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Variacio linguistica perspectiva dialectolégica Manuela Barros Ferreira, Ernestina Carrilho, Maria Lobo, Jodo Saramago e Luisa Segura da Cruz «Hé diferencas muito grandes. Uma vez, eu tava a falar, em Portalegre. E depois eu perguntei assim: — 6 amigo! ’Cé fazia favor, dizia-me aqui onde é que era o caminho...p'ra ir... J L...] ..dizia-me 0 caminho aqui p'ro...p’ra Torre de Palma [...] Dizia-me assim uma pessoa [...]: — Othe, cé ndo se engana. Vocé vai por esta carretéra fora... uma carretéra é uma estrada, Id [...]. 'Cé acolé adiante mete p’la linda abaixo ~ uma linda é uma estrema ~~ realmente é um nome bem empregado: uma linda é uma estrema; uma estrema é bonito — ...Vé pl’ aquela linda fora... lé mais adiante encontra um arrebenia-diabos... € uma encruzilhada... encontra um arrebenta-diabos... vocé volta @ sua esquerda, td uma b'reda mal seguida, vai ld ter mémo ao casal. Mas depois mais tarde é que a gente foi descobrir isto: 0 arrebenta-diabos era um’ encruzilhada [...] € uma b'reda mal seguida era um carréro... um caminho... um carrérozito que ia por ali fora. Té a ver? Como isto hd diferengas de nomes de terras p'ra terras?!» (Inquérito em Montalvo, Santarém — Gravagdes para 0 ALEPG, S6, cass. 4, Id. b, m. 1231) A variagéo — modo de a lingua ser viva A lingua que usamos esta sujeita a variacdo. Qualquer pessoa se pode aperceber disso. No caso do trecho acima transcrito, trata-se de variagio regional, noutros, sera histérica, social, ou situacional. Estando todas as linguas vivas sujeitas a factores de mudanga, a variacdio que deles decorre faz parte integrante da linguagem humana e pode ser estudada e descrita. Por sua vez, a variagéo, a hesitago entre diversas formas, ocorrida num dado momento, produz a longo termo mudanga na lingua. No entanto, 6 se pode estudar a variagdo se a relacionarmos com algo que consideremos minimamente estivel e homogéneo. A maior parte das 479 teorias lingufsticas que se desenvolveram no século XX fazem abstraccdo dos fenémenos de variagao lingufstica, por motivos teéricos e metodoldgi- cos, estudando as regularidades da lingua enquanto sistema. Mas, na reali- dade, a lingua vive através da diversidade. A lingufstica estruturalista europeia (da escola de Eugenio Coseriu), utilizando o prefixo dia-, que significa «ao longo de, através de», estabeleceu uma série de compartimen- tos com 0 objectivo de delimitar os campos de estudo da variagdo: diacronia, diatopia, diastratia e diafasia. Fala-se em variac&o diacrénica (do grego diatkronos, «tempo») ou histérica, para designar as diversas manifestagdes de uma lingua através dos tempos. E evidente que as mudangas que ocorrem nunca so repenti- nas, nao se dio em saltos bruscos. Ha geralmente um perfodo de transi- go, onde encontramos variac&o sincrénica entre duas ou mais formas concorrentes, acabando uma delas por prevalecer. A substituigéo de uma forma por outra € progressiva e nem sempre sistematica. Cabe 4 Linguis- tica Histérica estudar este tipo de variagio. Existem, naturalmente, varios niveis em que a variagéo pode operar: fonético e fonolégico, morfolégico, sintéctico, semantico e lexical. No excerto transcrito no inicio deste capitulo, observam-se varios casos de variagio lexical — 0 uso de palavras diferentes por diferentes comunida- des para designar os mesmos conceitos. Quando, como neste caso, a va- riagdo est relacionada com factores geograficos — diferentes usos da lingua em regides diferentes — fala-se em variagéo diatépica (do grego topos, «lugar») ou geolinguistica ou ainda dialectal. Todos sabemos que a fala de um nortenho nao é igual & de um alentejano, por exemplo. A fala utilizada em diferentes regides possui caracterfsticas préprias. A Dialecto- logia é a disciplina que as procura descobrir e descrever, tentando identi- ficar 4reas mais ou menos coesas, assim como determinar os factores que levaram a sua formacio. Sabemos, por outro lado, que o homem vive integrado numa socieda- de, a qual tem a sua hierarquia, a sua organizagao propria, os seus grupos. Cada um destes grupos sociais (etarios, socioprofissionais, etc. ...) possui cédigos de comportamento que o diferenciam dos demais e permitem, den- tro do grupo, a identificagdo miitua. O modo de falar faz parte desse con- junto de cédigos. A este tipo de variagio lingufstica, relacionada com factores sociais, costuma chamar-se variagao diastratica (do grego straios, «camada, nivel») ou variagio social. Cabe 4 Sociolinguistica estudar este tipo