You are on page 1of 12
A escuta na psicanilise e a psicandlise da escuta Ménica Medeiros Kother Macedo Carolina Neumann de Barros Falcéo Resumo © coige tem por objstivo onalsar a importincia da escuta na hsiéria da psicondlise @ no processo analtizo. Para tanto, éfito um percorrido nos aporesfreudianos desde o: fempos Iniciis do psicandlise al6 as importontes modificagées técnicos propostas 2 parlr da intradugéo do conceito de repeigeo. S40 cansiderads, também, contrbvigoes de autores ‘tuais que demarcam o campo analitco como um singular espaco de intersvbjetvidade Unitermos Pricandlise; técnica psicanaltce; inconsciente; escula; intersubjetvidede. ‘Dols tomas ocupam essas péinas 4 histvia da mina vida 6a histéria da Psicanatise, ‘Blas se acham intimamonte ontrelapadas (reud, 194011838}, p. 89), reud inaugura novos tempos: o tempo da palavra como forma de acesso por parte do homem ae desconhecido em si mesmo e o tempo da eseuta que ressalta a singularidade de sentidos da palavra enunciada, Ocupa- 0, om suas produgdes tedricas © om sou trabalho clinico, de palavras que desvelam e velam; que produzem primeiro descargas @ depois associacées. Palavras que evidenciam a existéncia de um outrointerno, mas que também. proporcionam vias de contato com um outro-externo quando qualificado na ua escuta. Esses tempos em Freud inaugurama singularidade de uma situac3o, de comunicapao entre paciente e analista, Um chega com palavras que demandam um desejo de ser compreendido em sua dor, 0 outro escuta as ppalavras por ver nestas as vias de acesso ao desconhecide que habita o paciente. A circulam demandas nom sempre légicas ou de facil deciframento, mas as quais, em seu cerne, comunicam 0 desejo ¢ a necessidade de serem escutadas. suagéo analitica 6, por exceléncia, uma situagio de comunicapae: nela A capacidade de ir além da ciéncia de sua época esta intimamente ligada | possibilidade de Freud de buscar nas palavras de seus pacientes e em suas pndprias - mais do que padres de adaptacio & moral e costumes vigentes — ‘uma fala atravessads pelo inconsciente e pela sexualidade: mensagens cifradas fe enigmaticas que demandaram outra qualidade de escuta para serem compreendidas. Ao se deparar como sofrimento histérico, Freud poe-se a escutar um corpo que fala; nos sonhos descobre a capacidade dos elementos se condensarem e se deslocarem, eriando uma outra cena; nos lapsos percebe a ‘expresséo de algo, via uma inesperada inabilidade na execugao de atos ou falas até ento exitosas. Ao dar cada vez mais espaco para o que escutava de forma diferente, no contato com seus pacientes, Freud péde construir “tanto um novo ramo do conhecimento quanto um métode terapéutico” (19401938), p. 81). Apsicanélise surge e se desenvolve na escuta ¢ a partir da escuta singular A qual se prope. Buscamos neste artigo resgatar e percorrer a histéria eo desenvolvimento do processo de escuta como recurso da técnica psicanalitica ‘e suas implicagées na psicanilise como teoria. A medida que o campo psiquico pode ser equiparado a um sistema aberto, a escuta destaca-se como ponto fundamental no campo intersubjetivo, caracteristico do encontro analitico. A palavra que se impée ‘A psicandlise surge em reagio ao niilismo terapéutico dominante na psiquiatria alema do final do século XIX, que preconizava a observacao do enfermo sem escuté-lo e a classificagéo da patologia sem o intuito de oferecer-Ihe tratamento (Roudinesco © Plon, 1998). Freud inquieta-se com tal conduta. ‘Mesmo tendo formago médica e estando imerso em um contexto cientifico de carter positivista, a conduta psiquiattica da época nfo o satisfaz. Freud prope ‘todo tempo ~e desde o inicio de sua experiéncia clinica no Hospital Salpétriére ‘com Charcot — que o paciente fosse escutado. Embora ainda distante de fundar ‘a psicanélise, j& comega a demarcar o