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NAO HA CIRNCIA DO REAL! EIS A FORMULA QUE ESCOLHI TOMAR Como ponto de partida, tal como enunciada por Jacques-Alain Miller no v1 Congreso da Asso- ciagio Mundial de Psicandlise, ocorrido em Buenos Aires, em 2008, e dedicado ao tema Semblantes e sintomas: “Nao ha ciéncia do real”. Trata-se de uma formula breve, clara e contundente. Até onde pude verificd-lo, nao se encontra em nenhum escrito ou Seminario de Jacques Lacan. Uma negagao tao categérica pode parecer nao ape- nas abrupta, mas também insustentdvel para um pensamento cien- tificista ou uma epistemologia ingénua que conceba o real como algo evidente e dado de antemao, como um fato a ser empirica- mente observado. A despeito disso, ela é também a conclusao que se nos impée, quando nos atemos a algumas consequéncias da ciéncia contemporanea. Encontram-se, ¢m muitos de seus desenvolvimen- tos atuais, afirmagdes que tornam o real algo inteiramente correlato, por exemplo, a chamada “consciéncia” do observador. De acordo com tais desenvolvimentos, o real s6 poderia ser apreendido como 1 Texto ampliado com base em intervengao realizada no encontro Critérios de cientifcidade da psicandlise. O combate epistemolégico, realizado no Parlamento de Lyon nos dias 18 ¢ 19 de setembro de 2010, no ambito das atividades do Laboratorio de la Universidad Popular Jacques-Lacan, de Barcelona, acerca do tema “Critérios cientificos e psicanslise”. um correlato de um Eu do conhecimento, um Eu que seria tao Teal quanto mitico, tao evanescente quanto irredutivel a observacag ob, Todo 0 penisamento ocidental se encontra atravessadg pe esse paradoxo do Eu e do objeto do conhecimento. Um nao existirig sem 0 outro. A psicologia, em sua pretensdo cientifica, é a herdeira fe, ao mesmo tempo, 0 Alibi ideoldgico desse paradoxo irresolivel, O pensamento cientifico navega em suas aguas, por mais que o rea] tenha sido apreendido pelo numero € seja calculado para operar com ele de maneira efetiva. Ocorre que a evidéncia do real sempre foi o estratagema de todo empirismo positivista para considerar 0 paradoxo solucionado: jetiva, E aqui entao que nao se deve ser positivista. O positivismo é a concepgao segundo a qual, se eu a resumo, um fato é um fato. O positivismo € a cren¢a no absoluto do fato, modo pelo qual os conceitos surgem, diz Heidegger, como simples recursos. Em contrapartida, a prdpria elaboragao da ciéncia matemitica da natureza testemunha a relatividade do fato em relagao ao con- ceito, Como diz Heidegger: “Um fato s6 € 0 que é 4 luz do conceito que 0 funda”. Esse enunciado poderia ser de Canguilhem. Trata-se de um enunciado, um principio epistemoldgico que deve, é claro, ser aplicado, posto em funcionamento, quando nos perguntamos pela \sao da perspectiva cognitivista ¢ da vontade emergéncia e a afirmat que. anima (Miller, 2007-8, aula de 23 de janeiro de 2008). Vé-se, com efeito, como as ciéncias cognitivas navegam nesse oceano dos pressupostos do positivismo sem saber que profundi- dade alcancam os preconceitos de sua propria cognigao. “Um fato é um fato”, continuaré a defender 0 empirista convencido pela obser- vacdo dos fatos em que supde 0 real. O que haveria de mais real do que esses objetos em cuja obser- va¢do e em cujos dados a ciéncia alicer¢a seu edificio? O que seria mais real do que um dtomo, um neurénio ou um gene? Nao obs- tante, por menos que se investiguem de maneira mais precisa essas nogées, surge rapidamente a nossa frente 0 que se pode muito bem, a0 A PSICANALISE, A CIENCIA, 0 REAL consoante a categoria hicantana de semblaite, chamar de outros tantos semblantes da natures A novia de gene talves seja, hoje, a mats paradigmiatica das no goes semblantes usadas para figurar o real. Sua atual definigao é tao ambyua © se mostra de tal modo dependente da fungao pela qual é determinada que a genética se vé obrigada a modificd-la substancial- mente a cada nova descoberta. O gene se torna, assim, um semblante, um parecer ser ¢, inclusive, “uma construgao histérica € social” mais do que uma entidade univoca € encontrada no real. Na realidade, a nogao de gene designa nao um objeto real que tenha sido desvelado pela ciéncia, e sim a construgao de um objeto