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TEORIA PURA DO DIREITO Hans Kelsen Tradigio JOAO BAPTISTA MACHADO Martins Fontes Sao Pawo 2003 Po, 85 pr pen ste ore 88 Progra ria Resear retain rien abn rc e Coros aPataeC) tote Sn eNom Tas pr tig tense Todosas dito dese edd reservados a “Lvaria Marin Fonte Eto Late “el (11) 3241-3077 Fax (11) 3108 6867 oi: ifecarnsfntescom br no: marinone come INDICE Preficio ix primeira edigd0...vscesssseseseesee XI Preficio segunda edi¢d0 «1... XVII ' DIREITO E NATUREZA, 1. A “pureza”™ 2. 0 ato e 0 seu significado juridico 3. O sentido subjetivo e 0 seni auto-explicagao 4. A norma a) A norma como esquema de interpretagao ) Norma producao normativa ... ©) Vigéncia e dominio de vigéncia da norma €) Regulamentasio posiiva negativa:ordenar, rir poder ou competéneia, per e) Norma ¢ valor .. 5. A ordem social 7 ) Ordens sociais que estatuem sancdes b) Havera ordens sociais desprovidas de sangao? ...... 29 6) Sancées transcendent e tances sovilmente imanen- tes. : 30 6. A ordem juridica 33 a) O Direito: ordem de conduta humana ccs 33 b) O Direito: uma ordem coativa ...... 35 Os atos de coacao estatuidos pela ordem juridica co- ‘mo sangdes seen XVIIL TEORIA PURA DO DIREITO damentais por ela definidos. Muitos destes conceitos podem revelar-se demasiado estreitos, outros demasiado latos. Estou ple- namente consciente deste perigo ao fazer a presente tentativa e, por isso, agradecerei sinceramente toda a critica que sob este as- pecto me seja feita. Também esta segunda edicdo da Teoria Pura do Direito ndo pretende ser considerada como uma apresentagdo de resultados definitivos, mas como uma tentativa carecida de um desenvolvimento a realizar através de complementacdes e outros aperfeigoamentos. O seu fim terd sido alcancado se for conside- rada merecedora de tal desenvolvimento — por ouiros que néo © presente autor, jd a atingir 0 limite dos seus dias. Antepus a esta segunda edigio o prefécio da primeira. Com efeito, ele mostra a situacao cientifica e politica em que a Teoria Pura do Direito, no periodo da Primeira Guerra Mundial e dos abalos sociais por ela provocados, apareceu, e 0 eco que ela entdo encontrou na literatura. Sob este aspecto, as coisas nao se modifi- caram muito depois da Segunda Guerra Mundial e das convulsoes politicas que dela resultaram. Agora, como antes, uma ciéncia ju- ridica objetiva que se limita a descrever o seu objeto esbarra com a pertinaz oposicao de todos aqueles que, desprezando os limites entre ciéncia e politica, prescrevem ao Direito, em nome daquela, um determinado conteido, quer dizer, créem poder definir um Di- reito justo e, conseqiientemente, um critério de valor para Direi- to positivo. E especialmente a renascida metafisica do Direito na- tural que, com esta pretensio, sai a opor-se ao positivismo juridico. O problema da Justica, enquanto problema valorativo, situa- se fora de uma teoria do Direito que se limita i andlise do Direi- 10 positivo como sendo a realidade juridica. Como, porém, tal problema é de importancia decisiva para a politica juridica, pro- ‘curei expor num apéndice* o que hd a dizer sobre ele de um pon- 10 de vista cientifico e, especialmente, 0 que hd a dizer sobre a doutrina do Direito natural. Devo agradecer ao Sr. Dr. Rudolf A. Métall a elaboracao da lista dos meus escritos e 0 valioso auxilio que me prestou na corresio das provas. Berkeley, Califérnia, abril de 1960. HANS KELSEN * Be aptndice — que consta da edo alema — foi publicado em portu- guis como titule 4 justza eo Direto Natural por Arménio Amado Editor, Coim- bra. (Ne do E) Direito e natureza 1. A “pureza”” A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo — do Direito positive em geral, nao de uma ordem juridica espe- cial. E teoria geral do Direito, nao interpretagao de particulares normas juridicas, nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretagao. Como teoria, quer tinica eexclusivamente conhecer 0 seu pré- prio objeto, Procura responder a esta questo: o que é € como €0 Direito? Mas ja ndo lhe importa a questo de saber como de- ve ser 0 Direito, ou como deve ele ser feito. E ciéncia juridica € nio politica do Direito. ‘Quando a si prépria se designa como “pura” teoria do Di- reito, isto significa que ela se propde garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quan- to ndo pertenga ao seu objeto, tudo quanto nio se possa, rigoro- samente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pre tende libertar a ciéncia juridica de todos os elementos que Ihe sio estranhos. Esse € 0 scu principio metodolégico fundamental Isto parece-nos algo de fer si evidente. Porém, um relance de olhos sobre a ciéncia juridica tradicional, tal como se desen- volveu no decurso dos sécs. XIX e XX, mostra claramente qui longe ela esta de satisfazer & exigencia da pureza. De um