You are on page 1of 16
MARDONES Teel aia. A vida ole ya wh a data tnn Be pine bica da nie we ibi ce do reli NA Pade » Pouner , 2006. = V Sar AS ARMADILHAS RELIGIOSAS DO SIMBOLO y este capitulo vamos ver como a religio se comporta diante do simbolo. Que- > N mos nos referir, na tonalidade ou atmosfera cultural do nosso tempo, aquelas SS amos as duas tentagées atuais anti-simbdlicas que provém do campo as sionalizagao objetivista e o subjetivismo ingénuo. Duas formas escon- 5 entemente dentro da sensibilidade religiosa e que destroemo simbolo, & 10 que ha de melhor na religido. ey & nte elas se apresentam dentro do cortejo do pensamento sim- ri que querem o melhor para a religiéo e 0 Mistério, ao qual dizem Logo, porém, percebe-se que sao virus que procuram infeccionar a a com a objetivagaio que expulsa o simbolo e nao permite a reserva > diante do proprio Mistério; ou se apegam tanto as suas vis6es proprias S, 2S suas boas intengoes, que nao mar ntém diante do Outro a distancia simbdlico requer. ferma-chave pore periéncia religiosa tem seus proprios deménios. A tentagao de se apoderar io e manipula-lo a ameaga continuamente. Antiga e permanente tentagao, escapam a religiosidade e nenhuma instituigdo. Pretende-se possuirou , ou reduzi-lo, ou até mesmo despreza-lo: €a tentagdo objetivista stratégia racional. Contudo, pode-se ir também pelo caminho do sentimento e 08 imaginagao: afirmar a proximidade e 0 encontro intimo com © Mistério, que se as €m algo disponivel e possuide no coragao. Teanttt 0 Mistério, erque-se a proibig Wien 0® Deus (Ex20.4s; 40,4; DEBS), Beous Que pretenda apreender Deus. Nao se pode nem se i P conceftualmmente seja prétendendo acessos diretos impossiveis. 4 arty e acabar mal com o simbolo e de intro estilos de pensamento e s Ir je e que contaminam as me de suspeita diante de lo agir como simbolo, 5 Duas formas d no mundo da religiao. Dois estdo presentes em nosso hoje ento, langar um olhar critico e dogmaticos que nao deixam o simbol estilo de pensamento e de trato com 0. Mistério. 122 CAPITULO VI A RACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA Antes de tudo, a religido 6 uma forma de vida ou de se situar no mundo. En- quanto modo de existéncia, a religiéio supde uma atitude antropolégica que acentua osimbdlico: tira © ser humano de si e o convida ao Outro, ao Mistério. Portanto, a jade, 0 ausente 6 o companheiro que permite ao homem nao se fechar em si no € enfrentar a finitude e a morte como 0 nao definitivo. A expressao que da titulo a este capitulo deve-se ao psicdlogo da religiao A. Jergote,’ que sintetiza o processo vivido pela religiao, especialmente o cristianismo co na modernidade, como “uma racionalizagao sobrenaturalista”. O cristianismo, 4 desafiado pela razAo critica e argumentadora, pela denominada filosofia das luzes, nao quis perder pé e acirrou a razao raciocinante. O resultado foi uma espécie de | igido passada pelo forno escolastico, requentada na maioria das vezes e seca sua textura e expressividade. A tarefa, que foi uma aventura intelectual atrevida, | \< provocadora e vital em santo Tomas e em muitos de seus seguidores, transformou-se, como todo requentado, em algo sem suco nem experiéncia. Por outro lado, apropria mecou a se enferrujar em suas formulagées de catecismo e tirar-Ihe a novidade, omistério e a sugest&o. Poderiamos dizer que tal racionalizagao sobrenaturalista € ahistoria recente da dessecagao simbélica dentro da teologia e da Igreja. | Nesse processo, quem saiu perdendo foi uma religiosidade como aproximagao € trato com o Mistério de Deus. Parecia que, mais do que aproximagao, tinhamos Na mo o esclarecimento dos segredos de Deus. Perdeu-se, até entre os fiéis for- 10 de la ponitencia ylareconclacion. In: Selecciones de Teologia 145, ‘expresso 6 citada no artigo desse autor, E} sacramento de 8 Per : 71-80 721 1908, Pare A. Vergo, eaquccau-ee emasiadete i Kae qe oe secre Terice si prdticas simbdlicas, e, ease eae sicon epnelderoureeo pouro sor eckcio0e fomeilce Seca a> So eed "osetia eaeniatins ry cosicoce Niort. reoaio Tos lin ts es setae eee Cee i so eer wa, MEunad ot Cita PA Gst =e Tesei aa 1999, AVIDA DO SIMBOLO mados, a nogao de “analogia” na hora de falar sobre Deus. Esqueceu-se com faci. lidade de que todo falar sobre Deus é simbdlico, isto 6, palavra e sinal