simbdlico, um conceito com 0 qual se pode dar conta de determinadas observagées experi- mentais. © interessante é que, apesar desse esvaecimento do objeto real em favor de sua construgao simbélica, bem como dos permanen- tes deslizamentos pelos equivoces da linguagem nele implicados, nada o impede de operar e produzir efeitos pragmiaticos e experimentais. NO LIMITE EXTERIOR DA CIENCIA ‘Ao lado e mesmo entre essa série de objetos que a ciéncia encontra como aparéncias ou semblantes do real, encontra-se também um pedaco do real, de que dé testemunho o inconsciente freudiano na clinica do ser falante. Isolado sob a luz da ciéncia — nao poderia ter sido descoberto sob outra luz -, ele torna presente outra série de semblantes, que correspondem ao campo da linguagem e do goz0. Ao surgir, 0 inconsciente freudiano logo mostrou que 0 real da cién- cia nao podia ser tao univoco € claramente representavel pelo Eu da 2 Cf. capitulo “O real, o semblante ¢ o falo’, de meu livro Tew eu nao é teu. O real da psicandlise na ciéncia (Bassols i Puig, 2oub). 5 Nao se trata aqui do tao surrado quanto criticado relativismo “pés-moderno”, que faria da ciéncia uma mera “construgao cultural”. A expressao € dos pré- prios geneticistas apds terem estudado e revisado, a luz de sua perspectiva, a hist6ria do conceito de gene (Morange, 2001: 69-72). Para uma visio de conjunto da historia e da atualidade da genética, ver Lambert (2003). NAO HA CIENCIA DO REAL u consciéncia como este pretendi : consciente, tal como Cieed podepene pata : i-lo, x ma cegueira trredutivel para o sujeito da ciéncia. Invoc. i ‘causalidade psiquica” nao é um recurso a psicologia d ar aqui uma sim 0 ponto de apoio para indicar a divisao anaes es da ciéncia. Trata-se de uma divisao que aparece, Ere do sujeito anguistia do préprio cientista ou nos avatares dos cae iene - ocasionados pelas descobertas mais importantes (cf, enna i De que real se trata entao para a psicanélise? Freud $6 ae intui-lo, e convém seguir o trajeto dessa intuigéo numa ae momentos cruciais ao longo de sua obra, desde a andlise do ae como “via régia” do inconsciente até 0 mais real que permanece fora da simbolizacao do recalque primario, passando pelo Real Ich, o Eu real enraizado no aparelho psiquico, e também pelo real do trauma que escapa a toda rememoragao possivel. Foi Jacques Lacan quem localizou esse pedago do real como um impossivel logico, como 0 que niio cessa de nao se escrever na experién- cia do sujeito que fala e goza de um corpo. Seu esforgo para encontrar na légica e no matema uma “ciéncia do real”* que também localizasse 0 sujeito da ciéncia se mostra nao apenas demonstrativo como também esclarecedor do que 0 levou aos impasses do ideal cientifico. Nesses termos, a formula “nao ha ciéncia do real” lumina toda a ultima parte de seu ensino, desde que situada como o ponto de fuga pelo qual sua perspectiva se ordena. E uma formula que se pode pér em série com o famoso “nao hé relagao sexual” ou com o “Hao Um” [Il ya de ?Un}. Para chegar a esse ponto, é preciso percorrer os lugares ocupa- dos pela psicandlise em relagdo a ciéncia durante o ensino de Lacan. Trata-se de um lugar e de uma relagao sempre paradoxais, marca- dos por uma extimidade irredutivel. Jacques-Alain Miller os situou nos sucessivos momentos desse ensino com os seguintes termos: um lugar que vai “da ciéncia até a ciéncia conjetural, em seguida a © real d lo in. Mostrava a causa ¢; ie 4 Talcomo propés em diversas ocasides, por exemplo, em “Talvez em Vincennes”: “Légica — Nao menos interessante./ Sob a condigio de que se acentue que ela € uma cigncia do real por permitir 0 acesso 4 modalidade do impossivel” (Lacan, 1975b: 314). az A PSICANALISE, A CIENCIA, O REAT ciencia no limite da ciéncia ¢, entao, a formagao discursiva no limite exterior da ciencia’ Veiamos como seguir os giros desse percurso. Ao passo que, nos anos 1940, Lacan pensava a psicandlise como uma eténcia da subjetividade, ao lado das ciéncias sociais ou da antropologia, nos anos 1950, ele introduziu, de uma vez por todas, seu lugar nas ciéncias chamadas de “conjeturais”.