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COLEGAO ENFOQUES Letras Yves Reuter A analise da narrativa ‘Tradugio Mario Pontes Oo DIFEL Copyright © 1997, Dunod. 2002, Editions NatharyVivendi Universal Education France Titulo original: Analyse du Réit Capa: Raul Fernandes Editoragio: DFL 2002 Impresso no Brasil Printed in Brazil C1P-Brasi,Catalogagio-na-fonte Sindiato Nacional dos Editores de Livros, RJ Ba47a ‘Reuter, Yes ‘Aanilise da narrate 0 texto, a fog ea narracHo/Yves Reuters ‘wadugio Maro Pontes. — Rio de Janeiro: DIFEL, 2002 190p.— (Enfogues Letras) ‘Tradagio de: Lanayse du réit Inc bibliog ISBN 85-7432-029-3, 1. Andie do discurso nrrativo I. Titulo, Sie cpp - 809.923 2-183 cpu - 82-34(091) Todos os direitos reservados pela EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA. Rua Argentina, 171 — 1% andar — So Cristévdo 20921-380— Rio de Janeiro — RJ “Tel.: (OXX21) 2585-2070 — Fax: (Oxx21) 2585-2087 io é penmitida a reprodugio total ou parcial desta obra, por quais- quer meios, sem a prévia autorizagio por escrito da Editora “Aendemos pelo Reembolo Postal Sumério INTRODUGAO 9 CAPITULO 1 OS PRINCIPIOS ESSENCIAIS DA ANALISE INTERNA DAS NARRATIVAS 1. DISTINGUIR O TEXTO EO “NAO-TEXTO” 13 1, Enunciado/enunciagio 15 2. Ficgio/referente 17 3. Autor/narrador 19 4, Leitor/narratério 20 I. DISTINGUIR OS NIVEIS DE ANALISE 21 TI. UM EXEMPLO: “A RAPOSA E A CEGONHA” 23 CapiTULO 2 CAPITULO 3 AFICCAO ANARRACAO LA HISTORIA: AGOES, SEQUENCIAS, INTRIGA 29 I, OS MODOS NARRATIVOS: CONTAR OU MOSTRAR. 59 1. As ages 29 1, Cenas e sumérios 60 2. Aintriga 32 2. As falas das personagens 62 3. As seqiiéncias 38 3. Aescolha de perspectivas 63 4. Aplicagéo ao conto “A auséncia”, 4. As fanges do narrador 64 de Francis Jammes 40 Il. AS VOZES NARRATIVAS 69 II, AS PERSONAGENS 41 1. Distingio e hierarquizacéo das personagens 41 IMl. AS PERSPECTIVAS NARRATIVAS 72 2. As ages das personagens 45 3, Genericidade, historicidade e investimento 50 IV. AINSTANCIA NARRATIVA 75 1. Narrador heterodiegético e perspectiva passando TO ESPACO SI pelo narrador 75 1. Os modos de anillise do espago 51 2. Narrador heterodiegético e perspectiva pasando 2. As fungbes do espago 52 pela personagem 78 3, Narrador heterodiegético e perspectiva 1V.OTEMPO 56 “neutra” 80 1. Os modos de andlise do tempo 56 4, Narrador homodiegético e perspectiva passando 2, As fungées do tempo 56 pelo narrador 81 5. Narrador homodiegético e perspectiva passando pela personagem 83 V, OS NIVEIS 85 1. As narrativas encaixadas 85 2. Ametalepse 86 VI. OTEMPO DA NARRAGAO 88 1. O momento da narragio 88 2. Avelocidade da narragio 89 3. A freqiiéncia 91 4.Aordem 93 CAP{TULO 4 A MONTAGEM DO TE! 1. IMPERFEITO/PASSADO PERFEITO: ODESTAQUE 98 Il OS DESIGNANTES DE PERSONAGENS 100 1. Categorias de designantes 100 2. O nome das personagens 101 3. As cadeias de co-referéncia 105 4. Os efeitos ligados aos designantes 108 III, ALGUMAS ESCOLHAS RETORICAS E ESTILISTICAS 110 1, Trés grandes tipos de figura 111 2. As “autolimitacdes” contemporineas 119 IV. AS ESCOLHAS LEXICAIS 121 Y. OS EFEITOS PRODUZIDOS PELA MONTAGEM DOTEXTO 124 Cap{TUuLo 5 OTEXTO COMPOSITO 1. AS FORMAS DA DIVERSIDADE DO TEXTO 127 1. A impossivel neutralidade das palavras 127 2. A diversidade seqiiencial da narrativa 128 3, A narrativa como seqiiéncia inserida 129 4. A diversidade textual e os géneros 129 5. Os objetivos do texto 131 Ml, AS CAUSAS DA DIVERSIDADE TEXTUAL 133 1. Aconstrugio do universo 133 2, Ajuda a compreensio 134 3. A produgio do interesse 137 4. A inscrigio das pessoas 140 5. Os objetivos estéticos 141 IIL ANALISAR A DIVERSIDADE DO TEXTO. 142 1. Referenciamento e anilise interna das seqiiéncias 142 2. A insergio das seqiiéncias na narrativa 145 3. As fungées das seqiiéncias 148 7 CapiTULO 6 OTEXTO ABERTO 1.AS REFERENCIAS AO MUNDO 154 1. Orealismo 156 2. “Naturalizar” a narragio 158 3. Especificar 0 espaco-tempo 161 4. Construir o verossimil 163 5. Aprender e compreender 166 Il AS REFERENCIAS AOS TEXTOS 167 1. Aintertextualidade 168 2. A paratextualidade 170 3. A metatextualidade 171 4. Ahipertextualidade 172 5. A arquitextualidade 173 6. As referéncias aos escritos nao-literérios 175 IIL © PROJETO INTERPRETATIVO 177 1. Objetos de andlise e disciplinas de referéncia 178 2. As correntes tedricas 179 3. Alguns elementos de reflexio. 181 BIBLIOGRAFIA 185 Introdugio Nossa cultura reserva um largo espaco as narrativas, dos mitos ¢ lendas — antigos e modernos —, a todasas narrativas cotidianas da vida familiar, pasando pelas narrativas da imprensa ou dos romances literérios, Além disso existe um grande ntimero de teorias, muito dife- rentes, para compreender e interpretar essas narratiras miiltiplas ¢ proteiformes. Algumas teorias devolvem-nas 4 hist6ria, outras tratam de abordi-las de um ponto de vista sociol6gico ou psicanalitico, outras ainda estudam as formas e as fungdes da génese das narrativas pela crianga etc, Algumas se interessam essencialmente pelas suas condig6es de recepgio, outras véem essas narrativas em si mesmas. Na impossibilidade de apreender todos esses 1s- pectos, o que enfatizar para um pubblico de estudantes! Escolhemos aqui a abordagem narratolégica (ou interna), que tem duas grandes caracteristicas. A pri- meira consiste em interessar-se pelas narrativas como objetos lingiisticos, fechados em si, independentemen- 9 A andlise da narrativa te de sua produgio e sua recepgio. A segunda caracterfs- tica reside no postulado segundo 0 qual, para além da sua aparente diversidade, as narrativas apresentam for- mas de base e principios de composigéo comuns. Si0 essas formas e esses principios que constituem 0 objeto de pesquisa da narratologia como teoria da narrativa. Sao essas formas € esses principios que constituem os instrumentos de anélise das diferentes narrativas que podemos encontrar. Esta nao é certamente a escolha perfeita; mas ne- nhuma seré, na medida em que nao se pode ter a preten- sio de tudo compreender acerca de todas as narrativas. Parece-nos justificdvel, no entanto, em razio de dois argumentos prineipais. Em primeiro lugar, os conceitos da andlise narratolégica sio relativamente simples, per- feitamente explicaveis e muito precisos. Sob esse aspec- to constituem instrumentos manejéveis e rigorosos para andlises acuradas ¢ interpretagdes. Em segundo lugar, os conceitos de andlise narratolégica nao so contraditérios em relagio aos de outras teorias interpretativas. As ané- lises efetuadas por meio deles poderio, pois, fornecer um embasamento sélido — e assim se evitando desvios! — para as abordagens mais complexas, relacionando as narrativas com a hist6ria, a sociedade ou o psiquismo dos autores e dos leitores. Seguimos uma ordem de exposicio que, esperamos, deveré facilitar a assimilagio progressiva da teoria. O 10 Introdugio primeiro capitulo apresenta rapidamente os principios e 0s conceitos de base. Os trés capitulos seguintes estu- dam em detalhe os grandes niveis de organizagio da nar~ a ficgio, a narragio e a produgio do texto. O quinto cap{tulo explora a organizagio narrativa por meio de duas outras perspectivas: a presenga de seqiiéncias formais diferentes (descritivas, explicativas, argumenta- tivas...) e a inscrigio dos saberes e dos valores no corpo do texto. O sexto e tiltimo capitulo mostra em quais, rativs aspectos essas andlises internas nio sio exclusivas de outras abordagens e como podem se articular com estas, por meio de questdes, tais como a da referéncia ao “peal”, da referéncia aos outros escritos, ou ainda por meio dos efeitos produzidos. Os prinepios da anélise sio expostos com a ajuda de muitos exemplos colhidos tanto em obras literérias quanto em outros tipos de narrativas: noticias do dia, cangGes, fébulas... para melhor conhecer a fonte comum das diferentes narrativas ¢ 0 espaco de aplicacio das nogées apresentadas. Precisemos, finalmente, que esta obra retoma — simplificando — a trama de nossa Introduction @ analyse du roman (Ed. Dunod). O leitor que estiver em busca de informagGes e especificagSes complementares, de dados sobre a histéria do romance ou, ainda, de exercicios pré- ticos poderd valer-se do referido livro. 