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Amen, J.J. ven, O whl rishi Tinbogia cubilia « Tiatngic tition. £50 Rudy: Ade, , 2006, Capituto 1 CULTO CRISTAO COMO RECAPITULACAO DA HISTORIA DA SALVACAO Trés problemas ocupardo a nossa atengiio neste primeiro capitulo, De inicio, formularemos a fundamentagio cristolégica da adora¢ao crista. Falare- mos, a seguir, da presenga de Cristo na adoragao e da “epiklesis”. Por fim exploraremos mais pormenorizadamente o sentido profundo do evento litur- gico, que consiste em recapitular a hist6ria da salvagao. 1. A fundamentagao cristolégica da adoragéo da Igreja a) Bastar4 uma leitura superficial do Novo Testamento para convencer- nos de que a prépria vida de Jesus de Nazaré é, em certo sentido, uma vida linirgica, ou, se se preferir, sacerdotal. Pode-se até chegar a dizer que a verda- deira glorificagdo de Deus na terra — que constitui a perfeita adoragdo — foi cumprida por Jesus Cristo no Seu ministério. Se 0 titulo d (segundo a ordem de Melquisedeque) é clara e supremamente api lo apés a Sua ascensao,'S nao menos verdade € que toda a Sua vida deve também ser encarada nessa perspectiva littirgica.' Mais ainda, o préprio Jesus parece ter entendido o Seu ministério segundo essa mesma perspectiva, j4 que veio para “destruir as obras do diabo” (I Jo 3.8) e reconciliar os homens com Deus mediante a Sua morte (Rm 5.10 etc.). Sua vida inteira s6 tem sentido em ter- mos dessa libertagdo e reconciliagiio. Basta que consideremos 0 modo pelo qual Jesus via no Salmo 110 uma alusio a Sua propria paixdo (Mc 12.35ss e Paralelos; 14.62 e paralelos),'” a oragdo sacerdotal (Jo 17.1-26) ou o sentido '5 “Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te A minha direita... tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque” (SI 110.1 e 4, e Hb 5.10, 6.20; ver ainda At 2.34, Hb 1.3 © 13, Rm 8.34 etc.). Cp. O. Cullman, Christologie du Nouveau Testament, Neuchatel e Paris, 1958, pp. 77-94. "Cp. O. Cullmann, op. cit., pp. 77-79. 2 © Cerro Cristao - J. J. von Allmen profundo da purificagio do templo (Jo 2.138s),"" ou, mais ainda, a maneira pela qual Ele quis, aceitou e interpretou a Sua prépria morte. Ao dizer que Ele ss se ofereceu a Si mesmo, a carta 20s Hebreus (7.27; cp. 9.11) nada mais faz do ‘que confirmar 0 que afirmam os evangelistas, a saber, que Jesus ndo procurou evitar a morte nem foi tomado de surpresa por ela, mas a previu e quis sofré- la como ponto culminante do Seu ministétio. De fato, tanto isso € verdade que S 6 possivel afirmar, com plena razao, que os evangelhos sao “narrativas da Paixio precedidas de uma pormenorizada srrodusao’”? Realmente, é nesse ‘ sentido sacerdotal que o Novo Testamento entende a morte de Cristo, embora ndo 0 expresse sempre taxativamente a nao ser na carta aos Hebreus e na literatura joanina.” Se assim nao fosse, qual poderia ser 0 sentido da alusao ao véu do templo que se rasga em duas partes no momento da morte de Jesus (Mc 15.38 € paralelos)?"" Ademais, é interessante notar, nesse contexto, dois outros fotos, Primei- ro, as constantes alusdes ao culto da Igreja primitiva feitas pelos evangelistas no correr do testemunho que dio da vida de Jesus. O. Cu! Imann estudou essas alusées tais como ocorrem no Quarto Evangelho.” Estudo semelhante se poderia fazer especialmente em relagao aos escritos de Sao Lucas. Para citar apenas um exemplo, as duas narrativas em que este escritor descreve as mani- festagdes do Cristo ressurreto parecem descrever a prépria estrutura da adora- ao na Igreja nascente (Le 24.13-35, 36-53) e assim vincular 0 culto cristo a vida de Jesus, na qual se encontra nao s6 o seu fundamento como a sua justificagdo. Devemos lembrar, acima de tudo, que o préprio plano dos evan- gelhos sinéticos corresponde & ordem de culto que, sem dtivida alguma, remon- ta aos tempos apostdlicos e se tornou tradicional. Assegurada a presenga de Cristo, uma primeira parte — 0 ministério na Galiléia — tem como tema central a pregagiio de Jesus, o chamamento dirigido aos homens e a decisio que se Ihes defronta. E o que mais tarde seria designado pee a Se ~ como pensavam os Pais, e com razio — 0 Bom Samaritano representa Jesus, € vilido inguiti-se se este ao proferir a famosa parabola, ndo queria dar a entender que 0 ministro do . eae verdadeiro €, nio 0 sacerdote nem 0 levita, mas ele prOprio, Jesus. tin Khler, Der sogenannte historische Jesus und der biblische Christus, reeditado em 1953, p. 54, nota 1. I ® Cp. C. Spicg, “Lorigine johannique de la conception du Christ-prétre dans I’épitre aux ee de la tradition chrétienne: Mélanges M. Goguel, Neuchatel € * emia a a tinea sscerdotal sem costura, mencionada em Jo 19.23. eee es lans I'Evangile johannique, la vie de Jesus et le culte de ® Pense-se também nas conotagdes eucaristicas das narrativas da multiplicacdio dos paes. Cutto Cristio como RECAPITULACKO DA HISTORIA DA SALVACAO, 23 | |Segue-se entio uma segunda parte que explica, justifica e valoriza o verdadei- ) | To conterido da primeira, Trata do ministério em Jerusalém e centraliza-se na s& |, morte de Cristo e na irrupgio da ressurreigio escatolgica, levando os aconte- | cimentos até a altura em que Jesus se separa dos que sio Seus, abengoa-os € 0S | envia ao mundo para dar testemunho de Sua pessoa. E 0 que mais tarde sera | | chamado de “missa dos fiéis”. ‘ Nao nos € necessério entrar em mais pormenores. Basta que afirmemos que o Novo Testamento nos apresenta o ministério hist6rico de Jesus — e, por conseguinte, a Sua vida inteira — como um processo litirgico ou, melhor dito, como a liturgia,“a vida de adoragio propriamente dita, aceita por Deus. Nesse sentido, 0 culto cristdo tem por fundamento o “culto messidnico” celebrado por Jesus no perfodo que medeia entre Sua encdragao © ASCensao. b) No entanto, esse culto oferecido por Cristo, que culmina no EPHA- PAX daquela * nica” com a qual “aperfeigoou para sempre quantos esto sendo eee 10.14), tem dimensdes temporais m mais amplas. Se é verdade que esse culto constitui o fundamento e justificagaio de toda a adoragiio cristd e, no sentido mais estrito, inaugura esta ultima, nem por isso € algo de acidental para o proprio Cristo. E ele que corporifica concreta- mente a obra toda do Cristo, que foi preparada desde antes da encarnago, frutificou apés a ascensio e se manifestaré em gloria no dia de Sua volta. So Pedro fala no Cristo como 0 “cordeiro sem defeito e sem macula, conhecido antes da fundacio do mundo, porém manifestado no fim dos tem- pos” por amor dos eleitos (I Pe 1.19ss)™. Isso equivale a dizer que “com a queda e o pecado original comega diante de Deus e em Deus 0 mistério da morte sangrenta e sacrificial de Jesus Cristo”.