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Bloor fRvPO Arakey Martins Rodrigues © DO CATULE E OUTROS DEMONIOS (Entrevista dada por Arakcy Martins Rodrigues @ Olgéria C.F. Maios ¢ Femando Mesquita) A entrevista realizada com a pricéloga Arakey Martins Rodrigues referese a um acontect mento de “fanatismo religioso” que se passou fem um lugarejo de Minas — 0 Cavulé — em 1955, durante a Semana Santa, ocasido em que criangas do grupo foram mortas porque “pos suidas pelo deménio". Arakey Martins “Ro- drigues analisa, entre outras coises, o fenéme- no de conversio e em particular as de Joa quim, Onofre e Manuel — principais prota gonistas desso dram, P. Como vocé tomou conkecimento da exis- tencia do Catulé? A. Eu tenho que comegar por dizer que nunca estudei sociologia da religiio, nunca fiz uma pes- quisa especifica com relacdo a isso — no conhe- 50 a bibliografia bésica, nem tedrica nem de pes- quisa, na area. Acontece que nas pesquisas das uais participei havia sempre a dimensio religio- sa — por tradigio se estuda muito a que religiao © individuo pertence; trabathei durante dez anos em pesquisas de reproducio humana, e 0 mimero de filhtos que as familias tém esta na pesquisa de- mografica tradicionalmente associado .com a reli- Billo; geralmente existe correlacdo entre essas var Tiéveis (em alguns pa(ses maior, em outros menor, mas de qualquer forma se explora muito a varid- vel religiio). Basicamente eu tomei contato com o Catulé Por um acidente. Bu estava fazendo a disciplina de Antropologia na minha pos-graduacio ¢ exis- tia uma obra publicada sobre esse assunto: Estu- dos de Sociologia e Histéria:’ uma das partes do livro analisava o que ocorrera no Catulé em 1955, Em 1965, dez anos depois, € que e. fazia esse curso. © trabalho sobre 0 Catulé foi escrito pot uma equipe composta per um historiador, uma antropdloga ¢ uma psicbloga? que foram ao local dois meses depois dos acontecimentos ¢ entrevis- taram os remanescentes do grupo. A contribuigao da psicéloga para a compreensio do fendmeno era algo de muito hermético para os cientistas so- ciais, porque ela tinha utilizado téenicas de men- suracdo, testes dos mais sofisticados em Psicolo- Bia, tinha aplicado o teste de Rorschach, 0 de Ma- chover, em cada um dos sobreviventes da Semana Santa do Catulé; ela tinha aplicado toda a estat tica ea quantificagio que esses testes — princi- palmente 0 Rorschach — exigem, de tal maneira que essas tabelas e sua interpretagio eram inaces- siveis para 0 resto da classe, composto de estu- damtes de Ciéncias Sociais. A Renate Vietler, que dava esse curso, estava alocando alunos para tex- tos de seminério © pediu que eu me ocupasse do Catulé, justamente porque essa parte de Psicologia era muito dificil de ser entendida por outros es- peciatistas — pediu que en traduzisse para os co- legas 0 que estava ali A Eunice Durhan foi convidada para fazer a anilise antropolégica, acrescentou coisas impor- tantissimas & andlise que fizera no livro, se inte- ressou pelo meu enfoque, até ficamos de escrever algo juntas, o que nunca chegou a acontecer. Hi Pouco tempo, 0 livro da Janaina Amado* sobre ©s Mucker (que achei timo) e, mais recentemen- te, © suicidio coletivo dos adeptos de Jim Jones (1) Ed. Anhembi, Séo Paulo, 1957. @) Carlo Castaldi, Eunice R. Durhan © Carolina Mar tuscel, ) Conjlito Social ro Brasil — @ revolta dos “Mucker”, Ed, Simbolo, Sie Paulo, 1978. evaram-me a falar novamente do Catulé. A Ol- giria, que tem a mania de gostar de tudo 0 que eu digo, conhecendo minhas dificuldades para es- crever € publicar, inventou esta entrevista. Portanto, a interpretagio que tenho sobre 0 fe- ndmeno esté toda baseada no trabalho dessa equi pe. Além da anilise, eles transcreveram 0 levan- tamento muito cuidadoso de toda a seqiiéncia dos fatos. P, Basicamente, o que foi essa semana? ‘A. Foi uma Semana Santa na qual as pessoas assaram 0 tempo inteiro emendando um culto no outro a ponto de nio dormirem diversas noites, se reunindo € rezando, de uma forma quase obses- siva, continua. Durante os cultos e em outras situagdes em que 0 grupo estava reunido, o lider religioso comecou a identificar algumas criangas como possuidas pelo deménio, que tinha de ser exorcizado; para isso, sua técnica consistin em bater a cabeca da crianga contra um muro ou contra 0 solo para que o demdnio saisse. Ha mor- tes diferentes, mas o padrdo & esse, Segundo os pesquisadores, este grupo jé esta- va convertido havia uns dois anos ao pentecostalis- mo, & seita dos “Adventistas da Promessa”, Uma das caracteristicas da Igreja Pentecostal & justa- mente ocupar seus membros de uma maneira mui- to intensa; cria-se uma rede social muito signifi- cativa para os individuos, porque, se a pessoa quiser, pode comparecer diariamente a algum tipo de atividade religiosa do grupo. Mas a fre cia no € obrigatéria. As reunives, tio fre tes, ndo so iguais: um dia para ler a Biblia, outro € culto mesmo ¢ hé diferentes graus de im- portincia dentro deles ¢ diferentes graus de de- sejabilidade de os membros estarem ou no pre- sentes — como se fosse uma Igreja Catética em que todos os dias hd alguma coisa a ser feita, mas 0 domingo ¢ 0 dia da missa; ai, digamos, & missa se deve ir. Eu acho a fungdo disso muito importante. £ cléssica a explicacdo de que essas seitas estariam reforgando a rede social, os sentimentos de per- tinéncia, de filingio, estreitando os lagos sociais. Nesse livro sobre 0 Catulé, os especialistas apon- tam essa como uma das principais explicagées do fendmeno da conversio, Nao explicam com isso © que aconteceu naquela semana, mas dio i con- versio essa explicagio. Para mim, ela € ym pou- AWAKAOUE 2-25 co geral demais, mas no 2 descarto. Acredito que todas as atividades sociais sio uma forma de estreitar os lagos sociais, uma procura de appartenance, de identidade, de uma fronteira que distinga 0 “nés” do “eles”, mas acho que isso no basta quando estamos diante de um fendmeno som cial especifico; teriamos que ver por que essa for- ma de coesio se efetua através da expressio reli giosa € no através de um jogo de futebol entre © Catulé © Malacacheta, por exemplo. As pes- soas se retinem, ¢ isso por alguma razio. Qual € a diferenga se um grupo estreita seus lagos em termos de um time de futebol, de uma seita, de um partido politico, de uma comunidade hippie ou de uma escola de samba? Qual € a especifi- cidade de cada uma dessas agremiagbes? Provavelmente 0 tipo de associagio tem muito a ver com 0 conteddo especifico, tanto das acdes conscientes, como das fantasias inconscientes de um grupo num determinado momento. Da mes- ma forma, a lideranga que emerge é aquela que pode captar ¢ realizar melhor a “mente do grupo”. Quando se estuda fendmenos como os do Ca- tulé, analisa-se a trajetéria do grupo, sua histéria social, econémica, cultural. Todos so undnimes em afirmar que um surto de “fanatismo. religion so” (sem se discutir aqui se se deve ou nfo usar essa expresso) estaria de algima forma expres- sando a histéria do grupo, seria uma forma de protesto. Janaina Amado mostra como a religiio © a organizacdo dos Mucker eram uma forma de inverter a ordem das coisas. Uma situagio na qual os Mucker levavam muita desvantagem, es- tavam sendo muito injustigados, tinha que ser rompida; por isso eles assustaram tanto aos ou- tros, antes mesmo das coisas concretas que pas- saram a fazer, mais pelo pinico instaurado a par- tir da idéia do “onde vamos parar se derrubar- mos