1 1 Os PRINC{PIOS ESSENCIAIS DA ANALISE INTERNA DAS NARRATIVAS Deis principios fundamentais presidem a andlise narratol6gica: a tOnica sobre o texto, considerado maté- ria verbal auténoma, pondo de algum modo entre parénteses suas relagdes com o mundo exterior € com as atividades de produgio e recepgio, e a distingao, pura- mente metodolégica, entre nfieis de andlise internos do texto. Esses dois principios determinam os conceitos de base que estruturam toda a abordagem dita interna. 1. DISTINGUIR O TEXTO E 0 “NAO-TEXTO” A distingio entre texto e nio-texto constitui sem diivida o principio de base da andlise interna das narra~ tivas. Esse principio repousa de fato sobre trés tipos de decisio: 13 A anélise da narrativa — Considerar essencialmente a narrativa como constitufda por um material lingiiistico; — Interessar-se fundamentalmente pela sua organi- zagio (e nao pelas suas relagdes com seu “exte- rior”); — Privilegiar a questo do “como (isso funciona)?” diante de outras questoes possfveis (por que est organizado assim? Para qué? Quais os efeitos que isso produz2).. certo que esse principio corresponde a escolhas teéricas e metodolégicas e exclui outras anilises interes- santes. Mas nenhuma teoria ou método pode ter a pre- tensio de compreender tudo. O importante, pois, é cla- rificar, de um lado, aquilo que se tenta captar e como, ¢, de outro, indicar com precisio a que — pelo menos no, primeiro tempo — se renuncia a apreender. Também é inteiramente certo que esse principio é muito dificil de ser sustentado de modo absoluto, na medida em que todo texto é escrito, até mesmo em refe- réncia a0 nosso mundo, e também na medida em que ele envolve miiltiplas relagdes com outras narrativas de nossa cultura. Eis por que € necessdria a compreensio desse prin- cipio de distingao entre texto € nio-texto, mais como uma vontade de basear sistematicamente a an: fatos textuais precisos e verificdveis do que como uma ise sobre 14 Os prinefpios essenciais da andlise interna cegueira em face do mundo, assim como dos produtores € receptores das narrativas. Isso explica nossas constantes “aberturas” para essas dimensdes em vérios dos capftulos que se seguem e sua formalizagio no Capitulo 6. Essa divisdo entre texto e niio-texto implica, contu- do, fazer uma cuidadosa distingio entre enunciado e enunciagio, ficgao e referente, autor e narrador, leitor e narratirio. E isso 0 que determinaremos a segui 1. Enunciado/enunciagao Definigao: ‘Todo fato lingiifstico ou textual pode ser analisado segundo duas perspectivas. Na primei- ra, consideramo-lo como um enunciada, isto & como um produto acabado, fechado sobre si mesmo. Na segunda perspectiva, nés 0 veremos como produto de uma enunciagao, isto é, em suas relagSes com 0 ato de comunicagio no centro do qual se inscreve. Qualquer um a produz, em tais condigées, com intengSes determinadas por qualquer outro, que 0 compreenda (ou nio), em tais condigées e de tal maneira. Podemos assim analisar uma notfcia da imprensa do ponto de vista de sua organizagio, de sua construgio formal, dos contetidos apresentados. Este é 0 ponto de 15 A andiise da narrativa vista da abordagem narratolégica. Mas também pode- mos analisar suas relagdes com a enunciagio. Quem a escreveu? O que revela sobre a nossa época? Como é percebido? etc. Esses pontos de vista, que interessam & histéria, & sociologia, & psicologia, & psicanilise etc., serdo aqui um pouco marginalizados. No entanto, trés observagdes devem relativizar essa apresentagio, Em primeiro lugar, a andlise interna s6 é interessante quando se articula, nesse ou naquele mo- mento, com outras teorias que permitam avangar na interpretagio, prendendo-se, pois, 3 enunciagio. Seu maior mérito é sem diivida limitar os desvios “selvagens” de interpretagdes prematuras, forgando a levar-se em conta, de maneira preci segundo lugar, € muito importante nao tornar rigida a distingao entre texto e ndo-texto, uma vez que, em , a organizacio do texto. Em rnumerosos casos, a significagéo de um enunciado dificil- mente poder ser reconstrufda fora de seu relaciona- mento com a enunciagio. E 0 caso dos romances de séculos passados ou dos romances de vanguarda de nos- sa época. Mas é também 0 caso dos enunciados mais simples. Por exemplo: um professor encontra certo dia em seu escaninho na universidade um recado de um estudante assim redigido: “Aviso que nao assistirei mais a seu curso a partir da préxima semana, Queira me des- culpa.” Ante a auséncia do nome do estudante, bem como 16 Os princfpios essenciais da andlise interna do titulo ou do cédigo do curso, o professor sente-se um tanto perplexo... Mas — e esta € a terceira observagio destinada a modalizar a divisio enunciado/enunciagio — nio se pode torné-la mais rigida, pois sempre per- manecem, no préprio centro do enunciado, tragos da enunciagio. Assim, no caso do recado desse(a) estudan- te, o “eu” [oculto em portugués] remete ao sujeito que enunciou a mensagem o “seu” ao receptor da mesma, € “préxima semana” a um momento definido a partir do momento da enunciagio. Voltaremos a esses tragos pri- vilegiados da enunciagio manifestados, por exemplo, pelo jogo dos pronomes, pelo sistema dos tempos, pela escolha dos indicadores de tempos e lugares, pelas mar- cas da subjetividade ou dos valores. 2, Ficgao/referente Definic&o: Operar uma distingio entre enunciado e enunciagio e centrar-se na anidlise interna das nar- rativas implica nao misturar o que se chama de flc- sfo, isto 6, a hist6ria e 0 mundo construfdos pelo texto e existentes apenas por suas palavras, suas fra~ ses, sua organizagio etc., € 0 referente, ou seja, 0 “nio- texto”: o mundo real (ow imaginério) e nossas cate- gorias de apreensio do mundo que existem fora da narrativa singular, mas as quais esta se remete. 17 A andlise da narrativa E evidente, ainda, que a divisio nao é facilmente mantida, pelo menos por duas razdes, Em primeiro lugar, porque toda palavra ou toda histéria refere-se ao nosso universo $6 pode ser compreendida com refe- réncia a ele e as nossas categorias de apreensio do mun- do, Em segundo lugar, porque muitas narrativas comuns — assim como muitos romances — pretendem ser rea- listas ou baseadas no real (contam aquilo que teria real- mente acontecido). Mas, em todos esses casos, trata-se de efeitos do real, produzidos por meio do texto, median- te diversos procedimentos. Também é possivel produzi- los a propésito de objetos ou seres “reais” ou entio inteiramente imaginérios (como nos casos da ficgio cientifica e do fantéstico). A nogio de ficgdo convida, pois, a no confundir texto e referente (a palavra cio — ao contrdrio de seu referente — nao late nem morde; as personages do romance nao existem no nosso universo e s6 podem ser construfdas em relagio ao enunciado do texto). Ela convida — ainda e sempre — a analisar 0 universo, a histéria e os protagonistas criados pelas nar- rativas, por meio dos signos lingiifsticos que 0s constituem. Convém, antes de