Metaféricog, sacramentais, de Outra Realidade presente e ausente, proxima e distante, esquiva e indisponivel e, a mesmo tempo, indubitavel. E, sem duvida, se preparou a reac&o contraria — os pdlos opostos alimen- tam-se mutuamente —, sempre presente entre os alérgicos ao intelecto e voltados para as razdes do coragao. A exaltagao da experiéncia religiosa pelo caminho do sentimento. Deixar de pensar e se entregar a afetividade como via de acesso a Deus, Cresceram a imaginagdo e até o simbolismo, mas sem a mediaco racional. Dessa maneira, Correu-se para © subjetivismo piedoso, que freqlentemente desemboca no irracionalismo. Como afastar esses dois perigos presentes hoje na religiosidade de nosso tempo € que contaminam o cristianismo? Dessa maneira, ficamos atentos para que a recuperagao do simbolo s¢ por um caminho que faga justiga ao Mistério de Deus e ao proprio ser hut equidistante tanto de uma raz4o sem mediagao simbdlica como de um simbolis religioso sem razao retificadora. A consideragao dos excessos racionalistas nos serve para recuperar 0 Ve dadeiro falar sobre Deus, analégico e simbdlico, da teologia negativa. 1. Avia analdgica e sua logificagéo Podemos entender facilmente alguma coisa do que A. Vergote nt zer @ o que realmente o pensamento religioso da modernidade catélica prestarmos um pouco de aten¢ao a uma das formas de pensamento m e sugestivas que a filosofia e teologia descobriram e praticaram ems sobre Deus. Denomina-se “método analégico” ou, simplesmente, se de auténtica teoria do conhecimento aplicada a Deus ou, se p sintaxe do nosso linguajar sobre Deus. E uma teoria facil de compreender e, ao mesmo tempo, dessa aparente simplicidade, acaba sendo facilmente con como aconteceu muitas vezes. A teoria da analogia pode passos. O primeiro consiste em uma aproximagao positiva ( 124 A RACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA conhecimento de Deus. Contetidos positives sobre Deus sao afirmados, analisad nomeados etc. Esse momento, ou via afirmativa, fala sobre Deus ineviavel eS a partir da experiéncia humana e a maneira humana; isto 6, nés, seres i falamos de Deus € 0 fazemos como humanos, antropomorficamente, Em eat damo-nos conta de que esse modo de falar nao esgota 0 que se poderia falar ee Deus. Nés nos precavemos sobre nosso conhecimento de Deus, pois permanece sempre curto em nossas afirmagGes; ou é excessivo e inadequado, ou acaba nao fazendo justiga a Deus. Isto €, comegamos a criticar nossas préprias afirmagées, acorrigi-las, matiza-las, desfazé-las e nega-las. JA estamos no segundo passo ou momento desse processo de aproximagao de Deus. E a aproximacao negativa (“via negationis”). Contudo, ainda n&o terminamos nosso processo de conhecimento sobre o divino. Este segundo passo nao é 0 final do que é Deus, ou melhor, do que o ser humano pode falar sobre Deus. A mente humana permanece em um constante ir e vir da afirmacao a negagdo e vice-versa. Um afirmar que é corrigido e até negado, para voltar a afirmar o anterior, mas de um modo melhor, superando-o (“via eminentiae”). > terceiro passo se explicita uma tensa relacao na busca e conhecimento de s e no dramatismo deste conhecer, que sabe da inadequagao sobre seu co- nhecimento quando se refere a Deus. No final, ganhamos alguma coisa: damo-nos 2 exatamente da inadequagao radical de todo o nosso pensamento, da tensao que o assalta para forgar 0 limite e pular o muro da limitagao a fim de apalavrar algo sobre 0 Mistério de Deus; captamos 0 carater inefavel e desconhecido de Deus e, 20 mesmo tempo, experimentamos a tensdo de cruzar a ponte, de transcender e atravessar o abismo que separa 0 finito do infinito. Isto 6, somos conscientes do ‘er evocador, sugestivo, metaforico do nosso falar sobre Deus e do nosso co- nhecimento. Contudo, ai mesmo captamos algo de Deus e inclusive o pensamento 6 convidado, finalmente, a Se calar e adorar (“teologia negativa ou apofatica”).? Percebemos que 4 pretensao de conhecer a Deus e dizer algo sobre ele est atravessada por uma tensdo ou dramatismo que permeia 0 proprio pensamento quando se defronta com © Mistério. Pode acontecer, porém, Resumo a parr da expresso candice oe todas as posigées theses) de todas sm pensar aH° 9% TT ya 3, 1000-8), Quanto a esses aspecos, de dsb Gomes Cferaes negaglo” (De Mystica THORENS cidento, 1970, cap, 5. que