®* Esse culto celestial, essa pre- destinagao do Cordeiro sem defeito e sem macula, criou,, por assim dizer, um véu sob cuja protecdo o mundo pudesse continuar a viver sem cair presa da ameaca de destruigao decretada por Deus contra o pecado de Adio (Gn 2.17), Porque, por antecipagao, sua manifestagao histérica “no fim dos tempos” jd se tornou eficaz diante de Deus. isse ato perfeito de adoragao que culminou no sacrificio da cruz e na ascensdo é, se se pode langar mao desta linguagem, “explorado” por Jesus Cristo a partir de Sua entrada na gloria. Ele € o ARCHIEREUS MEGAS * Haveria uma idéia andloga em Ap 13.87 E. Lohmeyer (Hdb. Z. N. T,, ad loc.) afirma que, “segundo a posigo”, APO KATABOLES KOSMOU deve ser ligado a TO ARNION ESPHAGMENON. A nés nos parece, porém, que deva antes ser ligado a HOU GEGRAP- TAITO ONOMA EN TO BIBLIO TES ZAES, tal como em Ap 17.8. * P. Brunner, Zur Lehre vom Gottesdients der in Namen Jesu versammelten Gemeinde, Lei- tourgia I, Kassel, 1954, p. 127. 24 © Curt0 Cristo - J. J. von Allmen LEITOURGOS TON HAGION et sa s santos, O 2 (Hb 4.14) que penetrou no santo dos ele que comparece por nés na ey aaa a ra en © soberano sumo-sacerdote presenga de Deus (Hb 9.24; cp. 7.25; \ andouro (Hb 6.20).25 “perpetuamente” (Hb 7.3), até A manifestagao do mundo vindou! 00.20). “Sendo, entdo, o grande sumo-sacerdote, Jesus cumpre um duplo ministério: de um lado, 0 do ato expiatério feito uma vez por todas; de outro, o ministério de estender e tirar proveito dos beneficios plenos de sua obra salvadora, que permanece até a eternidade”.”” . Poder-se-ia indagar se a “liturgia” de Jesus de Nazaré — © resultado sin- gular de sua aco expiatéria, que j4 protegia o mundo antes da encarnia e agora frutifica no presente senhorio do Cristo — “considerada também como 8 _ no alcancard sua suprema gloria e plenitude no tempo da ih, de fato, poder-se-ia pensar ao tomar conhecimento, em Hebreus 9.28, da promessa de que Cristo, “tendo-se oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos, aparecerd segunda vez, nao para tratar do pecado, mas para salvar aos que ansiosamente 0 aguardam”. Devemos notar, no entanto, que, quando da segunda vinda, o ministério sacerdotal de Jesus cessaré de ser expiatério € terd tio-somente o cardter de glorificador e santificador, nem dird respeito mais ao mundo inteiro, mas s6 aos que tiverem aceito a salvaciio por Ele conquistada mediante a sua morte no Gélgota. Essa idéia de santificagiio, ao invés de expiacao, aplicada ao ministério de Cristo aparece em outra passagem da carta aos Hebreus (2.10ss; 10.14)”. Parece vincular-se ao ministério que Jesus a Si mesmo se atribui na oracZo sacerdotal de Joao 17. Guardadas as devidas cautelas, poder-se-ia ver nisso uma alusio ao ministério sacerdotal que o Filho eterno de Deus teria exercido mesmo se a queda nao houvesse introduzido uma distorgdo radical na ordem criada de Deus. Neste caso, entio, Cristo nao teria vindo para estabelecer a reconcilia- ¢4o entre Deus e o homem, mas sim para capacitar os homens a habitar para sempre onde habita o Filho, para que também tio-somente pudessem contem- plar a Sua gloria (Jo 17.24). eee reeeeneennnnaes ra ee gia melhor ce EIS TON AIONA; “até a irrupgaio definitiva do século vindouro” los séculos dos séculos”? Considerando que a carta aos Heb enta vari a locugdo EIS TOUS AIONAS TON AIONON (13.21), EIS TOUS AIONAS | (3.8), ao a AIONA TOU AIONOS (1.8), a primeira tradugio parece justificar-se es ST die So oe Cit P: 89. A esse respeito, ver também M. Thurian, L’Eucharistie, memo- rial du Seigneur, sacrifice d’action de + aeaisT14e! if on de grace.et d'intercession, Neuchatel e Paris, 1959, * 0. Cullman, ibd. ® Cp..0. Cullman, op. cit., p. 82s. Curt Cristio Como RECAPITULACKO DA HISTORIA DA SALVACAO 25 ‘d no ministério de Nao basta, agao e je as raizes no fato de sua instituigio histérica mediante as palavras, a vida, a morte e a res- surrei¢do de Jesus de Nazaré. Efetivamente verificamos, na carta aos Hebreus e na literatura joanina em particular, que a adoragio terrena de Cristo tem sua ressondncia nos céus, onde desabrocha o seu pleno valor. sdo é simple: ssi ©) A base cristolégica da adoragio da igreja cons Jesus, no ato de perfeita adoragio “que Ble fez de Sua vi um ec! i a adoraca subir aos céus, Jesus penetra no santudrio celestial. Por conseg! que deixemos de lado uma parte importante do testemunho que 0 Novo Testa- mento dé da liturgia, no devemos, ao expor a base cristolégica da adoragao da Igreja, restringir o fundamento do culto da Igreja Crista exclusivamente & ordem de Jesus: “Fazei isto em meméria minha” Diante da ressondncia celes- te do sacrificio tinico, importa ir mais a fundo e perceber na adoragiio da Igre- ja um reflexo da oferenda celestial perpétua da qual Jesus Cristo é 0 eterno e soberano sumo-sacerdote.