encerrar a discussio sobre este ponto, assinalar que a nogio de fiegdo é um conceito ted- rico da andlise interna, criado para distinguir o que ée 0 que nio é textual, bem como para distinguir a ficgio de outros niveis do texto (ver Capitulo 2). Essa nogio, por- tanto, nio mantém— no caso — nenhuma relagio com 18 Os prinefpios essenciais da andlise interna categorias, tais como verdadeiro/falso, real/imagindrio etc. Da ficgio de uma narrativa se dir, portanto, que a hist6ria verdadeira ou falsa, real ou imagindria ete. 3. Autor/narrador Fazer uma distingao entre enunciado e enunciagio e centrar-se na anilise interna das narrativas implicam ainda nao confundir 0 escritor (ou o produtor da narrati- va.em geral) e 0 narrador. Definigao: O escritor € um ser humano que existiu ou existe, em carne € 0sso, no nosso universo. Sua existéncia se situa no “nio-texto”. Ao seu lado, 0 narrador — aparente ou nio — s6 existe no texto € mediante 0 texto, por intermédio de suas palavras. De qualquer modo, ele é um enunciador interno: aquele que, no texto, contg a histéria. O narrador é fundamentalmente constituido pelo conjunto de signos lingiifsticos que dio uma forma mais ou menos aparente aquele que narra a histéria. Essa distingio, longe de ser puramente técnica, tem importantes conseqiiéncias priticas: ela autoriza, espe- cialmente, uma liberdade fundamental para o escritor, aquela que consiste em contar histérias por meio de miltiplas identidades. Assim, um escritor masculino do 19 A andlise da narrativa século XX podia narrar histérias assumindo a identida- de de um homem do século XVI ou do século XXI, de uma mulher, de um animal, de um mutante ete. 4, Leitor/narratério Fazer uma distincao entre enunciado e enunciagio e centrar-se na anélise interna das narrativas implicam, finalmente, nao confundir o leitor (ow 0 receptor da nar rativa, seja ele quem for) ¢ 0 nareatério, Definigao: © leitor € um ser humano que existiu, existe ou existird, em carne € oss0, no nosso univer- so. Sua existéncia situa-se no “nio-texto”. Por sua vex, 0 narratério — aparente ou no — s6 existe no texto e mediante o texto, por meio de suas palavras ou daquelas que o designam. Ele é quem, no texto, escuta ou 1a histéria, O narratério é fundamental- mente constituido pelo conjunto dos signos lingiifs- ticos (0 “tu” e 0 “voce”, por exemplo) que dio uma forma mais ou menos aparente a quem “recebe” a histéri ‘Tunbém aqui, essa distingio, longe de ser puramen- te técnica, tem importantes conseqiiéncias praticas. Ela autoriza, especialmente, uma liberdade fundamental para o escritor: a de construir textualmente a imagem de 20 Os princfpios essenciais da andlise interna seu leitor e de jogar com ele, seja qual for o puiblico real que leia o livro. As formas desse destinatério ficticio — interno ao texto — podem ser, elas também, infinitas. I, DISTINGUIR OS N{VEIS DE ANALISE Uma vez efetuada a distingio ndo-texto/texto, a andlise interna terd ainda de distinguir nfveis de andlise (ficgio, narragio, produgio do texto) no centro do enunciado. Trata-se de uma operagio arbitréria, na medida em que esses niveis se interpenetram na realida- de do texto e nas palavras que 0 concretizam. Ainda assim, € uma operagio metodolagicamente necessdria se de fato nao pretendemos tratar de tudo a0 mesmo tempo € se pretendemos aprender categorias de escolhas reali- zadas e problemas de construgio textual. A ficgGo (também chamada diegese), que jé mencio- namos, remete aos contetidos reconstituiveis, que sio postos em cena: o universo espago-temporal, a histéria, as personagens. A narra \go, que também evocamos par remete ds escolhas técnicas — e de criagio — que orga- nizam a produgio da ficgio, seu modo de apresentagio: © tipo de narrador, tipo de narratério, a perspectiva escolhida, a ordem adotada, o ritmo etc. Assim, a “mes- Imente, ma” ficgio do comego pode ser radicalmente diferente quando contada em “ele” ou em “eu”, adotando a pers~ 21 A andlise da narrativa pectiva de uma personagem ou de outra, narrando na ordem cronolégica ou com perturbagées (flashbacks, antecipagées), resumindo ou expandindo, de um modo sério ou parédico.. A produgio do texto remete as escolhas lexicai sintiticas, ret6ricas, estilisticas, por meio das quais a fic- fo ea narragio se realizam: os termos-chave e sua orga~ nizagio, 0 jogo dos tempos, 0 modo de designagio das personagens, o registro dominante (“elevado” ou proxi- mo do calio, por exemplo), as figuras de estilo... E claro que esses trés “niveis”, embora testemu- nhem certa autonomia nas escolhas possfveis, estio em constante interagéo. Sua distingZo, no entanto, permite ‘uma especificagio mais acurada dos fenémenos textuais, do que a tradicional divisio fundo/forma. Ela também permite assinalar as caracteristicas dominantes dos romancistas, quer digam respeito a todos os niveis, quer principalmente a um entre ele ficgio, no caso dos romancistas “populares”, como Du- mas, Féval ou Sue, com a multiplicidade das aventuras ou a originalidade do mundo, dos acontecimentos ou dos personagens; a narragio de alguns romancistas con- temporaneos, na qual a intriga pode ser ténue, enquan- to € privilegiada a originalidade da visio; ou ainda a pro- dugio do texto em certos autores, que sio, antes de tudo, grandes estilistas, grandes artistas da lingua. 22 Os principios essenciais da andlise interna Ii]. UM EXEMPLO: “A RAPOSA EACEGONHA” Para que sejam mais bem compreendidas as nogdes propostas neste capitulo, iremos ilustré-las com a répida anélise de uma fébula de La Fontaine, “A Raposa e a Cegonha”’ Dona Raposa um dia convidou Dona Cegonha para um almogo. banquete foi breve e sem requinte: a refeigio consistia unicamente 5. em um caldo ralo; ela vivia mesquinhamente. O caldo foi servido em pratos rasos: bico fino, a Cegonha nem um tico pegou, a Outra lambeu tudo num minuto Na forma de convite para um almogo 10. logo vem a vinganga da Cegonha, Sim, disse a Raposa, com os amigos eu nao fago a mininfa ceriménia. Compareceu na data aprazada na casa da Cegonha, sua vizinha, 15, e teve de louvar-Ihe a polidez: 0 almogo estava pronto, apetitoso, © apetite jamais falta a raposas. O cheiro bom da carne a inebriou: viria em grandes bifes, certamente. 23 A andlise da narrativa 20. Para surpresa sua foi servida num vaso de gargalo bem estreito: passava ficil o bico da Cegonha, nao o largo focinho da Raposa. Em jejum voltou ela para casa, 25, caida a cauda, orelhas murchas, triste, ‘como vencida por uma galinha, Enganadores, a vocés eu digo, nio lhes falharé o castigo.! A ficgio aqui € muito simples. Temos 0 encadea- mento de dois logros, 0 da cegonha respondendo ao da raposa: uma raposa convida uma cegonha para almogar, mas trata de servir a comida de maneira que ela no pos- T Compare le renard se mit un jour en frais, / Et retint 8 diner com- mere la cigogne. / Le régal fut petit et sans beaucoup d’appréts: / Le galant pour toute besogne, /(5) Avait un brouet clair il vivaitchiche- ment. / Le brouet fut par Tui servi sur une assiete: / La cigogne au long bec n’en put attraper miette, / Et le drdle eut lapé le tout en un moment. / Pour se venger de cette tromperie, /(10) A quelque temps de la, la cigogne le prie./ “Volontirs, lui ditil, car avec mes amis / Je ne fais point cérémonie.” / A Vheure dit, il courut au logis / De la Cigogne son hotesse; / (15) Loua tees fort sa politesse; / Trouva le diner cuit point. / Bon appétit surtout; renards ‘en manquent point. I se réjouissait a Vodeur de la viande / Mise en menus mor- eaux, et quil croyaitfriande. / 20) On servit, pour embarrass, / En un vase a long col et d’étroite embouchure. / Le bec de la cigog- ne y pouvait bien passer; / Mais le museau du sie était d/autre mesu- re. / I Tui fallut 8 jeun retourner au logis, / (25) Honteux, comme un renard qu’une poule aurait pris, / Serrant la queue, et portant bas Voreille. /Trompeurs, c’est pour vous que j‘écis: | Atendez-vous & la pareille (Livro 1, Fabula XViID. 