You are on page 1of 25
D. JOAO II (1455-1495) ESBOGOS PARA UMRETRATO Antonio Borges Coetho ‘A Historia, a epopeia e a tragédia nasceram de mios dadas. Cantavam fs dramas ¢ 0s feitos dos heréis. Resgatavam do esquecimento as vidas que arvoravam em bandeira, Mas, lenta, penosamente, a Histéria foi inventando métodos que distinguissem a verdade do desejo, que libertas- sem a verdade provis6ria da ganga da justificagdo e da exaltagio ideol6. gica. No entanto, ainda hoje, quando, por exemplo, se fala em D. Joao II, tocam clarins ¢ hossanam Principe Perfeito sobre as vozes que o acusam de tirano, de cruel. A historiografia, que se conta entre 0 espdlio mais rico ddo nosso patriménio cultural, continua a assumir-se, e com legitimidade, cembora muitas vozes atropelando a verdade ou escamoteando a compreen- silo ¢ 0 rigor, como pantedo das glérias e dos insucessos humanos e nacio- ‘Mas a Histéria tem hoje particular empenho no homem comum. Veste- -0, alimenta-o, cerca-o dos seus objectos, integra-o nas redes mentais, institucionais ¢ politicas que © condicionaram em vida, liberta 0 rumor, 0 movimento ¢ as cores que marcaram o seu quotidiano, por vezes chama ‘um homem ou uma mulher pelo seu nome. E quase sempre, mesmo quando ‘© chama, logo 0 sepulta no anonimato da poeira infinitamente pequena dum nimero ou no armario aberto ou fechado duma qualquer estatistica, E 6 sempre do presente que olhamos 0 passado, remoto ou préximo. COlhamos do agora, Mesmo sabendo que temas de nos despir 0 mais pos- sivel deste presente; definir laminarmente os velhas vocébulos; empunhar 68 antigos instrumentos; e vestir as roupas, aprender a olhar, ouvir, gostar ® cheirar como os homens do passado, CLIO ~ Revita do Centro de Hite da Universidade de Lisbo, Lisboa, 1995, Bags Coll, pp. 2h 2 Anténio Borges Coelio Mas se 0 homem comum e as cadeias que 0 amarraram em vida esto no centro da nossa atencio, ndo desistimos de langar © foco sobre homes cou mutheres, sobre aquele ou aquela que, pelo modo como usarain o poder institucional e politico, ou que, pela criatividade no campo das artes, dis cineias, da entrega & humanidade marcaram profiindamente o nosso devie colectivo Tal € 0 caso do rei D. Joao TI de que nos propomes esbogar 0 retrato politico libertando o nosso trago de outros tragos antigos © modernos. E, desde logo, uma primeira intertogagii. Como poderam 14 anos de gover. no marcar de tal maneira a nossa meméria nacional? Porque estamos numa época de rotura que abre as transformagdes profundas da época ‘modema? Pela tensio dramitica da sua vida e da sua obra? Certamente também pelo evangetho da sua vida e morte, escrito a duas mios por Garcia de Resende ¢ Rui de Pina Rui de Pina era 15 anos mais velho que 0 monarea e seu secretitio, ‘embaixador e cronista; Garcia de Resende, 15 anos mais novo, seu mogo de efimara, miisico, poeta, desenhador e cronista, Rui de Pina escreveu poucos anos apés a morte do rei; Garcia de Resende, quando a fama do grande monarca 0 algava a0 epiteto de Principe Perfeito. O primeiro actuou no julgamento © na morte do duque de Braganca; patticipou nas negociagdes que estabeleceram a paz entre Portugal e Castela; e assinou ‘como notirio piiblico e geral o testamento do monarca ditado nas Aledo- vas. O segundo desenfadou 0 rei na sua efmara como mogo de escrivan nha, como misico, declamador e poeta e assistiu, com Rui de Pina, aos Uitimos momentos do seu Principe. © retrato por Rui de Pina Corpo mais para o grande que para o pequeno; até sos 30 anos enxuto de cares; rosto mais comprido que redonda; bem povoado de barba, os cabelos castanhos (embora aos 37 anos as cis Ihe mareassem os cabelos ¢ a barba); o nariz um pouco comprido ¢ derribado, sem fealdade; os olhos de perfeita vista com mas veias nos brancos e maiguas de sangue que, nas coisas de sanha, Ihe tornavam o semblante mui temeroso. De juizo claro e profundo, possuia maravilhoso engenho, subida agudeza em todas as cousas, a meméria mui viva ¢ esperta, Mas a grande confianga que tinha em si préprio, Ievava-o muitas vezes @ confiar menos cdo que devia nos conselhos ds outros. As sentengas e falas que inventava dizia distinguiam-se mais pela verdade, agudeza e autoridade do