importante papel que atribuiria & palavra. Cabe ressaltar que estamos falando de uma palavra que Ihe abriria novas possibilidades de compreensao do sofrimente humano. Desta forma, dois trabalhos se impdem: o de escutar a palavra do outro e o de produzir palavras que viessem ao encontro dessa demanda de ajuda. Talvez se demarque, desde esses tempos iniciais, uma caracteristica essencial da psicandlise como método e técnica: estar aberta a singularidade desse outro que fala, seja na dimenséo referente a seu sofrimento e pedido de ajuda, seja Paulo —jansun(2005 — p. 05-76 no que diz respeito ao efeito de sua agao terapéutica sobre ele, Ao abrir caminhos para que © homem repense sua histéria, a prépria psicandlise escreve sua histéria de transformacées ¢ ampliagdes, Os tempos iniciais so os de emprego da hipnose. Em estado hipnético o paciente descreve cenas, conecta-se com o material traumatico. Cabe ao médico, ‘ento, comunicar-Ihe 0 que havia sido dito ¢ descrito, uma vez que retornando do transe 0 paciente de nada se lembra, Os sintomas séo esbatidos pelo uso esse método, mas o sujeito ndo se apropria ativamente de sua histéria. Ento, no decorrer de seus trabalhos, Freud vai abandonando a hipnose e se direcionando Anecessidade de criar outra forma de escutar. Surge a associacao livre, ‘Tambémno trabalho de desconstrugao e construgao a palavra do paciente tem um efeito na teoria © na técnica, Emmy Von N. Ihe pediu, certa vez, que nio a tocasse, néo a olhasse e nada falasse; queria apenas ser escutada. A palavra se impée, apontando uma mudanga no caminho de Freud: a cura viria por ela, mas no mais a palavra de um sujeito ausente, que delegava a0 terapeuta uma fungi de meméria de seus contetidos trauméticos ¢ que colocava om aco um recurso que priorizava a sugestdo. Agora, 6 por moio das narrativas ativas de um sujeito acordado, de seu discurso cheio de lacunas, da ppresenga e auséncia da palavra que o paciente passa a ser escutado. Ao retirar a palavra do que a nosografia diz sobre o paciente, Freud entrega a palavra 80 préprio paciente para que ele fale sobre si mesmo. Surge entdo a psicanilise, mareada pelo convite a que o analisando, em uma posicéo ativa diante de seu proceso de cura, comunique-se ¢ associe livremente. Introduzindo 0 conceito de inconsciente, Freud destoca a fala até um outro lugar, muito além da intengao consciente de comunicar algo: a0 falar, 0 sujeito comunica muito mais do que aquilo a que inicialmente se propés. 0 inconsciente busca ser escutado e ter seus desejos satisfeitos, comunicando-se por meio de complexas formagSes: sonhos, sintomas, lapsos, chistes, atos-alhos; fenémenos que apontam para esse “desconhecido” que habita o sujeito. E assim. abro-se na palavra a dimensie do que escapa ao proprio enunciante. ‘© campo da patologia é 0 primeiro espaco no qual Freud observa a existéncia do inconsciente, ao focar o olhar sobre os sintomas durante seus trabalhos comas histéricas. Anos depois essa observagao amplia-se, abrangendo também 0 que 6 da ordem dos processos psicolégicos normais: os sonhos apontam para a existéncia universal do inconsciente, Por meio deles Froud. depara-se com a imperiosa necessidade da escuta na prética clinica: so as Fayehd — Ano IK— a 16 — Sio Fauio—janeun/2005— p 6 associagdes do paciente que possibilitam 0 acesso aos significados de seus sonhos. Distancia-se, assim, a psicandlise de uma idéia de “cédigo universal de deciframento”, uma vez que no processo de compreensao das produgses do inconsciente a palavra teré que ser dada ao paciente, ‘Ao tratar da psicopatologia da vida cotidiana, Freud escreve a respeito de “falhas” que operam no discurso: palavras esquecidas, palavras trocadas, palavras suprimidas, palavras equivocadas. E 0 inconsciente mostra-se operante ‘no apenas no dormir, mas também na vida de vigilia. Ao