rascendontal, Mad. Pew Ye Deus, Ass, a arog poss ncorpradaateloganegstta siléncio respeitoso, 61! AVIDA DO SIMBOLO do processo mais um puro método no pio sentido do termo, ou seja, mero proce. dimento, mais do que um modo ou estilo de conhecimento, ou seja, atitude vita), € entao que aanalogia se desvirtua, e se fala de Deus como se se tratasse de um objeto amais deste mundo. No final, damos a impressao de que, como diria Borges, falamog de Deus como se todos os dias tomassemos café com ele. A pretensdo se aga com um discurso e um conhecimento degradados de Deus; falar de Deus, ¢ tudo mais, a partir de um “jargao” ou terminologia que ja no preserva 0 devido respeito, a distancia ou tensao em relagao aquilo ao qual se refere. Perdemos nao somenteo respeito pelo objeto de conhecimento, pelo Mistério de Deus, mas abandonamos a condigao sine qua non para poder dirigir a busca racional até Deus: a tensa relagao mental que nao pode ser reduzida a mera l6gica ou procedimento, e que se sabe e se sente convidada a atitude existencial da adoragao. Quando essa condigao nao se cumpre, caimos na mera operacao légica. A analogia torna-se mé logificagaoe © discurso sobre Deus é domesticado pelo procedimentalismo racional. 4 e, ao mesmo tempo, muito importante: no conhecimento e no falar sobre Deus, experiéncia do religioso em geral, temos que evitar a tentagdo da transparéncia. se pode conhecer a Deus de forma cartesiana, clara e distinta. Temos que uma reserva sobre a pretensao excessiva de transparéncia no discurso a res! de Deus. E essa chamada de atenco cabe a todo aquele que fala sobre Deus, todo aquele que cré. E é mais importante ainda para todo aquele que fala de e Deus, desde o maior tedlogo ao mais humilde catequista. A Biblia j conhece essa tentacao da transparéncia. Aparece até em um grande desejo de Deus. Talvez até seja inevitave| que isso aco todo crente. A figura de Moisés, com seu grande desejo de ver D 6 0 protétipo dessa ardente tensao que se pode tornar idolatrica, também experimentou esse mesmo desejo de ver Deus, sem dd estar “no amor com o Amor”. Isso quer dizer que o desejo. dk desejo de uma experiéncia proxima e ardente de Deus a mais dificil, compreende-se, manter na fronteira a distang também que, mesmo que nos livremos da tentagao racio 126 ARACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA ou objetiver Deus, ronda-nos a tentagéo afetiva de nos apoderarmos do Mistério angando a rede afetiva e reduzindo Deus a objeto de nosso desejo e de nosso coragao. Duas manipulagGes que néo 0 deixam ser Deus. Lembranga permanente de que, quando ele passa diante de nds, somente podemos ver as suas costas (Ex 33,12-23), isto 6, vé-lo “retrospectivamente”, em um olhar posterior, como vemos em um espelho retrovisor a imagem de Alguém que se afasta de nds. Essa chamada de atengao sobre a nao visibilidade, transparéncia ou claridade da fe nao nos deve impedir a busca mais conscienciosa possivel e a expressao mais adequada, mas consciente das limitagdes da nossa pesquisa e da nosssa expressao. Como o desejo de Deus, deve ser cultivada com todo o ardor do coragao e toda a desenvoltura da vontade. Essa atitude despojada e vigilante, abandonada e persistente, que a tradi- cao espiritual e teolégica cristé desde o Pseudo-Dionisio Areopagita chamou de agnosia” ou “teologia negativa”, é fundamental para a aproximacao teoldgica e espiritual de Deus. Deus permanece sempre mistério inefavel. Nem a mente mais rigorosa nem a teologia mais religiosa nem a mistica mais elevada podem dizercom /, toda a propriedade quem ou 0 que é Deus. Deus — usemos a imagem metaforica ke do Pseudo-Dionisio? — ultrapassa absolutamente 0 nosso ver, sentir ou pensar. O que podemos fazer é trabalhar como o escultor: pegar o cinzel e ir arrancando | pedacos de pedra até que comece a aparecer a imagem oculta no bloco. Assim deve proceder no caso do nosso pensamento: ir eliminando tudo o que oculta € nao deixa Deus aparecer. JA vemos que & teologia negativa deve ser compreendida. como caminho espiritual e como maneira de deixar que a luz primordial do Criador _ no seja bloqueada pelas luzes finitas dos seres. Sob esse ponto de vista, 0 método analégico nos ensina um comportamento, umas regras gramaticais para nos referirmos a pete 0 Absoluto, aquele que esta além — e aquém — de toda fronteira, e que nao existe woecig, nem Poesia, que possa alcangé-lo. Plotino jainsiste que devemos tratar os atributos e perfeigdes de Deus sern pretender aplica-los com todo rigor, mas que devemos hones ante- pondo a cada um deles 0 prefixo “como se".