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CAPITULO VII A SUBJETIVACAO INGENUA em duvida, a mais antiga tentagao do homem religioso nao passa pela mente, mas pelo coracao. Desde o primeiro vislumbre humano de estar diante do sagrado da realidade, com sua dupla sensagao de medo e fascinio, certamente sobreveio ao homem o estremecimento diante do sobrepoder da realidade, o mo- vimento a adoragdo e o desejo de posse. Essa tentac&o perdura até hoje. Atualmente, encontramo-nos em um momento de credulidade no qual prevalecem a indiferenga e o reencantamento do mundo. ' Diante dos excessos da légica funcional que permeia as praticas sociais dominantes do mercado e da tecnociéncia, criando indiferenga e ateismo pratico, surge uma feligiosidade que busca a experiéncia do sagrado, do Mistério, pelos caminhos da aletividade, Nao importa 0 conhecimento do Mistério, e, sim, 0 calor do coragao. Assistimos a uma revitalizagao religiosa que, porém, corre 0 risco de esquecer 4 vigilancia da reflexao. Recuperam-se a espontaneidade e até ingenuidade na eligiosa, mas incorre-se com frequiéncia no desrespeito da devida distancia Simbélica, Isto 6, nao se 6 consciente e nao se sublinha suficientemente a absoluta "ranscendéncia desse Mistério de Deus ao mesmo tempo que se estabelece com e uma relagao pessoal, Deixa-se de lado ou se esquece, por desconhecimento, "Ngenuidade ou subjetivismo psicologizante, aquilo que realmente é o simbolo e, ©om ele, a verdadeira relagéo religiosa. Estamos diante de um esquecimento ou *Tgiversagao do simbolo em virtude de descontrole imaginario e caréncia Slagao critica racional, de me- 137 AVIDADO SIMBOLO 1. Tempo de incerteza Vamos contextualizar essa nova religiosidade, presente em nosso mundo, para, que possamos perceber melhor as raizes e o alcance desse subjetivismo ingénuo e psicologizante e seu impacto na imaginacao e no simbolo. Assistimos nesta modernidade tardia a uma reacao afetiva presente em muitos _ mbitos culturais e que se reflete claramente nas relacées interpessoais e em uma certa tonalidade religiosa em alta. Afirmagao e revalorizagao dos feelings para uma _ €poca dominada pelos usos funcionais e instrumentais. No fundo, desenha-se a “figura de uma sociedade do risco e uma cultura da incerteza. 1.1. A incerteza epistemolégica Amaior contribuigao do conhecimento no século XX, para muitos estudiosos," consiste em ter percebido os limites do conhecimento. Assim, vai-se atingindo a Paradoxal certeza da impossibilidade de evitar certas incertezas. Fazendo uso de um jogo de palavras, atribuido ao Poeta Salah Stétié: “O Unico ponto. quase certo no naufragio (das antigas certezas absolutas) é 0 ponto de interrogagao”, A incerteza cognitiva ou epistemoldgica € 0 resultado de um) longo processo do pensamento moderno para encontrar fundamentagao ou Principio indiscutivel que pudesse sustentar um edificio tedrico transparente e seguro. O “anseio car: tesiano”, assim chamado por R. Bernstein,? mais amplamente classificado por R. Rorty como “tradicao Cartesiano-lockiano-kantiana”, chega a seu fim: a busca da fundamentacao, da pedra angular sobre a ual se possa estabelecer o conheci _ Mento objetivo e seguro, certo, mostra-se impossivel de ser alcangada. Nao existe esse alicerce Ultimo ou pedra angular sobre a qual se possa erguer ediificios teérict com verdades absolutamente certas. Demos o nome de “trilema de Miinchhau: ou qualquer outro, sempre desembocamos na descoberta de que toda preten fundamentagao ultima é falsa, por se deter ou tomar arbitrariamente como defini © sempre pentltimo. A historia do pensamento moderno 6 a historia das sucess 7 desfundamentagées e da descoberta dos Condicionamentos do préprio sujeito d "Gt. Morin, E, La mente bien ordnads, Barcelona, Selx-Barrl, 2000, pp. 712; Antset D, Teva ca raion {ella fede, Miano, San Paolo, 1994 (Crtafloséfica com respostateolégico-floséica do card, Carlo, Ruin), * i. Bernstein, RJ. Beyond objetiism and eatiism; scence, hermeneutic and praxis, Oxford, Biackwel, 1983. 138 ‘A SUBJETIVACAO INGENUA conhecimento (Kant), da realidade social 4 qual o sujeito e o objeto pertencem (Marx), do situacionismo e perspectivismo de nosso conhecimento (Nietzsche), dos obscuros condicionamentos do outro da razao (Freud) e da propria linguagem que utilizamos (wittgenstein). Afilosofia da ciéncia, desde Ch. S. Peirce até K. Popper, diz-nos que nao podemos estar absolutamente seguros de nada. Sempre nos movemos em um conhecimento falivel e conjectural. O resultado desse processo histérico do conhecimento, que, tendo che- gado até proximo de nossos dias, se difrata em teoria da ciéncia, hermenéutica, pensamento critico, pratico ou em tendéncias como a da pds-modernidade, 6 que devemos aprender a navegar no oceano da incerteza, embora descubramos arquipélagos de certezas. 1.2. Aincerteza cultural Anovidade da cultura que vivemos € que, em justa correspondéncia com a incerteza do conhecimento e de uma consciéncia crescente do pluralismo cultural, vemos nossa cultura como um pequeno “nicho cultural”. Ficam assim relativizadas nossas visoes do mundo e nossas crengas e comportamentos. Sao algumas pos- siveis entre muitas outras. Ohomem de nossos dias, ja a partir da adolescéncia, tem essa consciéncia auto-reflexiva sobre sua prOpria cultura e tradigao que o leva a um relativismo vivido com mais ou menos anglstia. Auto-reflexAo que destradicionaliza (A. Giddens) a atmosfera cultural na qual o homem vive, é socializado e educado. As conseqiiéncias Podem correr por dois grandes trilhos. Podem levar a assim chamada mentalidade ou desejo pés-moderno, que vive “sem nostalgias” (J. F. Lyotard’) nesse relativismo cultural, sem sentir saudade da perda das grandes cosmovisdes ou explicagdes Sobre o sentido da realidade e do mundo. Tem clara consciéncia de que as grandes visdes, meta-relatos ou ideologias so apenas meras narrativas sociais que tém a funco social de unir e até unificar nosso comportamento e sentimento, em busca de um projeto de maior ou menor domesticagao social. Dai a periculosidade desse tipo de educagdo ou amansamento humano (Sloterdijk’), que pode acabar em to- laltarismo barbaro a servigo dos senhores do poder. aE * Ot. Lyotard, J. FA condigao pés-modema. Rlo de Janeiro, J. Olmpio, 1988. “Ct Steck En elmismo barco; ensayo sobre lahiperpoliica. 