modo inteiramente acritico, a jurisprudéncia tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, coma ética e a teoria politica. Esta con- fusio pode porventura explicar-se pelo fato de estas cigncias se referirem a objetos que indubitavelmente t&m uma estreita cone- xo com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar ‘0 conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fa-lo ndo 2 TEORIA PURA DO DIREITO por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexdo, mas por- {que intenta evitar um sineretismo metodol6gico que abscurece a esséncia da ciéncia juridica e dilui os limites que the so impostos pela natureza do seu objeto, 2. O ato ¢ o seu significado juridico Se se parte da distingao entre ciéncias da natureza e ciéncias sociais e, por conseguinte, se distingue entre natureza ¢ socieda- de como objetos diferentes destes dois tipos de ciéncia, pde-se logo. a questo de saber se a ciéncia juridica é uma ciéncia da natureza ‘ou uma cigncia social, se 0 Direito é um fenémeno natural ow social, Mas esta contraposicdo de natureza e sociedade nao é pos- sivel sem mais, pois a sociedade, quando entendida como a real ou efetiva convivéncia entre homens, pode ser pensada como parte da vida em geral e, portanto, como parte da natureza. Igualmen- te 0 Direito — ou aquilo que primo conspectu se costuma desi nar como tal — parece, pelo menos quanto a uma parte do seu ser, situar-se no dominio da natureza, ter uma existéncia inteira- ‘mente natural, Se analisarmos qualquer dos fatos que classifica- ‘mos de jurfdicos ou que t@m qualquer conexdo com o Direito — por exemplo, uma resolugdo parlamentar, um ato administrati- vo, uma sentenga judicial, um negécio juridico, um delito, etc. poderemos distinguir dois elementos: primeiro, um ato que se rea- liza no espago e no tempo, sensorialmente perceptivel, ou uma série de tais atos, uma manifestacdo externa de conduta huma- ra; segundo, a sua significacao juridica, isto é, a significagéo que ‘ato tem do ponto de vista do Direito. Numa sala encontram-se reunidos varios individuos, fazem-se discursos, uns levantam as ‘maos e outros ndo — eis o evento exterior. Significado: foi vota- dda uma lei, criou-se Direito. Nisto reside a distingdo familiar aos jjuristas entre o processo legiferante e 0 seu produto, a lei. Um ‘outro exemplo: um individuo, de habito talar, pronuncia, de ci- ma de um estrado, determinadas palavras em face de outro indi- viduo que se encontra de pé & sua frente. O processo exterior sig- nifica juridicamente que foi ditada uma sentenga judicial. Um co- merciante escreve a outro uma carta com determinado conte do, & qual este responde com outra carta. Significa isto que, do ponto de vista juridico, eles fecharam um contrato. Certo indivi duo provoca a morte de outro em conseqiiéncia de uma determi- nada atuagao. Juridicamente isto significa: homicidio. DIREITO E NATUREZA 3 3. O sentido subjetivo e 0 sentido objetivo do ato. A sua auto-explicagio Mas esta significagAo juridica nao pode ser percebida no ato por meio dos sentidos, tal como nos apercebemos das qualidades naturais de um objeto, como a cor, a dureza, o peso. Na verdade 0 individuo que, atuando racionaimente, poe 0 ato, liga a este tum determinado sentido que se exprime de qualquer modo e & entendido pelos outros. Este sentido subjetivo, porém, pode coin- cidir com o significado objetive que o ato tem do ponto de vista do Dircito, mas nao tem necesscriamente de ser assim. Se alguém. dispde por escrito do seu patrimdnio para depois da morte, o sen- tido subjetivo deste ato é 0 de um testamento. Objetivamente, porém, do ponto de vista do Direito, nao 0 , por deficiéncia de forma, Se uma organizagao secreta, com 0 intuito de libertar a patria de individuos nocivos, condena & morte um deles, cons derado um traidor, ¢ manda executar por um filiado aquilo que subjetivamente considera ¢ des gna como uma sentenca de con- denacdo 4 morte, objetivamente, em face do Direito, nao esta- ‘mos perante a execucdo de uma sentenca, mas perante um homi- cidio, se bem que 0 fato exterior nao se distinga em nada da exe- cugo de uma sentenga de morte. ‘Um ato, na medida em qu: se expresse em palavras faladas ou escritas, pode ele proprio ati dizer algo sobre a sua significa- co juridica. Nisto reside uma particularidade do material ofere- Cido ao conhecimento juridico. Uma planta nada pode comu car sobre si propria a0 investigador da natureza que a procura classificar cientificamente. Ela ndo faz qualquer tentativa para cientificamente explicar a si prépria. Um ato de conduta huma- 1a, porém, pode muito bem levar consigo uma auto-explicagdo juridica, isto é, uma declaragao sobre aquilo que juridicamente significa. Os individuos reunides num parlamento podem expres- samente declarar que votam uma lei. Uma pessoa pode expressa- mente