® Essa denomina- ao, proposta pelo proprio Lacan, rompe com a divisao ficticia en- tre “ciéncias humanas” e “ciéncias naturais” — termos que sempre Ihe pareceram impréprios -, para situar a psicandlise a0 lado da matemiatica e da légica como uma ciéncia conjetural do real, feita com base numa andlise do simbdlico da linguagem. Trata-se de um claro descentramento do lugar do sujeito na ciéncia, para situd-lo como o sujeito proprio & psicandlise. O sujeito, impossivel de ser excluido num “exterior” da ciéncia e de seu método objetivo ¢ ex- perimental, revela-se entao como 0 “interior” proprio ao sujeito do inconsciente freudiano. A referéncia passa a ser feita entao as “cién- cias da linguagem” como um lugar possivel para esse sujeito da psi- canilise na ciéncia. Estamos agora num limite “interior” do campo da ciéncia, mas que se conecta, no mais “exterior”, com 0 sujeito do inconsciente. Adiante, nos anos 1960, a légica se torna a prin- cipal referéncia para a construgao de uma eventual ciéncia do real. O matema, porque se transmite integralmente, oferece psicandlise © instrumento para essa transmissao, ainda que dependa, sempre e necessariamente, do discurso e da lingua partilhada para torna- -la efetiva. £ por isso que, nesses anos, Lacan nao vacilava em afir- mar que seu ideal era “um discurso sem palavras’? paradoxo que CE. a aula de 6 de fevereiro de 2008 de seu curso LOrientation Lacanienne (Miller, 2007-8). 6 — C£um dos sentidos desse termo, derivado das conjeturas de Nicolau de Cusa, no capitulo “Nicolau de Cusa: as conjeturas’, de meu livro Tew eu mio é teu. O real da psicandlise na ciéncia (Bassols i Puig, 20ub). 7 “Uma vez mais, como se teré visto, tive a vantagem de que seja evidente uma Jinguagem af onde alguém se obstina em figurar o pré-verbal. Quando se no- tard que prefiro um discurso sem palavras?” (Lacan, 1967¢: 15). NAO HA CIENCIA DO REAL 3 é tambem o de uma ciénet que quer redusir por complete , quet equivoso aa lingua, revorrendo apenas a formalizagan lo O imporsivel de tal imiciativa define também 0 objeto que a fund, um objeto impossivel de representar, mas que 1140 cessa de pe : inscrever nela mesma. Por fim, a topologia seria o lugar em one estrutura eo real se identificam para vir a luz na linguagem.* Nesse ponto, j4 nos anos 1970, Lacan afirma, de maneira mais segura, que a psicanalise mao € uma ciéncia, sim uma pratica e um discurso que lidam necessariamente, desde o seu exterior, com o discurso da ciéncia. Perguntar-se por sua articulacéo nao se torna menos ressante quando isso ¢ feito a partir dessa exterioridade. Tal espécie de errancia da psicandlise em relagao a ciéncia ~ trata-se nao de um homeless, e sim de um exilio interior — ocorre simultaneamente a localizacao cada vez mais precisa de um real proprio a psicanilise. Pareceria estranho falar de “um real préprio” a uma disciplina sem cair num relativismo extremo, todavia é a propria ciéncia que est4 em posicao de situar reais diversos, quan- do nao universos paralelos. O real da psicandlise é um real proprio ao campo da sexualidade e da linguagem, um real que surge como uma profunda perturbagao do gozo e do sentido no ser falante. Esse real se distingue cada vez mais do real que a ciéncia cré mane- jar e representar com seus aparelhos ~ aparelhos que, de sua parte, existem no e desde o proprio campo da linguagem —como um real le ndo se representar e que sO aparece como um furo em especial como um furo no campo do saber inte! que nao cessa d no campo do saber, sobre 0 gozo e a relacao sexual. De fato, o real que a ciéncia cré manejar e representar € um real que parece conter em si mesmo um saber escrito de antemao. Seja no neurénio ou no que se isolou como 0 gene, esses objetos se apresentam com um saber ja escrito, um saber que seria um 8 “Aestrutura é 0 real que vem @ luz na linguagem” (Lacan, 1973b: 476)- 9 “E preciso, ainda assim, dar-se conta de que a psicandlise nao é uma ciéncia, nao € uma ciéncia exata” (Lacan, 1977: 14). Essa distingao sobre 0 nao exato autoriza, é verdade, a modular de outra forma o lugar que exploramos. 