2. ed. Machi, Skusla, 2000, pp 56s. (Ed. bras: Nomesmo arco, So Paulo, Estagao Liberdade, 1999.) 139 AYIDA DO SIMBOLO a O relativismo cultural produz também nervosismo e inquietagaio Psiquica e busca compulsiva de certezas e segurangas. A vivéncia da incerteza nem sempre € tomada como ocasiao nietzschiana de maior liberdade e criatividade, 0 Préprio Nietzsche ja sabia que a maioria dos seres humanos néo imita Zaratustra dangando. contente a beira do abismo, mas imita o rebanho produzido pelos charlatées vendg- dores de bijuterias e cosméticos do mercado, dirfamos hoje. Entao, compreende-se a procura de certeza presente em nossa situagao cultural e que explica a tonalidade fundamentalista da época. Vivemos tempos de busca de certezas, de saberes e doutrinas seguras, Muitos se apegam as autoridades de plantao, as interpretacées literais dos textos “sagrados” e as estratégias de asseguragdo por meio dos cintur6es protetores de suas “verdades”. Ou procuram langar raizes no j4 conhecido e préximo a prépria tradicao, a prépria terra, as proprias convicgées. Tempos de | precariedade e medo de dialogar com a incerteza. [0 --1.3. Aincerteza social A descoberta do homem nesta modernidade tardia 6 que a sociedade, este mundo, construido socialmente pelo ser humano como seu habitat, tornou- se perigoso. A sociedade, tomada como casa protetora, era o refgio do homem diante das ameagas ou perigos que geralmente vinham de fora. Contudo, de forma crescente, 0 ser humano descobriu com surpresa que seu proprio mundo incuba © perigo generalizado. E to clara essa caracteristica da sociedade que nem 6 preciso ir atras de algum pesquisador. E de dominio puiblico que a satide, a alimentagao, a ciéncia, para nao citar a globalizagao ou 0 mercado, tornaram-se Perigosas. E como ter o inimigo dentro da propria casa. E é assim. Podemos vé-lo e até apalpa-lo em nos- sos dias por meio da chamada “crise das vacas loucas”, da ameaga dos alimentos transgénicos, das transfusOes ou operagdes que acabam inoculando em nés uma doenga nao procurada e imune aos remédios conhecidos, para nao citar as jaine- gaveis mudangas climaticas, a poluigaéo que cria buracos na camada de ozénio e seus conseqiientes canceres de pele etc, E se dos casos concretos passarmos aos dinamismos que puseram em marcha a propria modernidade, isto 6, a tecnociéncia, a tecnoeconomia, a indus- trializago, a burocracia, o militarismo etc., perceberemos, @ambigilidade radical em 140 ASUBJETIVACAO INGENUA que vivemos. A prépria sociedade ou o mundo do homem 6 que se tornou Perigoso e inseguro. U. Beck® chamou de “risco” essa situagao de perigo ou ameaga gene- ralizada. Portanto, vivemos em uma sociedade de risco, Asociedade de risco produz medo. Cria uma atitude desconfiada e insegura, de incerteza. Compreende-se, entao, Que n&o sejam momentos socioculturais nos quais se deva arriscar; ao contrario, predomina 0 tom retraido e fugidio daquele que quer proteger © que tem e nao perdé-lo. ‘Tempos que alguns classificaram de “sa- pienciais", em contraste com os tempos denominados “proféticos”. A modernidade, com suas expectativas de progresso, era uma sociedade de tonalidade profética: critica em relagao ao passado e com olhar esperangoso para o futuro. A atitude atual tem os olhos desconfiados de quem nao acredita que virao tempos melho- res. Inclusive teme o pior. Torna-se receosa e adota uma atitude, entre resignada e “realista”, de adaptacao ao que ai esta. Pragmatismo pequeno e chato, que é a melhor defesa do status quo. A sociedade da incerteza e do risco gera forte consciéncia da contingéncia. Sabe-se que no se possui o controle das finangas, nem da economia, nem da cién- Cia, nem... Tem-se a percepeao clara da limitagao, da finitude, da indisponibilidade e incontrolabilidade. O ser humano, desde o comego do milénio, pensa que o mundo ue constréi esta fugindo de suas m&os, se autonomizando e descontrolando. JA nao acredita em sonhos do século XIX de uma sociedade perfeitamente racional e humana. Nessa tessitura, e quando falham as medidas humanas, ndo é estranho que assistamos ao crescimento, supreendente para os espiritos iluministas, do retorno a0 destino, ao enigma e ao Mistério. Se nao podemos controlar nossas obras, lancemos m&o da magia, da sorte, da supersticao ou da religido. Tempos propicios Para o irracionalismo e para que se enraize de novo uma religiosidade protetora e asseguradora, 1.4. A incerteza historica A pés-modernidade se despedia dos grandes relatos; o pensamento sabe ue, devido a limitagao das faculdades humanas, néo da para esperar a Obtengao de principios que possam reger a marcha da historia. A histéria 6 um barco a deriva SS * Ch Beck. U. La sociedad det riesgo. Barcelona, Paidés, 1998; Id. La invencién de fo poltico; para una teora de la modemi- 220\6n reflexive. México-Buenos Alres-Madiid, FCE, 1909, 144 4 | AVIDADO SiMBOLO ou, no melhor dos casos, um barco sem rumo cujo tim&o os humanos manejam de forma relativa. Sempre ha — sabemos isso a partir do que Max Weber advertiy — conseqiléncias nao desejadas nem procuradas que afloram