a ordem das coisas". De um modo geral, os cientistas sociais tendem a aprender uma men- sagem muito ampla; na tinguagem da religido, aquele grupo estaria dizendo de toda sua histéria ‘ou das determinagies mais gerais que pesam so bre ele, Eu concorde, no caso dos Mucker — nfo € por acaso que o fendmeno durow trinta anos, Mas nos casos mais agudos e breves, ew no sei se eu interpretaria assim. Acho que essa andlise seria muito ampla e deixaria tudo muito vago. Eu ilio acredito que as pessoas estejam sempre emitindo mensagens globais sobre seu 26 PsIcanauise eM OusstAo destino; esto dando pequenos recados que se re- ferem a alguma coisa aqui e agora, ¢ isso tem que ser entendido, isso sim, dentro da histéria do gru- Po, de suas determinagbes, das trajetdrias dos ine dividuos, Eu gostaria de traduzir essa mensagem. Eles esto fazendo, agindo, atuando, rezando, ma. tando. Eles estéo querendo dizer alguma coisa, estio dizendo uns para os outros, ao fazer tudo isso, alguma coisa especifica, Quando eu comecei a ler o relato sobre 0 Ca- ‘ulé, senti uma enorme angistia: alguma coisa éstava_acomtecendo ali, havia ‘uma mensagem, eles estavam exprimindo numa linguagem diferen. fe alguma coisa que eu no sabia o que era, Quando terminci de ler a obra, me dei conta de ue 0s pesquisadores haviam explicado muita coi- a, mas no a semana: haviam explicado a con- Versio, como essa religiio se adaptava muito me- Ihor & nova situacdo sécio-econdmica que a re- ligifo anterior, como os lagos de parentesco ¢ compadrio haviam sido substituidos pelos lacos de “irmandade” religiosa, como os velhos padres €ram rompidos por esses novos lagos etc. Parecia ue 0s pesquisadores paravam as vésperas do dra ma. Esse, apenas descreviam, nio tentavam com- Preender. Eu tenho a impressio de que os pes- quisadores sociais véem nesse tipo de fendmeno a inguagem do itracional, do caético, do andrqui £0, € como uma explosio, como se alguém tives- se dado um grito de édio. E visto assim e s6 isso. As coisas no fazem sentido, entio nao cumpre a ninguém tentar entender seu sentido, exatamente como se tratava a fala do louco antes de Freud. Ninguém pira para escutar “coisa de Touco”, ele estd dizendo coisas sem nexo, Alguém podia até tentar entender por que ele ficou louco. mas.o que est falando aqui e agora enquanto “louco € algo que nao é para ser ouvido. Eu acho que esses fendmenos religiosos sio tor dos tratados um pouco assim. A gente estuda que determinagoes teriam levado um grupo a enlou- Quecer, Mas por que isto e nio aquilo? Se um sujeito enlouquece ¢ diz “agora eu sou Jesus Cris- fo misturado com a Virgcm Maria num s6 cor Po” € outro diz, como disse © Joaquim do Ca- tulé, “agora eu vou subir pro Céu, eu sei dar um Pulo que s6 eu sei dar, acompanhado de um as- sobio que s6 eu sei fazer, € ao fazer esse assobio € esse pulo deste jeito eu vou a0 Céu” — que diferenga faz? O fandtico fora de si dizer isso ou aquilo no faz diferenga? E quando muita gente © segue nessa loucura? Analisando os comportamentos “irracionais dese grupo durante 0s dias que durou a explosio de “fanatismo religioso”, ew levantei a hipétese de que o problema especifico que estava em jogo era‘o medo de realizar uma viagem de proselitis- mo que estava marcada para a manha de quinta- feira, P. Qual a estrutura das relagses dos individuos no interior do grupo do Catulé? A. Primeiramente temos Manuel, que é um ve- Iho lider do grupo original da comunidade e era, até pouco tempo, o tinico alfabetizado; € parcnte de quase todo mundo, esse grupo é todo unido Por lacos de parentesco e compadrio, Manuel é Padrinho de muitos, e os padrées do grupo in- vestem © padrinho de papéis bastante importan- tes de protegio. © Manuel vem liderando o gru- Po em toda a sua trajetdria, Essa historia 6 uma historia de decadéncia, Comegam como donos de pequenas terras, passam para meciros, parcei- Fos, posseiros etc., até terminarem colons. Além dessa decadéncia social, existe uma mobilidade no espaco. Cada mudanga dessas implica mudar de lugar. B sempre o mesmo: eles esto ocupan- do uma regio, abre-se uma estrada que val 8 tertas, e eles sio expulsos do modo mais vio- lento que se possa imaginar: eles narram que saf- tam de um local para outro porque comecaram 4 soltar gado na plantagio e eles nao tém defesa nenhuma face a esse tipo de banditismo. E é depois de sofrer reiteradamente esses ataques que eles decidem finaimente abandonar o lugar. f engrasado eles dizerem: “ai ele esquentou a ca- beca com o luger © resolveu mudat”. E 0 Ma- nuel que consegue sempre reunir 0 grupo e fazer essas mudangas, encontrar um outro local; & ele Que faz todo o trabalho de fronteira entre 0 gru- Po € 0 resto do mundo, é ele que fica sabendo Que fulano de tal esté precisando de parceiros ete, No momento em que ocorre o fendmeno do Ca- tulé, eles j& chegaram a esse fim de linha: sio colonos de um fazendeiro — a sede da fazenda dista meia légua desse nicleo habitacional onde eles estiio no momento, que & 0 Catulé, uma ela reira a’ trés léguas de um municipio chamado Malacacheta. 0 filho de uma familia desse grupo — Onofre — ‘nha vindo 2 Sao Paulo — para Presidente Prodente — trabalhar nas plantagdes de algodd ‘tata-se de uma estratégia bastante comum: um apaz solteiro sai para trabalhar fora por uns tem- Pos, junta dinheiro e acaba trazendo aquele di- nheiro para a entressafra, para: as despesas de plantio, acaba sustentando a propriedade agricola deficitaria dessa forma, mesmo quando a familia € proprietaria de pequenas terras. Onofre acaba se mudando para a cidade de Sio Paulo, onde Passa trés anos ¢ se converte aos “Adventistas da Promessa” (diz que um dia, na. periferia, duas mogas © convidam para ir 20 culto, ele vai, se converte, aprende a ler e a escrever; a alfabeti- zayho dos “irmios” faz parte das atividades da seita). Onofre volta para sua comunidade de ori gem para trazer a mae, as irmis, 0 resto da fai lia para Sio Paulo. Nesse momento, 0 grupo jé €std no Catulé. Af chegando, faz uma pregagio Para 0 grupo, que se interessa enormemente pelo Que ele esté dizendo e. durante o tempo que pas- sa em Minas continua reunindo 0 grupo, lendo a Biblia € interpretando-a, conduzindo 0s cultos, © consegue conversdes. A primeira conversio é @ do velho Manuel. Isso deve ter facilitado. m to a conversio dos demais, que costumam seguir Manuel em tudo que ele fizer. Hé um momento fem que © grupo pede a Onofre para ndo ir em- bora, para ficar 1 pregando porque “es tinham se interessado muito por aquela coisa. Mas ele arte © Manuel comeca 2 pastorar 0 grupo. Ma- uel, embora saiba ler, no sabe interpretar di- reito a Biblia, nio “explicava direito” (six) a Biblia. Entio escrevem pedindo para Onofre .uk- tar, ele vem ¢ & nesse meio de tempo que esia- belecem contato com a sede da Igreja em Sio Paulo. Os autores transcrevem algumas cartas dos lideres paulistas a0 grupo do Catulé. Real- mente mereceriam uma anélise de palavra por Palavra. Ai se percebe justamente 0 que deve significar para esse grupo, nesse grau de decadén- cia, analfabeto, impotente diant-» das novas mo- dalidades de apropriagao de terras, receber aque- las cartas de Sio Paulo dizendo que a sede esta muito contente com 0 trabalho que eles estdo rea- lizando, com © niimero de converses que obti- Veram etc. De repente eles tém relagdes com Séo Paulo, 0 que reforca inteiramente 0 sentimento de grandeza que essa conversio deve proporcionar auansour 27 20 individuo