*! (OPA adoragiio da Igreja, portanto, tem uma dupla fundamentagao cristolé- gica: . Em outras palavras, * Cp. B. Bobrinskoy, “Ascension et liturgie", em Contacts, Révue francaise de l'Orthodoxie, 1959, pp. 164-184, ™ No Apocalipse, 0 culto celeste nao é somente oferecido pelo Cristo mas também e muito Particularmente ao Cristo, ao cordeiro imolado, digno de receber “o poder, e riqueza, € sabedoria, ¢ forga, e honra, e gloria, e louvor” (5.12), seguindo aquela adoragao que jamais foi recusada por Jesus e que jé glorificara 0 seu ministério terreno, desde 0 seu nascimento (Mt 2.11) até a sua ascensio (Le 24.52). Cp. T. F. Torrance, “Liturgie et Apocalypse”, em Verbum Caro, 1957, pp. 28-40, especialmente p. 36. Ver também R. Stihlin, Die Geschichte des christlichen Gottesdienstes Von der Urkirche bis zur Gegenucart, Leitourgia I, Kassel, 1954, p. 8s. 26 © Curr0 Cristao - J, J. von Allmen 86 teolégico mas ambém @inuaig > embora 0 culto celeste niio tenha as interrupgées proprias do culto terreno, devidas ao seu ritmo semanal??. Eo que se depreende do Apocalipse: mesmo no céu hd um templo (7.15, 11.19, 14.17, 15.5, 8) um altar (6.9, 8.3, 5; 9.13, 14.18, 16.7) antes da vinda da nova Jerusalém, na qual nao mais haverd templo (21.22). (Quando tratarmos do problema teoldgico da estrutura da adoragao, exa- minaremos a questo — colocada por Barth e por Paquier ¢ nao admitida por Hahn — de saber-se se hd um fundamento cristolégico para 0 culto no fato de que 0 culto da Igreja ilustra e atesta as duas naturezas de Cristo. Efetivamente, nio deve ser omitido 0 tratamento do problema (de resto altamente interessan- || te) da pessoa do Cristo, que é o fundamento do culto porque € o ponto em que Deus e o homem se encontram e estabelecem unidio, assim como 0 culto € 0 | encontro e a unidio entre Deus e 0 Seu povo). 2. A presenga de Cristo no culto e a “epiklesis” a) Jesus Cristo inaugurou a adoragao da Igreja quando instituiu a cele- bragdo wee Partindo 0 pio, disse Ele: “Isto € 0 meu corpo”. Semelhantemente, declarou que o célice da nova alianga era o Seu sangue. Mais ainda, prometeu estar com os que sfo seus até ao fim do mundo (Mt 28.20) e estar no meio deles quando dois ou trés estivessem reunidos em Seu nome (Mt 18.20). loracao cr € 0 tema de que passamos a tratar, embora Essa presenga foi prometida pelo proprio Cristo. Por conseguinte, a0 reunir-se em nome de Cristo, a Igreja nao est vivendo de ilusdes, como se Iembrasse uma bela esperanga desvanecida, como 0 fizeram os discfpulos naquele primeiro dia de Pascoa, antes de o Senhor ressurreto aparecer no seu meio. Ao contrario, ela passa novamente pela expe- riéncia do para estar com os Seus segui- dores. Se, como ponderamos acima, a ue Lucas fornece do apareci- mento do Senhor ressurreto na noite do dia da Péscoa reflete a adoracio da Igreja nascente, seu caracterfstico essencial nao € a alterndncia entre uma par- te em que hd uma fala e outra em que se dia participagao numa refeigio. O trago essencial , antes, a vinda, a presenga e a agio do Cristo ressurreto. Em virtude dessa presenga, a adoragio cristd no € nem 0 fruto de uma ilusio, nem um ato de magia, mas sim pe © Compare EIS TO KIENEKES de Hb 7.3 com HOSAKI$ EAN PINETE de I Co 11.25. ® R, Will, em L’Esprit du culte protestant, Clermont-Ferrand, 1942, p. 20. Curro Cristao Como RECAPITULAGAO DA HISTORIA DA SALVACAO. 27 E uma graga porque a presenga do Cristo € a presenga da salvagio.* quele que € o Pio da Vida que di vida eterna (Jo 6.51-58), se dé a nés e, suscitando e fortalecend (@comunhao euearistica; “Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim” (Lc 10.16); “Isto é 0 meu corpo, isto € © meu sangue”.*5¢ATadOragaOTCristay portantoye (GeoTeCIENTO!AE|SAlVAGAO. Voltaremos a examinar esse ponto quando, no proximo paragrafo, tratarmos do culto como recapitulagio da histéria da sal- vaciio.%¢ Duas coisas, porém, devem ser um pouco mais aclaradas. O culto cristio 6, nas palavras de A. D. Miller, *alformalimaisivividayimais|palpavelyimais (Centrale simpleside atualizagao'da presenga de Cristo."" Mas tal presenca nao € diretamente aparente. E bvio que, por meio de sua apresentagio e discipli- na, o culto da Igreja pode chegar a convencer um descrente da presenga de seu Senhor (I Co 14.23ss), mas essa conviegiio é sempre produzidarpelayfé, mes- mo no caso daquele que cr8. Trata-se de uma presenga “sacramental”. Assim como € impossivel, sem fé, reconhecer em Jesus de Nazaré 0 Cristo, o Filho do Deus vivo, assim também: ‘A nado é Trata-se de um proceso andilo (0 da Palavra de Deus na Santa Escritura ou do corpo sacrificial do Cristo nos elementos eucaristicos. Isso equivale a dizer —e voltaremos a examinar a questo mais abaixo— que a Igreja nao tem a presenga divina A sua disposicao e no pode ordenar que ela se manifeste mediante um processo automatico de que ela pudesse langar mao quando bem Ihe aprouvesse. O segundo pormenor que devemos mencionar é o de queessalpresenga’é cimperfeita, S6 com o advento da “parousia” ela sera completa e plena.” Em- bora o prefigure concretamente,ajadoragaoida/lgreja nao 6\elaimesnialo|pro> (@rio Reino. Comparada com a do banquete messidinico,aypresengajdo/Cristo, ee ee * Cp. H. Asmussen, Die Lehre vom Gottesdienst, Munique, 1937, p. 49ss: “Die Gegenwart Christi unter den Seinen ist die Wirklichkeit des gittlichen Heils”. * Cp. H. Asmussen, op. cit,, pp. 52-55; A. D. Milller, Grundriss der praktischen Theologie, Gitersioh, 1950, p. 128, etc, ® Remeto o leitor ao belo capitulo de P. Brunner, “Das Heilsgeschehen im Gottesdients”, op. cit, pp. 181-267. Sobre a pregagdio como evento salvifico, ver também o importante artigo de A. Niebergall, “Die Predigt als Heilsgeschehen”, MPTh, 1959, pp. 1-17. ” Op. cit., p. 127, ™ Cp., p. ex., H. Asmussen, op. cit., pp. 55-58; P. Brunner, op. cit., p. 181. * W. Hahn, Die Mitte der Gemeinde, Giitersloh, 1959, p. 17. 28 0 Curto Cristio = J.J. von Allmen |. Isso equivale a presenga s6 € perceptfvel mediante a fé. b) Embora seja uma presenga real, com a qual o fiel pode contar, & seme- Ihanga de toda demais promessas do Senhor, a Igreja, no entanto, nao é a dispensadora da presenga do Cristo na adoracic Caan? livre de Cristo. Evidentemente, essa liberdade nao significa que o Senhor se fatigue de visitar Sua Igreja, ou se tone indiferente as Suas préprias promes- sas, ou que a Sua presenga no culto divino esteja sujeita a uma espécie de intermiténcia dialética. Se assim fora, comprometer-se-iam a fé, a esperanca e o amor da Igreja, que seriam substitufdos pelo temor, pela ilusao e pela soli- dao. Quando celebra o seu culto, a Igreja nao age como se estivesse “A espera de Godot”. “Nao hd lugar para uma diividadialéticayPrevalece a certeza invio- ldvel”.