Posteriormente, Parece a dialética paulina de desejar ou buscar o melhor e causar males N&o pre- tendidos. Algo inevitavel: 0 ser humano, com sua acdo, seu conhecimento, suas descobertas, introduz elementos que disparam conseqliéncias perversas indesejadas e desconhecidas. Devemos aceitar que a complexidade do nosso mundo, da realidade, é tal Que nao controlamos nada mais do que uma infima parte das conseqiiéncias pos- siveis. Sobretudo quando nos movemos no enorme espaco social e da marcha da historia. Essa perda de confianga no planejamento ou em um suposto delineamento de engenharia social para o futuro nos coloca a frente de uma hist6ria aberta. O ser humano tem que ser cauteloso e responsavel diante de seu futuro. Ja que nao existe nenhuma chave da historia, nem podemos confiar em nosso conhe- cimento como técnicos do plano social, ‘surge a necessidade de ficarmos atentos as possibilidades e probabilidades de nossas agdes. H. Jonas® chamou de “principio responsabilidade” essa atitude ética de responsabilidade diante do futuro e das gerag6es vindouras. O tempo entra na ética, e se nado podemos nos desembaragar de uma “ética da responsabilidade” no que se refere as conseqliéncias de nossas ag6es, muito menos podemos nos livrar das repercussées dessas agdes quanto ao futuro da humanidade. A época historica da incerteza histérica é o tempo da liberdade e da responsabilidade. 2. Estratégias no tempo da incerteza _J&observamos que os tempos de incerteza produzem desconfianga na razao ~€.até uma tonalidade esvaziada e retraida. Fiquemos atentos As estratégias que, como reago, surgem neste momento e que tem. conseqiléncias para nossa anélise “sobre 0 imaginério e o simbolo, Vamos resumi-las em trés atitudes estratégias. ® Ct. Jonas, H. E principio de responsabilidad: ensayo de una ética para a civiizacién tecnolégica. Barcelona, Herder, 1995. 142 ASUBJETIVACAO INGENUA, 2.1, Aestratégia do sentimento Quando as argumentagdes e as pretensdes de fundamentagao falham, devemos abandonar esse caminho e apelar para o sentimento. Essa parece ser aalternativa que se maneja hoje desde a intelectualidade até as massas. Richard Rorty’ polemiza com J. Habermas e critica sua Pretensao de universalismno que, segundo ele, somente mascara os interesses e as “raz6es” da cultura e da socie- dade moderna ocidental. E preferivel aceitar e assumir o inevitavel etnocentrismo de nossas colocages presumidamente racionais. Em vez de contradizer-se em um fundacionismo argumentativo, 6 preferivel tomar o caminho do sentimento e apelar, mediante a narrativa e a chamada ao coragao, aos melhores impulsos da generosidade e da solidariedade. Obteremos melhores frutos do que mediante a pretendida argumentacao. A modernidade tardia, que secularizou a razio moderna iluminista e suas pretensdes de dirigir e explicar tudo racional e légico-empiricamente, volta-se para a dimensao afetiva do ser humano. Se nao podemos compreender com a mente, fagamo-lo com 0 coragao. Se nao podemos mover coma argumentacao, podemos comover com o sentimento e, desse modo, remover a realidade. Certa exaltagao dos sentimentos substitui a anterior entronizagao da raz4o. A comogao — o sentir € 0 co-sentir — propGe-se como via de humanizagao e mudanga Social ai onde a pretendida razao argumentadora e universal parece ter naufragado © produzido apenas a defesa de interesses particulares e nacionais. Operigo esta no fato de ser mais importante 0 rosto iluminado e 0 gesto afetivo do que aquilo que comunica; que a sedugao se imponha ao sentido. Naturalmente, assistimos a uma critica diante de uma religiosidade intelectualizada, apta somente Para minorias iniciadas. O cristianismo progressista pds-conciliar encontrou nesse cima motivos para a reflexdo e a autocritica. O lago afetivo e o calor comunitario $40 muito importantes. Ateligiosidade deste momento 6 propicia para os grupos fusionistas e para as Propostas sedutoras; para as experiéncias aceanicas do sagrado, em que 0 divino Perde os contornos e nos submerge em um abrago que 0 reconcilia todo consigo Mesmo. O sagrado césmico, terreno, psiquico... que chega a se confundir com a a : ” Ot Niznik, J, & Sanders, J. (eds.). Debate sobre la situaci6n de la flosofa; Habermas, Forty y Kolakowski. Madrid, Cétedra, 2000. pp. 42s, 143 AVIDA DO SIMBOLO Vida, Gaia e o Todo, tem a vantagem de uma sacralidade talvez primitiva, Originaria em que revive 0 ritmo do dia e da noite, a propria vida ancestral, mas nao 6 cristo, O cristao distingue mais: acentua 0 sagrado humano, 0 rosto ferido e retorcido Pela dor da injustiga e das contradi¢ées historicas e sociais. A religiao biblica nao d4 lugar para mitificar as contradigdes. A religiosidade crista € emancipatoria e anti-sacra) sob esse ponto de vista. A mistica que brota de Jesus de Nazaré é a dos “olhos, abertos” (J. B. Metz), nao passa de olhos baixos pelos “rincées obscuros” da Nossa, sociedade; olha a realidade e o sofrimento de frente, procurando perceber onde estdo suas raizes a fim de extirpa-las. 2.2. A estratégia mito-interiorista A consciéncia da finitude e limitac&o, a redescoberta da contingéncia na sociedade de risco, produz a inclinagdo para o sobre-humano. Se o homem apalpa a indisponibilidade da realidade, esta se sente A mercé de forgas governadas, nao Pela razao, mas pelo Destino ou pela deusa Fortuna. De novo, nasce a tendénciaa negociar com tais forgas anénimas e desconhecidas. A magia faz sua irrup¢ao. Nao é de estranhar que haja um ressurgimento de bruxos e cartomantes, um exército de médiuns espirituais que procuram controlar o ingovernavel e submeter @ vontade do usuario a marcha do presente e do futuro, Em tempos de descon- fianga sobre a razao, apela-se para o mistério e