24 Os principios essenciais da andlise interna sa comer; um tempo depois, a cegonha Ihe dé 0 troco. Como ocorre freqiientemente nas fabulas, a dimensio da pardbola esté acima do realismo: h4 poucas indica- Ges de tempo e de lugar (a fabula tem um valor abstra~ to — universal), e 0s animais sdo simbolos de condutas ¢ tipos humanos. A narragio caracteriza-se por um conjunto de esco- Ihas de exposicZo: narragio posterior (depois do ponto em que os acontecimentos sao tidos por desenrolados), ordem cronoldgica respeitada, resumos de aces (as cenas de refeicio), elipse do que se passou entre os dois almogos, poucas palavras... No corpo da fbula, 0 narra~ dor € pouco aparente (narrativa em “ele”), ainda que seja possivel reconstrui-lo como onisciente (ele sabe tudo; conhece tanto os sentimentos da raposa — versos 18-19 — quanto os da cegonha — verso 9) e irénico (versos 25-26). O narratério também nio é explicito. Em compensagao, na “moral da histéria” (versos 27-28) © narrador aparece explicitamente (discurso em “eu”), igindo-se aos narratério§ claramente designados (“Enganadores”, “a vocés”, “nao lhes falharé”), e ha uma moral a ser tirada, No entanto — e o mesmo vale para a ficgio — narrador e narratério(3) sio constituf- dos apenas por signos textuais: nem La Fontaine nem os enganadores estio sob os nossos olhos. A criagio do texto apresenta, entre outras, caracte- risticas préprias da fébula, tanto como género (titulo, 25 A andlise da narrativa histéria, moral e forma versificada: alexandrinos, decassf- labos, octossilabos [ver 0 texto francés na nota de rodapé da p. 24]); um léxico literério préprio do século XVIII, com formas que evocam os fabulistas medievais (compére, commire — compadre, comadre...2); uma alternativa tem= poral prépria da narrativa (passado perfeito para as agées essenciais e imperfeito para o que & secundério em rela- Go ao desenrolar da histéria); presente de narragao (ver- 80 10), de diélogo (versos 11-12), de comentério geral (verso 17), de simulagéo do momento da enunciagio (versos 27-28); 0 tratamento irdnico das personagens etc. Esses trés nfveis — ficgio, narragio, criagio do tex- to — permitem categorizar os fendmenos textuais. No Brasil tradicionalmente, os contadores de histérias substtuiram fesse tratamento por “Dona, até porque em portugués 0 substantivo “"raposa" é feminino, @ no masculino, como em frances: le renard. NT) 26 2 AFICcAO Definigao: A ficgio designa o universo encenado pelo texto: a histéria, as personagens, o espago-tem- po. Ela se constr6i progressivamente, seguindo o fio do texto e de sua leitura, Em conseqiiéncia disso é necessério trabalhar com a integralidade do texto para analisar a fiogdo e seus com- ponentes. A fim de ilustrar os princfpios dessa andlise, buscamos apoio em um conto, muito curto, de Francis Jammes, “A auséncia®, Aos 18 anos, Pierre deixa a casa camponesa onde nasceu, No exato momento da partida, sua velha mie enferma se encontrava no leito do quarto azul, no qual estava o daguerredtipo de seu pai, em que havia penas de pavao em um vaso e um relégio de 27 A andlise da narrativa péndulo, com as figuras de Paulo e Virginia, que marcava trés horas. No pitio, sob a figueira, seu avé repousava. No jardim estavam sua noiva, rosas e pereiras lu- zentes. Pierre ia ganhar a vida, em um pafs onde havia negros, papagaios, borracha, melaco, febres e ser- pentes. Ficou lé trinta anos. No exato momento do retorno a casa camponesa onde havia nascido, 0 quarto azul tinha se tornado branco, sua mie repousava no seio de Deus, 0 retra~ to de seu pai jé nao estava lé, e as penas de pavio eo vaso tinham desaparecido. Um objeto qualquer havia tomado o lugar do relégio. No pitio, sob a figueira onde seu falecido av6 re- pousava, havia pratos quebrados e uma pobre gali- nha doente. No jardim das rosas ¢ das pereiras luzentes, onde estivera sua noiva, estava agora uma velha senhora, A histéria nao diz. quem era ela. De Le Roman du lige, Mercure de France, 1922, 21% ed. 28 A fiegao I. AHISTORIA: ACOES, SEQUENCIAS, INTRIGA 1. As agées Toda histéria se compe de estados e ogdes. Estas si0 ‘em ntimero mais ou menos importante e se apresentam sob diferentes formas. Algumas questdes simples podem, servir de guia para sua anilise. Podemos inicialmente nos perguntar se elas sio numerosas ou nao € se sua natureza € interna & psicologia da personagem ou externa a ela (confrontando-a com 0 mundo ou com outros atores). Em termos de tendéncia,, quanto mais numerosas ¢ voltadas para o exterior forem as ages, mais nos encontraremos do lado das narrativas de agio ou dos romances de aventura, sendo 0 pélo inverso representado pela narrativa psicolégica. Em seguida podemos analisar seu cardter explicito (claramente identificdvel ¢ assinalavel) ou nao. No pri- meiro caso, estaremos antes de tudo em presenga de ‘uma narrativa comurg ou de um romance cléssico. No segundo caso, poderemos nos encontrar diante de um relato jornalistico que tenta reconstituir aquilo que pos- sivelmente se passou, sem estar certo dessa verdade, ou diante de um romance de vanguarda que anuvia a clare- za narrativa, 29 A andlise da narrativa Podemos ainda nos defrontar com o problema de ‘Sua organizagao intema. Podem elas ser segmentadas em diferentes fases? Quais? Claude Brémond (1973) pro- pds, no caso, que se distinguissem trés fases constitutivas de qualquer agi acabamento. Conforme uma agio possa ou no se pro- duzir e se acabar; isso oferece as seguintes possibilidades: : a virtualidade, a passagem ao ato € 0 Eventualidade ———_, Nao-passagem ao ato Passagem ao ato ‘Acabamento —Nao-acabamento Essa formalizagio apresenta, entre outras vantagens, a de determinar sobre o que € que um texto se detém e sobre o que € que ele passa em silencio (devido a tabus idos) ea de ligados & época ou efeitos a serem produz melhor cercar o caréter de certas personagens (que pas- sam 0u no ao ato e que vao ou no até o fim da agio). ‘Também podemos nos interrogar sobre a respectiva importéncia das ages no centro da histéria. Nessa ética, Roland Barthes (1966) propés que se distinguissem as _fangées cardeais (ow nodais), cruciais para o desenrolar da histéria e o devir das personagens, ¢ as catélises, que “preenchem”, com um papel secundétio, o espago entre 30 A fiegao as primeiras. As fungGes cataliticas sio mais raramente conservadas nos resumos do que as fungdes cardeais. Podemos, por fim — como j precedente —, perguntarmo-nos como as agGes se incitava a questo organizam para formar uma histéria e assim distinguir tnés formas fundamentas de relagdes entre clas: — As relagées légicas: a agio A € a causa ou a conse- qiiéncia da agio — As relagées cronoligicas: a agio A precede ou suce- de aagio B; —As relagées hierérquicas: a agio A 6 mais impor- tante ou menos importante do que a agio B. Essas relagGes so essenciais para a articulagio das agdes numa intriga global que, em compensacio, integra e dé sentido as miiltiplas ages que a compem. Se aplicarmos muito rapidamente esses critérios a0 texto de Francis Jammes, ‘A auséncia”, poderemos assi- nalar os seguintes fatos: — Hi poucas agées, ¢ elas sio “externas” (0 