de variacdo, tentando estabelecer correlagGes entre varidveis sociais e fendémenos linguisticos. Foi a Sociolinguistica que permitiu observar que «a heterogeneidade faz parte integrante da economia linguistica da comunida- de e & necessdria para satisfazer as exigéncias lingufsticas da vida quoti- diana» (Labov, 1982) e que a estratificagdo do uso da lingua na sociedade 480 nao € caética, obedecendo antes a determinadas regularidades, por vezes extremamente subtis. Alguns linguistas chamam sociolecto a uma varieda- de linguistica que é partilhada por um grupo social, permitindo demarca- -lo em relagdo a outros. Se a maior parte dessas variedades 6, tal como toda a lingua ou dialecto materno, inconscientemente adquirida, transmitindo-se no uso quotidiano e natural da palavra, existem no entanto sociolectos que resultam do desejo de diferenciag’o de um grupo em relagado 4 sua comu- nidade linguistica. E 0 caso das girias, que se podem definir como cédi- gos forjados por determinados grupos com o objectivo de se tornarem completamente ininteligiveis para os nao iniciados, Geralmente, basta in- troduzir modificagdes no Iéxico ou na configuracdo ou ordem das silabas para que os enunciados se tornem incompreensiveis. Por exemplo, a seguin- te frase da giria dos antigos vendedores ambulantes de Castanheira de Pera, 0 lainte: Aroga os étres leios que astram aquimes jordam enroba significa Agora os trés homens que estéo aqui vaGo embora (Barros Ferreira, 1985). Uma giria distingue-se de uma linguagem técnica ou tecnolecto pelo facto de afectar todo o discurso, enquanto a linguagem técnica, sendo des- provida de intengdes de hermetismo, se limita a introduzir os termos de maior rigor que lhe sao estritamente necessérios. Existe ainda um aspecto de variagdo linguistica que tem merecido es- tudo. Consoante a situacio mais ou menos formal em que se encontra ou 0 tipo de situago discursiva (oralidade, escrita,...), cada falante pode usar diversos estilos ou registos linguisticos. Numa entrevista com o director de uma empresa, para obter emprego, usard certamente um nfvel de lin- gua diferente daquele que usa para falar com os amigos, quando vao jun- tos assistir a um jogo de futebol. A variag&o que esta relacionada com estes factores pragmaticos e discursivos e que implica o conhecimento por par- te do falante de um cédigo socialmente estabelecido para cada situagao, da- ~se 0 nome de variacao diafasica (do grego phasis, «fala, discurso»). Cada ser humano, Por outro lado, no conjunto de todos os seus actos de fala, tem habitos discursivos proprios, usa preferencialmente determi- nadas construgdes gramaticais, determinadas palavras que, de alguma for- ma, 0 individualizam. Cada falante tem uma maneira propria de usar a Ifngua — 0 seu idiolecto. A linguagem humana, simultaneamente una e miultipla, decompée-se 48) assim numa rede de variedades. Apenas algumas delas ganham o estatuto social de lingua. O que se entende por lingua, afinal? Houve j4 muitas tentativas de definir esta nogio. As definigdes dadas pelos diferentes linguistas muitas vezes nao coincidem, j4 que, por um lado, as fronteiras entre estas realidades estao longe de ser estanques e, por ou- tro, 0 termo «lingua» € usado com varios sentidos, que aqui convém dis- tinguir. Lingua, no uso mais comum, é uma nogio polftico-institucional. Corresponde a um sistema lingufstico abstracto que, por razGes politicas, econémicas e sociais, adquiriu independéncia tanto funcional como psico- légica para os seus falantes. Dao conta do funcionamento desse sistema instrumentos prdprios, tais como gramiticas, diciondrios, prontudrios,... Assim, deste ponto de vista, fala-se do Chinés como lingua, unificado em todo o territério politico da China através de um sistema ideografico de escrita comum, apesar de nao existir identidade linguistica real. De facto, existem miiltiplos sistemas lingufsticos muito diferentes — 0 Cantonés, o Mandarim... — cujos falantes nado se compreendem mutuamente, a nao ser através do recurso 4 escrita. Na mesma linha, referem-se também o Noruegués e 0 Dinamarqués como linguas diferentes, apesar de partilharem um sistema lingufstico pra- ticamente idéntico e de haver mitua inteligibilidade entre os falantes de cada uma das variedades. Esta «autonomia linguistica» advém do facto de a Noruega e a Dinamarca serem Estados independentes, com peso politi- co, econémico e cultural préprios (e de os falantes terem assim adquirido a consciéncia linguistica da individualidade da variedade que usam ou de