que adere & religido. De vez em quando ia um pastor paulista para 0 Catulé ¢ di- Tigia os trabalhos durante sua estada, Geralmen- te as coisas mais dificeis, algumas converses im- Possiveis, eram conseguidas pelo pastor de Sao Paulo. Ento vejam, eles constituiam um grupo que estava justamente passando por um processo de proselitismo, que estava vivendo uma grande dopendéncia em relagio aos grandes ¢ doutos i mios de Sio Paulo. Enquanto Onofre esteve em Sio Paulo, grupo nao foi auto-suficiente nem para ler a Biblia, nio conseguiu realizar seu de- sejd-de formar uma sucursal. Mesmo com Onofre Presente, os casamentos, os batizados, as conver- sbes dificeis etam feitas quando 0 pastor paulista ia para lé, De repente, esse grupo & investido da tarefa de viajar © de fazer proselitismo. Em relagio 2 quem? A grupos muito semethantes a eles, talvez_ até numa situagio um pouco melhor, Tam para Tabocal, que pelo menos tem status de Povoedo. Eu nio sei bem qual é o roteiro, jus- tamente os pesquisadores no aprofundaram a in- vestigacdo sobre a viagem — eu, se tivesse na- quele instante, dois meses depois dos aconteci mentos, inventado essa’ alternativa de explicacio, Provavelmente ia perguntar muito sobre as via- gens anteriores, se tinham tido assisténcia paulis- ta, se fora o grupo inteiro, se a historia dessas viagens for: de fracasso ou de sucesso; infeliz- mente, como ninguém levantou essa hipStese, nfo havia razio para se investigar pormenorizada- ‘mente as viagens realizadas e os planos para essa que deviam fazer. 7 Além das dificeis tarefas colocadas por essa, acredito qué qualquer viagem mobiliza uma mul ido. de sentimentos contraditérios, que geram grande ansiedade. Ha uma saida em relagdc, as coniligdes habituais de existéncia, que pode estar Fepresentando uma liberagio dos instintos, em si mesma perigosi, Hé ainda o temor da perda das referéncias, da desestruturagio, da crise de iden- tidade, da morte. A literatura esté repleta de re- Presentagdes de viagens onde tudo isso est presente. P. Qual a trama dessa semana que desencadeou (05 acontecimentos? A. Cerca de dois meses antes, um pastor havia sido enviado pelos ditigentes paulistas para orien- it os vitios grupos religiosos que se ha- - 2B PSICANALISE EM QUESTAO viam formado na regio. Onofre e esse pastor marcaram uma viagem de proselitismo para 0 po- voado de Tabocal para principios de abril. Mas esse pastor saiu na terga-feira de manha (Semana Santa de 1955), para contactar alguns grupos, € marcou encontro com Onofre ¢ 0s demais para quinta-feira. A impressio que fiquei da leitura dos acontecimentos € que niio havia um planeja- mento para essa viagem, nfo dé para se perceber que jé haviam sido escalados 0s que iriam, em outras palavras, parece que o pastor paulista dei- xou as coisas muito vagas, e que, além da tare- fa de converter pessoas no outro povoado, a lide- ranga religiosa do Catulé tinha que organizar, sem ajuda de fora, a partida. No seu relato, Carlo Castaldi, um dos autores do trabalho, esclarece que “como todas as viagens de proselitismo, também esta foi precedida de uma ‘semana de oragdo’ durante a qual o grupo se preparou espiritualmente para a ocasifio atra- vés da reza e do pedido de perdio aos que ha- viam sido ofendidos”. Dentro dessa linha, Joa- quim, na prépria terga-feira pela manha, a0 que tudo indica logo depois da partida do pastor pau- lista, Joaquim vai A casa de Manuel para fazer as pazes com ele, Joaquim pertence a uma familia que se mu- dara havia pouco para um niicleo préximo ¢ nfo tinha nenhum lago de parentesco com o grupo do Catulé. Havia-se convertido em Presidente Pru- dente € se associara a Onofre, dividindo com ele a lideranga religiosa. Uma das normas da reli- gio reza que os membros ttm sempre que pedir perdio; as alteragSes, as discussoes, séo altamente indesejaveis ¢ devem ser evitadas, bem como a violéncia. Mas no caso de existir algum tipo de desavenga € preciso que um irmio pega ¢ 0 outro conceda 0 pgrdio. Joaquim explica que nio po- deria partir sem que ele cumprisse esse dever. ‘Agora, eu comeco a perguntar por que esse dia 0 Joaquim procura 0 Manuel. Seria o mesmo pro- curar 0 Manuel ou qualquer outro membro do grupo? Poderia ser em qualquer outro dia? Po- dia ser outra pessoa a procurar 0 Manuel? A par- tir desse momento, Joaquim, que até entiio se- cundara Onofte na lideranca religiosa, toma as rédeas do processo, ficando Onofre num papel secundério, Dois dias antes da viagem, Joaquim procura Manuel para pedir 0 tal pe 0. Qual & © papel de Maiiuel nese momento? Eunice Durhan chama 2 atengdo para a disputa de lide- ranga travada entre Joaquim ¢ Manuel. Mostra como devi vos padrées de interacio, dentro dos quais, ele, com sua idade ¢ seu passado de lideranga, 6 colo- cado numa situagio inferior em relagio & lide- ranga emergente de Joaquim, Mas por que o gru- po segue esse “arrivista”, esse jovem, esse indi- Viduo que ja dera mostras de intolerincia © vio- léncia? Se acreditamos que a conversio a essa religido significa negar as condigies de decadén- cia, de privagio total, por uma fantasia de gran- deza, de controle do mundo a partir do controle de si mesmo, de fato Manuel nao poderia mais liderar esse grupo. Eu acho que Manuci € 0 lider do realismo, € © homem que muitas vezes disse a0 grupo: “nds nao damos conta disso, eles vio continuar soltando gado em nossa terra infinds- velmente, eles sio mais fortes que n6s, temos que abdicar da posse da terra, vamos pata outro Iu- gar”, © Manuel € sempre o homem que diz: “é melhor a gente se encolher” — ou qualquer coisa parecida. f claro que fazer as pazes era um dever de Joaquim, ¢ é igualmente verdade que suas relagdes com Manuel andavam bastante ruins. Mas, além disso, eu acredito que Joaquim tenta envolver Manuel, 0 velho lider que foi capar, iniimeras vezes, no passado, de estruturar o grupo, Mas competéncia de Manuel nio é desse tipo: ele nun- ca prometeu levar seu grupo para o Céu, como Joaquim fard nos dias que se seguem. ser dificil para Manuel aceitar 0s no- Depois dessa visita, Joaquim comega a achar que Manuel nao -deu o seu perdio. Na primeira vez, Manuel declara que n3o hi 0 que perdoar; diante da insisténcia de Joaquim, concede 0 per- dio, Ha testemunhas, mas essas alegam que no dava para saber Se Manuel o fazia “de coracio”. Mais tarde, num encontro casual com Manuel, Joaquim volta a brigar com ele; diz aos outros que Manuel no estava agindo como um bom crente, no estava dando 0 perdio como devia, € a viagem nao teria éxito por causa desse pro- cedimento de Manuel. Nesse momento tem infcio 0 comportamento que caracterizard © grupo até 0 fim: Joaquim eonvoca para rezar, toda a populagio comparece. ‘A parut de um certo ponto, Manuel € 0 tinico individuo de toda a comunidade que nfo compa- rece mais, Parece que essas 60 pessoas sentem necessidade de estar juntas, as vezes nio ha con- vocagio, mas todos esto presentes € a reza reco- mega porque todos esto 14, todos voltaram. Como a viagem seria feita na quinte-feira, os dois dias anteriores ainda se ineluem na semana de oragio € de preparacio espiritual para a oca- sido. A reza ¢ 0s pedidos de perdio fazem parte desses preparatives. Mas parece que 0 grupo nio conseguia superar essa fase de se prepurt para a viagem, em outras palavras, 0 sentimento de que estava 2 altura dessa tarefa parece ter sido impossivel. Desde logo, Joaquim nao se sentiv satisfeito com a afiemagio de Manuel de que nada havia