que em parte esté ligado ao funcionamento do conto como género e & sua brevidade); — As agGes sao facilmente assinalaveis e explicitas; — Trata-se da partida de Pierre e de sua volta (o ato de ganhar a vida 6, no caso, um resumo da catdlise); 31 A andlise da narrativa — Essas agées se efetuam (desenrolar e desfecho), embora nio se decomponham em frases; —— Sua cronologia é clara e respeitada. Em compensagio, a simplicidade extrema desse conto, sua absoluta sobriedade, sua auséncia de psicolo- gia, sua falta de indicagées quanto as relagBes causa/con- seqiiéncia, assim como seu titulo e sua frase final, convi- dam sem divida a buscarmos nele um significado mais “profundo” e a Ié-lo como uma parébola ou um conto filos6fico. 2. A intriga A questo da intriga convida a nos interrogarmos sobre a estrutura global da histéria. Desde muito cedo 08 teéricos da narrativa se mostraram preocupados com esse problema. O narratélogo soviético Vladimir Propp foi um dos primeiros, no livro Morfologia do conto (1928), a tentar uma formalizagio da intriga das narrativas — no caso, dos contos maravilhosos russos —a partir de duas gran- des hipéteses: — Para além de suas diferengas superficiais, todos esses contos se reduziriam a um conjunto, finito ¢ organizado em uma ordem idéntica de agbes; 32 A ficgao — As ages (diferentemente das personagens e dos ‘objetos) seriam as unidades de base. Propp isolou trinca e uma fungées que, no seu enten- der. constituiriam essa base comum, 0. Situagio inicial: abertura, apresentagio das per- sonagens. 1. Afastamento: um dos membros da familia parte ou morre. 2. Interdigo: o heréi se defronta com uma ordem ou uma proibigio. 3. Transgressio: a interdigio é transgredida. 4, Interrogacao: o agressor tenta obter informagoes. 5, Informagio: o agressor recebe informagées sobre sua vitima. 6. Engano: o agressor tenta enganar sua vitima para apoderar-se dela ou de seus bens. icidade: a vitima se deixa enganar e invo- luntariamente ajuda seu inimigo. 8, Malfeito: o agressor prejudica um dos membros da familia Essas fungées vao introduzir o nédulo central do conto. Apés 0 mafftito, no &ntanto, podem tomar a for- ma de uma caréncia ou de um desejo que domina todo resto da histéria, 33 A andlise da narrativa 9. Meditagio ou transigio: o malfeito (ou a carén- cia) torna-se conhecido, ¢ 0 herdi parte ou & enviado para remedié-lo. 10. Inicio da agio contraria: 0 heréi aceita ou deci- heréi deixa sua casa. 12. Primeira fumgao do doador: o heréi é submetido a prova, interrogatério ou ataque que o prepa- ram para a recepgio de um objeto ou de um auxiliar magico. 13. Reagao do heréi: 0 heréi reage as ages do futu- ro doador. 14, Recepgio do objeto magico: o heréi recebe 0 objeto magico. 15, Deslocamento: o her6i é transportado ou con- duzido para perto do lugar onde se encontra 0 objeto de sua busca. 16. Combate: o herdi e seu agressor se enfrentam, 17. Marca: 0 her6i recebe uma marca (ferimento, beijo ou objeto). 18. Vitbria: o agressor é vencido. 19. Reparagio: o malfeito inicial € reparado ou a caréncia é suprida. 20. Retorno: o heréi retorna. 21. Perseguicio: o heréi é perseguido e/ou agredido. 22. Socorro: o heréi & socorrido ou consegue escapar, 34 A ficgao 23. Chegada ine6gnito: o heréi chega incégnito A sua casa ou a um outro lugar: 24, Pretensdes mentirosas: um falso herdi faz valer pretensées mentirosas. 25, Tarefa dificil: propde~ dificil. 26, Tarefa cumprida: o heréi triunfa. 27. Reconheci tal, freqiientemente gracas 3 sua marca (of fungio 17). 28. Descoberta: o falso heréi ou o agressor € des- mascarado. 29. Transfiguragio: o heréi recebe uma nova apa- ¢ ao heréi uma tarefa nento: 0 herdi € reconhecido como réncia e muda fisicamente. 30. Casamento: o herdi se casa € sobe ao trono. Esse repert6rio de agdes continua a ser, sem dtivida, uma referéncia para a anélise dos contos, mas tem sido objeto de muitas criticas: parece muito dificil de trans- ferir para outras narrativas e, de certa maneira, consti. tui uma formalizacio inacabada. Podemos, com efeito, organizar com maior precisio as agdes em subconjuntos homogéneos para compreender a organizagéo das his- torias. Alguns teéricos — particillarmente Adam, Greimas e sobretudo Larivaille — tentaram resumir todas as intrigas em um modelo mais abstrato e mais simples. O 35 A andlise da narrativa modelo mais conhecido e mais divulgado € 0 do esquema candnico da narrativa ou esquema quindrio (por causa de suas cinco grandes “etapas”). Consiste na seguinte super- estrutura: TRANSFORMAGAO Complicagio —Dinamica__Resolugdo Estado ou ou Estado inicial Forga perturbadora Forca equilibradora final Neste modelo a narrativa se define fundamental- mente como a transformagdo de um estado (inicial) em outro estado (final). Essa transformagio é constituida: — de um elemento (complicagdo) que permite mo} mentar a hist6ria e fazé-Ia sair de um estado que poderia durar; — de encadeamento das agdes (dindmica); — de outro elemento (resolugdo), que conclui o pro- cesso das agées, instaurando um novo estado, que vai perdurar até a ocorréncia de uma nova complicagio, Para ilustrar esse esquema de uma forma muito sim- ples diremos que, na fabula de La Fontaine “O Corvo e 36 A ficgao a Raposa”, a transformagio consiste na decisio da rapo- sa de apoderar-se do queijo (complicagio), a armagao de um ardil (dinamica) e a perda do queijo pelo corvo (resolugio). Essa transformagio permite a passagem do estado inicial (0 corvo tem um queijo, ea raposa néo tem) em um estado final inverso (a raposa tem 0 queijo, © corvo nao mais o tem). E necessério manejar 0 modelo com prudéncia e de modo relativo. Em geral, as narrativas e 08 romances combinam virias narrativas m{nimas (ver adiante Capftulo 3), analisdveis segundo esse modelo, que se encadeiam ¢ se combinam. “Monté-las” sobre a totali- dade de um romance é sem diivida uma comodidade que pode tornar mais facil uma visdo de conjunto. Mas isso situa a anélise em um nfvel tal de globalidade ¢ abs- tragéo, que o resultado seré 0 apagamento da singulari- dade do romance. De outro lado, esse esquema é de cer- to modo uma base que seré transformada de muitas maneiras — eufemismos, elipses, expansGes, perturba- Bes cronolégicas... — pelas escolhas que regem a nar- ragio e a passagem para o texto. Enfim e sobretudo se, segundo certas hipéteses, toda narrativa é subentendida por seu esquema, o importante nao é “encontré-lo”, mas analisar como ele & especificado por narrativa, como ¢ por que é manipulado. No caso, esta formalizagio oferece, no entanto, varios interesses. Ela permite insistir sobre etapas simé- 37 A andlise da narrativa tricas: complicagio ¢ resolugao (freqiientemente avalia- das nos titulos dos relatos de jornal), estado inicial ¢ estado final, que com freqiiéncia apresentam elementos idénticos, mas inversos (herdis infelizes ou pobres no inicio/herdis felizes e ricos no final). Aanilise pode permitir, portanto, mediante o rela- cionamento entre o estado inicial e o estado final, indicar com exatidio 0 que foi ou nao transformado na histéria, aquilo que constitufa sua jogada.. De outro lado, essa formalizagio pode — pelo me- nos em parte — explicar o incdmodo que experimen- tam certos leitores ou espectadores quando a ordem da fiegio deixa de ser respeitada (flashback, antecipagées) ou quando as etapas finais falham (0 assunto, por se arrastar muito, acaba por jé nao ter importincia). 