® ji dizer que ess a4! Maranatha';Tocamos, assim, no cerne de um dos problemas que, nos estudos litirgicos, tém de ser enfocados logo de inicio: o problema da “epiklesis” Consideremo-lo, inicialmente, de maneira bem geral. Qual é 0 sentido essencial dessa expresso? Como a prépria etimologia da palavra sugere, tra- ta-se de umalifivocagao (EPIKALEISTHAI)* dirigida ao Senhor livre e sobe- rano. Em outras palavras, dizer que 0 culto é “epiclético” equivale a dizer que ‘os que 0 celebram reconhecem que o Senhor a quem servem nio esta & sua disposigfo, que tZo-somente sdo Seus ministros. e nao técnicos. obviamente isso nao significa que devam deixar de ter confianga no seu Senhor, como se Ele estivesse sempre na iminéncia de descumprir com a palavra ou esquecer- se do que prometeu. Significa, antes, que'tio-somente ndioypossuemto controle Tao fundamental é essa nogao, nao sé para a liturgia mas Tonben para a vida cristé como um todo, que 0 Novo Testamento chama os cristdos de “os da epiklesis” (At 9.14; cp. 9.21; 1 Co 1.2, etc.). Em virtude de seu cariter invoca- tivo, a adoragio crista se abre A aciio livre e soberana do seu Senhor, ao invés de procurar manipulé-lo. Nesse sentido, ela éa@jantitesemesmadamagiayPor P. Brunner, op. cit., p. 215. Cp. Id., pp. 232-238. “Cp. W. Hahn, op. cit., p. 12. Ver meu artigo p. 25s. | Cp. K. L. Schmidt, art. EPIKALEO, ThWBNT, III, pp. 498-501. Nota-se que 0 substantive EPIKLESIS nao é empregado nem pelo Novo Testamento nem pelos Pais Apostélicos, os quais se restringiram ao uso do verbo. fe Saint-Esprit et le culte”, RThPh, 1959, Curto CrtstAo COMO RECAPITULAGAO DA HISTORIA DA SALVACAO 29 (lexpectativas® bem diversa da pressa dvida que Sio Paulo acusou os corintios de manifestar, ao celebrarem — ou melhor, falsearem — a Ceia do Senhor (I Co 11.17-34). A “epiklesis litirgica> cuja primeira manifestagio 6, talvez, a invoca- ¢do “Maranatha” — tem uma longa histéria, de que nao nos ocuparemos neste trabalho. A partir do século Il, a “epiklesis” comegou a ser cada vez mais freqiientemente dirigida‘aoEspirito'Santo, para que viesse fazer do culto 0 ato de salvagdo prometido e esperado, e assegurasse aos fiéis a presenga real ea comunhio do Cristo. O momento especifico reservado & “epiklesis” normal- mente na adoragiio da Igreja foi desde logo a celebragéo\da\Ceiado)Senhor. Embora essa “localizagdo sacramental” da “epiklesis” levante problemas que nao honram necessariamente a tradig&o antiga, ela nao significa que o Cristo, antes de tal invocagio, nao se ache presente no culto. Nos tempos apostélicos “0 Maranatha provavelmente também nio era pronunciado no comeco do ato de culto, mas sim no momento da celebragao eucaristica,“ embora se reconhe- cesse que Cristo estava presente desde 0 inicio da reuniao. Nao podemos neste livro ater-nos a uma discussdo minuciosa da histéria “epiklesis” na adoracao crista.** Observemos, tao-somente, que a tradigao ristalizada nas grandes liturgias do século IV, inclui uma ” apés as palavras de instituig%io, ao passo que a tradigao ocidental (romana, anglicana ou protestante) ou omite essa oragio ou a colo- ca, as vezes, antes das mencionadas palavras. Poder-se-ia alegar que essa B. Bobrinskoy explica que a “epiklesis” no culto lembra a atitude de oragdo e expectativa caracteristica das comunidades primitivas no perfodo entre a Ascenso e o Pentecostes (At 1.14). (“Ascension et liturgie”, Contacts, Révue francaise de l’Orthodoxie, 1959, p. 172). “ Cp. O. Cullmann, Le culte dans l’Eglise primitive; Neuchatel e Paris, 1944, p. 12s, e Chris- tologie du Nouveau Testament; Neuchatel ¢ Paris, 1958, p. 180s. Sao Paulo (I Co 16.22) 0 coloca, no no comego mas no fim da epistola, a qual, sabia ele, seria lida durante uma reunido littrgica. E se no Didaqué (10.6) ele aparece apés a refeigao, note-se que é imedia- tamente precedido do que parece ser um convite & comunhio: “Se alguém é santo, apro: me-se; se nio 0 é, converta-se”. Disso pode depreender-se que 0 texto descreve um tipo de culto que ainda inclufa uma refeigdo comunitéria anterior A comunhio eucarfstica propria~ mente dita. “Cp. H. Liezmann, Messe und Herrenmah, Bonn, 1926, pp. 68-81; R. Stihlin, op. cit., p. 33s; J. A. Jungmann, Missarum Solemnia (traduco espanhola: El sacrificio de la Misa, Madrid: Herder, 1959 (Biblioteca de Autores Cristianos), pp. 746-750). “6 Segundo o rito galicano do século VII, uma coleta post mysteria era dita apés as palavras de instituigdo. W. D. Maxwell diz que essa coleta € “in reality the epiclesis” (Na outline of Christian worship, 1958, p. 51). Note-se que a tradigao egipcia mais remota colocava a “epiklesis” antes das palavras de instituigao (cp. R. Stahlin, op. cit., p. 29: J. Jungmann, 30 0 Curto Cristio - J. J. von Allmen “epiklesis” nao tem importan- i 'S o problema da diferenga € de somenos, ou que 0 P Se cia primacial” E bem possivel, porém, que a Igre, quando afirma que icitamente que estas tltimas palavras de consagragdo equivale a admitir impli fetive a presenga real de nio tém, por si s6s, o poder de fazer com que se ¢! Cristo, e que, por conseguinte, essa presenga depende, nao do celebrante, mas da ago da graca espontdnea de Deus.* Com isso afasta-se toda sugestao de automatismo sacramental, bem como a idéia de uma coincidéncia incondicio- nal entre a liturgia da Igreja e 0 ato de Salvagiio.” Deus permanece livre. Se, 4 semelhanga dos cristdos do Ocidente, se omite essa oragdo ou se coloca antes das palavras de consagragao, deixa-se aberta a suspeita de que, com isso, afirmamos serem as palavras de instituigdo em si mesmas eficazes para, corretamente proferidas pelo celebrante, efetivarem a presenga real do Cristo, tornando-lhe possfvel provar aos fiéis que a Sua carne € verdadeira- mente comida e o Seu sangue verdadeiramente bebida (Jo 6.55). Por mais prudente que se seja na escolha de palavras teologicamente justificveis e por maior 0 cuidado que se tome em realgar 0 fato de que 0 que se repete sao as palavras mesmas da instituigdo feita por Cristo, é inegdvel que sempre hd o perigo evidente de o celebrante tentar forcar a presenga do Cristo a manifes- tar-se, de uma evocagiio automatica do Seu corpo e sangue mediante a