que pela. dogura e elegincia pois que a proniincia era vagarosa ¢ entonda tim tanto pelos narizes Bom dangador, destro, braceiro, singular cavaleio € monteiro, vestia ricamente, excepto nos dias de nojo e peniténcia ou em tempo de acidentes. D. Joao 11 (1455-1495): Bsbocos para um Retrato 2 ‘Comia bem, nunca mais que duas vezes por dia, mas to devagar que ccansava os que estavam na sua mesa. E até aos 37 anos, quando adocceu, bebia somente gua nunca vinho. Depois de rei, foi muito continente nas solicitagdes da came. Ouvia ‘uma missa difria e assistia aos oficios divinos. A noite rezava no orat6rio secreto, E na sua capela havia sempre capeldes ¢ singulares cantores, fembora muitos Ihe apontassem a devogao como fingida hipocrisia para encoberta de muitas coisas que aconteceram. No homem politico, Rui de Pina exalta a autoridade, que se impunha também pelo medo, e, como era tradigdo, 0 sentido e exercicio da justiga. {As leis, que condenavam os vassalos, no queria que o absolvessem a ele © hnas execugbes era mais rigoroso ¢ Severo que piedoso, sem excepeao de pessoa alta ou baixa, Nunca quis ser nem parecer servo de servidores mas sim senhor dos senhores, daf ser havido por seco de condigao e ndo humano, Era tio verdadeiro que com uma s6 palavra iam os homens mais contentes do que com os papéis assinados e selados, ‘Nunca soube dar pouco nem a poucos mas muito ¢ a muitos mas no dos bens da coroa, Os poucos que deu foram sem jurisdigoes e senhorios, © s6 em vida; mais pareciam empréstimos que didivas. Mui liberal e magni- fico gastador de ouro, prata e dinheiro. Nao houve reino, provincia de cristaos € infigis, amigos ¢ inimigos, onde no houvesse gente a receber tengas e mercés dos seus tesouros para acrescentamento da sua coroa, De mui alto, esforgado e sofrido coragio, suspirava por grandes e estranhas empresas. O corpo andava pelos seus reinos para os bem reget ‘mas 0 espirito vagueava fora deles com desejo de os acrescentar. Ordenou muitas € boas cousas para proveito e boa governanga dos reinos, vassalos e naturais ¢ era o proprio e verdadeiro coragao da rept blica. 'No entanto no parece que em vida fosse de todos tao estimado como foi depois da morte. Este novo, to grande ¢ tio geral amor, que depois, sobreveio, no nasceu tanto dos merecimentos do corpo, em que muitos, hhouve, como da gloriosa salvacdo e bem-aventuranga de sua alma’ 0 retrato por Garcia de Resende © poeta do Cancioneiro Geral 6 mais cortesio espreitou por cima do ‘ombro de Rui de Pina. Mas a0 envolver o homem em miltiplos e riquis- simos episédios da prética quotidiana, levantou um dos mais impressivos retratos dos nossos dirigentes politicos. Homem de mui bom parecer, " Rui de Pina, Chronica delrey Dom Joham If, ed. de Alberto Martins de Carvalho, Coimbra, Anta, 1950, 202 4 Anténio Borges Coetho «amais grande que pequeno, muito bem feito», airoso ¢ com tanta gravidade avtoridade que logo era conhecido por rei. As miios compridas ¢ alva: as peas grandes. Depois dos trinta anos engordow alguma coisa. Mui alvo, o rosto corado, a barba preta bem posta, 0 cabelo castanho corredio. Aos 37 anos, alvejaram as cs © nao consentia que Ihas mondassem. O rosto era um tanto comprido, 0 nariz.em boa maneira, a boca muito bem Feita, os dentes alvos e bem postos, os olhos pretos, graciosos, mas nas alvas umas veias de sangue que o faziam ser mui temido, Grande meméria, claro juizo, muito vivo saber, muito pronto e esperto, versado em todas as cousas, falava muito bem emora com maior verdade « autoridade do que com despejo e sabor que as falas «eram algum tanto vagarosas ¢ entoadas pelos narizes. ‘Singular dangador em todas as dangas, bom cavalgador brida, destro, braceiro. De alto € mui ardido coragdo, vivia envolto em altos pensamentos © desejoso de cousas grandes por servigo de Deus e honra e acrescentamento de seus reinos. E tinha muito cuidado em prover as cousas antes que hhouvesse necessidade delas Muito amigo da justga, temperado nas execugdes, ndo fazia diferenca centre pessoas altas ¢ baixas. Todas as leis que fazia cumpria como sea clas fosse sujeito. E nunca na justiga usou de poder absoluto nem de crue- za nem tirou razao as partes. No Tribunal da Relagio