3. As seqiiéncias De um ponto de vista metodolégico, a anélise per- manece, no entanto, incerta entre uma parte das unida- des miiltiplas e em grande parte calcadas no real, as ages, e, de outro lado, unidades muito abstratas e globa- lizantes, as etapas do esquema quinério. Nesse quadro, a nogio de segiiéncia pode constituir uma resposta interessante como unidade de andlise inter- medifria, mais curta do que as etapas, mais longa do que as ages. Existem varios modelos de seqiiéncia, e com- 38 A ficgao pete finalmente a quem trabalha o texto escolher 0 que Ihe parece mais pertinente em face da narrativa conside- rada e o mais apropriado para quem o faca. Dois modelos principais podem ser citados. O pri- meiro, que € também o mais rigido, consiste em consi- derar que hé seqiiéncia desde que uma unidade textual manifeste o esquema quinério, mesmo de maneira mini- ma ou muito “eliptica”. Assim, em “O Corvo e a Raposa”, o estado inicial pode ser considerado como a conjungio de duas seqiiéncias: uma, que explicaria 0 fato de 0 corvo estar na posse do queijo (0 corvo nao tem queijo; ele encontra um; trata de apoderar-se dele; apropria-se dele e se prepara para comé-lo em sua 4rvo- re), € outra, que tornaria patente o processo segundo o qual a raposa, em seu canto e em busca de alimento, sentiu 0 cheiro do queijo ¢ se aproximou do corvo (a raposa no tem queljo; sente o cheiro do queijo; procu- ra encontré-lo; descobre-o no bico do corvo ao pé da 4rvore; ela esté ao pé da drvore e do queijo). O segundo modelo, mais flexivel e em parte inspirado nas divisoes do teatro cléssico, considera que hé seqtiéncia desde que se possa isolar uma unidade de tempo, lugar, agio ou nar © critério mais personagens. Trata-se entao de seleci operacional em funcio do texto considerado (com efei- to, aplicar os quatro ao mesmo tempo levaria novamen- te ao risco da divisio excessiva do texto). 39 A andlise da narrativa 4. Aplicagio ao conto ‘A auséncia”, de Francis Jammes Se utilizarmos essas nogées a propésito de “A ausén- cia”, poderemos considerar que o estado inicial (a vida na casa camponesa) é rompido pela complicagéo representa~ da pela partida de Pierre. A dindmica dura trinta anos, durante os quais Pierre ganha a vida. Ela termina com a resolugéo: a volta de Pierre, © texto no diz. em que con- sistiré o estado final Podemos observar simetrias bem-marcadas entre complicagdo (partida) e a solugdo (retorno) com a retoma- da de elementos sob formas textuais idénticas ou muito préximas (a casa camponesa onde havia nascido; 0 repouso de sua mae; 0 quarto azul). De repente, as transformagées realizadas adquirem valores vistos como sendo mais fortes. Na ordem das simetrias devemos observar também que o estado inical ¢ 0 final foram obje- to de elipses. Jé a dindmica esté resumida em duas frases. A “concentragio” dessas etapas torna inétil qual- quer divisio complementar em seqiéncias, Em compensagio, essas elipses e resumos, acompa- nhados de simetrias e transformagées tio marcadas, embora téo pouco explicadas, confirmam a necessidade de levar mais longe a andlise de um conto no qual ha tamanha oposigio entre a simplicidade da intriga e o enigma do sentido. 40 A ficgao II. AS PERSONAGENS As personagens tém um papel essencial na organiza~ gio das histori Elas permitem as ages, assumem-nas, vivem-nas, ligam-nas entre sie lhes dao sentido. De cer- ta forma, toda histéria € histira de personagens. Aids, isso & amplamente atestado pelos titulos dos livros e dos filmes ou pela maneira de resumi-los por intermédio dos seus protagonistas. Isso explica por que sua andlise é funda- mental e por que mobiliza tantos tedricos. Mais uma razio justificou esse estudo. A persona- ‘gem, com efeito, é um dos elementos-chave da projecio e da identificagio dos leitores. Em conseqiiéncia, cla tem sido tratada, com demasiada freqiiéncia, sobretudo no plano da psicologia, como se se tratasse de uma pes- soa de carne ¢ osso, esquecendo-se a andlise exata de sua construgdo textual, Foi particularmente em relagio a esse desvio que as categorias seguintes — outras serdo trata~ das no Capitulo 4 — foram elaboradas. 1. Distingao e hierarquizagao das personagens Philippe Hamon (1972), apés sintetizar numerosas pesquisas, propés seis categorias de critérios, simples e manejéveis, para distinguir g hierarquizar as personagens por meio de seu “fazer” (suas agdes), de seu “ser”, de 41 A andlise da narrativa sua posigéo em um determinado género e de como ela é designada pelo seu narrador. A qualificagao diférencial concerne & natureza e quan- tidade de qualificacdes atribuidas as personagens. Elas sdo assim nomeadas e descritas, de maneira diferente, qualitativa (escolha de tracos, orientagio positiva ou negativa) € quantitativamente. Elas so mais ou menos antropomorfizadas, levam marcas (de nascenga, de feri- mentos). Sio mais ou menos caracterizadas fisica, psi- col6gica e socialmente. Sio mais ou menos apreendidas em suas relagdes (genealogia, vida sentimental) etc. A funcionalidade diferencial diz. respeito no mais ao ser, mas ao fazer das personagens: seu papel na agio, mais ou menos importante, portando ou nao sucesso. (Esta dimensio, que tem despertado muito interesse dos narratélogos, sera desenvolvida nos pontos seguintes.) A distribuigao diferencial, articulando o fazer e 0 ser, concerne as dimensdes quantitativa e estratégica das aparigdes das personagens: eles aparecem mais ou menos freqiientemente, por mais ou menos tempo, com um papel e efeitos mais ou menos importantes. A autonomia diferencial articula também 0 fazer € 0 ser, mas a partir de modos de combinagio das persona- gens entre elas. Assim, em termos de tendéncia, quanto mais importante é a personagem, mais possibilidades ela tem de aparecer sozinha em certos momentos, mais oportunidades ela tem de encontrar numerosas outras 42 A ficgao personagens (0 que esté ligado & sua latitude de desloca~ mento ¢/ou ao seu poder de atragio). A pré-designagao convencional combina o fazer e © ser das personagens em reféncia a um determinado género. Isso significa que a importincia e 0 status da personagem (0 detetive no romance policial, o herdi no western...) podem ser codificados por marcas genéricas tradicio- nais: tais tracos fisicos, tal agio. De repente, jé na sua primeira aparicio, o leitor familiar ao género pode cate- gorizs-lo. comentario explcito diz respeito ao discurso do nar- rador a propésito da personagem. Indica o status da per- sonagem ou a maneira de categorizé-la: “nosso herdi”, “esse individuo sinistro” etc. Portadora de avaliagées, pode ser mais ou menos abundante e distintiva. Estes seis critérios, ao distinguirem e hierarquiza- rem as personagens, contribuem, na grande tradigio romanesca, para a “clareza” do texto e de sua leitura, Constituem, de certa maneira, “instrugdes de leitura” que facilitam a categorizagio dos personagens. Em sen- tido inverso, é interessante notar que os romancistas contemporfineos e de vanguarda (especialmente a partir do final do século XIX) mostraram uma tendéncia a eufemizar e embaralhar essas marcas para p6r em causa a personagem considerada como um dos eixos da ilusio realista e das rotinas de leitura. 