correta pronunciagao da formula de instituigao. O costume ortodoxo de usar a “epiklesis” ap6s as palavras de instituigao, e mesmo de consider4-la o momento culminante da liturgia eucaristica,° cau- sa certa inquietagdo nos que afirmam que a presenga de Cristo no culto excede a Sua presenga real nos elementos eucaristicos, e nao se intensifica necessaria- mente pela consagra¢do desses elementos. No entanto, a colocagio de uma “epiklesis” no momento em que € maior o perigo de deturpagiio, na forma de magia ou idolatria, demonstra um discernimento litirgico absolutamente exem- op. cit, p. 748). Essa tradigo foi retomada por Thomas Cranmer no Livro de Oragao Comum de 1549, ¢ j4 havia sido proposta pela ordem de Pfalz, Neuburg, 1543 (R. Stiblin, op. cit., pp. 62 € 68). Eo que afirma R. Paquier, Traité de Liturgique, Neuchatel e Paris, 1954, p. 169. P. Brunner (op. cit, pp. 348-357) ndo admite essa tese. Afirma ele que a maneira pela qual 08 ortodoxos resolvem o problema (sem nenhuma necessidade profunda, p. 350s) contradiz 0 fato de as palavras de instituigéo serem ditas em o nome do préprio Cristo © Cp. L, Fendt, Grundriss der praktichen Theologie, Tubingen, 1949, Il, p. 64s % Cp. J.A. Jungmann, op. cit,, p. 749, nota 32, aes Curto CristAo como RECAPITULAGAO DA HisTORIA DA SALVACAO 31 pla masidoyfato;deyElevescutarjasvoragées. Realgar isso a essa altura permitir que 0 culto como um todo deixe transparecer a sua verdadeira nature- za. A presenga de Cristo é real, mas nio resulta de uma agio mecdnica. 6bvio que a estrutura do culto é até certo ponto desfigurada com essa énfase na liberdade da ago do Cristo, implicita na localizagao um tanto inco- mum reservada a “epiklesis” pelos ortodoxos, que introduz no culto um ele- mento contradit6rio, uma nota de restri¢do. Compreende-se, entao, o protesto feito por P. Brunner: “Para as igrejas do Ocidente (que confessam 0 filioque) nao é mais admissivel uma oragao de consagragao apds as palavras de institui- ¢4o. A obra do Espirito no processo de consagracao nao completa a do Cristo, mas simplesmente coopera com esta. Por isso, na tradigao ocidental a “epiklesis”, que invoca a consagragio, € inserida antes das palavras de instituigao, se é que € empregada”*! Poder-se-ia perguntar, porém, se a inconsisténcia da Igreja Ortodoxa, que se recusa a ver as coisas dentro dum esquema fechado e, por isso, suporta incoeréncias (basta lembrar, por exemplo, o fato de os ortodoxos Tecusarem-se a atribuir & Igreja, como um todo, uma estrutura juridica simples e precisa), nao constitui na realidade uma espécie de reflexo providencial con- tra um sistema, uma doutrina, uma estrutura que corre 0 risco de circunscrever a operagiio da graga divina e inverter os papéis desempenhados por Deus e Seus servos. Localizar a “epiklesis” num ponto em que parece mais estranha significa evocar, segundo um esquema trinitério, a obra do Espirito, apés ha- ver evocado, no prefacio, a do Pai e, nas palavras de instituigdo, a do Filho. Mais que isso, significa também sublinhar o fato de que nem o Senhor nem Suas Promessas estdo & nossa disposi¢ao e de que, enquanto perdurar este mundo, a adoragiio da Igreja esta sujeita a perigos que devem ser evitados a todo custo. Assim colocada no lugar a ela reservado pela tradic¢ao ortodoxa, a “epiklesis” demonstra que, apesar de toda a gloria de que se reveste (e sobre isso os orto- doxos nao deixam dtividas), 0 culto nfo equivale ainda ao Reino. 3. O culto como recapitulagao da histéria da salvagéo © Vimos que 0 culto da Igreja s6 se torna possivel porque Jesus Cristo ofereceu, por seu ministério terreno, o culto suficiente e perfeito. Vimos tam- * Op. cit. p-357. Brunner sustenta que colocar a “epiklesis” apds as palavras de consagracao equivale a por em xeque “o poder que as palavras de Cristo tém de efetuar a consagragao” (ibid,) e inverter a ordem cronolégica da historia da salvagao. ze 0 Curto Casstio - J. J. von Allmen bém que 0 culto da Igreja é verdadeiro porque Jesus Cristo esta presente, (inem em seu nome. Resta-nos como Senhor soberano, no meio dos que se reu! examinar agorajoique\seipassainojculto, bispo sucessivamente de Chichester, Ely i Et a “assim como e Winchester, na Inglaterra, afirmava, num sermao de Natal, que O culto, portanto, seria uma recapitulagéo do evento principal da historia da salvago e, por conseguinte, implicitamente, da hist6ria da salvagao inteira. Tal idéia é, de fato, exata, como procuraremos demonstrar. Poder-se-ia, contudo, levantar algum reparo acerca da propriedade do emprego do termo “recapitulacdio”, argumentando que “recapitular” significa necessariamente (como no caso de ANAKEPHALAIOUSTHAI em Ef 1.10) atribuir ou resti- tuir cabega ou inicio a algo que nao tinha ou o tinha errado, e, por conseguinte, em suma, dar ao que é assim “recapitulado” uma juistificagao, razao de ser, orientagdo, plenitude. ie ai Ora, nada mais absurdo do que uma inversao entre Cristo € 0 culto, uma “cefalizagio” do Cristo por meio do culto, visto que, muito ao contrdrio,é(o/eulto\queé\"cefalizado” por Cristo; No entanto, “recapitulare” significa, na linguagem mais comum, simplesmente “resumir”, “confirmar” ou ainda “repetir”."” Neste tiltimo sentido, o termo € perfeitamente apropria- ‘Ponto culminante se encontra na intervengao encarnada do Cristo. Nesse resu- mo e confirmagao reiterados, o Cristo continua sua obra salvadora por meio do Espirito SantoSTal recapitulagao diz respeito a historia da'salvagao tanto a) Tomemos, em primeiro lugar, o;cultoreomoyrecapitulagaovda historia . De inicio, porém, convém indagar: qual € a estrutura cronolégica da hist6ria da salvagio? Sabemos que essa historia é dominada totalmente pela obra do Cristo encarnado, por sua morte e ressur- reigdo. “0 cent da economia da salvagio de Deus € a encamngto do Filho (etemnovem/Jesus de Nazaré;Suarcruzje Sua ressurreigio”.™ E esse o seu ponto % Citado por H. B. Porter, The day of light (Studies in Ministry and Worship, nota 16), Lon- dres, 1960, p. 64. 