“ Contudo, as regras analégicas podem levar os homens até esse umbral, mostrando-lhes que o que conta de verdade vmioga mca: Obmsconsoas Met, Cas, 190, S74 Ci. Pseudo-Dionisio. a diz: “Ele no 6 como 6 porque no pudesse ser dilerente, mas porque Petro exresa so mute BOM SU perio nosso), de Pan, Erndaca V8, 1.2.8. Rede oe caro 00 else = PO =H Ie sofa ante, Ne Le sou0e AVIDADO SiMBOLO mais além do umbral, e nunca se deve confundir os indicadores e Metéforas, © apontado e sugerido. Por outro lado, 6-nos lembrado que a razao Proibe define presungosamente 0 indizivel, como fazem os falsos profetas € Os charlatées, A impaciéncia do conhecer e do desejar, tao arraigada em nossos Coragies, deve deixar lugar para a grande nostalgia de uma relacao, de um amor, que Tos 6 dado prognosticar na busca continua e na insatisfagéo de toda aproximagao. con- Ceitual e dos vislumbres e até éxtases afetivos de todo encontro. Ficamos, assim, livres de toda nomenclatura gloriosa e de toda palavra, discurso e até sentimento com pretensdes de capturar 0 inefavel, e somos devolvidos ao murmtrio, ao silencio. e & adoragao. ; Todo discurso sobre Deus, teo-logia, é solicitado a praticar o “principio agnosia”, isto 6, evitar fazer afirmagdes sobre Deus com pretensdes. objetivistas ou demasiado presungosas de seu saber sobre o Mistério Absoluto. Ou melhor, o crente permanece em uma sobriedade consciente de seu pobre saber, Honradez intelectual que o aproxima, por outro lado, do nao-crente, agnéstico ou daquele que busca com boa-fé. 3. A atualidade da “teologia negativa” Chamam a atengao os apelos que sao langados hoje, a partir de dentro da teologia crista,° para uma recuperagao da “teologia negativa”. Poderiamos dizer que ha uma consciéncia, nesta nossa situacao cultural, da necessidade de ? @ incompreensibilidade e insuficiéncia de toda linguagem e discurso sob! Coisa bem sabida pela tradigao teolégica, mas que, como vimos, corre 0 pi ficar continuamente esquecida. Parece que, depois do forte impulso para a teologia que proveio do Vaticano II, entramos em uma fase na qual pi as reticéncias agnésticas do nosso tempo. Redescobrimos a docta ignora A expressio & de José Gomez Caffarena, em A “agnosia” del creyerto, In: Arbor, 676, 2002. sequin Pseudo-Dionsio de que o nico modo de conhecimento de Deus é “a agnosia, um conhecinento ee ‘cima de qualquer conhecimento” * Gt, como exempos, Eva-Maria Faber La teloglanegatva hoy. I: Selecciones de Teoogi, 40 1187}: & Hing, Actuaidad do la tologianagativa. In: Cancilum, 269: 163-176, 2001; € Borgman La eologay postmoderna acerca de Dios. in: Concilum, 258: 141-185, 1996; de HJ. Hahn, Abschied vor GGrenzen der Moderne. In: Beutler, J. & Kunz, E. (orgs), Heufe von Gott reden. Worzburg, Echter, 1998, 128 ‘A RACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA Jemos que contextualizar essa redescoberta da “teologia negativa” como intoma do nosso tempo. Estamos diante de momentos de baixa espiritualidade que jpstificam a alta do tales, comedido e distante de Deus? A teologia e a espiritualidade notam que a experiéncia de fé € sempre um encontro esquivo com 0 Mistério? Es- tamos assistindo a uma mudanga social e cultural geral que nos torna conscientes das limitagdes do nosso conhecimento e linguagem? As raz0es Sa0 varias e percorrem toda a gama dos interrogadores e de seu pano de fundo. Cremos que é um conjunto de fatores percebidos, e nao apenas um, que explica melhor, que as altas e baixas espiritualidades, a tendéncia ao apo- no da teologia atual. Como mostramos, vivemos tempos de esquecimento e cegueira simbdlicos. O predominio da tecnociéncia e da tecnoeconomia divulga ume logica funcionalista que seca a imaginagao e é cega para o simbolo; cria uma sibilidade de indiferenga para as questdes do sentido que favorece a auséncia da ta sobre Deus. O consumo de sensagdes da industria cultural e a civilizagao da imagem geram uma atmosfera de auténtica in-transcendéncia. Talvez esse clima ustifique a simpatia por um falar distanciado sobre a auséncia de Deus. Da idade se faz