43 A andlise da narrativa Poderfamos ainda, sem diivida, acrescentar mais um critério de distingéo e hierarquizacao das personagens em relagio & narragio €& perspectira, que estudaremos mais. em detalhe no préximo capitulo, Assim, a personagem poderé ser situada na ficgio de “maneira simples”: vemo- la dizer, agit, fazer de maneira mais ou menos importan- te (ver os critérios precedentes). Mas ela poderé tam- bém, constantemente ou nio, ser focalizadora: a perspec- tiva passaré por ela e se teré a impressio de perceber 0 universo ficcional e as outras personagens pelos seus olhos. Por fim, ela poderé ainda, constantemente ou nao, ser narradora: serd pela “sua boca” que se conheceré a his téria, serd ela quem narrard no texto. E claro que a importincia e a especificidade das personagens se jogam — pelo menos em parte — em relagio a esse status das personagens: flocionais, focalizadoras, narradoras... No conto de Francis Jammes, “A auséncia”, as per- sonagens sio em ntimero reduzido (Pierre, sua velha mie, seu av6, sua noiva, uma velha senhora). A qualfica- io delas 6 quase inexistente (um nome, relagées familia res, a idade, o fato de estar viva ou morta). A funcionali- dade € atribuida unicamente a Pierre, que frui do mais importante fazer e da mais importante autonomia. Ele suporta assim uma pré-designagdo convencional propria do conto: ele aparece em primeiro lugar, é jovem, tem um nome e é aquele que parte. Em todos esses pontos de vista ele & claramente distinto e hierarquizado como a 44 A ficgao personagem principal, mesmo sem 0 acréscimo de ne~ nhum comentério explicit. Em troca, a auséncia quase total de qualificagio, de funcionalidade e de autonomia tende a por no mesmo plano as outras personagens (vivas, em fotografias, mor- cos atores desse outro pais nao designado: negros, papagaios, seringueiras, melado, febres e serpentes. Além disso, subsiste uma ambigiidade, sublinhada pela dilkima frase, sobre a identidade possivel de sua noiva e da velha senhora. ‘Todas as personagens sio puramente “ficcionais”: no vemos seus olhos e nio sio clas que contam a hist6- ria, No caso, isso contribui, sem diivida, para reforcar seu carter enigmitico, pois nao se dispde de nenhuma indicagio sobre a sua psicologia. 2. As ages das personagens O “fazer” das personagens motivou, como jé assina- amos, numerosas pesquisas, especialmente na medida em que essa dimensio € a que permite articular o mais, precisamente possivel ages e personagens. Definigao: Greimas propés um dos modelos mi conhecidos — 0 esquema actancial. Partiu de uma hipétese similar A de Propp para as ages: se todas as hist6rias — independentemente de sua diversidade 45 A andlise da narrativa — possuem uma estrutura comum, isso acontece decerto porque todas as personagens — indepen- dentemente de suas aparentes diferengas — podem ser agrupadas em categorias comuns. Ele chamou essas categorias comuns — abstratas — de forgas ati- vas (nao se trata somente de personagens “huma- nas”), necessdrias a toda intriga, actantes. Segundo suas anilises, existiriam seis categorias de actantes participando de toda narrativa definida como uma busca, Essas seis categorias se agrupariam duas a das, segundo eixos fundamentais, para definir as con- dutas humanas. No primeiro eixe — 0 do desejo, do querer —, 0 sujeito procuraria se apoderar do objeto. No segundo — 0 do poder —, 0 adjuvante ¢ o oponente aju- dam ou se opdem 3 realizagio da busca. No terceiro eixo —o do saber e da comunicagio —, 0 destinante e 0 des- tinatdério determinam a agio do sujeito, encarregando-o da busca e designando os objetos de valor. Eles sancio- nam essa ago ao reconhecer seu resultado e o sujeito que a realizou. Em numerosos contos, rei-pai encarre- ga seu filho de uma busca, validando (ou nio) o resulta- do da busca. Esse modelo, muito abstrato e considerado comum. a todas as narrativas, no deve ser confundido com suas realizagdes em textos diferentes, nos quais cada um des- ses papéis pode ser desempenhado por um ou virios 46 A ficgao atores (as “personagens concretas” idéias, sentimentos). Também € necessario ter em men- te que um mesmo ator pode assumir diferentes papéis, conjuntamente (por exemplo, destinante, destinatério e sujeito, quando o prdprio heréi decide buscar um obje- to para si mesmo), alternativamente (uma personagem que trai ou se converte) ou, ainda, que aparece em outro papel estranho ao seu (0 espiio, o falso amigo). Além disso, Greimas introduziu em seu modelo — por nés simplificado — um certo nfimero de nogées humanos, animais, intermediérias entre as do actante e do ator. Uma das mais interessantes € a do papel temético, que designa a categoria sociopsicocultural, em que podemos classificar © ator: jovem, velho, padre, operétio, policial, rei... Esta nogio apresenta dois grandes interesses. Primeiro, ela permite organizar a previsibilidade, a indecisdo ou os efeitos de surpresa do texto. De fato, da personagem esperaremos ages ou reagées diferentes, conforme a categoria a que pertenga. A nogio também permite indicar com exatidao os tipos de personagens, papéis teméticos, especificos de cada género em relagio as cate- gorias actanciais. Assim, em lugar do sujeito, teremos oportunidade de encontrar um cagula no conto, um detetive particular no romance policial, uma bela jovem no romance sentimental... Desse modo, em lugar do ‘oponente, correremos 0 risco de encontrar um ogro ou uma feiticeira no conto,wagabundos e politicos desones- 47 A andlise da narrativa tos no romance policial, uma rival ou um vil sedutor no romance sentimental. Convém ainda lembrar que esse esquema — como 0 esquema quindrio — deve ser usado. de maneira flexivel e precisa, mais nas seqiiéncias do que em toda a histéria (pois nesse caso ele apresenta tamanho nivel de generalidade, que a especificidade de cada histé- ria arrisca ser perdida). Ele s6 se constr6i facilmente em certos romances de aventura ou em certos contos de tes- situra muito simples. O interesse fundamental de seu uso consiste em compreender por que ele é encarnado de maneira singular em uma determinada hist6ria. De sua parte, Claude Brémond (1973) construiu um modo concorrente de anélise dos papéis das persona- gens. Criticando 0 modelo de Greimas como sendo demasiadamente estreito e muito pouco atento as trans- formagées dos papéis no curso de uma mesma histéria, propés que os papéis sejam analisados a partir de trés posigdes fundamentais: 0 paciente, o agente € 0 influen- ciador. paciente € papel de base, pois toda personagem 0 foi, 0 € ouo sera. E ele o que vem a ser afetado pelo pro- cesso. O agente exerce a acio. E 0 influenciador intervém antes da agio, a fim de influenciar 0 estado de espirito (a espera, a esperanga, os receios...) do agente ou do pa- ciente. Assim, no infcio do Canto XII da Odisséia, Circe prepara e adverte Ulisses: “Vocé teré de passar primeiro por perto das sereias. Elas encantam todos os mortais, 48 A ficgao que delas se aproximam. E louco é aquele que péraa fim de ouvir seus cantos!” Em seguida, Claude Brémond especifica o papel do agente, segundo a natureza, as fungées ¢ 0s efeitos do processo em curso: voluntério ou no, de conservagio ou de modificagio de um estado, de efeito benéfico ou nao, bem-sucedido ou no... Esse modo de anilise permite dessa forma estudar 08 papéis, sucessiva ou alternadamente, assumidos pelas personagens e 0 sentido de suas transformagées. Isso pode fundamentar apreciagées psicolégicas sobre tal ator: ativo, passivo, vohivel... Isso permite, pelo menos, seguir 0 texto “mais de perto”, sem passar pelo desvio de um modelo muito abstrato. No conto de Francis Jammes, “A auséncia”, s6 Pierre aparece como um agente, A questo ainda é saber de que tipo de agente se trata, pois nada nos indica se ele cconseguiu ganhar sua vida ao cabo de trinta anos, pois também podemos perguntar se sua agio nio foi vi — ausente — em relacio ao futuro dos seus préximos. Também podemos, sem diivida, consideré-lo como sujeito da busca cujo objeto € “ganhar a vida”. Mas essa busca € pouco desenvolvida; nenhum adjuvante nem nenhum oponente estio de fato construidos (eles sio is: as febres, as serpentes...), nenhum apenas potene emissor nem nenhum receptor estio assinalados, e 0 resultado da busca nem sequer ¢ indicado. 