para o enigma a fim de manipular 0 incontrolavel. Uma antiga receita que surge novamente, Mostrando as tendéncias atavicas do ser humano. Atualmente, ha mais “bruxos” em Paris ‘ou em Madri do que sacerdotes e religiosos/as. Uma variante do anterior se embrenha pelos caminh interioristas e que procuram mudar nado mais a realidade externa (profetismo), masa interna (mistica). Quando falha a revolugao exterior, alguns avangam Para a interior. Ja que nao se pode governar a sociedade, mudemos o Nosso interior. Essa receita, que tem sabor oriental, encontra seu caldo cultivador nesses momentos de impoténcia diante da realidade que vivemos. O “mundo desbocado” induz a0 controle espiritual, assim como a incapacidade politico-social estimula as mudangas do coracao. A denominada religiosidade ou espiritualidade difusa, 1 neomistica, ou neo-esotérica, avanga empurrada por esses neognosticismo quer mudar mais a mente e o coragao, contexto de seu mundo. Mais do que uma espiritualids los das espiritualidades POnew age ou nebulosa 'ventos de incerteza. Esse © interior do homem, que o fade encarnada na realidade 144 | A SUBIETIVACAO INGENUA social, procura fugir dela. Responde a indisponibilidade do mundo com amudanga do coragao. Sempre fica conjecturando Que 0 “suspiro interior da criatura oprimida” sup6e um real estranhamento deste mundo e com isso produza uma revolta interior que termine como uma verdadeira revolugao contra o Sistema. Esvaziar o sisterna poderia se dar por meio dessa fuga interior, que se aliena em relacao ao sistema. Por esse caminho conseguiriamos uma estratégia revolucionaria para tempos de ndo enfrentamento direto nem frontal. Solapa-se o sistema, tornando-o vazio. Contudo, pode acontecer que se dé uma integrago no sistema neoliberal e na sociedade de risco com um equilibrador espiritual dessa nova religiosidade. Vivernos momentos de consciéncia da “ferida” que atinge a realidade e o ser humano. Somos seres cindidos. Entéo, brota uma ou outra vez a necessidade da reconciliagéo. Todavia, o perigo atual é a rapida sutura da ferida. Um recurso ao polimitismo, que acredita superar a ruptura deste mundo mediante a cortina de vi- ses que, por mais ancestrais e poderosas que sejam, nos deixam na mera ilusaio. A unidade mitica, a grande satide e a reconciliagdo cumpridas. exigem 0 enfrentamento sem escapatorias. O mito que oculta o mal e o sofrimento que sutura falsamente sao uma estratégia de evasao e de irresponsabilidade. E a tonalidade pseudo-budista ou oriental de nossa época, que se fazendo eco de algumas cangGes pés-modernas, foucaultianas, que apagam na praia da vida as pegadas do sujeito, de um eu pessoal responsdvel, é perfeitamente com- Preensivel em um tempo de cansago e desfalecimento ideoldgico e utépico, mas Casa muito mal com a situagao de necessidade e interpelagao de um mundo em que as feridas da pobreza, da desigualdade e da fome supuram de verdade e causam milhées de mortos. Temos que novamente repetir que a fé cristé se dé mal com a sutura falsa e com a estratégia da anulagdo da responsabilidade. Aceita a ferida, no a dissimula. Il Deixa-se int ionar 0 sentido de um Deus de Amor por cal mal no mundo, mas responde sem ilusdes a io desafio. E preciso estancar ida e p6r maos a obra, O saneamento consiste em carregar 0 mal deste mundo; rer em Deus significa apostar no sentido e na compaixao efetivos, eurtertados por Sua presenga que age em e por nés, nao sem nds nem sem as leis da realidade nem milagrosamente. Crer, para 0 cristao, significa responsabilizar-se pelo mundo. © pelos outros. 145 AVIDA DO. SIMBOLO 2.3. A experiéncia “direta” do Mistério ‘Atualmente assistimos a valiosas tentativas de repensar a religido a partir dag profundas mudangas culturais que nos cercam.* Nao vale a repeticao. Estamos diante de uma nova reconfiguragao do sociocultural e, com ele, da religiao. A resposta tem que ser drdstica, profunda e radical. Tem-se a consciéncia de que nao basta apenas mudar de paradigma, Em- bora a atualizagao da fé crist& seja uma necessidade para poder-se apresentar em publico e nao ferir a sensibilidade racional dos homens do nosso tempo, todavia, se nao conseguirmos superar o enclausuramento doutrinal, estaremos — diz-se — dentro do mundo das verdades reveladas e das crengas. Ja nao valem mais as criticas nem as criticas das criticas. A renova¢ao auténtica do cristianismo tem que vir pela experiéncia. N&o, porém, uma experiéncia religiosa como conhecimento interessado, mas como “conhecimento nao interessado ou silencioso”. Ea relacao direta com o Mistério que esta em jogo. Nao se trata de verbaliza-lo melhor, mas de experimenta-lo sem mediagGes racionais que continuem fazendo da fé uma crenca. Entao, a renovagao religiosa que se avista anda pelo caminho de uma religiosidade realmente experiencial: “nao representacional, nao dual, conhecimento silencioso”, Eamistagogia, e ndo a conceitualizagao modernizada nem a experiéncia mediada, que tem a palavra. E preciso passar da “religiao de crengas” ao “conhecimento silencioso”. No fundo, algumas propostas falam em momentos de superagao de toda formulacao doutrinal e em desembocar o espirito diretamente na experiéncia do Mistério. Fala-se de um tipo de conhecimento no qual conhecimento e realidade coincidam, como sujeito e objeto, no qual nao haja representagdes nem media- g6es. E conhecimento nao dual, silencioso.? Todavia, existe tal experiéncia direta do istério sem media? As reticéncias mostradas diante do doutrinal e conceitual pi m apontar para uma religiosidade da pura experiéncia e da superagao das mediagdes. As propostas sao muito honestas e muito men atraentes, s6 que talvez nao sirvam para os seres humanos. ™ E Por tras do questionamento de uma religiosidade da aaa com inten- go de imediatez, conhecimento silencioso, esta toda a Teflexdo filoséfica sobre 0 * Ct, Robles Robles, A. Rapensar la religion; dela creencia al conocimiento, San to fund, Corb, Mariano, El camino inteor. Barcelona, El Bronce, 2001, 086 0 Costa Rica, Euna, 2001. pp. 235: © Ibidem, pp. 26-27. 