virtude. Ha também um clima de incerteza cultural e social, de consciéncia de nao uir certezas, que aparece NO conhecimento e no animo dos homens de nosso 50. Por essa via se encaminha uma atitude prudente e distante diante de qual- quer tentativa, seja 4 de que tipo for, de possuir a verdade. O pensamento atual tornou-se mais cuidadoso e sabedor de suas possibilidades e limitagdes, quando nao confessa abertamente, diante da seguranga de outros momentos, sua fraque- za e impoténcia. Esse clima cultural agnéstico, de duvida, que permeia em nossa &poca os espiritos religiosos € © pensamento filosofico moderno, penetrou com sua seu desconstrucionismo & perspectivismo, no fazer’ ‘teolégico, iente da fraqueza de seu discurso sobre 0 Mistério de Deus critica e hermenéutica, tornando-o mais consci = que vai além de qualquer compreensao. Jigiosa do nosso tempo experimenta neste clima uma insi : dez diante das convengoes religiosas herdadas e das imagens Usadas para “i Rompe com elas inclusive por insatisfagao e busca de um Deus mais eg Er um clima de pluralismo cultural e religioso, de descoberta oS diversidade cresce um ecleticismo que rejeita 0 Deus univoco, claro e aistinto das. oe se sente atrafdo pela novidade de outras representagdes mais amorfas do O perigo da trivializagao vem de maos dadas com a exigéncia de uma puri Aconsciéncia rel AVIDA DO SIMBOLO do discurso e das imagens de Deus que chegou a teologia e que con ocasiao para revitalizar um didlogo inter-religioso e com a experiéncia ranea do mundo e da existéncia. Uma espécie de hermenéutica te modernidade tardia. stitui ung Contempo. e016 ga dessa Contudo, dito isso sobre a atualidade e oportunidade de uma: teologia " ainda temos que dizer que a “teologia negativa” nao é exclusiva do Cristianismo nem da tradigao biblica. As tradiges orientais (a mistica hindu, a budistae a islamica) o9- nhecem o despojamento da pretensdo objetivadora e apreensora do Conhecimento, Impelem ao siléncio e conhecem a impossibilidade de descrever o Inefavel. Sabem, como repete o pensamento pés-moderno atual, que ndo hd nada para se afirmar do Absoluto, porque isso significaria que o Objetivamos e o reduzimos a algo finito, No fundo, assistimos a uma tentativa de radicalizagao da analogia, especial- mente de seu momento negativo. Algo que nao é estranho a tendéncias que vém desde Plotino e chegam até os filésofos cristaos da religiéo, como H. Duméry? Insiste-se em dizer que aquilo que atribuimos a Deus n&o é algo que descobrimos | sobre ele, uma propriedade inerente a ele, isto 6, uma teologia explicativa de Deus, im © modo como nosso pensamento capta e se manifesta a si mesmo em sua atividade de pensar o Absoluto. No final, no discurso sobre Deus, nossos nomes. © atribuigodes sdo apenas indicadores e nado representagdes do divino. Talvez 0 digamos um tanto precipitadamente para o leitor, mas suspeitamos que, se nado quisermos cair no mais absoluto apofatismo e agnosticismo em relacao ao Mistério de Deus, temos que entender essa énfase na via Nnegativa como uma acentuacao Que denominamos “via simbdlica” ou “falar simbélico” sobre Deus. Uma fala que usa os nomes e atribuigdes de Deus como indicagdes e Sugestdes, deixando sem} aberta a problematicidade da adequagao ao Mistério. Isto 6, deixando as fato de que Deus é sempre Mistério, que nao se Pode dispor dele nem de alguma maneira. 4. A proposta crista: o simbolo quendtico Praticamente todas as grandes tradig6es religiosas conhecem vada, respeitosa e que guarda as devidas distancias em relagao a D luto. A analogia, em seu momento negativo, a critica da religiao e a F Cf. Martin Velasco, EJ encuento..., ct, pp. 178s, 130 ARACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA atéa desconstrugao pos-moderna indicam esforgos para fazer justiga a inefabilidade ge Deus e, por outro lado, a necessidade humana de nos referirmos a ele. Ao buscarmos em nossas prdprias raizes cristés, encontramo-nos dentro da propria tradigao biblica, e expressamente neotestamentaria, e ai achamos ja esse impulso para a analogia, para seu momento negativo e para a fala respeitosa sobre Deus. Inclusive, como mostram alguns pensadores atuais denominados “pés- modernos”,® ha uma especificidade do linguajar cristéo que 6 toda uma teoria do conhecimento divino, ou melhor, “uma doutrina da