recomendava secre tamente que dessem vida 20s homens pois tinha muitas ilhas para povoar e ‘um homem custava muito acriar. ‘Vagaroso nos despachos ¢ petigées, muito estimado e nomeado em todas as partes do mundo, era em seu reino to reverenciado e temido que 6 com os olhos emendava tudo. Podiam mais os seus olhos que a acco dos oficiais e porteiros. Nunca o viram mentir, partilhava os seus segredos e conselhos, mas nenfum cuidou que o poderia governar. Os grandes tinham-no por seco mas era muito amado e querido da gente medi e dos povos. E depois da morte foi mais chorado e deseiado que nenhum rei foi Estimou os bons cavaleitos (eram como a sardinha, havia muita, sabia ‘muito bem e custava pouco), honrou os letrados, os homens de bom saber as donas embora muitos hipécritas de todos os estados se enfadassem de ser hipécritas depois da sua mort. Eavoreceu os bons oficiais de todos os oficios e sabia muito de todos, Alls, foi 0 primeiro que inventou estando em Setibal a maneira de assen- tar bombardas grossas em caravelas e navios pequenos, Num livro secreto de sua mio escrevia as obtigagies que tinha para com os seus servidores. E noutro apontava o nome dos homens aptos para os diferentes oficios. Distribuiu muitas mercés a seus criados € naturais mas poucas cousas da Coroa onde se mostrou aquisidor. Pagava secretamente a informadores a gineta e na D. Soto I (1455-1495): Esbogos para wm Retrato 25 cespalhados por Castela, Aragio, Franga, Roma e muitas outras partes de {quem recebia muitos avisos. As suas esmolas chegavam a Jerusalém! Algumas notas comparativas (0s retratos esto proximos. Rui de Pina escrevia, como dissemos, nos primeiros anos do governo de D. Manuel quanto os filhos dos perseguidos por D. Jodo TT recuperavam boa parte do poder. Garcia de Resende esti a Fedigir no tempo de D. Joao III quando 0 mio erescia e se desenvolvia. Nao é de estranhar, pois, que Rui de Pina tenha deixado 0 nariz. comprido embora sem fealdade e se atreva a critica de que nio ouvia os conselheiros como devia, de que era rigoroso e nao temperado nas execugdes e & insi- ruagio mais grave de que lhe assacavam a devoeao por hipocrisia. Ou ainda o reparo de que o grande © geral amor de que entdo era alvo, se devia nao tanto aos merecimentos do corpo, certamente muitos, mas 2 salvagio da alma que se mostrava, na crenga da época, na incorrupt dade do seu corpo. Talvez Resende o queira atingir ao lembrar que muitos ddos que 0 incensavam em vida tiraram a méscara de hipécritas depois de ‘mort. 'Na sua sintese, Garcia de Resende afeigoa 0 nariz, os dentes alvos, a _raciosidade dos olhos pretos, em suma pinta-o tio airoso que, ao vé-1o, ‘como Femiio Lopes escrevera a propésito do rei D. Femando, logo era ‘conhecido por rei. Temperacthe a crueza mas € nos pequenos episédios que 6 retrato do homem e do politico se agiganta. Alguns ditos exemplares, ‘conservados por Resende, ficam na meméria colectiva como a experiéncia conservada nos provérbios. Garcia de Resende esti mais préximo, como hoje dirfamos, do polti- camente correcto. No entanto, da sua descrigo, ressaltam’ novidades fandamentais: 0 sistema de informagées montado pelo monarca, a novic de das experiéncias no campo da artilharia naval, a autoridade que temprestava aos tribunais e juizes e o apoio ¢ amor que the dedicavam a gente mei dos cavaleiros e mercadores ¢ a arraia metia, Nas fantésticas cenas da morte do re, é ainda 0 homem medieval que ‘morre num cenétio que evoca o Evangelho e a Paixdo. Mas o homem e 0 politico da Renascenga ressaltam impressivamente. nas descrigdes fortis- simas sobre a pristo, julgamento € morte do duque de Braganga. Ainda ns amepiam os solusos, nfo do condenad, mas do rei que © mandava condenar. Os retratos da pena de Rui de Pina e Garcia de Resende encarnam de algum modo um modelo de principe. Tragos do arquétipo: antes de mais, Garcia de Resende, Crdniea de Dom Jodo II ¢ Miscelnea, e8. Joaquim Verissimo Serr, Lisboa, Impensa Nacional, 1973, XV. 26 Ant6nio Borges Coelho dominio das boas qualidades do corpo e do espitito, isto &, bem apessoado, bom dangador, monteiro, cavaleiro, excepcional inteligéncia, meméria ¢ claro juizo. No campo moral, cumpridor dos deveres