146 A SUBJETIVAGAO INGENUA, onhecimento humano. Conhecemos (e experimentamos) de forma situada. A partir do aqui e agora. Carregamos inevitavelmente os “preconceitos” de nosso tempo e gtuaga0, como nos lembra G. Gadamer.'? Apenas damos o primeiro passo verbal uconceitual e ja falamos e pensamos de forma bem determinada, social e cultural- mente. Nao existem paginas em branco, Estamos determinados nao somente pelos nossos “genes”, mas também pela socializagao, que comega jé no seio materno enos possibilita © acesso ao Nosso mundo e as tradigdes em que nos encontramos. _—Omesmo com a experiéncia de Deus: se quisermos dar conta dela, inclusive reconhecé-la, teremos que usar a linguagem e o pensamento, um revestimento cul- tural, social, hist6rico. Nao hé forma de escapar da mediagao. A Unica saida seria o | silencio que renuncia até mesmo a pensar. Nesse caso, porém, jé nado saberiamos se temos experiéncia do Mistério de Deus ou de qualquer nebulosa. Estariamos na indiferenciagao e na escuridao total. O “conhecimento silencioso” talvez valha como metéfora para sugerir 0 avango para uma experiéncia religiosa muito menos verbal, conceitual, de “crengas”, mas nao pode ser limite atingivel, como muitas vezes se apresenta, porque seria simplesmente impossivel para os seres humanos. Ai nao ha representagao conceitual nem simbolo nem nada. No siléncio do conhecimento nao ha nada; somente siléncio indiferenciado e escuridao vazia. Parece-nos que a intengdo para a qual tais propostas religiosas apontam caminha para uma radicalizagao da “teologia negativa” e para a primazia de certo ‘imediatismo” intuitivo, simbdlico, “mistico”, mas que nao pode eliminar ou superar totalmente a mediacao nem a “crenga”. 3. A“teologia negativa’ na idade da incerteza A incerteza cognoscitiva alimenta atitudes nas quais 0 sentimento prevalece sobre o pensamento e © calar e experimentar sobre o explicar. Ha uma espécie de afasia ou siléncio conceitual quando o intelecto 6 questionado. Se o discurso sobre Deus falha, sublinha-se o sentir @ até o siléncio reve- rente. Entao, nesse momento, nao apenas cresce 0 agnosticismo dos que estao conscientes de saber que nao sabem, que sabem pouco, para optar ou se decidir ron 0). En conversscén con, . Gadame: Madi, Tecnos, 1808. pp. 3s, * Gf, Dutt, Carsten (e3! 147 ‘AVIDA DO SIMBOLO pela crenga. Nesse momento de ateismo de impoténcia e indiferenca Pratica, Cresce, o siléncio sobre 0 Mistério, se nao reverencial, a0 menos cultural, porque ha uma debilidade mental atmosférica para lutar contra o limite, ¢ muito mais para se atrever a salta-lo. Essa tonalidade de época incerta e medrosa pratica 0 respeito ao Mistérig até se calar totalmente. Este 6 o perigo atual: que a teologia negativa encubra um tédio e uma impoténcia existenciais para se defrontar com o Mistério de Deus e tudo acabe em respeitosa e covarde comodidade de n4o pensar, nao analisar, nao falar, Covardia mental e vital, siléncio comodo que adota formas de educado siléncio oy presumida “teologia negativa”. Aqui caberia a maxima de Th. Adorno, que é também antiga maxima teoldgica: nao se pode calar diante do limite, mas depois da luta com ele; nao se pode cair de joelhos diante do Mistério de Deus sendo depois de té-lo reconhecido e tentado penetrar o mais possivel nesse Mistério. Adorar antes do tempo 6 uma irreveréncia pusilanime. Nesses casos, 0 siléncio é siléncio culpavel, e corre o risco de sé-lo a atual confissao generalizada de agnosia. E mais facil buscar segurangas em apoios da revelagao e da autoridade ins- titucional. Estamos diante de correntes fundamentalistas, caracteristica do nosso tempo. A estratégia para esse tipo de atitude mental e cordial 6 assegurar a relagao com 0 Mistério e sua delimitagao dentro dos parametros seguros de uma interpre- tacdo literal de um livro revelado, de uma tradigao, de uma comunidade, de um magistério ou autoridade que me defendam da angUstia sociocultural e até interior. Ento, o fundamentalista costuma ser também objetivista: apega-se a uma deter- minada concepgao, interpretagao rigida, dogmatica do Mistério. No fundo, gostaria de possuir e assegurar o Mistério que diz respeitar e adorar. O centro pende nao tanto sobre 'o Mistério quanto sobre si mesmo. 4. Atentacéo de domesticar o simbolo Se tivermos acertado no diagnéstico que fizemos da época, compreen- deremos a tentag&o simbdlica que nos rodeia: fazer do simbolo um elemento a servico da afetividade e distanciado do pensamento; nao respeitar a radical abertura e, portanto, a resisténcia a objetivagao @ a0 carter indireto e mediato de toda relacao simbdlica. 