representagao divina”:° a kénosis quaniquilamento do Logos divino. Encontramos, assim, uma clara referéncia cristologica para as chaves de nossas normas gramaticais a fim de falar de e sobre Deus. Em Cristo — acabamos. jodo que soa bem tradicional — esta o que podemos conhecer de Deus mmo podemos ter acesso a ele. Vamos encontrar 0 locus classicus dessas indi- es, as quais a kénosis faz referéncia expressa, no hino da Carta aos Filipenses F2,5-11), pré-paulino segundo os estudiosos. O hino da Carta aos Filipenses, verdadeiro carmen Christi, compreende a humilhagao e a exaltacao de Cristo ou, como os comentaristas matizaram, fala de trés formas de representagao: 1) a representacao divina de Deus em Cristo; 2) 0 carater exemplar, modelar, da auto-entrega de Cristo aos filipenses e a todos os fiéis; 3) a exaltacdo ou ato de titulagao, nomeagao, de Cristo como Senhor. A primeira parte mostra, em termos trinitarios, a descida ou vinda de Cristo do Pai, que supde um esvaziamento de si. Notou-se repetidamente que 0 verbo kenoo, relacionado com 0 nome kenos, significa vao, vazio de verdade, sem dom. Do que Jesus Cristo se esvaziou? A resposta tradicional, desde Lutero, tem sido esta: de seus atributos divinos de onisciéncia e onipoténcia. Assim é entendida a passagem da “forma divi- na” 4 “forma de esoravo”. A encarnagao é o assumir da condigao hist6rica humana por parte de Cristo. Parece que se deva enten como equivalente a gloria divina de Joao (doxa); conexao entre a gloria de Deus e a condigao de escravo, do ser humano, da figura humana (v. 7). Dessa maneira se diz. que Cristo manifesta a .der “na forma ou condigo divina” (en morphe theou) entdo se estabelece uma estreita ondigao, por outro lado, «da J. M: Mardones, Sintomas de un retomo; a region ‘anomes como G. Vattino, J. Derida © muitos outros, nos a nomnes Soma, G. Vato @ E. Teas, A regio, ct, de G- 2 ae gota, Santander, Sol Tore, 1909, pp. 17s, do yuo se cree, Barco, PANGS, 1906. pp. 62, ‘naming: Beyond analogy and toward aegoia amor ni Hees Pec Rosion, modern wel, 1998 (reMpresSG0 1099), pp, 239-258 [936- Referieno- en ol pensar Vatimo, Creer Ch. Ward, G. Kenosis a7 postmodemity. Oxtord, Bec ‘AVIDADO SIMBOLO forma, condig&o de Deus em forma de escravo.'° O icone oua imagem q figura da humanidade, que € coroado, apés a morte € ressurreigao, como Essa economia da representagao de Deus une estreitamente a ¢ com a kénosis e a descida ou abaixamento até a morte de cruz. Indica que © primeiro momento criador de Deus ha um ato amoroso de doagao e co 0 — autocontragdo ou autolimitagao auto-humilhagao de Deus," tal ¢ vislumbrada na imagem cabalistica do zim-zum —, que se manifesta p encarnagao e morte na cruz. Deus se manifesta como aquele que se a amento ou kénosis é a forma de revelacéo de Deus. O Altissimo € 0: cesso quendtico acompanha a manifestagao de Deus, e a realidade-ir ossessAo Ocupa o centro que, por outro lado, é a maneira de dizer que que Deus doa quando se comunica é, finalmente, a si mesmo. Dito trinitaria como apraz a Von Balthasar, o Pai se da inteiramente a nés no Filho e na mutua de ambos, o Espirito. E esse movimento quenstico representa e explica a condigao do ser human ser separado de Deus, em despossess&o, mas procurado por ele, agraciado, € que sera conduzido da diastase inicial 4 vida com Deus quando, como para Cris também nos for dado “um nome novo que ninguém conhece, s6 quem (Ap 2,17). Nessa condigao humana de ser “a imagem (forma) de”, separados, também intuir a condi¢&o simbélica humana de criadores de imagens e sf para procurar superar a diéstase que nos separa de Deus. Autores p6s- como J. Kristeva’ viram nessa condigéo quenética de Cristo a imagem da co humana: um €u Sempre em proceso, sempre em sua condicéio de desloc sua identidade ou separado da mae, e sempre em busca da constitu eu unificado mediante a relacdo com o outro. Permanece uma quietagao, economia do desejo, que permite a entrada no muni imaginario” que, pela dinamica do amor, leva a ide processo de separacao, ido sir Ntificago com 0 o descida e processo de Unificagao/nom Mais do que em qualquer outro lugar, podemos entend. 