religiosos, cast, respeitador das donas e verdadeiro, No campo politico, alm das qualidades de imteligéncia, meméria e claro jufzo, o ser verdadeiro, dadivoso, aberto aos conselhos, bom governador, vida entregue a0 engrandecimento dos reinos autoridade, amante executor da justiga sem fazer diferenga dos grandes ¢ 4dos pequenos. Em suma, 0 principe modelo devia comportar-se de tal ‘modo que podesse ser considerado, nas palavras de Rui de Pina, «0 prdprio e verdadeiro coragao da republica», isto &, da eomunidade organi sada nos seus diferentes corpos. ‘Teias que envolviam a acco Voltado para o Atlintico, Portugal era europeu mas langava os primei- ros tentéculos para as ilhas, as pragas marroquinas e as novas feitorias da Africa Ocidental, Arguim e mais tarde S. Jorge da Mina, Benim e Congo. No final do reinado de D Afonso V, as rendas mais elevadas provinham da actividade mercantile das actividades ligadas aos terrt6rios de Al -Mar: 0 comércio da Guiné renderia 4 milhies de cruzados, as da ha da Madeira I milho e 500 mil, as saboarias 1 milhio, as capitanias de Couta, Arzila e Tanger eram respectivamente avaliadas em 700 mil, 276 226 mil cruzados € 0 rendimento das judiarias ultrapassavam o minimo de 624 mil cruzados. Saliente-se, por outro lado, o elevado rendimento das lezirias, a de Santarém ¢ a de Valada avaliadas em 80 mil cruzados ou 0 rendimento da quinta da Caparica, que fora de Alvaro Vaz de Almada, ¢ remdetia 25 mil usados" (0 Portugal urbano radicava-se fundamentalmente no sul mediterrnico. Nas Cortes de Evora de 1481 participaram 84 cidades ¢ vilas, 64 delas a sul da tinha Mondego/Estrela e apenas 20 do Norte Atlantico ¢ interior. A rmancha é particularmente cerrada numa das éreas hoje mais desérticas do pats, a do Alto Alentejo, nos caminhos que levavam Andaluzia e a0 Mediterraneo, A pr6pria’ Corte joanina deambularé pelo vale do Tejo, descendo a Montemor, a Evora é a Beja e s6 com uma incursio & Beira Alta, Trés-os-Montes ¢ Entre-Douro-e-Minho e duas breves incursées a0 Algarve, atiltima delas para morrer' ‘A Europa envolvia-se em guerras civis, Guerra das Duas Rosas em Inglaterra, Iutas em Franga, designadamente as de Luis XI contra Carlos 0 ‘Temeriio, lutasintestinas nas cidades e entre cidades italianas, ¢ também * Jorge Faro, Recetas e Despesas da Fazenda Real de 1384 a 1481, isos, Instituto Nacional de Esttstica, 1968, 170. Joaquim Verissimo Serio, ltinerdrios de El-ret D. Jodo It (1481-1495), Lisbos, ‘Academia Portuguesa de Histéia, 1993 D. Jodo HI (1455-1495): Esbogos para um Retrato a a descida dos franceses, seguida dos espanis, sobre a rica e desenvolvida Tula ‘Veneza com o Império suportava peso do avango turco sobre os Balcans e o Mediterraneo Oriental. Apesar dos apelos do Papa e de Vene- za, 56 D. Afonso V, depois da queda de Constantinopla, se dispds a enviat uma armada para Levante, armada que a pressdo interna desviaria para a conquista de Aledeer Ceguer em 1458. Agora mesmo em 1482, 0 bispo de Evora Garcia de Meneses assumia 0 comando duma armada contra © Turco'. Pelo seu lado, Garcia de Resende, sempre citado, conta que ‘Turco tomou boa parte da Cristandade, anexou dois impérios e varios reinos mouros. E que teria mais renda que os reis da Cristandade* 'Na Peninsula Tbériea prosseguia 0 movimento aglutinador, gerador de sanguinolentos confit, que reuniria, sob hegemonia de Castela, as dife- rentes nacionalidades ibéricas. Num ou noutro momento, os reis de Portu- fal tentaram voltar a favor do engrandecimento da sua Coroa este movi- ‘mento unificador. ‘A consciéncia dos perigos que ameacavam a sobreviveneia politica impulsionaram os dirigentes portugueses a alongar o territério pele ‘Algarve afriano e a abrir na fronteira maritima estradas tpidas ¢ relat ‘vamente seguras por onde navios, mercadores e povoadores passavann a ihasatlanticas ¢ & costa da Guing. Ao prosseguir esta aventura, Portugal dilatava 0s horizontes do conhecimento humano, contactava regibes © fenémenos de que no havia noticia, levantava a tal bruma pessoana que ocultava aos olhos dos curopeus a vastidlo e a riqueza aberta pelo Mar Oceano, Tntemamente, a ideia de Coron como centro ¢ simbolo da Lei, de Estado do govemo merecia 0 