designar como testamento a sua disposico de iltima von- tade, Duas pessoas podem declarar que concluem um negécio juridico. Assim, o conhecimento que se ocupa do Direito encon- tra j4, no proprio material, uma auto-explicacao juridica que to- ‘ma a dianteira sobre a explicagdo que ao conhecimento juridico compete, 4 TEORIA PURA DO DIREITO 4. A norma a) A norma como esquema de interpretagao © fato externo que, de conformidade com o seu significado objetivo, constitui um ato juridico (icito ou ilicito), processando- Se No espaco e no tempo, €, por isso mesmo, um evento senso- rialmente perceptivel, uma parcela da natureza, determinada, co- mo tal, pela lei da causalidade. Simplesmente, este evento como tal, como elemento do sistema da natureza, nao constitui objeto de um conhecimento especificamente juridico — nao é, pura ¢ simplesmente, algo juridico. O que transforma este fato num ato ico (licito ou ilicito) nao é a sua facticidade, ndo é 0 seu ser isto é, 0 seu ser tal como determinado pela lei da causa- lidade ¢ encerrado no sistema da natureza, mas o sentido objeti vo que esta ligado a esse ato, a significagao que ele possui. O sen- tido juridico especifico, a sua particular significado juridica, recebe-a 0 fato em questo por intermédio de uma norma que a ele se refere com 0 seu conteido, que Ihe empresta a significa ‘0 juridica, por forma que 0 ato pode ser interpretado segundo esta norma. A norma funciona como esquema de interpretacao. Por outras palavras: o juuizo em que se enuncia que um ato de conduta humana constitui um ato juridico (ou antijuridico) € 0 resultado de uma interpretacao especifica, a saber, de uma inter- pretacdo normativa, Mas também na visualizacdo que o apresenta como um acontecer natural apenas se exprime uma determinada interpretacéo, diferente da interpretacdo normativa: a interpre- taco causal. A norma que empresta a0 ato 0 significado de um ato juridico (ou antijuridico) € ela propria produzida por um ato juridico, que, por seu turno, recebe a sua significagao juridica ‘de uma outra norma. O que faz vom que um fatw constivua uit cexecugao juridica de uma sentenca de condenagao & pena capital endo um homicidio, essa qualidade — que nao pode ser captada pelos sentidos — somente surge através desta operacdo mental: confronto com 0 eédigo penal e com o cédigo de processo penal. Que a supramencionada troca de cartas juridicamente signifique & conclusao de um contrato, deve-se tinica e exclusivamente a cir- cunstancia de esta situacdo fitica cair sob a algada de certos pre- ceitos do eédigo civil. O ser um documento, um testamento vali- do, nao s6 segundo o seu sentido subjetivo mas também de acor- do com o seu sentido objetivo, resulta de ele satisfazer as condi- DIREITO E NATUREZA 3 ges impostas por este cédigo para que possa valer como testa. mento. Se uma assembléia de homens constitui um parlamento se 0 resultado da sua atividade é juridicamente uma lei vinculan- te — por outras palavras: se estes fatos tm esta significacao — isso quer dizer apenas que toda aquela situagdo de fato corres- ponde s normas constitucionais. Isso quer dizer, em suma, que © contetido de um acontecer fatico coincide com 0 conteiido de uma norma que consideramos valida. b) Norma e producio normativa Ora, o conhecimento juridico dirige-se a estas normas que possuem o cardter de normas jurfdicas e conferem a determina- dos fatos 0 cardter de atos juridicos (ou antijuridicos). Na verda- de, 0 Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam 0 comportamento humano. Com 0 termo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontecer, espe- cialmente que um homem se deve conduzir de determinada ma- neira. E este o sentido que possuem determinados atos humanos ‘que intencionalmente se dirigem & conduta de outrem. Dizemos ue se dirigem intencionalmente & conduta de outrem nao s6 quan- do, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de a realizar, isto é, quando a outrem €atribuido um determinado poder, especialmente o poder de ele préprio estabelecer normas. Tais atos s40 — entendidos neste sen- tido — atos de vontade. Quando um individuo, através de qual- quer ato, exprime a vontade de que um outro individuo se con- duza de determinada maneira, quando ordena ou permite esta conduta ou confere o poder de a realizar, 0 sentido do seu ato rio pode enunciar-se ou descrever-se dizendo que 0 outro se con- duzira dessa maneira, mas somente dizendo que outro se deve- 4 conduzir dessa maneira. Aquele que ordena ou confere 0 po- der de agir, quer, aquele a quem o comando € dirigido, ou a quem a autorizacao ou o poder de agir & conferido, deve. Desta forma © verbo “‘dever”” é aqui empregado com uma significaco mais ampla que a usual. No uso corrente da linguagem apenas ao or-

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