura existem em varios niveis, © “repertorio literdrio” pode ser pensado como um conjunto de repertérios especitficos para cada um desses varios niveis. Um “repertério”, portanto, pode ser 0 conhecimento compartilhado necessirio tanto para produzir (e entender) um “texto”, como para produzir (e entender) virios outros produtos do sistema literdrio, Pode ter um repertério para 0 “escritor”, outro para o “leitor” e inclusive outro para “comportar-se como se esperaria de tum agente literdrio”, e assim por diante. Todos esses devem ser claramente reconhecidos como “repertérios literarios”. Enguanto que 2 natureza, volume ¢ amplitude de um repertério determinam com toda seguranga a facilidade e liberdade com que um produtor e/ou consumidor pode mover-se no entorno sécio-cultural, nao é o repertério em si mesmo que determina estes tragos. E mais a interagdo com os outros fatores prevalecentes no sistema o que determina estes tracos. A idade de um sistema dado pode ser também um fator decisivo em relagao a selegaio das estratégias de elaboragio, adog3o e empréstimo a serem tomadas para que o sistema fincione. Quando o sistema é “joven”, seu repertorio pode ser limitado, o que the dé maior disposi¢ao para usar outros sistemas disponiveis (por exemplo, outras linguas, culturas, literaturas). Quando € “velo”, pode ter adquitido wm repertério rico, de modo que em periodos de mudanea tentara com mais probabilidade usar métodos de reciclagem. Nao obstante, mesmo um sistema “velho” com um repertério “rico” pode nao ser eapaz de mudar dentro de suas proprias opgdes domésticas, se os outros fatores que prevalecem no sistema o impegam. A existéncia de um repertério por si mesma nio ¢ suficiente para 38 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, sie snitt2023, 17:47 PDFs viewer assegurar que um produtor (ou consumidor) fara uso dele, Deve estar também disponivel, ou seja, ser legitimamente utilizivel, nflo somente acessivel, © A.estrutura do repertério Em termos gerais, a estrutura do repertério pode ser analisada em trés niveis distintos: (1) O nivel dos elementos individuais. Este inclui elementos dispares simples, como morfemas ou lexemas. O nivel dos sintagmas. Este inclui quaisquer combinagdes até ao nivel da “oragio”. Por “combinagdes” et me refiro no apenas a expressdes idiomiticas e colocagdes (ou semi- fiasemas), sejam elas estritas ou “amplas”, mas também expresses “combinaveis” mais livres de tal nivel. (2) O nivel dos modelos. Este inclui quaisquer potenciais porgdes de um produto completo, ou seja, a combinagio de elementos + regras + as relagdes sintagmaticas (temporais”) que podem ser impostas ao produto, Se 0 caso em questo é 0 de um “texto”, 0 “modelo” significard “os elementos + as regras aplicaveis ao determinado tipo de texto + as relagdes textuais potenciais que podem ser implementadas na sua realizagao”. Por exemplo, se a rede de posigdes na qual podem colocar-se os varios elementos é um dos possiveis tipos de relagdes textuais, entio 0 “modelo”, do ponto de vista do produtor potencial, incluira alguma categoria de pré- conhecimento relativo a estas posigdes. Para consumidor poteneial, por outro lado, 0 “modelo” é aquele pré-conhecimento segundo o qual se interpreta (“entende”) 0 texto. Aqui deveria talvez notar-se que os modelos usados para produzir nfo devem coineidir- e por regra geral no coincidem- com os modelos necessirios para entender ow com nenhum. ‘outro uso por parte do consumidor. Nao é necessirio tentar uma classificagdo segundo o nivel do “modelo”. Pode haver “pré-text denominam certas tradigdes), mas pode haver também modelos especificos para um modelos operantes para o conjunto de um texto possivel (um como o segmento ou porgdo deste todo, Por exemplo, pode muito bem aver um modelo para “um 39 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 8124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer romance”, mas havera outta também para o “dialogo”, a “descrigdo da fisionomia do herdi", ete. A ideia de modelo nio é de modo algum nova: tem sido usada tanto por