apoio dos legistas ¢ dos povos e a resistén cia dos grandes senhores e do alto clero, ciosos das suas jurisdigbes priva das, com os seus pequenos estados dentro do Estado, © que pretendiam sentar-se ao lado do fei como iguais e partilhar com ele 0 governo e os beneficios. Esta contradigio vai arrastar-se por mais trés séculos mas & Jembranga dos episSdios dramaticos do governo de D. Joio IIe principal- mente a crescente expansio maritima e colonial quebrario boa parte ds forca deste afrontamento, © desenvolvimento das armas de fogo tomava obsoletos os velhos exércitos fortficages medievais favorecendo o poder do rei. Por outro lado, © avango do cométcio atlintico ampliava e entumescia o comércic, inter-regional, engrandecia as cidades e as vilas, acumulava capitais € fomava menos compettivos os proventos provenientes da renda da terra reuniameios materiais consideriveis na Coroa do reino e langave Drogressivamente no século seguinte fidalgos, lérigos e plebeus no mundo 5 Thidem, 45, © Garcia de Resende, ob, cit, 336, 28 Anténio Borges Coelho dos negécios, dficultando o desenvolvimento dama classe mercantil orga- nisada e politicamente auténoma. Com a expansio portuguesa, a que vinha agora juntar-se a espanhola © timidamente a francesa e inglesa, a ideia do mundo sofria um considerdivel alargamento. A Africa definia a sua costa atlantica e, no final do governo de D. Jodo IL, apresentava 0 novo recorte patente no Esmeraldo de Situ Orbis do navegador Duarte Pacheco Pereira. Prolomeu e a fisica aristoté. lica sofriam os primeiros embates: afinal a zona trvida era habitada, 0 Aulantico comunicava com o Indico, A jdeia de que a experiéncia era a madre cos feitos ganhava terreno, ‘Também 0 nimero © a medida transformavam a visio e a capacidade de operar sobre © mundo fisico. A medida em gras numa esfera imaginéria dda diferente posigio das cidades tomava obsoleta a visio medieval de Jerusalém como centro do mundo. Medindo a altura do sol no porto de origem e no alto mar era possivel ver © que s2 niio via, a distéincia que faltava percorrer, a distincia percortida. Quando aportou a Lisboa em Dezembro de 1488, (a afirmagdo é de Crist6via Colombo que assistit: ao encontro do navegador ¢ do rei), Bartolomeu Dias trazia desenhada na carta de matear, Iégua a légua, a distincia percorrida até além do Cabo da Boa Esperanga’ As caravelas descarregavam no reino milhares de escravos, azenegues, canérios © sobretudo homens e mulheres da A’rica Negra. Esta comuni- dade negra, escrava e livre, propagava-se rapidamente deixando marcas culturais profundas no corpo, na mente, na arte e na literatura, Neste tempo é criada em Lisboa a Casa dos Escraves e é de 1484 a primeira noticia sobre a existincia na cidade de uma Coafraria dos Pretos, ditigida por oficiais préprios e protegida pela rainha D. Leonor’. D. Joao II reunia pelo menos 19 escravos na sua estrebaria, além dos que serviam no tesou: To e as escravas de Sintra. O negro Pero Alvares vé confirmada pelo rei a carta de alforria que Ihe concedera o rei de Inglaterra, D. Pedro de Mani- congo, D. Francisco ¢ mais 8 dignatérios negros aprendiam a ler, a escre- ver e 0s rudimentos da cultura europein ‘A influéncia cultural dominante provinha das Universidades, particu- Jarmente das italianas e francesas, dos colégios das Ordens religiosas do mundo dos negécios e das corporagoes, particularmente das cidades do Norte e da Italia, Os humanistas e as primeiras luzes do Renascimento alteravam a visio das coisas, Humanista é 0 bispo de Evora, Garcia de ‘Meneses, morto na cistema de Palmela, ¢ Cataldo Siculo, o italiano 7 Cristobal Colén, Texts y Documentos Completos. Nrevas Cartas, ed. de Consuelo ‘Varela e Juan Gil, 5* ed, Madrid, Alianza Editorial, 195, 91 8 Documentos do Arquivo Histérico da Cimara Municipal de Lisboa. Livres de Reis Ml, Lisboa, 1959, 203, ° Joaquim Verssimo Serio, linerrios., 516 D. Joao Il (1455-1495): Esboros para wm Retrato 29 contratado por D. Jodo II. Da Alemanha chega a prata e 0 antlheiro Hans, {que chefiari 30 bombardeiros que deveriam saber disparar serpentinas & ter conhecimentos de marinharia, ‘A Casa do Principe 0 rei. Jofio nasceu a 3 de Maio de 1455. Pouco depois, nesse mesmo ano, 0 cadaver do infante D. Pedro, apés 6 anos de prisio no castelo de ‘Abrantes, era honradamente recebido em Lisboa, na Rua Nova, ¢ exposto fo mostero de S. Eli, e seguidamente sepultado no mosteito da Batalha. ‘Rs exéquias tiveram a viva oposigio do duque de Braganga e de seu filho © conde de Ourém, agora marqués de Valenca, e ainda do infante 1D, Fernando, irmao do rei. E logo a 2 de Dezembro desse mesmo ano ‘morta a rainha Isabel, sua mie!