148 A SUBJETIVACAO INGENUA Sabemos que a imaginagao pode ser submetida a tirania do coragdo e da afetividade. Todos os pietismos pretendem Manejar a imaginago por meio do sen- timento ou do coragao. O resultado acaba sendo um subjetivismo ingénuo: a crenga de que nossa imaginagao representa a realidade que o pensamento ndo alcanga. passa-se facilmente a dar rédeas soltas a Prdpria representacao e a crer que existe adequagao direta entre o imaginado e o representado, Compreende-se que esse salto sem a rede protetora da critica racional Seja pago com um psicologismo e imediatismo religioso que nao faz justiga a transcendéncia do Mistério de Deus. Oprivatismo" e 0 intimismo subjetivistas realizam verdadeira objetivagdo que tranca 0 Mistério em alguns limites presumidamente jé dados. Essa nao-abertura ou definigao subjetiva do Absoluto do Mistério de Deus é aquilo que afeta mortalmente ocoragao do simbolo. Faz-se da representagao, da imagem, da idéia, da nogao ou narrativa do Mistério uma descrigao que acaba destruindo o simbolo e o Mistério. Nesse processo, 0 simbolo, mais do que desvalorizado, acaba sendo deixado de lado. Nao se respeita 0 préprio cardter simbdlico que projbe fazer: adequacées diretas eimediatas e identificar 0 imaginado e invocado com a propria realidade. Entenda-se bem, nao estamos rejeitando a ousadia da piedade religiosa de se dirigir a Deus, ter com ele uma relagdo proxima e toma-lo como a outra parte de um possivel encontro interpessoal, mas 0 nao manter a distancia e fazer dele uma realidade objetiva. E a objetivagao, que nao respeita nem o carater indireto nem o imediato, que destréi o simbolo; é 0 nao tomar 0 prdprio encontro com Deus como simbolo, isto 6, como nao objetivavel, sempre aberto, que n&o respeita a transcendéncia do Mistério nem o cardter simbdlico. Também para a piedade, Deus tem que ser o | \issin intro sem deixar de ser 0 transcendente, distante sempre em issimo-ne-encont! Sea Proximi ‘Sua inti imidade, inacessivel no abrago do encontro. ae As conseqtiéncias dessa falta de vigilancia critica sobre o uso daimaginacao, * de um lado, ea quedana objetivacao yee uns. sao. ners paraa Preps Teligiosidade. O objetivismo ingénuo e 0 intimismo estcologizante eonczoin facil- icdes supersticiosas, em que o sagrado, 0 Mistério, na sua proximidade, peter peer 2a coisificado, manipulado por atitudes milagreiras ou magicas, mere ee as em meio a. um reencantamento do mundo incontrolado; o mee chai lesan da piedade levam também a uma mistura de posse ene Pas ae que faci mente degenera em attitudes supersticiosas. medo do x _bestimme Ich. Reden von Gott im Zetater der “Cafeteria Religion’. In: Beutler, J. & Kunz, E. Was ist Gott. ‘Echter, 1998. pp. 68s. Werzbura, Eehter, tt reden- "Ct. Datferth, |. U: (orgs), Heute von Got 149 “eimpossivel apropriagao subjetiv ee AYIDA DO SIMBOLO 5. A“segunda ingenuidade", tarefa para nosso cristianismo atual Os perigos que estamos apontando nao sao alheios nossa realidade religiosa, As tendéncias espirituais que chamamos de “religiosidade difusa” ou classicamos como “neomisticas”, “neo-esotéricas”, “neognésticas” etc. padecem de uma reivindi- cacao do sagrado que muitas vezes nao é consciente de sua coisificagao nem guarda as devidas distancias diante do Mistério. Desejosas de manter contato direto com © Mistério como primeiro objetivo, esse experimentalismo piedoso, emocionalista, cai na tentagao da apropriacao. Dal o cardter instrumentalista de uma religiosidade com aplicagées terapéuticas, psicologizantes, fortemente centrada no préprio sujeito. O nao-descentramento dessa religiosidade leva a pensar em atitude de dominio, manipulagao do Mistério, que impele e se dirige para essa tendéncia. Olhadas sob esse ponto de vista do simbolo, tais tendéncias espirituais cos- tumam ser sensiveis as dimensées estéticas, emocionais../ Ha uma recuperacao do simbolo dentro da nova espiritualidade, mas que nao respeita sua inacessibilidade HO VeRS Seu a eae amasiave.neo leepelta:sua,in Assim, a tonalidade fundamentalista da época, com sua tendéncia a definigao univoca, de uma vez por todas, mostra uma busca de seguranga que nao respeita a dimensao de transcendéncia do Mistério. Gostar-se-ia de viver na certeza e na seguranga da posse, desta vez gracgas a um livro, uma revelagdo ou uma autoridade que certifique que o Mistério € assim e nao de outra maneira. Nao se descobriu que © encontro com Deus, o Absoluto, o Sagrado, embora nos Coloque em contato com a mais firme realidade, contudo, devido a seu carater inapreensivel, sup6e sempre uma reserva, uma abertura do Mistério, que é vivido pelo ser humano como risco. ‘Seguranga e protegao devem ser vividas ao mesmo tempo como espirito de risco ea inseguranga, ou melhor, de despossessao ou desprendimento ©M relagao a Deus. Ja vimos que o clima social e cultural atual 6 propicio ES, Para se buscar, na relagao com 0 Mistério, 0 calor, 0 refligio e a protegao, he @ seguranga que a nossa sociedade nos proporciona. Tempo propio Para a manipulagéo reigiosa. Temoo 1c paras rduciorsmos. ust S85 ciaineSes © sebuscam as doutines _. simples e claras. Clima ruit um estilo de pensamento como o Simbolico, pouco reto, das identificagdes completas. Pees nena 150 ‘ASUBJETIVACAO INGENUA | que A. Finkielkraut'? chamou de tecnoespiritual, isto 6, cada vez mais submetida & jogica funcional da modernidade e cada vez mais distante do humanismo ocidental a ninista. Esquece-se do espirito distanciado, de contornos ondulados, intepretacao plural e basculante pela combinagao da mais rigorosa ortodoxia com os mais sofisticados ordenadores. Enquanto isso, 0 Mistério verdadeiro migra para os espiritos em permanente busca que nao temem a indefinigao, a incerteza e a inquietagao. Essa situagao e essas tendéncias religiosas contaminam nosso cristianismo, enao poderia ser diferente. Vivernos em meio a sociedade. Por isso, os perigos do objetivismo espreitam nossa vivéncia da fé crista. E isso na dupla versao do objeti- vismo subjetivista e do neotradicionalismo fundamentalista. Nao vamos insistir na “sensibilidade fundamentalista ou neotradicionalista” presente em algumas latitudes da nossa Igreja e que ameaga petrificar 0 tempo e os simbolos em magnitudes objetivas, claras e seguras. Atualmente se fazem presentes em nosso tempo alguns movimentos denominados, na giria dos meios de difusdo eclesiais, “novos movimentos eclesiais”, considerados, muitas vezes, a reforma religiosa catolica depois do Concilio