33 Cp, Schlier, art. ANAKEPHALAIOOMAI, ThWBNT, Ill, p. 681s. P. Brunner, op. cit., p. 119. Acerca do presente problema como um todo, remetemos o leitor as obras de O. Cullmann, especialmente Christ et le temps; Neuchatel e Paris, 1958 (2* ed.)- Cutto CristAo como RECAPITULACAO DA HISTORIA DA SALVACAO, 33 de referéncia obrigatério, sua justificagio. Nele toda a histéria do mundo é, em principio, levada ao seu fim, acabada.** Esse evento domina, de um lado, toda a vertente do Antigo Testamento e toda a histéria anterior 4 Natividade, mais além mesmo do limite da histéria, penetrando no mistério da criagao do mundo. De outro lado, ele domina também, de modo absoluto, a vertente do Novo Testamento e toda a hist6ria que sucede 4 Ascensiio, mais além do que pode ser abarcado pela hist6ria até 0 mistério do fim do mundo. A historia post Christum natum, na realidade, nada de novo acrescenta. Ela é, antes, a frutifi- cago dindmica da vitéria do Crista, num constante combate contra o Malig- no, que reluta em render-se, até o dia em que essa vitéria resplandeceré triun- falmente diante do mundo inteiro, quando da parusia do Senhor. Oreulto\é;"devinicio, anamnese\da\obralpassada'do|Cristo. Ao instituir a Eucaristia, isto 6, o culto cristdo, Jesus disse: TOUTO POIEITE EIS TEN EMEN ANAMNESIN (I Co 11.24s). A anamnese ou memorial (ANAMNESIS, pala- vras pertencentes a familia ZKR) é algo muito diferente de um mero exercicio da meméria, E uma geatiializagao, uma reconstituigdo do passado de forma a tornd-lo presente, e um compromisso. cbrar-se!yequivale\ay"tomaripresente'e"atual”. Gracas a esse tipo especifico de “meméria”, o tempo nao se desenrola no sentido de uma linha reta, mediante a Justaposigao irrevogavel dos sucessivos perfodos que 0 compdem. Olpassado EMD presente |se|Confundem:Torna-se possivel uma nova atuagiio do passado. Ennessa doutrina que se fundamenta também o rito pascal, o qual Ex 12.14 diz ter Sido institufdo le-Zikaron, isto é, “por memorial”. Essa expressio significa que aquele que participa do rito, ao lembrar-se da libertagio do Egito, deve capacitar- Se do fato de que ele mesmo € objeto do ato redentor, seja qual for a gerac’io a que pertenga. ist6ri ae Ver também a importante obra de S. de Dietrich, Le dessein de Dieu, Neuchatel e Paris, 1957 (6" ed.). * “Die Erdengeschichte ist in disem gekreuzigten Leib grundsiitzlich an ihr Ende gekommen” (P. Brunner, op. cit., p. 149). “FJ, Leenhardt, Ceci est mon corps (Cahiers théologiques, nota 37), Neuchatel e Paris, 1955, p. 47. M. Thurian estudou esse problema de modo especial no seu livro L’Eucharistie, memorial du Seigneur, sacrifice d'action de grace et d’intercession. A esse respeito ver também as importantes observagdes de J. Jeremias, Die Abendmahlsworte Jesu; Gottingen, 1960 (3* ed.), pp. 229-246, 34 © Curto Cristio - J. J. von Allmen Semelhantemente, entdo, em cada ato de adoragiio — e, na perspectiva do Novo Testamento, portanto, em cada oficio eucaristico — os que dele participam aprendem que siio, eles mesmos, objetos do ato redentor efetuado na cruz. & somente “reatualizagiio do pasado”. Mas 0 culto, enquanto anamnese, i Do ponto de vista dos que celebram a meméria da morte de Cristo, ele é ainda um engajar-se no servico do Cristo, uma confissao de fé. “Aquele que adora, ”57 Conseqiien- temente, 0 culto — e em especial a Eucaristia — é 0 que o Antigo Testamento chamaria de um oth, um sinal que, pelo poder de Deus, ressuscita aquilo que representa, no caso de um sinal anamnéstico, ou o torna realidade, no caso de um sinal prefigurativo.** De fato, a his salvacdo nao se reduz a fatos meramente passados. Ela tem em si também algo que esta por vir. Evidentemente nao queremos com isso dizer que o futuro traga elementos complementares ou corretivos Aquele momento crucial de toda a histéria da salvagiio, que € a encarnago do Filho de Deus, e particularmente a sua morte € ressurreigéo. Queremos, sim, dizer que o futuro trard a confir- magao, a manifestagdo e o desabrochamento tiltimo e eterno desse momento central. @uture. Nao se reduz somente a ui ipresentacdo da morte e da vitoria de Cristo; € também antecipagiio ou antegozo do retorno de Cristo e do Reino (que (Ele entaoha/de'estabelecer. A adoracio nio se reduz a uma simples me- ¢ Moria da Ultima refeigdo que Jesus. tomou com os seus aa nos ela ret (Gebeber o Vinho novo no Reino de Seu Pai (ME26.29). Ao participar do culto, Por conseguinte, os figis sio convidados a receber “o sinal de sua participacio no Reinowindouro”,” E, assim como a reapresentaciio do passado é mais do que um simples exercicio da meméria, a Prefiguracao do futuro niio se reduza um exercicio da imaginagao. No culto — e veremos que nisso consiste a obra do Espirito Santo — 0 passado e 0 futuro, o evento capital da histéria da salva- do e sua manifestagio triunfante, esto realmente presentes, ” Michel, art. MNEMONEUO, ThWNT, IV, p. 686. * Cp. Brunner, op. cit, p. 229ss. V, também G. Fohrer, Die symboli 4 ly Pe Ve , Die symbolischen Handlungen der Propheten, ATHANT, nola 25, Zurique, 1953, especialmente p. 91ss; eC. A, Keller, Das Wort OTH als Offenbarungszeichen Gottes, Basiléia, 1946, °M. Thurian, ep. cit, p. 208; ep. P. Brunner, op. cit, pp. 159 ¢ 167, além do conjunto da Iiteratura contemporanea sobre assuntos littirgicos, a qual, a esse respeito, paréce demons- trar um consenso generalizado. i Cutro CaistAo como RECAPITULACAO DA HISTORIA DA SALVAGAO 35 Devemos mencionar uma ¢efceiraidimensiio neste exame da recapitula- ¢G0 cronolégica da histéria da salvagiio efetuada pelo Espirito Santo no culto. Nao se trata somente do passado que se torna presente, e do futuro que ja aflora na adorayio, Temios ainda proprio presente que\seafirma=e opresen> \| in i ai losso quadro de referéncias, neste contexto, porém, € nio mais de natureza temporal mas sim espacial@/Assimicomoynal(/()) culto é, por conseguinte, a recapitulagdo da histéria da salvagiio, na medida em que reatualiza 0 passado, antecipa o futuro e glorifica o presente messianico. E exatamente por essa razio que se pode chamar o culto de um ‘PenOMENOESCAtOlSgiCo”.