escritores e artistas como por artesios desde a antiguidade. Somente, desde 0 Romantismo tornou-se um coneeito evitado nas poeticas oficiais. Nao obstante, ainda permeia parcial e indiretamente 0s estudos literdrios através de conceitos tais como “estilo” e “género”. A hipétese do modelo recebe forte respaldo do trabalho atual nas diversas areas como os estudos da meméria, os estudos cognitivos (com seu conceito de “esquemas”), os estudos da tradugao, o trabalho editorial, os estudos de estilo e composigao escolar, ¢ muitos outros ‘campos. A crescente consciéncia de até que ponto siio dados os tipos cotidianos de discurso (como a conversag%o e a narragio cotidianas) contribuiu também em grande medida para liberar-nos dos conceitos romanticos de “livre criagao ‘A partir da perspectiva romintica, a “criagao” € sempre “livre” e, dai, “original”. A limitago é, pois, uma constrigdo negativa sobre a liberdade: um “verdadeiro criador” (em. literatura e em qualquer outra atividade criativa) nao pode estar limitado por “modelos” pré-existentes. Mas semelhante ideia simplesmente nfo se sustenta, nfio somente diante as novas provas e 05 estudos modernos nos diversos campos acima mencionados, como também diante das atitudes correntes antes da Era Romantica. Nao apenas se entendia entio © ato da criagao no contexto da aplicagao de modelos conhecidos, como também a nogio de realizago artistica estava ligada a capacidade do produtor de aplicar com éxito tais modelos (¢ a capacidade do consumidor de decifi-los).. ‘Como expressou Zink a propésito da poesia medieval, “esta poesia é uma poesia formal que em todos os dominios, tira seus efeitos, nfo de sua originalidade, mas da demonstracZo que ela faz de sua maestria de um eédigo que ela aplica minuciosamente e que ela submete 4 transgressbes calculadas e medidas. (Zink 1980: 73-74). 40 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 9124 snitt2023, 17:47 PDFs viewer A teoria do habinus de Bourdieu € uma significativa contribuigao para a conexio entre 0 repertério gerado socialmente e os procedimentos de imposigio e intemaliz ago individual, Bourdieu sustém a hipétese de que os modelos postos em funcionamento por um individuo ou grupo de individuos no so esquemas universais ou genéticos, e sim “esquemas ou disposigdes adquiridos por meio da experiéneia, isto é, dependentes do tempo e do lugar” (Sapiro, imprensa). Este repertério de modelos adquiridos e adotados (assim como adaptados) por um individuo ou por grupos em determinado meio e sob as construgdes das relagdes sistémicas vigentes que dominam este meio, denomina-se habirus. E “um sistema de esquemas internalizados incorporados que, tendo sido constituido no curso da historia coletiva, adquirem-se no curso da historia individual e funcionam em seu estado prético, com finalidade pragméitica (¢ nao como puro conhecimento)” (Bourdieu 1984: 467; originalmente em Bourdieu 1979: 545). * Produto Por “produto” entendo qualquer conjunto de signos realizado (ou realizavel), ou seja, incluindo também um dado “comportamento”. Todo resultado de uma atividade qualquer, pois, pode ser considerado “produto”, seja qual for sua manifestagio ontolégica. A questo & Qual é o produto da “literatura”? Existe, para comegar, um “produto por exceléncia” para toda atividade (sistema) dada? Pode aceitar-se como resposta satisfatoria a ideia corrente de que os “textos” sfio o produto evidente -em muitas concepgdes 0 tinico produto- da “literatura”? A resposta depende do nivel de anilise. E claramente aceitavel apoiar, por exemplo, que 0 produto mais evidente (e dbvio) da fala ¢ a “voz” (ou 0 “material fonico”), ou o(s) “som(s). 