Vaticano II. Para alguns, so a ver- dadeira reforma religiosa e eclesial que impulsionou o Concilio; para outros, ao contrario, 6 sua contestag&o. Para uns, tais movimentos oferecem uma renovagao comparavel aquela acontecida depois de Trento e da Reforma; para outros, é uma religiosidade de reagdo e medrosa diante da modernidade que nos cabe viver. Mais além dessa discussdo sobre o verdadeiro significado desses movimentos no hoje eclesial e religioso esta 0 fato de que todos eles cooperam com um estilo ou trato com 0 religioso que supde, inevitavelmente, uma maneira de abordar a dimensao. simbélica da religiao. Sob esse ponto de vista dos simbolos, apresentam uma afinidade com as tendéncias culturais p6s-modernas, que se caracterizam pela recuperagao e revalori- Zago do simbélico. Cultivam um esteticismo cerimonioso e celebrativo que recupera 0 Cuidado do envoltério liturgico, desde o altar até o canto, da compostura até os gestos do celebrante, da participagao ativa — nao apenas verbal, mas gestual e corporal — dos participantes até o clima provocado péla-sensacao de estar diante do Mistério, mas que ameaga com novo Tubricismo. As ¢elebragdes tém toque festivo, participativo, profundo, estético e elegante. Nao-Mé duvida de que, diante Tq Fama, A Laingrattud conversacien sobre nuestro Yempo, Bacalona, Anegrama, 200 2d bras. Angra tidgo, Rio de Janeiro, Objetva, 2000) 151 AIDA DO SIMBOLO da mediocridade da maioria dominante, ha uma contribui¢ao inegavel. A suspeita contra tal revitalizagao liturgica e simbdlica deve-se & sua consideracao acritica dos simbolos, tomados em sua vivéncia expressiva e emocional espontanea, ingénua, que corre 0 perigo da identificagao e da ilusdo da autopossessao subjetiva. Voltam. se para uma presumida espiritualidade que supera o racionalismo ideoldgico e seco, mas carecem da distancia da mediagao, da negativa a identificagao e da inquietacao da nao-posse. E tais grupos também nao esto isentos da tendéncia asseguradora neotradicional: o simbolo é interpretado de forma clara e simplificadora, e com isso se cai em uma versao do objetivismo religioso fundamentalista. Versao diferente dessa revitalizagao simbdlica esta presente na denominada religiosidade popular. Assistimos também a um momento de auge das manifestagdes dessa religiosidade nas prociss6es, romarias, peregrinacdes etc. Nao ha duivida de que as confrarias e as irmandades experimentaram um incremento de membros €, O que é mais importante, de atrativo: a Semana Santa 6 um ponto forte dessa religiosidade popular, assim como determinadas peregrinagdes ou romarias nas varias cidades e regides. Nao basta o fator turistico nem de espet&culo para explicar esse fendmeno. Nem talvez seja suficiente a mera reac&o cultural, embora nao haja duvida de que ela esta presente, de uma complementaridade diante de uma sociedade superficial © vazia de elementos de sentido profundo. Parece-nos que ha também uma queixa contra as insuficiéncias da religido institucional — tradicional ou progressista — e Seu esvaziamento simbélico. A religiosidade de muita gente"? alimenta-se e mata sua sede nessa religiosidade esporadica, emocional, até epidérmica e supersticiosa, que mistura o festivo, o ritual, o tradicional, o natural, 0 Pagao-cristao... em uma simbiose nea) facil de manejar ou de “cristianizar’ pela instituigdo religiosa. Existe ai, porém, yy eeoiere! potencial ieloloss que utiliza fortemente a mediag&o simbdlica das cmiiacu agate Aregsdee pancaneou ena renal co urs te lurada de simbolismo; mente e ao coragao por meio do simbolo. E 0 faz, com todas. eiicenle pap agarrar a totalidade de multae. Pessoas. Sob esse ponto de vista, € muito mais priméria e muito menos logocéntrica que a religiosidade institucional em gualquer, uma de suas formas tradicionais ou criticas; e 6 também mais “holistica”, mais integradora das dimens6es corporal e espiritual, de Sensibilidade, imaginagao Yen futuro préxdmo dela vida espaol In pam de manifestagtes de relglosidade pop ar falaa as luzes, com poder "Ct, Maldonado, La religiosidad popular en la actualidad 11-167, 1996, Entre 54% @ 629% dos espanhis partic Sociedad y Utopia, 8: ‘celebragdes em santudros etc). (Procissées,romarias, 152 ASUBIETIVACAO INGENUA 6 relagao com os outros, do que 0 verbalismo, intelectualismo e ritualismo seco da liturgia institucional. | \ Denovo, na hora de apontar perigos, 0 simbolismo da religiao popular padece | gatalta de distancia diante de seu referente. A tentagao que o ronda é sempre a da) apropriagao do Mistério p Subjétividade emocional, a vivéncia intensa, o transe festivo, a gratificagao pessoal do esforgo e até a ascesé corporal... O simbolo pare- ge ficar a Servigo desse objetivo de apropriagao subjetiva. A pastoral vé bem esses perigos ecostuma critica-los, mas talvez nao preste atencao ou faca menos esforgo | | para aprender da religiosidade popular dimensGes que libertaram o enrugamento easecura liturgicas. Esta breve referéncia a essas trés tendéncias atuais que permeiam nosso momento eclesial, e que provavelmente persistirao por algum tempo, nao coloca com clareza a questo de como fazer bom uso do simbolo. JA vemos que € facil sepulté-lo no esquecimento por excesso de verbalismo e petulancia intelectualista, ou afoga-lo na exaltagao primaria da posse emocional e acritica, ou desseca-lo na afirmacao rigida e possessiva. Neste momento, talvez servisse de slogan e termo- , } guia a expressdo de P. Ricoeur: “segunda ingenuidade”, isto 6, voltar ao simbolo coma espontaneidade e ingenuidade da descoberta da imediatez do Mistério e com co cuidado desprendido de quem passou pela critica. “Segunda ingenuidade” quer dizer revitalizagao de uma religiosidade fortemente simbdlica, sem perder a eel critica da mediagao racional. Sera possivel tamanha proeza? Sera possivel conjugar | espirito critico e abandono: sjedoso, distancia racional-e proximidade cordial? 