®, Desde os primeiros passos que 0 princi- rregava sobre os ombros os cadkveres de seu av6 9 infante D. Pedro, orto em Alfarrobeira e ainda os daavé paterna e da mée, sogundo a voz piiblica, vtimas de veneno, ‘A aura e 0 percurso do infante D. Pedro, seu av6 materno, matearam profundamente o jovem principe. Desde muito cedo herdow 0 senhorio das {eras que haviam pertencido a seu avé: Coimbra, Montemor, Buarcos, ‘Tentugal, Rabagal, Vila Nova de Angos. Com o senhotio, a privanga com (0s antigos vassalos, Como o infante D. Pedro adoptou o primado da lei, «pela lei e pela grei». Mais do que ele, imp0s 0 primado do rei, violado pelo av materno quando, contraditoriamente e mum acto de desespero, Protogonizou a ditima bataha feudal junto de Alfarrobeira. E é pensando no av6 que, jé préximo da morte, aribuiu ao filho bastardo D. Jorge 0 ". Gongalo de Resende, criado do conjarado D. Goterre Coutinho, comen- , contra a honestidade e acatamento que se devia e nio guar. dou a Igrja Entremeses de judeus ¢ mouros € muitas dangas e folias de gente popu- Jar acompanharam a princesa até & Porta de Avie onde estavam armados grandes arcos triunfais e fadas que a fadavam. E entre as portas estava 0 Paraiso, muito grande, muito alto, rieamente ordenado com todas as Ordens do ¢6u, com muito ouro e muita riqueza e nele singulares cantores. ‘Seguiu-se uma arenga latina de Cataldo Sicuto, logo os habitantes do Paraiso, com instrumentos que tangiam ¢ cantores que suavemente canta vam, clevaram ma espantosa milsiea, seguida de representagdes, AS ruas desde a porta de Aviz a Sé e da Sé A Praga Grande estavam toldadas de panos de cores, asses sasttos, ievados de Lisboa e doutros portos ‘maritimos Nas janelas, j6ias, ramos de lonro e laranjeira e perfurnes as portas e na praga. As fesas © as ceias prolongaram-se até 5 de Dezembro com dois grandes banguetes na sala da madeira, de que foi Vedor e ordenador Femnio Loarengo, fetor da Casa da Mina e futuro feitor da Casa da Guin e€ India. Até ao Natal correram-se no terriro dos pagos muitos touros, Jogaram-se as canas, houve momos, misicas e festas. Num auto, em que iniervieram 0 rei © os principais personagens da Corte, invocaramse ‘piter, Satumo, Venus, Merciirio e outros deuses romanos enguanio 0 rei fentrava com uns liames de nau, cheios de pedraria em hones di rainha D, Joao I (1455-1495): Esbocos para wm Retrato a7 Leonor: «Estes liam de maneira/ que jamais pode quebrar/ quem com eles navegar "As relagées do casal régio parecem boas mesmo com a chegada & Corte do filho bastardo do rei, 0 principe D. Jorge. Por outto lado, os versos que ‘Ge actores declamavam partilhavam a lingua portuguesa e a lingua caste- thana, numa Corte onde Jorge Manrique era um autor da predileceio do e para a herdade que diziam da Fonte Coberta. E sentiu-se tio mal que logo imaginou ser pegonha ou peste. A suspeigio do veneno foi bem confirmada pela morte do copeiro- Fror e do copeiro pequeno que, inchados como el-ei, antes dele faleceram, ‘A bandeira da princesa Isabel juntava as armas de Portugal e de Caste- ta, Mas 0 sonho desfalecia em Junho de 1491 com a queda do cavalo e a morte do principe Afonso, de 16 anos de idade, na ribeira de Santarém, Recolhido numa cabana de pescador em Alfange, entraram o rei, a prince sae a rainha, Depois de o beijar na face, o pai deu a beijar a mio direita ‘0 filho moribundo e langou-lhe a bénedo vendo que a alma ja Ihe saia da ‘O choque foi profundo e minaria as dificeis relagdes do rei e da rainha. Quanto ao sonho da unio das duas coroas peninsulares, voltaria a acen- der-se com o casamento desta mesma princesa D. Isabel de Castela com ¢ futuro rei D. Manuel I de Portugal A politica atlantica Duarte Pacheco Pereira, navegador e cosmégrafo de