tratar dos chistes, Freud detém-se em trocadilhos, piadas, aforismos: palavras que sob a égide da comédia podem ser ditas. F 0 inconsciente mostra-se operante na vida de vigiia, no somente por meio da falha, mas também como “criador de novidade" (Hornstein, 2003, p. 151). Os textos freudianos dessa primeira década da psicanilise retratam, om tiltima andlise, o dominio permanente do inconscionte sobre a totalidade da vida consciente, Eassim a associapao livre ganha destaque fundamental. De fato, a andlise dos fendmenos psicolégicos normais e patolégicos 86 se mostra possivel por ‘meio dela, exigindo do analista, em contrapartida, uma capacidade de escuta, que nao reduza os espacos simbélicos que a associagio livre viabiliza. Ao paciente cabe comunicar tudo © que Ihe ocorre, sem deixar de revelar algo que Ihe pareca insignificante, vergonhoso ou doloreso, enquanto que ao analista, cabe escutar o paciente sem o privilégio, a priori, de qualquer elemento de seu discurso. Na efetivacao dessa regra fundamental instaura-se a situapao analitica, abrindo possibilidades do desvelamento da palavra No selo da associago livre val se produzindo um deslocamento da imagem, do fato ‘como fixe, © este vai se incluindo em miltiplas imagens caleidoscépicas cujas ‘combinagées possiveis se multiplicam ¢ onde o ritmo, a eadéncia, a intensidade maior de alguns fonemas, a excitasio expicita no gaguejar de uma palavra o sentido ‘duvidoso de uma frase mal construlda, tudo iss0 vai dando tonalidades diferentes ‘estas figuras que no passam desapercebidas a escuta sutil da atengio lutuante. ‘Ao mesma tempo, a0 ser escutado pelo analista, o préprio sujlto que fala se escuta (Alonso, 1988, p. 2), Associando, o paciente fala de um outro — o inconsciente - que Ihe desconhecido e irrompe em sua fala quando a légica consciente se rompe. Torna-se presente, em algum determinado momento da fala do paciente, a I6gica do inconsciente, do processo primério. A partir de sonhos, atos-falhos, chistes, esquecimentos, ambigitidades, contradigées, essa Iégica vai se desvelando e os contetidas senda significados com a ajuda da interpretagao. Paulo —jansun(2005 — p. 05-76 Nostes primeiros tempos da psicandlise Froud apresenta o aparelho psiquico dentro de um modelo tépico, composto de trés “lugares” ~ consciente, pré-consciente @ inconsciente —, que se organizam em dois sistemas, com principios reguladores ¢ de funcionamento completamente distintos. Esses construtos tedricos sustentam uma técnica psicanalitica, a qual designa ao analista o trabalho de tornar consciente @ inconsciente. 0 analista atua como um decifrador, que com seus recursos téenicos & capaz de traduzir e revelar ao sujeito sous desojos, fomecendo-the sentido desconhecido, A escuta analitica, sob este preceito técnico de tornar consciente o inconsciente, fica revestida de um saber e de um poder, ot utilizando a expresso lacaniana, o analista fica em um lugar de sujeito dio suposto saber. Lugar que quando delegado pelo paciente pode, nos ‘momentos iniciais da anélise, auxiliar que palavras sejam enunciadas a fesse outro, visto pelo paciente como possuidor de um saber pleno © absoluto, Entretanto, na medida em que 0 processo avanca, cabs a0 analista a recusa da ocupagio desse lugar. A condugio do processo analitico dove possibilitar a descoberta, por parte do paciente, de que ele é quem sabe de si: um saber que é patriménio de um territério desconhecido de si mesmo, Para alcangé-lo, alm de ser escutado, o paciente deverd escutar- se. £ somonte ao assumir a posigdo de quom nao sabe a respeito de quom chega com uma demanda de ajuda que o analista poderé efetivamente exercitar a escuta analitica A medida que avanga om suas formulagdes tedricas, Freud vai construindo, modificando e reconstruindo concepgées técnicas, de forma a

You might also like