*' E é igualmente por isso que, nao obstante a ambi- giiidade em que é agora celebrado, is- to que se entregou pelo mundo nio ficou preso na morte; antes, pelo contrario, est presente entre os seus como Ressuscitado, como no primeiro dia de Pas- Coa. Impossivel, portanto, sopitar a AGALLIASIS, a exultagao, a alegria indi- zivel do culto (At 2.46, 16.34; I Pe 1.8; cf. I Pe 4.13, Jd 24). Eis af um dos elementos absolutamente fundamentais de uma concepgio crista da liturgia: -culto, porque recapitula a hist6ria da salvagio, é.um ato de alegria. E certo que também proclama a morte do Cristo (I Co 11.26). Mas, em virtude da vitéria que a coroou, essa morte é, para os que dela se beneficiam, fonte inesgotavel de acao de gragas, menos que motivo de pesar. A consciéncia desse fato deve aflorar claramente nas formulagées littirgicas em geral. Nesse sentido, a tradi- ¢4o litirgica protestante tem muito que aprender. ae Drea; Ainda outro problema se coloca. Vimos qué @GUI@lCataliZa WadOrAGaO © P. Brunner, op. cit., p. 157, € sobretudo B, Bobrinskoy, op. cit. “ “Der Gottesdienst ist wie die Kirche selbst ein eschatologisches Phiinomen” (P. Brunner, op. cit., p. 157 ¢ especialmente pp. 229-232). Sobre esse tema ver, entre outros: L. Fendt, op. cit. p. 64; O. Haendler, Grundriss der praktischen Theologie, Berlim, 1957, p. 157; H. Peichl, “Der Altar Gottes, die Freude am Tage des Herm”, em Der Tag des Herrn, Viena, 1959, p. 129s, além das obras de O. Cullmann e outros referentes & histéria do culto, Quanto ao Antigo Testamento, ver Dt 14.26; 16.11, 14; 26.11; Ne 8.10, etc. Ver ainda P. Humbert, “Laetari et exultare dans le vocabulaire de I’ Ancien Testament”, em Opuscule d'un Hébraisant, Mémoires de I’ Université de Neuchatel, nota 26, 1958, pp. 119-145 (pu- blicado na RHPR, 1942, p. 185ss). 36 © Corto Cristio - J. J. von Allmen aalegria do culto incontestavel da vida eterna e permite a Igreja participar do cultocelestequejacompanhaahist6riadasalvagio, Poder-se-ia indagar ainda se 0 culto da Igreja restaura o culto primeiro, paradisfaco, pretendido por Deus niio sé ao fazer do homem o representante littirgico do mundo, encarregado de conduzir 0 cosmos inteiro na agiio de gragas, na adoragio e no louvor, mas também ao estabelecer — de maneira supralapsdria — um dia de culto e talvez até mesmo — se atendermos ao que diz Lutero — um lugar de culto (a arvore, limite do bem e do mal) e uma forma de culto (SI 148). No meu entender, deve-se dar resposta positiva a essa pergunta, pois, por sua vinda, 0 Cristo, o Novo Adio, restaurou e levou a plenitude o projeto do Criador, reabilitou os que nele descobrem a auténtica raziio de ser de sua humanidade e, por conse- guinte, da orientagdo litirgica fundamental desejada por Deus ao criar 0 homem a Sua imagem@Recapituland6) portanto, a histéria da salvacgao que culmina na intervengio encarnada de Cristo, 0 culto cristéio redescobre e res- taura também o culto supralapsério que nio tinha sacrificio — e 0 faz nao somente de modo anamnésico mas também de maneira proléptica. Refiro-me aqui ao que foi dito acima acerca do culto — nado mais como expiagao, mas como consagragio e santificagdo — que Cristo presidiré, para que Deus se torne tudo em todos.*t/Mas oGultoda Igreja nada mais €do que uma prolepse do banquete messianico, da alegria do Reino — por ora tao ambigua que sé é (perceptivel a fé)O mesmo pode dizer-se com Tespeito a anamnese do culto oferecido antes da queda.\Noeulto da Igreja, por certo, o homem redescobre sua orientagao fundamental de representante litirgico real e reencontra o di- reito de convocar a criagiio, para oferté-la ao Senhor na ago de gracas, na adoragao e no louvor (insere-se aqui o problema da arte littirgica, a que fare- mos referéncia mais adiante), Mas tal redescoberta é constantemente compro- metida pelowpecado, de sorte que 0 maximo que se pode dizer é 0 seguinte: Porque se fundamenta na reconciliacao de todas as ci isas em Cristo, 0 culto cristéo € a vanguarda daquele anseio césmico de que fala Sao Paulo, daquela Ansia pela restauragao do que Deus, em Seu amor, estabeleceu desde 0 inicio (Rm8:18ss), Ele nao restaura de modo evidente o Paraiso, nem forga o apare- cimento do Reino. Ele justifiéaa esperanga e fornece as arras, Ppropiciando o dia e o lugar em que o passado anterior & queda e o futuro posterior ao julga- mento possam, um, perdurar ainda e, 0 outro, ja irromper. Por isso, ndo nos é Permitido afirmar que essa presenca é ambigua demais para poder exprimir- se. Ao contrario, negar-Ihe possibilidades de expressiio equivale a confessar ——__ © Cp. P. Brunner, op. cit, p. 123s, “ Ver acima, p. 12, Curt CRIsTAo COMO RECAPITULACAO DA HISTORIA DA SALVACAO. 31 que néio a amamos. Se amamos o Reino que restabelecerd e levard & plenitude o mistério da criagio primeira, niio se pode deixar de oferecer-Ihe no culto da Igreja — que € onde ele melhor se expressa — um meio de expressiio, embora ambiguo e insatisfatério. b) Vimos, em répidos tragos, que 0 culto é uma recapitulagao da histéria da salvaco no sentido cronoldgico: nele se reencontram e conjugam o passa- do, 0 presente e 0 futuro messianicos. Mas OTe scarey (Galvagdotambémno plano teol6gico) Que significa essa afirmagao? Para res- ponder a essa pergunta necessério se torna recordar de que elementos se cons- titui a historia da salvagio. Adotandoo esquema tradicional, podemos agrupar esses elementos sob trés titulos e dizer STARR ee ae (Gaeeficdciadessaimesmalvontade! A historia da salvacio, portanto, englo- ba trés aspectos:profético, Sacerdotill EFEAl. Vé-se que, ao examinar a historia da salvagio, nao mais do ponto de vista cronolégico mas do teolégico, somos forgados a reconhecer ue Qt ie Sts seer Gustificayexplica‘eresumeyse localiza najobrado|Cristod Cristo é o profeta por exceléncia, porque € ao mesmo tempo 0 arauto e o contetido da revelacio plena de Deus. E ele também o sacrificante por exceléncia, j4 que é ao mesmo tempo Sumo-Sacerdote e Cordeiro. E ainda o rei por exceléncia, uma vez que na sua pessoa se concentram tanto 0 Senhor como 0 Servo, tanto aquele que ordena como aquele que executa o que € ordenado. O/GultG/GHtHO) FECApitula) (Guawvontade/parajcomyoymundo; O culto, no qual se