D. Jodo II, adver: te-nos no Esmeraldo de Situ Orbis, escrito por volta de 1505, que o tems da politica atlantica joanina € «grave de fazer pela grandeza do principe» E sem temer mordedores, maldizentes e murmuradores, comeca por assirr dizer o seu retrato-louvor: ‘aNele se cumprin o que disse o sapientissimo rei Salomiio, que o come: 0 da sabedoria é temer ao Senhor. O seu entender e singular engenho er ossos dias se nfo viu outro que quisesse parecer igual a ele. Foi uma raf c fundamento da verdade, que sua palavra crfamos por evangelho. E assirr ‘como foi formoso no corpo e parecer, assim foi formoso nas virtudes de alma. O seu saber e conselho patecet ser divino com que grandes feito: acabou, ¢ assim soube ser liberal, ordenado, guardando-se dos vicios dz avareza e prodigalidade. Foi todo grande em suas obras ¢ a fortaleza de seu coragiio digna é de grande louver sendo edificada sobre um honeste Tepouso de grande autoridade. Era estimado de todos os principes cristios ‘excelente em todos seus feitos. Eos mouros por tal o conheciam... Todo o louvor que the for dado & baixo e menos digno em respeito de sua grande 3 Anténio Borges Coelho exceléncia. Guardou sempre justia 4 sua repitblica, de que foi doce pastor 0 seu jugo foi suave. Tomou por divisa um pelicano, que aqui posemos pintado, no modo que fere seu peito por dar o sangue a seus filhos. O set mote foi «pela lei e pela greiy™, Ao tomar a diteegio do coméreio da Guiné, D. Jodo II defendeu, com a lei e com as atmas, a politica do mare clausum. $6 08 navios do rei de Portugal ou por ele autorizados podiam navegar, primeiramente, em todo 0 Mar Oceano a sul do cabo Bojador, até que forcado pela descoberta de Crist6vao Colombo, pelas concessies do papa catalio Alexandre VI ¢ ainda pelas incursées dos ingleses, se v8 forgado, pelo Tratado de Tordesi- thas, a partilhar com os castelhanos metate do mundo deseoberto © a deseobrir. ‘Como rei do Algarve de Além Mar em Africa manteve 0 dominio do noroeste marroquino ¢ tentou sem éxito controlar @ comércio do tio de Larache mandando construir a nfo construida fortaleza da Graciosa. senhorio da Guiné permitiu a D. Joao II desafogo financeiro, moeda forte, os justos de ouro Gustos de justiga, obsessiio primeira da sua politi a) € 0 afluxo erescente de mao de obra escrava, Em 1481, no comego do seu govemno enviou para o golf da Gui para a Aldeia das Duas Partes no actual teritério do Togo, uma expedigo far e civil, comandada por Diogo de Azambuja com a missio de cons- truir a fortaleza de 8. Jorge da Mina por onde corria 0 principal res Mandou descobrir as ‘thas de 8. Tomé e de $, Antnio e povoo-as com 0 fundamento da navegagao da india, afirma Duarte Pacheco, que se Deus the dea vida, ele a descobrra, Diogo Ct subi 0 rio Congo nave. 00 até ao sul de Angola. Bartolomeu Dias comandon a grande. vagem {que dobrou 6 Cabo di Boa Esperanga e escancarou i larga porta para Sleangara Tdi, Por mim e outros capities, escreve ainda Duarte Pacheco Pereira mando descobrir novas tras a sul procurando mire saber novas, do cométcio e das gentes, pois até af wa costa do mar somenie era sabida sem se saber © que dentro ela eran ye das descobertas do sul de Atrca no resultou outro bem salvo muita despess, mais mereelmento teve © principe Cosmégrafos,pilotos,ofcias, pertos em atilharia e construgto naval aconsehavam 6 monarea. Por sua ordem, José Vizinho, Duarte Pacheco Pereira e outros navegaram e mediram em graus a costa celdenal de Aiea. Polo. menos algunas reunides dos. cosmegrafospatieipoo também Crstvao Colombo. 2 Duarte Pacheco Pereira, Esmeraido de Sitw Orbis, Lisboa, Sociedade de Geograis, 1975, 130, 2 tbidem, 15 D. Jodo Il (1455-1495): Esbocos para un Retrato 39 'A miragem do Preste Joio das indias impulsionow a primeira iniciati- va estatal europeia que visava penetrar no interior da Africa Negra. . Joao IT enviou embaixadas aos reinos jalofos e mandingas, embaixadas ceja meméria perdurava quase um século mais tarde, Interveio na guerra Civil que op6s 6 ri jalofo Bemoim a seus irmaos; © nas guerras provoca- das pela deseida dos falas para Futa Jalom, Descobriu 6 Benim e enviou Duurte Pacheco & grande cidade negra de Hugatoo. De S.Jorge da