a perdoar, gritou, chorou, clamando a Deus que abrandasse 0 coracio do velho. Manuel re- solveu conceder 0 perdio, mas no dia seguinte a questio se recolocou, outro membro do grupo contou, inclusive a Joaquim, que Manuel the co- municara a intengio de formar uma comissio para julgar © litigio. No encontro entre Joaquim e Manuel na quarta-feira & noite, depois do culto, Joaquim chegou a sacudir Manuel, que se re rou. Reparem como o grupo queria alongar a questo. Com a saida de Manuel, ¢ recomegadas as rezas, a irma de Joaquim apontou Maria dos Anjos, que estava cochilando, dizendo que era 0 Satands que estava “empatando”. Essa_menina foi espancada por Joaquim para expulsar 0 de- ménio. Antes que 0 grupo se dispersasse, outro membro afirmou que Satanés aparecera em seu terreiro. Em seguida, 0 deménio, que estava na rapadura, saiu de 1é € entrou no corpo de outra menina. A maioria dos integrantes do grupo foi passar a noite rezando na casa de um deles, Sur- ge nessa noite uma primeira profecia, feita por uma menina de treze anos. E ela se refere justa- ‘mente 2 viagem. Mas, também nessa profecia, 0 nome de Manuel voltou & baila: a profetisa acre- ditava que a filha de Manuel tinha que Ihe pedir perdio, Joaquim achou justa a medida, e foram buscar Manvel e sua filha, no meio da noite, para que essa pedisse perdio, 0 que foi feito. Em se- guida Joaquim declara que o demdnio esté deita- do na cama em sua casa. Lé chegando, declarow que Satands estivera no corpo de Maria dos An- jos, que morava em sua casa, ¢ que fora, horas, antes, a primeira “suspeita”, por estar cochilando durante © culto, E assim se passa toda a, noite de quarta-feira. No dia seguinte, que devia ser © da partida e do encontro com o pastor paulista, auuanaoue 2 29 tudo recomeca, com Satands entrando no corpo de criangas, que sao espancadas, Nessa tarde volta-se a falar da viagem: Onofre vai A casa de um dos membros do grupo saber se estavam prontos para a partida, Joaquim veio a mesma casa, pouco depois. Nesse ponto ocorre algo muito interessante. Onofre, até entio o lider mais sensato, que reprimira ou se abstivera du- ante os rompantes mais violentos de Joaquim, comeca a falar “Inguas estranhas”, diz que se sentia fraco na {é por causa de um casamento que tinha arrumado, mas agora nfo ia mais casar. Em seguida Onofre profetiza, e, assim como a menina, na véspera, anuncia éxitos para a via~ gem: mais gente se converteria, S6 que terminou essas profecias dizendo que nio iriam mais 20 Tabocal porque nao podiam deixar uma parte do grupo, isto é, as pessoas de idade e as muito jo- vens, que ficariam no Catulé, sem ninguém que ~tivesse leitura’” Na minha opinio, todo © grupo se sentia inca- paz de viajar. Tentou, de todas as maneiras, se “impar” dos estigmas de sua fraqueza, atacando as partes mais fracas do grupo. A primeira crian- ga apontada, Maria dos Anjos, é uma érfé que mora na casa de Joaquim. Por que justamente uma crianga, érfa, menina? Reparem como Sa- tands incide principalmente sobre as meninas do grupo. Finalmente, no momento da viagem, Ono- fre, aparentemente um lider obscuro desde o int cio dos acontecimentos extraordindrios, “fala 1 guas” © decide nao fazer a viagem por causa dos fracos € iletrados do grupo. P. Pode-se interpretar 0 aparecimento do dia- bo nesta Semana Santa? A. Uma das coisas que mais me chamou a atengio foi 0 seguinte: pelo relato dos pesquisa- ores no livro, as experiéncias religiosas anterio- res, principalmente. nas ocasides em que esto pre- sentes os pastores de Sio Paulo, incluem “teste- munhos”: alguém revela que sentiu a graga di vina, E as converses consistem também nisso. Geralmente num culto ou durante as rezas, os renitentes dizem que esto sentindo Deus dentro de sie aderem religifo. Portanto, no culto nor- mal, em sua Igreja normal, era comum Deus apa- recer dentro das pessoas, mas nessa semana co- mega a aparecer © diabo. Isso me faz. pensar 0 seguinte: todas as religiGes populares transacio- 30 PSICANALISE EM QUESTO nam muito mais com 0 diabo porque sua expe- riéneia de vida esti muito mais proxima do diabo do que de Deus, da harmonia, ou do amor, que so parte das vivencias ¢ da religido das classes altas, No caso do Catulé, acho que 0 deménio € a parte indesejavel dos proprios individuos, a parte fraca, analfabeta, rural, ilegitima. Numa ocasido, outra menina, suspeita de estar com deménio no corpo, diz: “mas eu sei escrever”. Joaquim adverte: “Olha 0 diabo querendo nos enganar que sabe escrever". A menina sai cor rendo, pega uma vara e comeca a escrever na terra dizendo “vejam como cu sei eserever”. Eu acho muito significativo que a defesa dessa me- nina seja a alfabetizayio © @ profecia da outra verse sobre = viagem. Acho igualmente muito importante a gente acompanhar o processo de Onofre falar linguas estranhas (eruditas?), profe- tizar grandes vit6rias para a viagem, mas no con- seguir se sustentar nessa linha ¢ tomar, em se guide, a decisio de ndo viajar. As linguas estra- nhas de Onofre me parecem altamente significa tivas. Vocés jé ouviram a pregacio de um lider pentecostal? Consiste em passagens da Biblia, ge- ralmente Velho Testamento, com toda a sua lin- guagem complicada ¢ metaférica, intercalada com trechos da autoria do proprio pastor. Esses ten- tam manter o nivel das cita toado das palavras mais dificeis que 0 individuo 8 ouviu na vida. Freqiientemente o discurso no faz sentido nenhum, ies ¢ so um amon P. Enido € Onojre que toma a decisto mais im- portante, a de ndo viajar? - A. Exatamente, Também em outr? ocasides, Onofre se aproxima de uma percepso mais_ade- quada da realidade, por exemplo depois que ma- tam a primeira menina (cinco anos). Essa morte ocorreu na quinta-feira & noite; na sexta, pela manh3, Onofre vai ao local do encontro com 0 pastor paulista, mas esse 4 fora embora, deixan- do o recado de que andaria devagar, para que Onofre € seu grupo pudessem aleangé-lo. Na vol~ ta, Onofre encontrou Manuel disse-Ihe que es- perava a volta do pastor paulista para fazer algu- ma coisa. Onofre, ao chegar no Catulé, sentou- se debaixo de uma arvore perto de sua casa e chorou longamente. Eu acho que ele consegue, nese momento, entrar em depressio. Acho que € muito comum encontrarmos 2 explicagio da patandia em rela¢do ao fanatismo religioso, & me- galomania do lider carismitico. Eu vejo mais um mecanismo manfaco nesses fendmenos. Para Me- lanie Klein, a depressio & uma configuracdo psi- quica na qual 0 individuo percebe que 0 bem ¢ 0 mal estio misturados e que sio atributos do mes- mo objeto, a0 contririo da posigio esquizo-para- ndide, na qual o individuo tenta dividir, purificar: © bom é s6 bom, no tem nenhum defeito, o ruim 6 s6 muim, sem nenhuma qualidade. “A relagio maniaca com os objetos se caracteriza pela triade de sentimentos — controle, triunfo, desprezo”, diz Hanna Segal na sua Introducdo a Obra de Mela- nie Klein, No maniaco existe um grande triunfo, euforia, existe a negagio da depressio, que esté ameagando muito violentamente. E 0 grupo do Catulé, uma vez des: icadeado 0 proceso. ma- nfaco, afasta-se cada vez mais da percepcao de sua propria realidade, de sua decadéncia. O teste de realidade sobre as fantasias, representado pela iminéncia da viagem, ameaga esse mecanismo. Iss0 leva © grupo a se dividir e projetar a incompetén- cia numa parte dele, em vez. de aparecer em todas as pessoas. E matando essa parte estaria matando sua parte fraca, sua parte pequena, sua