1% ‘A PSICANALISE, A CIENCIA, 0 REAL saber nao suposto, ¢ sim totalmente e: sep eed ae aR er a meh z Jeito 0 escreveu. Por certo, trata-se de um saber que, as vezes, € preciso decifrar, mas que esté al, a espera de ser lido, como o deixa supor, por exemple, a falsa nogio de ‘codigo genético”, que impregnou a Percepcao e o pré- prio sentido de nossa realidade simbélica. Hoje, cada coisa contém seu sentido e seu destino escritos em seu pNa. A metéfora chega tao longe, a ponto de se dizer, entre outras coisas, que alguém carrega seu destino escrito em seu DNA, mas também que esse ou aquele partido politico tem escrito em seu pNa tal ou qual pro- posta programitica, ou ainda que uma ou outra caracteristica téc- nica de um automével se encontra escrita em seu DNA. As nodes de Dna e de “cédigo genético” vieram, assim, ocupar 0 préprio lugar do simbélico como uma metéfora que modula as multiplas significagées de nossa realidade. A suposi¢ao de que se trata de um cédigo, no entanto, é absolutamente falsa. E mais ainda a de que se trata de uma linguagem. Por outro lado, no campo das neurociéncias, a tecnologia das imagens obtidas por ressonancia magnética nuclear nos promete representar 0 real do pensamento, 0 real que seria a causa das di- ficuldades e dos erros cognitivos do ser falante, bem como de seus transtornos e mal-estares." E, assim, pretende-se isolar em tais imagens os chamados qualia, que cifrariam a subjetividade, por exemplo, na experiéncia da dor, singular e intransferivel de um sujeito para outro. Os qualia constituem, de fato, o enigma em que as atuais neurociéncias acreditam localizar 0 mais real e singular do sujeito. E outro dos semblantes que mostram sua disjungao com o real, Trata-se, contudo, de um real que a psicandlise localiza seu famoso texto inaugural 10 termo foi cunhado por Erwin Schrédinger em " [What is Life? The physical de 1944, O que é vida? O aspecto fisico da célula viva aspect of the living cell] (Schrédinger, 1944). Ver, adiante, 0 capitulo “Ressonancia semantica versus ressonancia magnética 5 P. 59-92. NKO HA CIENCIA DO REAL a justamente como impossivel de representar(-se) € que nao pode scr manejado, nem evocado, exceto por meio de outro tipo de res- sonincia, aquela que chamarei de “semantica’, para fazer com que nela ressoe 0 Unico instrumento de que a psicanélise se serve em sua pratica, a palavra. O MUTISMO DO REAL ‘As nogoes-semblantes que a ciéncia elabora sobre o real sempre chegam, por um caminho ou outro, a esse ponto irredutivel que esta no lugar do que Lacan situou na psicanélise como 0 sujeito da ciéncia. A psicandlise também tem suas nogées-semblantes. O inconsciente é uma delas, a primeira que tenta depurar 0 real da linguagem e do gozo, cuja resposta ¢ 0 sujeito que fala. Sabe-se que Lacan isolou quatro conceitos ou nogées-semblantes fundamentais da psicandlise — inconsciente, repeticao, transferéncia e pulsao -, sendo a questao a de saber se dao conta ou nao do real que a ciéncia deixa de lado como algo nao objetivavel, mas que se encontra no coracao de cada uma de suas elaboracoes. Nessa perspectiva, se o lugar da psicandlise continua a estar na “borda exterior da ciéncia’, € para indicar que esse real que ela cré representar — sem que se possa, por outro lado, pensar muito na na- tureza dessa crenga — permanece igualmente na borda exterior de seu campo. “Nao hé ciéncia do real” diria, assim, que s6 ha ciéncia do simbélico e do imaginario, que nao hé outra ciéncia que a dos semblantes oferecidos pela natureza a leitura de quem se representa neles como a sua consciéncia. A despeito disso, o real que a ciéncia moderna cré decifrar e in- terpretar ~ desde o seu nascimento com Galileu e a natureza escrita em linguagem matemAtica até os mais recentes desenvolvimentos da mecanica quantica — pareceria antes um real mudo, estranho a rea- Jidade € propicio aos mais surpreendentes desacertos. Em 1953, na preparacao de seu famoso “Relatério de Roma’, Lacan se referiu a essa circunstancia, quando indicou: “A ciéncia avanga sobre 0 real, a0 reduzi-lo ao sinal. Mas ela também reduz 0 real ao mutismo” (Lacan, 16 A PSICANALISE, A CIENCIA, 0 REAL 1gs3az 136). bre o mar, a ciéne Coro oy mn cr andes oe i > de um saber que ja estaria escrito nele. E ela o faa di 7 eens escrito a. um sinal — um sinal, endo um significante at ie sai ‘ 1e-, vale dizer, a um signo tio natural quanto a fumaga é sinal de fogo. Desde entao, perma- nece sem solugao, é 0 que melhor se pode dizer, a pergunta sobre quem ‘ou o que acendeu o fogo. Se isso € uma “reducao”, € porque esse saber, ao que parece, supde necessariamente um sujeito em algum lugar, Seja Deus,emsua versao mais religiosa, seja a Natureza oua propria Evolucao, em sua versio mais cientificista, trata-se de um sujeito suposto para quem esse real seria um signo. A ciéncia pensa reduzir esse sujeito — a famosa varidvel subjetiva ou “consciéncia” — a um nada mudo, va- Jendo-se de seu método tao mais experimental quanto mais objetivo. Mas é claro que esse sujeito retorna de diversas formas no real para fazer signo sempre de algo mais. Os dois famosos teoremas de Kurt Gédel, 0 principio de incerteza de Werner Heisenberg ¢ 0 famoso gato de Schrodinger sao alguns dos momentos em que esse algo mais — ou algo menos — do sujeito que produz signos se fez presente de maneira jrredutivel na histéria da ciéncia durante 0 século xx. Hoje, estamos em outro momento. Quanto mais a especializagao técnica parece redu- zir esse real ao mutismo, mais este lhe devolve sua propria mensagem agora sob a forma da voz do supereu, de um de maneira invertida, imperativo a passar ao ato: Just do it! Quem faz signo de saber no real da ciéncia? Em “Televisao’, Lacan evoca 0 momento fulgurante que supds 0 nascimento da fisica no século xv — a ciéncia por exceléncia — referindo-se a pergunta que os contemporaneos de Newton fizeram a ele: “Como cada massa sabe sua distancia em relacao as demais para cumprir de maneira tao precisa a lei de gravitacao que faz da atragao uma for¢a inversamente proporcional ao quadrado dessa distancia?” Resposta 12, No texto original de Lacan, lé-se: “La science gagne sur le réel en le réduisant au signal, Mais elle réduit aussi Je réel au mutisme”. 13 Cf.0 capitulo “A voz do Supereu: Just do it!”, de meu livro Teu et O real da psicandlise na ciéncia (Bassols i Puig, 2oub). u nao é teu. NAO HA CIENCIA DO REAL Be de Newton: “Deus 0 sabe, ¢ faz 0 que deve ser feito para isso” (Lacan sora: sie), Desde entio, parece difcilse nao impossivel ise 6 real, exorcizar esse bom Deus do universo da ciéncia, ainda que se o confine, por vezes, a0 lugar de um “engenheiro aposentado” Entio, tio logo os céus, em que 0 ser humano lera ¢ escutara intiimeras mensagens, foram emudecidos pela escrita das poucas letras que compoem a lei da gravitagao univer sal, Outro sujeito comegou a fa zer-se escutar por melo dos signos que, a partir dai, converteram-se em significantes, vale dizer, em representagao desse sujeito... para outros significantes. A fumaga que deixara no ar a pergunta sobre © sujeito que acendeu a fogueira se transformou, assim, em cadeia significante de uma mensagem a ser permanentemente decifrada. Pode-se dizer que Freud assinou com seu nome 0 retorno desse sujeito excluido da ciéncia, um sujeito que s6 se faz presente como suposto saber numa cadeia significante que funciona como incons- ciente para ele, isto é, como um saber que nao sabe de si mesmo. Estamos de fato num e diante de um problema de linguagem. E por isso que na mesma época, enquanto indicava o mutismo do real na ciéncia, Lacan se voltou para a linguistica, no intuito de con- ceder um estatuto cientifico a psicandlise. Tratava-se de transmitir a sobredeterminagao do real pela estrutura simbélica da linguagem com a nogao de significante ~ no¢ao-semblante por exceléncia da psicandlise lacaniana -, 0 qual ordenava diacronicamente a cadeia do discurso falado. Continua tao mudo hoje o real da ciéncia? Direi que, a forca de nao poder localiz4-lo no limite exterior a que me referi, trata-se do mesmo real, que retorna de seu interior mais proximo, reclaman- do novos semblantes que 0 demarquem, o simbolizem e inclusive novamente o acalmem. E nesse interior que o real, se cabe dizé-lo assim, tornou-se hoje um pouco mais tagarela. Nos mais recentes debates da ciéncia, 0 real impossivel de re- Presentar se faz presente, muitas vezes, por meio do nome de uma velha conhecida da psicandlise: a consciéncia, ou o Eu. Trata-se de wre fantasia que retorna também com os nomes mais ou menos miticos de “cogni¢ao’, “psiquico” ou “mental”. Veremos, adiante, alguns de seus episédios. 18 A PSICANALISE, A CIENCIA, 0 REAL

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