celebra a Eucaristia, reca- pitula e resume tudo o que Deus fez no sentido de reconciliar consigo o mun- do. O culto, no qual o povo de Deus se apresenta, em liberdade e alegria, diante daquele que € 0 objeto do seu louvor, recapitula e resume tudo 0 que Deus tem feito com aqueles que aceitam essa reconciliagioxHOMenSiVFESdOND © A respeito deste tema, cp. R. Paquier, op. cit, pp. 29-31. See wn 38 © Curto CristAo - J.J. von Allmen Aesta altura, restringimo-nos a uma mengio desse problema. A ele vol- taremos quando tratarmos dos elementos e dos oficiantes do culto, nos dois primeiros capftulos da segunda parte desta obra. ~ c) Dentre todos os problemas de cardter sistematico que seria necessario examinar, menciono somente um, que é da mais alta importancia, a saber, a relagao entre o culto da Igreja e a continuagao da hist6ria da salvagdo apés haver esta atingido em Jesus Cristo tanto 0 seu ponto culminante como a sua plenitude. Nao dispomos de espago para tratar a fundo essa questio. Conten- temo-nos em mencionar a direcio de onde, a nds nos parece, provém a solu- ao. Isto é de capital importancia para o que vird a seguir. A histéria da salvagao foi plenamente completada em Jesus Cristo. Para Deus, nada mais resta a fazer ou dizer além do que foi dito e feito em Jesus Cristo. Se assim é, entao, por que e de que modo continua essa historia? Uma coisa sempre nos surpreende: € 6bvio que, para o testemunho do Novo Testamento, a morte de Cristo consumou tudo, e sua Ascenso coroou para sempre essa consumacio plena. No entanto, no momento mesmo em que ele sobe aos céus, os anjos proclamam que voltaré (At 1.11). Subentende-se, portanto, que a histéria da salvacio nao esta terminada, antes prosseguird por séculos ou milénios, ainda, sem que, contudo, nada de novo se lhe acrescente, uma vez que tudo estd terminado. Se a histéria da salvagio continua — é isso o comprovam nio s6 0 fato de que a histéria como tal prossegue mas também e acima de tudo 0 fato de que Jesus Cristo prometeu retornar — é porque é preci- so que o evento central dessa histéria salvifica, a saber, a cruz e a ressurreigio do Cristo, venha, por assim dizer, a desabrochar plenamente. Esse evento, que absorvera e concentrara em si a histéria da salvagao inteira, desde a expulsao do Parafso até a manha da Sexta-Feira Santa, tem ainda de fazer-se sentir até ao fundo de sua eficdcia, num processo que, entretanto, sera interrompido antes do seu termo pela vontade de Deus de dar fim ao mundo. Aquilo que se concentrou uma vez unicamente em Jesus, no seu “batismo” (Le 12.50), me- diante o qual ele se torna o substituto do mundo inteiro, iré agora espargir-se, frutificar, produzir resultado final. “A inclusio virtual de toda existéncia hu- mana no corpo crucificado de Jesus deve ser concretizada e efetivada na exis- téncia histérica concreta de cada ser humano, até que venha a tornar-se uma inclusao oticamente real e pessoalmente apreendida, até que venha a culminar % Aquilo que € 0 evento central no acontecera jamais. Por si s6 ele seria suficiente para uma hist6ria deste mundo que nio tivesse fim. Por isso o fim deste mundo nao viré quando 0 evento central da hist6ria da salvagio se tiver esgotado, como se gasta uma pilha elétrica, mas sim quando Deus decidir “abreviar os dias” (Mc 13.20). Curto Cristio como RECAPITULAGAO DA HISTORIA DA SALVACAO 39 em sua forma final e definitiva”.©” Nesse sentido, segundo 0 modo normal da revelagao biblica, o EPHAPAX produz uma OEKONOMIA. Nessa OEKO- NOMIA 0 culto ocupa lugar eminente. Eis af 0 porqué da continuagaio da hist6ria da salvagiio mesmo depois de ter ela atingido, em Jesus Cristo, sua consumagio. De que modo se da essa continuagiio? A resposta mais exata a essa per- gunta consiste em dizer-se que ela continua como resultado da anamnese que dela se faz. Para entender essa afirmagio é necessdrio emprestar ao termo “anamnese” toda a plenitude do seu sentido. Nao se trata meramente de pér-se ao corrente dos fatos dessa historia, mas sim de jogar-se dentro da corrente desses fatos. Em outras palavras, nao se trata de dar informagGes acerca de fatos transatos, mas sim de deixar-se atingir pelo contetido dos fatos mesmos. Mais: trata-se, ouso afirmar, do ato pelo qual um ser humano ou um evento é “enxertado” no evento crucial da Sexta-Feira Santa e da Pascoa e do ato mediante 0 qual esse evento crucial da hist6ria da salvagio é “enxertado”, no correr dos séculos que o sucedem, neste ou naquele ser humano ou evento especifico. Por meio da anamnese 0 cristo se beneficia daquilo de que faz anamnese e reatualiza o fato “rememorado”. “O que Deus faz, ele o faz uma vez por todas as outras, uma vez com vistas a todas as demais vezes em que sua intervengio continuaré a manifestar-se salvificamente. No plano da fé, nada de mais atual e efetivo do que 0 que Deus t&o-somente uma vez por todas”. O que estamos a descrever é a obra do Espirito Santo, a qual consiste, a partir da Pascoa, nao em provocar 0 acontecimento de novos EPHAPAX nem em repetir 0 antigo, como se nao fosse eternamente suficiente, mas sim em aplicar eficazmente 0 que Deus tao-somente illic et tunc em Jesus Cristo ao hic et nunc de uma vida humana ou comunitdria, ou evento especificos. O Espirito Santo é aquele que da a nés o Cristo. Sua tarefa consiste também, de outro lado, em referir eficazmente 0 hic et nunc de uma vida humana ou comunitdria, ou evento especificos ao illic et tunc daquilo que Deus em Jesus Cristo tio-somente no Gélgota e no jardim de José de Arimatéia —e neste caso 0 Espirito Santo € aquele que nos da ao Cristo. Niio podemos, a esta altura, entrar nos pormenores da histéria da teologia litérgica ou, mais particular- mente, da teologia eucaristica. Diremos tio-somente que, se niio incorrermos no erro de esvaziar a nogiio plena de anamnese, reduzindo-a a uma mera me- morizagio, ndo precisaremos, para sublinhar o cardter eficaz dessa anamnese € sua natureza de evento escatolégico, langar mo de uma doutrina que ameace © P. Brunner, op. cit, p. 193. ® FJ. Leenhardt, op. cit., p. 47s.

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