quererem us4-la como instrumento de poder). Numa segunda acepc4o, 0 termo «lingua» é usado numa perspectiva hist6rica, e esté relacionado com a nogao de dialecto. Também aqui, nem sempre é facil estabelecer fronteiras entre estas duas realidades, porque, com © passar dos anos, aquilo que era um dialecto pode tornar-se de tal modo preponderante em relacao aos dialectos seus vizinhos que passa a funcio- nar como lingua de referéncia (0 Romeno literério em relagdo ao Istro- -Romeno, por exemplo). Do mesmo modo, aquilo que era inicialmente uma s6 lingua, embora sempre com variagGes de alguma ordem, pode, por razGes hist6ricas e geograficas, por condigdes melhores ou piores de co- municagdo, fragmentar-se em variedades que passam a evoluir separada- mente — tornando-se por sua vez dialectos ou linguas, conforme as circunstancias. Diferengas de valor estritamente lingufstico entre lingua e dialecto nao existem. Existem, sim, diferengas de estatuto: 0 dialecto € sempre uma variedade de um determinado sistema linguistico reconhecido oficialmen- te como Lingua. Geralmente considera-se dialecto de uma lingua a varie- 482 dade linguistica que caracteriza uma determinada zona. Os dialectos tém pois um antecedente linguistico e um sistema comuns. Assim, hoje, o Por- tugués esté vivo na sua variante europeia e na sua variante sul-americana, por exemplo, cada uma delas divisivel em variedades linguisticas menores, numericamente inferiores, que ocupam zonas geogréficas mais restritas. No entanto, todas elas partilham um conjunto de tracos gramaticais que néo difere substancialmente, embora o Portugués do Brasil tenda a seguir um Tumo auténomo, divergente, na sua evolugao (ou como dialecto ou como lingua). Estas nogGes sao, assim, sempre relativas. O grau de semelhanga entre dois dialectos pode variar bastante, mas independentemente dessa maior ou menor semelhanga continuamos a chamar-lhes, a todos, dialectos. Alguns dialectélogos distinguem entre variedades linguisticas mais distanciadas umas das outras ou da lingua padrao — a que chamam dialectos — e variedades que apresentam menor grau de afastamento — a que chamam falares. E esta a posigZo adoptada por M. Paiva Boléo (Boléo e Silva, 1962), por exemplo. Na pratica da escola dialectolégica de Lisboa, inicia- da por Lindley Cintra, 0 termo dialecto é utilizado para variedades que definem uma zona, enquanto falar é reservado a variedades que ocupam apenas uma localidade. Para esta escola, o falar é, por conseguinte, sind- nimo de locolecto. A tealidade lingufstica demonstra que nao ha geralmente fronteiras ni- tidas entre variedades faladas em pafses vizinhos e muito menos entre va- tiedades faladas dentro do mesmo territério politico. Por isso, a delimitacao entre os varios dialectos ou grupos de dialectos é uma operacdo bastante delicada. Observa-se normalmente uma diferenciacdo progressiva, uma zona de transigao que partilha caracteristicas dos dialectos seus vizinhos. Existe um continuo dialectal que faz com que a divisio entre dialectos seja muitas vezes arbitréria, dependendo dos tragos linguisticos que tivermos escolhi- do para essa classificagao. Por esta razio, foi possivel terem sido propos- tas varias classificagdes dos dialectos portugueses, baseadas em diferentes tragos linguisticos. Entre as variedades faladas num territério, uma delas, por diversas ra- z6es, pode adquirir maior prestigio e impor-se como norma ou lingua padrao. Os factores que determinam essa escolha sio normalmente socio- politicos, histéricos, comunicativos e até pedagégicos. Nada, de um ponto de vista estritamente linguistico, leva a que uma determinada variedade seja preferida como norma de uma lingua. S6 factores extralinguisticos influem nessa escolha. A variedade proclamada padrao funcionaré como lingua oficial, de cultura, de ensino. Se uma lingua for falada em mais do que um pais, com peso politico e cultural préprios, pode ter mais do que uma norma. E 0 caso do Inglés, 483 falado em Inglaterra, nos Estados Unidos da América, na Australia, que possui varias normas linguisticas. O mesmo acontece com o Portugués: no Portugués Europeu, as variedades faladas pelas camadas cultas das regides de Lisboa e de Coimbra funcionam como norma linguistica; no Portugués do Brasil, foram as variedades faladas no Rio de Janeiro e S. Paulo que se impuseram. Nas paginas que se seguem passamos a apresentar um conjunto de métodos que permitem a demonstracio sistematica da variagao diaté- Pica.

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