Mina, do Congo e doutras partes despachou aventureiros que The troutxessem froticias do interior da terra e do mitico principe cristio da Etiépia. Pela ‘elha estrada do Norte de Africa envion dois mensageiros espides, Afonso de Paiva e Pero da Covilha, Este tltimo aleangou 0 Golfo Pérsico, a costa ‘cidental da India e cidades da Africa Oriental. No Cairo encontrou 0 judeu de Beja Abraiio que o monarca enviara 3 sua procura «eMuitas opinides houve nestes reinos de Portugal nos tempos passados centte alguns letrados acerca dos descobrimentos das Btipias de Guiné e das Indias porque uns diziam que nao curasscm de descobrir ao longo do mar e que melhor sera irem pelo pego atravessando o golfo até topar em iguma terra da India ou vizinha dela e por esta via se encurtaria o cami- hho. Outros disseram que melhor seria descobrirem ao longo da terra falbendo pouco e pouco o que nela ia e assim suas rotas ¢ conhecengas & cada provincia de que gente era para verdadeiramente saberem o lugar em {que estavam por onde podiam ser certos da terra que iam buscar... E a ‘mim parece que a segunda opiniio foi mais certa. B assim se fez>”. ‘A América ainda nao descobrira as suas riquezas € 0 seu futuro. A posta na Rota do Cabo daria frutos imediatos e duradouros. Mas nem por isso 0 monarea deixara de se recriminar por nio ter dado ouvidos a Crist6vio Colombo, embora tivesse autorizado 0 envio de armadas de particulars para ocidente ‘Apés 0 encontro com o genovés em Santa Maria das Virtudes, DD. Joto II organiza uma armada, comandada por Francisco de Almeida, & aque se destinava a tomar posse das novas terras descobertas. Mas. as negociagGes sobrepuseram-se as armas ¢ » Tratado de Tordesilhas de 1494 partilharia por alguns séculos 0 murdo novo em duas esferas de influéncia, divididas pelo paralelo que passa a 370 Iéguas das ilhas de Cabo Verde. Suporte sociale p © suporte social da politica de D. Jogo II estava na classe média dos cavaleiros da pequena nobreza, nos eavaleiras ¢ escudeiros das cidades © das vilas, nos proprietirios © mercadores. Eram como a sardinha. Muita, custava pouco e sabia muito bem. So os cavaleiros que falam pela voz ® Ibidem, 137 40 Anténio Borges Coelho dos procuradores nas Cortes de Evora de 1481 © 1490. esclarecem ‘monarea «A formosura ea fortaleza do rei &0 seu power A alta nobreza usava em seu proveito as rendas e as jurisdigdes do rei, cobrava empréstimos forgados, intervinha na eleigao dos oficiais. dos concelhos, cumutava o trigo das tendas para o vender na carestia enquan- {o 6 comprava para seu consumo aos pregos que ela mesma impunha, forgava os eamponeses a trabalho gratuito, Esta pritica juntava no apoio ao rea gente med e 0 povo metido Mas na reforma do Estado e na luta para reduzit os poderes da mais alta nobreza, @ monarca usou ¢ forjou velhos ¢ novos instruments milita- res e politicos: os homens do seu Conselho, o corpo de legistas organizado ‘na Casa da Suplicagio © na Casa do Civel, © corpo da guard pessoal, a rede de informadores que o traziam a par dos movimentos dos seus inimi- gos. Reorganizou o aparelho fiscal cobrindo o pais com uma rede de ese ies e juizes das sisas, 0 principal imposto. Interveio ia adminis local nio 56 confirmando a eleigo dos vereadores e jufzes mas propondo ow estranhiando algumas vezes a nao eleigao deste ou daquele vercador”™ Embora permanega pouco em Lisboa, em boa parte pelo morder cont ‘uo da peste, ela consttuiu o sew principal suporte politica. Em Lishoa assentou a Casa da Guing, a Casa dos Escravos, os armazéns das espe- ciarias ¢ riquezas, o arsenal, os fomos de biscoito, as fundigodes, as terace- nas. Bquiparou os altos burgueses de Lisboa e Porto aos fidalgos do reino Determinow que nas cidades onde a Corte petmanecesse, devia ser did boa aposentadoria a qualquer cidado de Lisboa que ali se desiocasse em servigo™ Durante os 14 anos de governo, boa parte do tempo passou-o no vale do Tejo que gozava de comunicagses muito répidas com Lisboa, No versio de 1484, poueo antes da morte do duque de Viseu, escrevew i Camara da Cidade que teria «amuito prazer» em receber a vereago em Alcochete, Preocuparse com a higiene da cidade, Manda desfazer as sts ester

You might also like