parte crian- a, sua parte que nao sabe escrever. Porque as criangas mortas nao sio desconhecidas, é um gru- po de convivéncia, de parentesco, que tem uma historia comum ha muitos anos. Sao 0s filhos do grupo os assassinados. O grupo mata sua propria parte fraca ‘porque esté tentando negé-la, numa tentativa de reforgar suas fantasias inconscientes de forca ¢ de superacio das condigdes reais, que sio intolerdveis. Na verdade, 0 grupo est ten- tando isso desde a conversio. E um pouco a hist6ria de Abraio: 0 grupo sa- crifica algo para manter 0 mais importante e paga qualquer prego para nao entrar em depressio, no perceber a realidade naquele momento. Entdo & justamente sobre os fracos, sobre os animais, so- bre a crianga, sobre as meninas, que tem que inci- dir essa projecdo. E claro que isso vai entrando num automatismo no qual eles vao se distancian- do cada vez mais da realidade. Eu acho que esse grupo realmente pagaria qualquer preco para nfo perder o sentimento de grandeza e pagou caro: 0 grupo se amputou. P. Nessa conjuntura, qual o papel da conversio? A. Nesse quadro podemos dizer que converter- -a, no caso do pentecostalismo, inverter a ordem das coisas, negar as condigées intolerdveis de vida, através da fantasia de que é 0 converso que nao deseja mais as coisas € nfo a sociedade ‘que as nega para ele. Desde inibir todos os dese- jos © proibir as iinicas coisas is quais podem ter acesso © que seriam prazerosas (pinga, ridio, car ne de porco), até matar uma crianga — nio sei se tudo isso no & um gradiente de automutilagio do grupo, Retormando aos Mucker: trata-se de tum processo no qual eles sé tém perdas a0 longo dos tempos, como no Catulé. Ha um momento ‘em que eles dizem: nés no somos piores que eles (do outro grupo), nés somos melhores, tudo isso esté acontecendo nao porque nés estamos por bai- x0 socialmente mas porque nds estamos por cima moralmente. Invertem toda a coisa, $6 0 que eu acho € que a Jacobina inventou (nos Mucker) uma religito ad hoc, que nao veio nem do Além nem € do catolicismo brasileiro, como eu acho que o que 0 Joaquim fez naquela semana nao é 0 “adven- tismo da promessa”; ele criow uma religiio nova © que @ Jacobina fez foi dentro desse quadro de grandeza: na hora em que ela diz: “nés vamos cultivar a terra como antigamente se cultivava, com as mos, nfo vamos usar méquinas, as coisas do diabo, nao vamos entrar no mercado, nds vi mos produzir aquilo que nés necessitamos” — no mundo urbano seria dito pelo pentecostalismo: 16s no queremos os bens materiais terrestres, n6s aspiramos 2 outra coisa. E no fim eles esto pa- ‘gando qualquer prego para manter 0 suposto basico. Eu ndo sei se a,gente no vira pentecostal quan- do qualquer possibilidade de agdo fica impossivel. © inimigo & tio poderoso, to Ionginguo, que s6 se tem um recurso, que é mudar dentro do grupo, dentro do individuo inclusive, fazer a ligagao dire- ta com Deus, porque nem se sabe quais so as eta- as € as mediagSes que existem para obter as coisas. a Como mostrow muito bem © Fernando, abolin- do de suas priticas as poucas coisas que the tra ziam prazer, 0 “crente” esti reforcando sua teoria mental de que é cle que rejeita todas as outras. Acho que o Ruy Guerra mostrou muito bem esse mecanismo no filme Os Fuzis: 0 carregamento de cereais esté prestes a ser feito, numa regio onde a fome impera, A possibilidade de haver uma in- vastio e saque € td0 Sbvia que os proprictirios da ‘mercadoria tratam de prevenir-se e buscam, refor- 60 policial sem que o,menor indicio de violén- é aumswour 34 cia tivesse sido fornecido pelos provaveis saquea- dores; nese momento surge uma “religiao”, ndo se sabe bem de onde, que consiste na adoracio do boi. © paralelismo das situagdes é claramente in- tencional no filme, a cmara intercala as seqiién- cias que se referem ao carregamento © a0 reforgo policial com a difusio da crenga, a0 longo do filme todo. Muitas pessoas apontaram o caréter irreal dessa religido, com 0 argumento de que, no Brasil, nunca houve algo que se equiparasse 3 adoracio de animais. Na minha opinio, esse fato apenas reforga a idgia de que, naquela conjuntura, numa linguagem especifica, aquele grupo estava expressando alguma coisa que, colocada em pala- vras, seria: nés nfo estamos passando fome a ponto de roubar os cercais; pelo contrario, abste~ mo-nos por nossa prépria vontade de comer aquilo que € © mais precioso alimento nestas paragens: carne de boi, E mais: no s6 nao 0 comeremos, como 0 idolatraremos. Fica claro no filme como a aproximagio do dia do carregamento — e portan- to do possivel saque — & acompanhado de perto pelo aumento dé mimero de adeptos, 0 que & por sua vez, uma conseqiiéncia da piora das condicoes reais, com 0 afluxo de retirantes para o local. Ou- tra evidéncia consiste no fato de o boi poder ser ‘morto no momento que a conjuncao famiélicos-ce- reais-saque € rompida pelo Gaticho. A hipétese que me ocorreu durante a pesquisa que fiz sobre 0s operirios é que 0 pentecostalismo se prende a uma tentativa de-mudar dentro, en- quanto a umbanda tenta, embora por meios mégi- 0s, mudar algo fora do individuo. Bastante in- fluenciada pelo artigo, de Peter Fry e Gary N. Howe, “Duas Respostas a Afligio: Umbanda e Pentecostalismo”, * ocorreu-me que, basicamente, a fligdo consiste na defasigem entre tudo aquilo ‘que © individuo necessita e deseja ¢ o que ele real- mente pode alcangar. Essa sitagio chega a ficar intolerivel, especialmente em momentos mais cri ticos, seja da propria sociedade, seja da histéria do individuo, A saida consistiria em procurar um certo equilibrio entre os termos da equagio neces- sidades-acesso. Quer me parecer que a saida pela umbanda se refere & modificagio do segundo ter- mo, € pelo pentecostalismo, do primeiro. Um certo alivio da tensio € obtido quando 0 individuo se (A) in Debate € Critica, n? 6, julho de 1975. | 1 32 PBICANALISE EM QUESTAO convence ¢ passa a agir como se nfio mais est vesse perseguindo certas metas ¢ sofrendo por nao Poder atingi-las. Uma fantasia de grandeza, muito prépria « qualquer tipo de pensamento puritano, foma 0 lugar dos sentimentos de fracasso, de im- Poténcia ¢ de ilegitimidade que as classes baixas desenvolvem, principalmente em sociedades em que 0 mito da igualdade das chances serve para obscurecer e manter desconhecide © mecanismo primordial da acumulagio. Voc8 ja reparou a re- corréncia com que se conta ¢ reconta os casos, excepcionalissimos de gente que escapou 2s suas determinagbes sociais? O Juscelino, 0 Zerbini, 0 Laudo Natel.... Enquanto isso pode-se “esquecer” que dezenas de filhos de milionarios sfio milioné- rios, centenas de filhos de médicos so médicos filhos de milhdes de miserdveis so miseraveis, 5 sentimentos de grandeza que decorrem da conversio ficam muito claros em todas as entrevis- tas que fiz com operirios. Um entrevistado me dizia: “A Sra, veja, ew nio ligo pra dinheito; Deus no tom nada com nada de riqueza... Eu sei que nfo vale nada. Pra Deus, no. Agora, pro mundo 44 certo, vale aqui pra terra, Mas para Jesus nio vale nada nada”. Vocé nao acha que esta fala po- deria ser retraduzida assim: “Deus nfo lige pra dinheiro. Eu nao ligo pra dinheito, Logo, eu sou como Deus”? © pentecostalismo enfatiza na religigo a oposi- ‘sao rico-pobre, esté sempre referido ao problema |. Aqui se incorpora a culpa: ey sou pobre Porque cu sou uma porcaria: desde o espiritismo fem querele € um espirito de pouca luz — por isso le € pobre € precisa se