49 A andlise da narrativa Podemos entio nos interrogar sobre o sentido dessa busca que o leva de volta a0 ponto de partida e pergun- tar se, querendo “ganhar a vida”, ele nao a perdeu, per= dendo os parentes e a noiva. De fato, ¢ a0 contrério de que ele regressou carregado de muitos contos, no se presentes. E sua presenga encontra apenas ausentes. 3. Genericidade, historicidade e investimento O conjunto de categorias que acabamos de estudar deve ser utilizado em relagio aos géneros ¢ a hist6ria. Assim, durante muito tempo, texto apés texto, as personagens agiram de maneira quase idéntica, em seu ser em seu fazer. Elas eram mais tipos, que representavam de maneira exemplar sua comunidade ou sua casta. Por isso, a jovem nobre ou 0 camponés eram sempre descritos de maneira idéntica. Essas personagens nao se transforma- vam psicologicamente e viviam as mesmas buscas e os mesmos conflitos, gracas a aventuras semelhantes. As categorias e 0 funcionamento das personagens também se diferenciam segundo os géneros: as dos con- tos sio pouquissimo descritas fisica e psicologicamente; a literatura infanto-juvenil conta com um grande nime- ro de animais antropomorfizados. Cada género se carac- te eixos de caracterizacio fisica e psicolégica, que convém rever, para melhor compreendermos a singularidade de cada um dos atores. a, de fato, por um repertério especifico de papéis ¢ 50 A fiegao Finalmente, € necessério, sobretudo, nao subesti- mar o fato de que a personagem & um dos suportes esen- ciais do investimento ideolégico e psicoldgico dos autores e dos leitores. Esse investimento repousa em parte na construcio textual das personagens cujas categorias de anélise precedentes permitem a compreensio; além de que, no funcionamento da sociedade e dos individuos. Para pormos em relacgio esses dois pélos, necessita-se, portanto, recorrer a outros quadros tedricos: o histéri- co, 0 sociolégico, o psicanalttico. IIL. O ESPACO 1. Os modos de anilise do espago O espago construfdo pela narrativa pode ser analisa- do por meio de alguns eixos fundamentais: — As categorias de lugares convocados: corresponden- tes ao nosso mundo ou nao; exéticas ou nao; mais ou menos ricas; urbanas ou rurais etc.; —O ntimero de lugares convocados: um tinico lugar, vi rios lugares, uma multiplicidade de lugares e —O modo de construgio dos lugares: explicito ou nio; detalhado ou nao; facilmente identificivel ¢ esté- vel ou ndo (0 leitor tem apenas que identificar os lugares; ele jamais sabe se se trata dos mesmos); 51 A andlise da narrativa — A importdncta funcional des lugares: simples moldu- ra, elemento determinante em diferentes mo- mentos do desenrolar da hist6ria, até mesmo para as personagens constantes etc. Esses eixos da anélise permitirio que se indique com precisio a maneira como o espago participa do fun- cionamento das histérias. 2. As fungées do espago Os lugares vao primeiramente definir a fixagdo realista ou ndo realista da histéria. Assim, eles podem ancorar a narrativa no real, produzindo a impressio de que refle- tem 0 ndo-texto. Serd esse 0 caso quando 0 texto rece- ber indicagSes precisas correspondentes ao nosso uni- verso, sustentadas, se possivel, pelas descrigdes detalha- das ¢ pelos elementos tipicos, tudo isso remetendo a um saber cultural assinalével fora do romance (na realidade, nos guias, nos mapas). Os lugares participam, entio, com outros procedimentos (ver Capftulo 6) para a cons- trugio do eféito real (acreditamos na existéncia desse uni- verso e chegamos a “é-lo”), Mas os lugares também podem ser construidos lon- ge do nosso universo: 52 A ficgao — O texto careceré de indicagdes precisas e refe- réncias a0 nosso universo ou ainda os lugares serdo puramente simbélicos (a casa como 0 lugar de seguranga, a floresta como espaco do medo), € estaremos em face de uma hist6ria cuja dimensio é universal ou parabélica, como nas fabulas e nos contos, mesmo que tenhamos, para ler, referéncias indiretas ao nosso mundo (como. acontece no conto de Francis Jammes); — O texto ird misturar referéncias aos nosso uni- verso com elementos incontrolévels, remissGes a outros universos, lugares simbélicos (do medo, por exemplo, com lugares subterréneos ou cas- telos), e neste caso estaremos na presenga de uma histéria fantéstica; — 0 texto construiré um universo completamente imagindrio, um outro mundo possivel, mas de maneira tio precisa, tio detalhada, tio realista, que também nés chegaremos a acreditar nele, como ocorre no caso da ficcdo cientifica; — O texto, em incessante vaivém, vai misturar as remissdes a0 nosso universo, acabando por dei- xar imprecisas ou confusas as referéncias, ow ainda modificando, em cada ida ou vinda, alguns elementos — e assim nos encontraremos, sem diyida, diante de um romance de vanguarda, como os do Nouveau Roman (ver Claude Ollier, Jean Ricardou ou Alain Robbe-Grillet). 33 A andlise da narrativa Seja como for, é necessédrio constatar que 0 efeito do real é mais tributério da apresentacio textual do que da realidade dos lugares. Os lugares também vao determinar a orientagio teméti- ca e genérica das narrativas. Isso jé foi parcialmente visto quando tratamos da ancoragem realista, mas existem outros casos. Assim, a multiplicidade e a diversidade dos lugares — sua abertura — so mais necessérias as nar- rativas de aventuras do que ao romance psicolégico, que pode, em um caso-limite, desenrolar-se inteiramente em um sé lugar. Do mesmo modo, certos universos determinam os géneros romanescos: 0 romance de faroeste, o de mar, de montanha, 0 pasado para os romances histéricos, o futuro para a ficcio cientifica ete. Assim, também as hist6rias ¢ as teméticas serio muito diferentes, na medida em que os lugares sejam rurais ou urbanos, pobres ou “chiques”. Algumas histérias literd- rias podem se ligar mais a esse ou aquele lugar, a essa ou aquela forma de representagdo do espaco (as paisagens tormentosas do romantismo; a pintura detalhada e os bairros populares do naturalismo). Os lugares também assumem fungGes narrativas miltiplas: — Descrever o personagem por metonimia (o lugar onde ele vive e a maneira como ele mora indi- cam, em conseqiiéncia, o que ele é); 54 A fiegio — Descrever a pessoa por metéfora (o lugar que ele contempla remete, por analogia, ao que ele sen- te; ver a “paisagem interior” dos romanticos); — Anunciar de maneira indireta a seqiiéncia dos acontecimentos (0s lugares ¢ sua atmosfera pre- dizem de um algum modo a hist6ria que vai acontecer, como ocorre no caso dos angustiantes castelos dos romances géticos); — Estruturar os grupos de personagens (freqiiente- ivididas cm campos antagOnicos, separa- mente das por fronteiras concretas ou simbélicas como o espaco do subterraneo eo espaco da superficie, que, no Germinal, opdem mineiros e patrées); — Marcar etapas na vida € nas ages (como os do- micilios sucessivos de Gervaise em L’Assommoir, que marcam 0 ritmo de sua ascensio social e em seguida de sua decadéncia); —Facilitar ou dificultar a agio (os lugares permi- tem ou nio as agdes — correr, conversar —j do forma as ages — as desordens tomam for- mas diferentes na rua, em um bar ou em um prado — e elas mesmas se tornam auxiliares ou opositoras — quando favorecem um amor ou impedem alguém de encontrar 0 ser amado). 55

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