6. Aimanéncia extatica e o simbolo Acultura e o pensamento da incerteza encontraram presumida solugdo para adificuldade acima apontada de defrontarmo-nos com a verdade: provém de uma espécie de radicalizagao do “giro linglistico”. Pelo menos descobrimos que ha lin- guagem e que sempre conhecemos a partir e por meio de uma linguagem. Somos, como ja disse Wittgenstein, moscas presas dentro de uma garrafa linguistica. Nossa visdo da realidade se da mediante “jogos de linguagem”, que constituem verdadeiras criagdes de mundos da vida e da realidade. Tal conclusao é aleangada por alguns** que se dizem seguidores dele e de F. Nietzsche. [Grea Peron ed 9 po 218-2 Ara on text on SON. Ct at st Om, 05 Sr acs. Lacon SOM, 8, sf 153 AVIDADO SIMBOLO. O resultado 6 que pelo menos existe um fluxo ou corrente de linguagem que _ forma acontecimentos. Estes sao reais e, por meio dos diversos sinais lingUisticog _ (natural, matematico etc.), constituem 0 nosso mundo de experiéncia. Um mundo, 3 que 6 nosso mundo e que é participado, pliblico. Nao ha mundos privados, como nao ha linguagens privadas. Até para Don Cupitt, tocado por certo acento budista, — nao ha mais consciéncia ou eu do que essa participagao neste mundo comum, Portanto, toda a realidade é feita da mesma matéria dessa linguagem forma- dora de acontecimentos. Nés mesmos existimos por meio dessa espécie de vida produtiva e expressiva que semeia uma criagao continua. A realizagéo humana e até nossa “objetiva redengao” se dao através dessa atividade expressiva. Um “expressio- nismo” tao capaz, segundo esse autor, de proporcionar harmonia e beleza ao nosso mundo quanto de reconciliar-nos todos e tudo em uma espécie de “humanismo césmico”, em que tudo é construido por materiais linguisticos. A apoteose desse expressionismo chega quando nos damos conta de que, se o mundo é uma construgao lingiiistica que pode diferenciar-se até o limite, ame- tafora possui 0 poder de percorrer esses mundos e vincula-los. A metdafora produz ressonancias, ativa e apela para mais e mais extratos no fluxo linguistico construtor de mundos e de realidade. A rede de metaforas, os mitos, os relatos religiosos, unem e entrelacam a realidade, proporcionando-lhe um ar de harmoniosa semelhanga. Este cAntico a criatividade e expressividade lingilisticas aplicadas a religiao constréi uma teologia poética, isto 6, expressao religiosa na qual os corpos doutri- nais nao tém outra realidade que a de ser elementos diferenciadores e lagos socials que indicam identidade e pertenga a diferentes grupos, por exemplo, 0 catdlico, ‘© muguimano, o judeu, o budista. Mais do que isso, somente ha belas historias, ficgdes capazes de proporcionar um sentido e nos abrir a uma interpretagao sem fim e sempre ativa. Portanto, a religiao nao nos proporciona uma “informagao eso- térica sobre a realidade, mas simplesmente enobrece nossa vida”. Cristo é o poeta sagrado do amor divino que nos ajuda a manter em nds esse amor e expandi-lo em qualquer parte. Contudo, nao ha nada mais fora deste mundo do que “nosso mundo” construido lingUisticamente. Estamos, assim, diante de uma “imanéncia extdtica”, cuja realizago podemos chamar de “gloria”. As perguntas e quest6es sao muitas, a partir do momento em que sao feitas : afirmagées do calibre de que somente existe o mundo ou a realidade construida _ linglisticamente. Nao 6 nossa tarefa agora provar ou discutir esse imanentismo 154 ASUBIETIVACAO INGENUA que apresenta uma espécie de apoteose simbdlico-linglistica e que permanece fechada nela, como solucao para todas as coisas e até como realizagéo e como “gloria”. A religiao é vista como mero jogo simbdlico, no sentido mais ‘superficial e imanente da palavra. Areligido interessa, mas como simbolo imanente que da sentido ou que serve para harmonizar ou iluminar a vida. Todavia, 6 simbolo que “brinca” com a referén- cia ao outro, ao Mistério. A transcendéncia Para a qual o simbolo aponta — diz-se — permanece na pura imanéncia, eo Mistério de Deus nada mais é do que referéncia linguistica e funcionalidade para mim e Para nés. Fecha-se a possivel abertura a uma Alteridade com letra maitiscula. Nao saimos da clausura da imanéncia. E assim saimos da clausura de nds mesmos? Atualmente,'° ha toda uma tendéncia a essas sabedorias, filosofias'® “espiritualidades laicas” puramente imanentes. Flertam com a linguagem religiosa Porque — dizem — nao querem perder o que se significa com ela; mas rejeitam a possibilidade — imposigao, diréo elas — de uma verdade externa a liberdade. O simbolo, embora religioso, é bonito instrumento que nao vai além do circulo da imanéncia; maneira intelectualista, com tonalidade religiosa, de liqiiidar o simbolo. N&o se aceita a abertura radical do simbolismo, mas € reduzido a conveniéncia do Momento ou do pensamento lingiiistico do usuario. db bs te sons do ovo, Pars,Gresst, 199; Fey L. & Cont-Spoml, A Le sabia Lone 2 oe ence Pond M. Sr sro or Dae? Sasson Ge Pozo, 22 ee rs, ten ooterons kaso ep N representnte do assim chamado go eotigco da fenomenologia, como a de Hany Michel. ‘Sigueme, 2001, que trata “a verdade do cristianismo" como mero jogo linglistico ou verdade Como mostra acerademenis Palace, om Un esansmo de futuro, oP. 162, 86 © OL Fery, ‘modemos. Barcelona, (183), 24-28, 2000: @, 3@ 8 Filosofia fenomenciogica- Yo soy la verdad, Salamanca. Ee 0 crete sa7ao ebjetva do orstanim, 8 manga do toda tologia © exogese iba, coro se estas no uma exegese ou iter existssom. 155

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