aperfeigoar para ficar rico — até o pontecostalismo — precisa aprender a ler etc, Por isso, eles se relacionam com o diabo como algo que tem que ser exterminado, como algo mui- to ruim. E ele que merece punigéo (a0 contririo dos rituais demoniacos nos EUA, que tém carter vingativd) para depois poder ser grande. P.O que os remanescentes da Semana jalam so- bre Joaquim? A. Nas entrevistas que os pesquisadores fize- ram, 6 grupo diz, que sempre tinha preferido as Pregagies de Onofre as de Joaquim, que Joaquim era autoritério, que forgava as pessoas a se con- verter, que ficava muito nervoso se alguém nao se convertia. Eu veria muito entre parinteses essas criticas a0 Joaquim nesse mom xo — dois me- ses depois da catistrofe. © autor principal da ca- tastrofe € Joaquim. Entéo eu acho que se deveria parar para pensar um pouco sobre 0 significado dessas criticas nesse momento ao Joaquim. Uma coisa 6 vital: © grau de responsabilidade ‘que se passa a atribuir ao Joaquim, ao lider em geral, Existe uma adesao total ao lider, é uma ilu sio acreditar que 0 lider ordenou ¢ 0 grupo obede- cou; eu repensaria dez vezes, investigaria mais mit até dizer que toda a turma do Jim Jones se matou, tomou veneno porque estava ameagada de morte por ele. Eu ia pesquisar muito tempo ou pelo ‘menos desconfiaria profundamente desse dado, até aceité-lo: por que os grupes fazem sua total adesio a0 lider; todo proceso de lideranga precisa ser muito tepensado, muito revisto. Freud achava que © lider era uma espécie de ideal de Ego dos segui- dores; mais tarde outros autores — particularmen- te 0 Bion — vao dizer que acreditam que seja um fendmeno muito mais profundo, de projesio no lider de certas partes dos individuos: delegam ao lider, d¥0 a0 lider sua cabeca para que pense pelo grupo. Mas s6 existe lideranca se essa delega- ao for feita e feita inteiramente, que € um pouco ‘a histéria do Feuerbach de que os homens se des- em para vestir os deuses, € @ gente que coroa ¢ veste 08 douses. Outra coisa que se tem estudado muito em dindmica de grupo, em psicoterapia de ‘grupo etc., € a linguagem nao-verbal: de que ma- neira uma adesio total € feita, sem ser por vias verbais. Desde que 0 grupo deixe alguém prosse- Buir, esta consentindo; em psicoterapia de grupo © sujeito nao fala um minuto se estiver fora da mensagem inconsciente do grupo. Na verdade, 0 lider do grupo € quem capta 0 inconsciente do BTUPO € alta ou verbaliza de acordo com ele. Mas, se verbalizar 0 contrério, nfo © deixam 1d mesmo que cle use a violéncia, E a adesio ndo-verbal & uma coisa linda de ser estudada. As vezes 0 grupo esté todo mudo; s6 ha duas pessoas brigando entre sie se sabe exatamente que parte do grupo esti com um € que parte do grupo esti com 0 outro. Desde sentar perto, olhar ou n3o olhar quando ele esté falando, dar uma tossidinha etc.; ha pessoas que otham para a ponta do sapato ¢ isso faz um individuo parar, A gente chama este “lider” de porta-vor. do grupo. Alguns autores atribuem um papel deci a no © contritio. No grupo do Catulé emergiu a Tideranga do Joaquim naquele momento porque ele era uma “mente do grupo”, capaz de afastar a ameaga da perda do sentimento de grandezs. Isso bate exatamente com a captagio magistral ‘que Guimaraes Rosa tem sobre a lideranca no Grande Sertio, Riobaldo & impelido a certos atos porque ele olha para os companheiros e sente a solicitagao, sempre muda, de fazer coisas, até aquele momento em que sente a exigéncia de ma- tar alguém, se ele & um lider jagungo que se preze. Depois de uma covardia, diz que vai matar o pri meiro que aparecer na estrada; ai ele ia matando um homem, mas amolece diz: "quem eu vi pri- meiro foi 0 cachorro”; mas 0 cachorro comega @ chorar que nem uma criancinha, ele nio consegue matar 0 cachorro; ai ele diz: “pra falar bem a verdade quem eu vi primeito foi a égua” — af todo mundo se prepara pra ele matar a égua — © grupo mudo, o tempo inteiro — af ele descon- versa de novo: “mas eu também no posso matar a égua porque eu tinha dito a primeira pessoa que eu encontrasse” — a égua nao & uma pessoa, entio nao matou nenhum dos trés. Isso mostra como ao longo do processo ele & empurrado, ele esta ali para efetivar as aspiracdes do grupo, € ele sente a obrigatoriedade de o fazer. Quando ele fica passeando, vendo as paisagens dele, sabe que tinha que ir atrés do Hermégenes € que esté fazendo a maior cera. Voltando a0 Catulé © a0 Joaquim, em relagio a sua lideranca ¢ obediéncia total que ele obti- nha do grupo, ¢ muito interessante comparar 0 relato dos acontecimentos nesta parte do'liv: » com as entrevistas atuais que esses mesmos indiviauos dio dois meses depoi dizem: “Joaquim nos obrigou, © Joaquim forgou, mandou e nds fizemos, nbs nem queriamos fazer coisas desse tipo”. Enquanto, ao se ler o relate dos acontecimentos, se percebe a adesio total, sem que 0 Joaquim precisasse forgar coisa nenhuma; um exemplo: uma mulher cujo filho tinha sido assassinado volta para o grup. uma hora depois € continua obedecendo. Nao ha desergdes durante © processo, nem das mies, dos pais das criancas mortas, até 0 fim. Na cena final estio todos pre- sentes com excegio do Manuel (€ nao € por acaso ‘que € 0 Manuel que nao esti li: 0 velho lider, a partir de um certo momento, se amola ¢ diz que as coisas estio esquisitas ¢ se pe na casa dele com Dois meses depois sempre! Auansoue 2 33 a familia, mas nic consegue a obediéncia da pré- pria muther nem da filha que voltam para 0 grupo). © Joaquim esté totalmenie envolvido por aquilo tudo. £ muito freqilente © grupo estar reunido sem convocacio, Essa coisa quase obsessiva de nao conseguirem mais sair disso, eu diria que € porque toda a estrutura que tinham montado esté seria- mente ameagada ¢ cles precisam estar muito vo tados para a tentativa de manutengio daquilo, que € uma angistia basica, primordial, € mais primor- dial do que perder um filho, mais primordial do que comer e dormir ’— salvar a nova coisa que eles construfram na cabeca deles. Nos termos de Bion dir-se-ia “salvar © suposto basico do grupo” que € uma fantasia inconsciente da qual o grupo inteiro participa; alias, 0 Bion mostra que o grupo morre mas ndo sacrifica seu suposto bisico porque a condigio de estar ali, de existir, de ser grupo, € © suposto bésico; o que esté segurando aquele gru- po € 0 suposto bisico; individuos morrerem naque le grupo € 0 de menos. P. Isso lembra 0 Aquirre: A célera dos Deuses: eles nio sacrificam 0 suposte bésico da viagem que é jundar um império grandioso na América Quanto mais eles se precipitam em directo ao de- sasire, maior é seu Império. Eles vivem a derrota crescenie como uma grandeza sem limite. Quanto maior a derrota, maior a sensagdo de grandeza. Quanto mats eles se enterram no rio mais inevit vel € a derrota, ‘mais cresce na cabega deles 0 Império que eles esto criando. AE isso, o instinto de sobrevivencia passa do individuo para o grupo, as fronteiras individuais se apagam, Nesses fendmenos de lideranga esté-se sempre em uma situagao de grupo. B muito comum, em uma explicacio politica falar-se em ago cole- tila, grupal, em situago onde, em minha opiniio, no se poderia falar, porque 0s requisitos basicos daquele mecrismo ter-se montado no esto exis- tindo, no se pode referir 0 que um faz & mente de todos, ct ndo sei se realmente 0 que um esta dizendo € a tradugio da fantasia inconsciente de todos. Faltariam algumas condigdes para isto estar funcionando como dindmica de grupo — onde as fronteiras individuais foram apagadas e as do gru- po é que existem. No caso do Catulé nio hi davida nenhuma que isto esté existindo € nesse caso 0 lider espontineo, emergente, & o lider que esti traduzindo os anseios do grupo, ¢ vai ser obede- ido ¢ solicitado a ser aquilo pelo grupo. A 34 PsicanaLise em oUEsTAD de que © pider do lider carismatico vem de suas ligagdes com Deus nao me convence: acho que se tem que ver o lugar dentro do geupo daquele que disse que esti em comunicagéo com Deus. Esse € 0 fundamento de sua legitimidade. No caso do Jozguim € Onofre o carisma nao vem s6 do fato de saberem ler a Biblia — vem porque naquele grupo eles so os dois que passaram alguns anos em Sao Paulo, E quando o grupo entrou num me- canismo como esse, aquele que mais acenar com a grandeza € quem vai ser seguido; ou os alemaes nao sabiam que iam perder a guerra a partir de tum certo momento, ou a turma do Aguirre nito sabia que nao ia chegar Id a partir de um certo onto? E nio se pode esquecer que nesse proceso ha investimentos € compromissos e o retorno fica cada ‘vez mais dificil, além de ser 0 suposto bésico do grupo etc. J4 se caminhou muito — ¢ nio se volta mais, 0 grupo nio volta mais. Isso nao signi- fica que todos os grupos tenham esse suposto ba sico, mas neste caso 0 suposto estava sendo muito bbem representado pelo Joaquim, nio podia ser nem Onofre — que € um individuo mais ow me- nos sensato — © menos ainda o Manuel: Manuel era o lider qué tinha de ser descartado de toda forma, Todos fazem tudo 0 que o Joaquim quer: no fim niio € nem ele mesmo que convoca o gru- Po, este jé esté sempre junto. Uma das entrevistadas diz que, como aparecen esse boato do deménio, a pessoas tinham medo de ficar sds e voltavam para aquele lugar onde todos estavam, ou para a igreja ou para a praca; as pessoas as vezes ‘iam embora, mas voltavam logo-denois; 0 individuo ali nio tinha mais sentido sozinhc. aio tinha mais, como se organizar, se estruturar enquanto indivi- duo, j4 era pedago daquela coisa, partes sus ja estavam projetadas nos outros, j4 tinham introjeta- do coisas, j4 se estava vivendo um processo. no qual jd se € um fragmento, nio se podia mesmo ficar uma hora sozinho em easa porque s6 0 con- junto tinha um significado: pedacos das pessoas estavam montando “Igo ali, que era o suposto bi sico da grandeza e do dominio do mundo, da ne- ago da decadéncia etc. Acontece que € uma coisa muito comum em grupo — que € 0 que os ale- mies fizeram com o Hitler ¢ que se esti agora fazendo com Jim Jones — e © grupo fez com 0 Joaquim — que todo grupo faz: sempre que re- sulta algo muito frustrador, muito catastréfico de uma aio coletiva, responsabilizam o lider, o pré- prio grupo que aderiu responsabiliza 0 lider. Em Psicoterapia de grupo chamamos esse momento de termidor, isto é, entregar a cabega do lider, 0 “foi ele"; ora, ele fez com a forca de todos, com a delegagio de todos, com as projegies de todos, E tem diversos coadjuvantes. Em psicoterapia de grupo isso € nitido: estragalham o lider. Intimeras vezes eu vi o préprio lider ir embora depois disso, Porque ai se expulsa o lider também, mata-se 0 lider. Matando 0 Iider © grupo se limpa, O que € ‘que esse grupo do Catulé fez? Exatamente isso. © grupo, depois dos acontecimentos, diz que o Joaquim & que tinha mandado cles fazerem, sio todos “‘inocentes”. © Joaquim tirou bebé de colo de mae, matou, a mie no esperneou, no berrou Digamos que ela perdesse a parada mas que ela tentasse alguma reagio ou que depois de ver a crianga morta caisse em si e largasse o grupo. Mas ela volta, Uma das mies, depois de uma suspeita de que o bebé estava com o diabo e era para ser morto, volta para casa com o bebé mas ndo di de mamar no seio porque nao se deve dar o scio a0 déménio. Ela esté sozinha na casa dela enquan- to faz. isso; Escaparia & competéneia de qualquer pessoa comandar a tal ponto um nimero tao in- findavel de atos. P. Que rumos tomam as coisas depois da deci- sito de nao viajar? A. AL é que se alinge 0 paroxismo. Na mesma tarde de quinta-feira, todos mudam de nome. Tro- cam seus nomes tipicos de populagao rural brasi- Ieira para nomes biblicos, Na noite dessa quinta- feira, a primieira crianga & morta, Joaquim propée muitas vezes rituais de “purificagio". A minha ra € sempre a mesma: trocar de nome, puri= ficar-se, também & a forma de expressar a intole- Fancia por aquilo que de fato sio, 0 sentimento de ilegitimidade, © a tentativa desesperada de su- perar-se, de se tornar outra coisa. £ muito inte~ ressante notar que ndo se menciona mais a viagem 20 Tabocal, mas duas ou trés vezes Joaquim diz que todos irio para 0 Céu, que as purificagdes os preparativos tém essa finalidade. Numa passa- ‘gem que jd mencionei, Joaquim diz que sabe dar tum salto © assobiar de uma determinada maneira que leva 20 Céu. Coloca todo mundo enfileirado para ensinar © pulo e 0 assobio. Como todo pro- fessor que se preze, diz, por um lado, que vai ensinar ¢, por outro, que s6 ele € realmente capaz de fazé-to, Essa fSrmula de chegar ao Céu merece também ser repensada. Reparem no imediatismo e na con- cregdo inscritos ai, A proposta religiosa é uma ida a0 Céu depois da morte, como prémio por uma vida virtuosa; 08 caminhos passam pela alfabeti- zacio, administragio do grupo de irmios, leitura © compreensio da Biblia etc. No entanto, a retra- dugdo de Joaquim utiliza 0 corpo © € para ja, No grupo que estudei na minha pesquisa com operé- rios, todos migrantes rurais, apareceu muito cla- ramente a dificuldade da verbalizagio da menta- lizagio, a concrecio do pensamento, as si através do uso do corpo. P. Como terminow tudo isso? A. Hé um momento em que o Joaquim manda todos entrarem na agua porque era 0 banho de purificagao, £ uma poca lamacenta que existe na clareira onde cles nio costumavam se banhar nem nada, mas ele disse para todos se jogarem 1é, tira- rem a roupa porque todos eram puros ¢ ele € Jesus Cristo, nio se pode esquecer: nao vamos esquecer ‘que essa religido tinha introduzido uma moral se~ xual puritana; o grupo depois da conversio virou de ima santidade total ¢ um casal foi expulso do grupo e como a populagio toda era convertida ti- veram que sair do Catulé (isso foi antes dos acon- tecimentos). E esto se banhando ¢ se purificando quando finalmente noticias chegaram a cidadezi nha proxima, que estavam matando gente em C tulé. E um destacamento de trés ou quatro poli ciais enviados a0 Catulé esta se aproximando do local. Todo mundo tenta se esconder no mato, $6 Joaquim ¢ Onofre saem da agua, vem andando € dizendo: “nés somos de paz”. Na verdade, eles viram a chegada da policia como socorro; mas a policia disparou ¢ morreram 05 dois. Sio dois homens nus chegando, Em que este grupo armédo esti ameagado para ter que metralhar estes dois homens? Eu acho muito inte- ressante 0s lideres irem para receber bem: a salvagio, & 0 povo de Si Paulo, € © povo da cidade — € a forga, a poténcia que vem af, enfim. P. Por que os pesquisadores, apesar de sua des- crigéo apurada, nao chegaram a interpretar 0 Ca- ule? ‘A. Quando os pesquisadores chegam Ii, hi vé- rias pessoas presas, outras nao, € 0s pesquisadores se pSem a reconstruir toda a historia do ,rupo, le- vantando entrevista ingividuais etc. e 0 grupo todo ) AUMANAOUE 2 35 esté afirmando que tudo foi o Joaquim que man- dou fazer. Tranqiiilo — 0 Joaquim esté morto, € mais facil. Af a psicéloga, embora dige que é im- portante apreender os fendmenos na