5 nde {© idem, p. 298, reledndo-se a interretagso de FF Bruce, om sy ‘Bulltin of John Ryland Lybrary, 63: 270, 1980/81. ". Paul in Macedonia, 3: * CL Moltmann, J. Tnidad y Reino de Dos; la doctina sobre Dios, « Reino de Deus; uma contribnigéo para a teologia, Potcook, vor ne , Ch. 0090 comparativo que G. Ward realza, 0p. ct, pp. 2445, 1 132 'ARACIONALIZAGAO SOBRENATURALISTA numana de “imagem de Deus” (Gn 1,27) em toda a sua profundidade ao vé-lana manifestagao e representagao de Deus em Cristo. Somos imagem de um Deus que se comunica, que Se da no amor, que se entrega e se abaixa. E Por isso, impulso da economia do dom, somos fazedores de imagens, criadores de simbolos, a fim de podermos superar a distancia que nos separa do Amor origindrio e entrar no jogo do amor intratrinitario, que € Deus. 5. Jesus Cristo como imagem de Deus he Be E preciso esclarecer um pouco mais 0 que foi dito até agora. J. Moingt'? tem S azé0 ao analisar a questéo de como é Jesus Cristo, imagem de Deus, de como x torna visivel a presenga de Deus para que nds possamos dizer que é sua imagem. ic Sabemos que, até o dia de hoje, as respostas s&o de tipo dogmatico: Cristo é a 1 | | perfeita imagem de Deus porque é da mesma natureza do Pai, sendo seu Filho e | seu Verbo. Todavia, essa constatagdo nos responde que Jesus Cristo 6 imagem i em sentido metaférico, pois ele é o mesmo que Deus. Esse tipo de resposta incide, como a icénica ou “taborica”, em certa irradiagao ou transparéncia da divindade, uma espécie de surgimento de uma presenga af latente. Contudo, € assim que Cristo € 8% imagem de Deus? Parece que caminhamos para uma contemplagao misticaourapto _ SY extatico, sem nenhuma relag&o com a condigaéo terrestre e histrica do homem. & J. Moingt tem razéo ao apoiar uma resposta que proceda da “globalidade = de sua manifestagao”. Isto é, mais do que privilegiar alguns textos nos quais Cristo aparece como “imagem de Deus”, recorrer Aquele ao qual a expressao remete: a “totalidade de sua pessoa e de sua missao histérica”. Nesse modo de ver, Cristo 6 a imagem de Deus ou sua parabola (E. Schweizer) que nos daa conhecer a verdadeira representagao de Deus, nao tanto por seu carter inato impresso no ser quanto por sua tarefa hist6rica: “Cristo 6 a perfeita imagem de Deus porque realizou a liberdade humana em si mesmo com um total sim a Deus @ aos outros, impulsionado até completo despojamento de si”. Teve 0 poder de fazer isso porque trazia em si Palavra da vida, o Verbo criador que é o sim de Deus a sua criagaéo. Somente pi fazer isso efetivamente porque tornou existéncia na historia comum dos hor 1 ‘magenes, scones @ Kos de Dos. La cuestin dela verdad en a teologa cristae In hombre que venia de Dios I Bilbao, Desc, 1996. Ct. Moingt 162 [158s]. 2001; 1d. EI AVIDA DO SIMBOLO | Por isso, 6 imagem, mais do que icone: nao puro surgimento do Eterno no tempo, | que faria o mundo voltar ao seu nada, mas “obra” (Jo 14,10) de remodelagag ce uma heranga histérica que faz da humanidade de Cristo a verdadeira revelagao Fy | divindade de Deus na imagem visivel dele, da “humanidade de Deus”, segundo expresso de K. Barth, que nao seré suspeita de “idolatria”.1* O Evangelho concorda com essa interpretagao. E por meio do ‘testemunho de Jesus, de suas palavras e obras, de seu contato com os discipulos, com og eniermos, com os amigos e inimigos que ele nos revela 0 segredo de Deus: que perdoa e ama; que esta conosco em todas as situagdes, até o final dos tempos, Assim deve ser entendido o joanino “quem me vé, vé 0 Pai” (Jo 14,9): nao como identificagao com o Pai nem como irradiagao que o torna visivel em sua carne (ao contrario, nega aos homens a seguranga, que queriam se dar por terem Deus diante dos olhos) e que, porém, remete a sua visdo natural e cotidiana, ao ver que faz e diz as coisas de Deus com 0 poder do Espirito, que conhecerao a Deus, isto é, vinculo invisivel que une indissoluvelmente Jesus a Deus. > 6. Duas imagens em uma Portanto, o que foi remodelado ou a restauragao da imagem de Deus que esta no homem pertence a imagem cristica. Cristo assume nossa propria imagem para devolvé-la em si mesmo & semelhanga do original divino, Deixa, assim, elo gue nos marca com a imagem que nos destina a Carregar a semelhanga do Filho de Deus. E isso que diz Paulo, vendo a histéria como um Processo desde o primeiro Adio até 0 segundo, e a gldria de Deus refletida em Cristo, imagem de Deus (2Cor 4,3-6), No final, estamos diante de uma s6 e mesma imagem, mas bipolar, que ¢ @ historia solidaria dos homens e de Cristo. Nesse horizonte do mundo, da hist6rica para realizar a liberdade humana, a solidariedade entre os hemen cuidado para “caminnar sob o olhar de Deus", 6 onde nés com Cristo tome visiveis a verdade de ser imagens de Deus, 4 idem, p. 162. "idem, p. 160. 