10 obstante, convencionalmente consideramos a “voz” o mero veiculo de outro produto mais importante: a mensagem verbal, a “linguagem” no sentido de “comunicagio”. De modo similar, para dar outro exemplo, “os estudantes” podem ser definidos como 0 produto das escolas. Novamente, esta no é uma resposta inaceitavel, no sentido de que, oficial ¢ visivelmente, é nos estudantes onde se aplica a energia das escolas. Fala-se do nimero de estudantes (e a sociedade calcula em consequéneia orgamentos), da vida e tratamento dos estudantes na escola, das relacdes entre professores e alunos, ete. Mas mesmo as visdes 41 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, snitt2023, 17:47 PDFs viewer mais convencionais das escolas concebem normalmente os estudantes como veiculos, e/ou objetivos de outros produtos dos quais se supde que as escolas so responsiveis: certo conjunto de conhecimento desejavel e certo conjunto de normas e opinides desejéveis, Neste sentido, aos “estudantes” so pensados em relagiio com estes produtos. O éxito nestas questdes se avalia segundo a capacidade das escolas de inculeé-las nos estudantes, ¢ 0 grau de distribuigdo e perpetuacdo delas na sociedade que os estudantes conseguem aleangar. Acredito que 0 mesmo vale para a “literatura, Inclusive naqueles periodos em que o principal esforgo das atividades literdrias era orientado a produzir “textos”, o status desses “textos” era, a todo efeito, andlogo ao da “voz” ou aos “estudantes” nos exemplos acima citados, Isso nto quer dizer que os “textos” sejam em algum sentido transparentes, mas apenas que, como entidades para o consumo, devem considerd-los em niveis diferentes. Por exemplo, enquanto que a partir, do ponto de vista literaturolégico, pode bastar analisar as pautas de composigao e “historia”, disposigao e destreza manifestados em um “texto”, uma analise culturologica (ou semidtica) tenderia a ressaltar os modelos de realidade como produtos mais poderosos da literatura, alcangados, entre outros procedimentos (mas nio necessariamente de modo exclusive), por meio da confeeco de textos. Como se afirmou mais acima (2.2), do ponto de vista do consumo, os “textos” eirculam no mercado de modos variados e nunca apenas — especialmente se esto altamente canonizados ¢ armazenados afinal no canone histérico- como os vém os criticos literatios, por exemplo, como textos integrais. Algném poderia também sustentar, portanto, que os fragmentos (segmentos) para uso diirio so produto literirio muito notivel. Citagdes, parabolas curtas e episédios aos que podem fazer referéneia facilmente sto alguns exemplo desses fragmentos Novamente, estes fragmentos podem ser tratados como um inventario visto para usar na comunicagio diiria ou como bagagem permanente através da qual podem gerar-se ¢ com a qual podem comparar-se novos textos e fragmentos. Mas o que é que na realidade fazem no sentido sécio-cultural? Aqui também, um enfoque semidtico trataria estes fragmentos nfo como um catilogo neutro, simplesmente, mas sim como aquele que ajuda 4 sociedade a 2 ntips:ifsoeruttgs.bviindex phptransiato/articlelview/42900/27 135, 21128 snitt2023, 17:47 PDFs viewer manter seus modelos de realidade, que por seu turno regem os modelos de interagio interpessoal, Constituem, pois, uma das fontes das classes de habitus que prevalecem nos distintos niveis da sociedade, contribuindo para conserva-la ¢ estabilizé-la, Afirmar que os “textos” podem tratar-se de modo mais convincente como veiculo formal de um(s) produto(s) mais poderoso(s) nao refuta ou contradiz necessariamente certas visbes literaturologicas comentes em relagao a diferenga entre textos “nfo _literdrios” (cotidianos”) e “literérios”. Mas a questio, no conjunto, perde talvez nmita de sua importaneia, e a hipétese da fimgao “orientada em diregao a si mesma” da comunicagao literdria se converte em um trago secundario: é um dos procedimentos da “indiistria” para colocar seus produtos no mercado com éxito” Referéncias Bibliograficas Accardo, Alain and P. Corcuff 1986. La sociologie de Bourdieu: Textes choisis et commentés (Bordeaux: Ed. Le Mascaret). Ayalle, D'Arco Silvio 1972. Corso di semiologia dei testi letterari (1971-1972) (Torino: Einaudi). Bourdieu, Pierre 1971. "Le Marché des biens symboliques."| in L’année sociologique 22: 49-126, Bourdieu, Pierre 1977. "La production de la croyance.” Actes de la recherches en sciences sociales, 13: 3-43 Bourdieu, Pierre 1979. 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