sua configu- ratio social, faz andlise individual das pessoas achando que depois vai colocar no contexto grupal. ‘AS pessoas sempre acham que, tomando este ca minho, depois vio juntar com 0 outro ¢ nfo jun- tam nunca mais. Ou vocé faz essa anilise vendo todas as dimensbes ao mesmo tempo, ou ndo es- capa de, posteriormente, tratar 0 grupo como uma soma de individuos. O Lewin j4 tinha dito isso em 1934, Ela gastou alguns mithares de folhas de papel, sei If quantes horas de trabalho ¢ calevlo (tudo sofisticado), para concluir que a3 pessoas do grupo tinham bom equilibrio afetivo, que apre- sentavam apenas tragos de dependéncia e infanti- lidade. Eu acho isso tipico — talvez ela nunca tenha comparado esses resultados com outro gru- po caipira, seguiu os critérios de aferigao de pope- lagio urbana. Nao sei se esse grupo era mais de- pendente que outro grupo, no sei se esses tracos eram mais relevantes nesse grupo do que em outro. Ela nao tem critérios ‘para saber e acaba concluin- do que o Joaquim foi acometido de um surto psi cético porque o Joaquim tinha problemas sexuais graves, porque toda hora aparecia a sexualidade (cle disse numa hora que tinha tido relagdes se- xuais com a menina que morava na casa dele, a que ele tentou matar); ali oito pessoas dormiam na mesma cama; ume hora, no auge de uma situagio terrivel, 0 Joaquim vira de costas para todos e se masturba, dizendo que queria mostrar aos demais 0 que era o pecado. No fim, esse negécio de poder, por exemplo, pas- sar a mao em todas as mulheres porque ele era Jesus Cristo — isso, aparece mesmo em alguns momentos — era uma das coisas com as quais 0 grupo tinha que lidar. A contencdo da sexualidade que a conversio tinha gerade nio era problema s, ela, a menina, mais pessoal do Joaquim, como tudo o mais também rio era, Mas para a psicéloga ele estava em surto * psicético, tinha graves problemas sexuais, © 0 pes- soal tinha obedecido. Essa explicagio é totalmen- te infundada: por mais caipira que um grupo seja, le conhece a loucura, perfeitamente, ha pessoas aque enlouayecem e eles amarram na drvore, deixam 1, prendem, trancam; as comunidades rurais no se pSem a seguir um louco, a fazer 0 que 0 louco manda; eles identificam a loucura, conhecem-na. ° 36 PsICANALISE EM ouestAO Acho totalmente impossivel que Joaquim tenha en- louquecido © todos fizeram o que ele queria. No final a psicéloga acaba dando a mesma explicagéo que 0 grupo, eu acho que a policia tem também @ mesma reago que 0 grupo: mata o Joaquim — a culpa é dele, Aqueles acontecimentos no estéo falando sé do inconsciente daquele grupo, estio falando do inconsciente de todos nés. Os socidlogos © antro- Pologos ado chegaram a tocar na semana, para- Fam nas vésperas e descreveram a semana. Se a Policia chega Id armada e mata dois homens nus, © pesquisador nao é também nenhuma espécie de querubim para dizer que entraria naquilo para entender, ele no foi treinado para isso; 0 fend meno € to ameagador que ninguém mexeu no irra- sional, no emocional, mesmo na formagao inte- lectual mais sofisticada. Entio, 0 pesquisador na verdade no esté nada instrumentado; ele vai se sentir t80 ameagado quanto qualquer outro, sé ue dispBe de uma saida que sio as téenicas para nio entrar no fendmeno. Senti isso nas entrevistas ‘com operdrios em que eu deixava as pessoas fala- rem ¢ saia da entrevista muito mal, angustiada ¢ ‘minha equipe inteira também, O que acontecia é ue as pessoas dessa classe desapropriada estavam narrando a vida de pessoas para as quais as expe- itneias de vida sio terriveis. Mas cra mais que isso. Na verdade, nés estivamos esperando por aquilo, nao tinhamos nenhum otimismo com rela $0 a0 que irfamos encontrar. Na medida em que £8 pessoas faziam associagBes livres ¢ iam falando sorinhas (a lei-base da psicanslise teoricamente & gue essa associagdo livre nio € livre, ela & deter minada pela angistia do individuo), elas me man- davam, portanto, uma mensagem diretamente para © meu inconsciente © eu saia angustiada. O que importa ndo € © dado objetivo (eu tinha feito ‘muitas pesquisas quantitativas), € a angistia que ele me manda, essa coisa inconsciente que ele me Passa, Ja fiz pesquisas sobre a fertilidade humana em que eu perguntava para a mulher: “quantos filhos a senhora tem", e ela respondia 21 © eu per- guntava quantos estavam vivos e ela dizia: um. Com que idade morreram, eu tornava a indagar (porque no meu questionstio tinha isso) — ela dizia: “um morreu com dois meses, outro com quatro” e eu ia tomando nota de tudo. Claro, eu safa um pouco preocupada com # mortalidade in- fantil mas eu ndo saia péssima como na hora em que a mulher me descrevia — porque inventou de passar por ai na associacdo dela, porque eu nio Perguntei nada — a morte de um dos filhos. 0 dado eu sei, tem muita gente que teve 21 filhos © 0s filhos morreram, Mas preencher num questio- nirio vinte mortos € uma coisa muito diferente do Ponto de vista da parte emocional do pesquisador do que ouvir aqucla coisa. Na verdade, no mo- mento em que decompde, 0 pesquisador se livra também da ameaga de a coisa atingi-lo, decom- pondo a realidade em perguntas de question Essa linha de pensamento, além de ser elementa- rista, € um mecanismo de defesa emocional. Outra maneira de lidar com 0 problema é dizer que aquela gente nao é gente como a gente, é uma Populacéo rural, analfabeta, muito primitiva, que actedita em erengas, no pertence a nossa espe Ai, se Vocé definiu que 0 outro € bicho, & uma subespécie, ai vocé se agiienta, Numa greve procuram o culpado ¢ punem dois, num negécio de 500 pessoas. Essa no & s6 uma Postura teoricamente errada, eu acho que a pos- tura teoricamente correta € muito ameacadora, Se vocé disser: “500 empregados meus estio alta. mente descontentes” € uma coisa muito mais difi- cil de lidar do que dizer: “Havia dois subversivos que conduziram meu lindo rebanho para 0 lado mau, agora eles vio ser punidos porque 0 meu lindo rebanho me ama e voltard para o lado do bem" E errado ¢ cémodo. Mas nio € $6 0 patrio que faz isto; quase todos nés usamos 0 mesmo tipo de raciocinio em outras situagoes. Outra coisa: como o grupo é uma coisa’ dife- ente do individuo, freglientemente 0 grupo esti tendo mecanismos psicéticos e & formado por pes- soas normais. Dez pessoas normais estdo fazendo algo altamente psicético. Por causa desse jogo de Projesdes, introjesves, fragmentos, pedacos Inclusive, segundo Bion, os mecanismos de gru- Po sto sempre de tipo psicstico. No grupo apare- com polarizagies que nunca se encontram no indi- viduo, a ndo ser no psicdtico. Porque o que cum- Pre resguardar ¢ a fronteira do grupo como um todo. Se um individuo ficar com toda a irrespon- sabilidade pode matar uma pessoa, por deixar a funcio de controle para outro membro do grupo, Porque projeta, delega a0 outro sua parte respon. sivel, ficando sé com a parte oposta. Como ji disse, as fronteiras individuais se apagam, AMANAOUE 37 Bom, acho que esta entrevista jé esti compri- __aparentemente cadticos demais podem ser, muitas da demais. As idgias estéo bem atropeladas, mas _vezes, uma condensacdo de situagies muito dignas acho que deu para transmitir como pode ser fértil_ de estudo mas que se apresentam, infelizmente, na 2 anilise de movimentos espontineos. E para mos- forma de catistrofes assustadoras das quais todos, trar, também, que fendmenos muito atipicos € até os ciemtistas, tém que fugir.

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