134 ARACIONALIZACAO SOBRENATURALISTA Nao nos foram dadas outras imagens de Deus. Temos duas, feitas por ele mesmo, colocadas na criagao como revelagao e conhecimento de Es divindade: ser humano, Criado @ sua imagem e semelhanga, e o homem Jesus Cristo, Zs Filho. Nao ha outra verdade de Deus a no ser em referéncia a essas duas aoe que se referem uma a outra. Ambas se apdiam e se reinterpretam, sendo a vida ds Cristo, na totalidade de sua pessoa e missdo, a chave interpretativa e decisiva da verdade das representagdes de Deus. E notemos a insisténcia, seguindo Moingt, que ¢ a imagem — entendamos bem: a realidade histérica, carnal de Cristo e dos homens —, mais do que a irradiagao luminosa do icone, aquela que nos proporciona averdade € 0 acesso mais seguro ao conhecimento de Deus. 7. Reivindicagdo do discurso fraco ou retorno ao fundamento Unindo os varios fios manejados neste capitulo e entrelagando-os, obteremos um tapete do seguinte modo: a grande descoberta da distancia respeitosa, teolo- gia negativa, de toda fala humana sobre 0 Absoluto ou Mistério de Deus que, em nossa tradig&o ocidental, se condensa na analogia como teoria do conhecimento, perdeu-se na coisificagao escolastica. O clima do pensamento pos-moderno atual iblinhou, generalizou e pos em relevo as reservas que toda a evolugao da critica do pensamento jé ia alcangando. O pensamento tem que ser muito cuidadoso em suas afirmagoes sobre a realidade e sobre suas possibilidades. Esse novo socratismo, que sabe que sabe pouco e que podemos saber pouco, leva-nos a uma espécie de “teologia negativa” generalizada ou incerteza incorporada ao conhecimento. Esse climna filos6fico e cultural de incerteza, tipico de nosso tempo, coe sobre Odiscurso religioso, acentuando seus elementos mais proximos da teologia negativa - ou “agnosia”, que traz denominagoes conforme o erg ea siger> chamandig discurso quenstico, fraco etc. sobre Deus. A ae positiva é um ref ido desde sempre nas tradigdes religiosas, e concretamente na teol ado pela pretensao arrogante do saber e a tent sut algo ja sab crista, mas sempre amea¢ 6 de conhecer face a face. AVIDA DO SIMBOLO A surpresa positiva surge 40 confrontar esse clima cultural do pensam atual com a melhor tradigao teolégica crista. Descobrimos um paralelismo supre. endente: as regras gramaticais que encontramos na tradicdo biblica e evangélica quanto a representagao e conhecimento de Deus apontam para uma Manifestagag fraca e no fraco, E a encarnagao de Deus, desde o primeiro dinamismo amoroso g comunicativo da criagéo e que continua com a encarnagao, no “fazer-se préximo" como caido (Lc 10,36) e a identificagdo com os “pequenos” que tém fome ou esto na prisdo (Mt 25,35s), até a cruz de Jesus Cristo. O processo mostra um esvazia- mento e despossessdo como modo de revelagao ou comunicacao do Mistério de Deus. Processo que faz do proprio ser humano e de Jesus Cristo as imagens que m e revelam o préprio Deus. Representagao que recusa as representagdes do poder e que se vincula nao somente a um discurso fraco, parabdlico, de sugestéo © evocagao simbdlicas, mas que transita por imagens do fraco segundo a carne e istoria Mundanas. Por outro lado, a situag&o social e cultural do nosso tempo, que nao precisa da hipdotese de Deus, devolve-nos a relevancia e importancia do pensar a fundo a possibilidade do nada ou desfundagao do existente. Por esse caminho, que defronta © homem com a questao do fim de qualquer questionamento, com a presenga da finitude e da morte, do sem-sentido diante do mal e da injustig¢a, surgem novamente inumeraveis perguntas. Volta-se a descobrir que a questao do mundo, da realidade pensada a fundo, relaciona-se com a questao de Deus e que a questao de Deus € também o questionamento sobre a raiz da realidade. Talvez por esse caminho surja, inclusive no reverso da trama deste mundo destrogado pelo sofrimento J inocentes, 0 anseio (M. Horkheimer) de plenitude de sentido, a esperanga de nao se vejam frustradas uma bondade e justiga perfeitas. 136

You might also like