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Memori e identida Memoria ¢ identidade estao indissoluvelmente ligadas. A meméri mesmo tempo em que nos modela, é também por nés modelada. ds resume perfeitamente a dialética da memaria e da identidade, q) COU ch eee ne eo eRe Cnet Reece kre men Tecra or Onn Chere tet ee eee ee eee et valido periodicamente estabelecer uma averiguacéo do es da arte ou tentar um balango dos tiltimos avangos tedri Nesta obra, 0 autor vai além de um simples balango PETE soe teen O leitor tem, assim, em mios um apanhado critico das tilt or ea crite een eet teres SUN eee a ete een et intetesse no campo das Ciéncias Humanas e Soi Joél Candau é professor da Universidade de Nice Sop Antipolis e ditetor do Laboratério de Antropolog Coen eee ene ener! oer ee iden tidade ron Autor: Candau, So sige Re em mos de formas individuais a form etivas da meméria ¢ identidad Pe Cee ao coletivo, efetivamente, existe? Se eae eae eed Come ey DE eee Re CRTC Rr MD ae eee Te manifestam exclusivamente sob a Fae ae eee © culturais? Ou seré uma questio PE eee er eke Ce eee ee eee analisa no “Preimbulo” os termos Sn eee ee ie ao oa See eee Depois, no primeito capitulo, discute 6s conceitos preliminares indispen sdveis de memaria ¢ identidade para Memoria e identidade Consetho Editorial Ataliba Teixeira de Castilho Felipe Pena Jorge Grespan José Luiz Fiorin ‘Magda Soares Pedro Paulo Funati ee, . Memoria | e identidade Be | 0d Pret sep lo pci ma qual ia a JOEL CANDAU A Eeditora nfo & responsével pelo contesdo da Obra, com o qual nio necessariamente concorda. O Autor conhece os fatosnarrados, pelos quais éresponsivel, asim como se responsabiliza pelo jus emitides. Sia a TTR NT editoracontexto 184 Ciyrighe © 2011 Jol Cada ‘Tiel orignal em fancs: Mémoire dente “Todos os diets desta digo reservados dito Contao (Editors Pinsky Lada) Foe de capa "Memésia denial, Jime Pay Montage de ape dagrmaio ‘Gustao 8. Vilas Bose Trdg Masi Ltn Feria Prparode ets Daniela Main Iams Revsto Rinaldo Mest Dinos Inernacionais de Catalogasto na Publics (cr) (Camara Brasicra do Live, s, Bras) Gonha, Jor “Mena identidade/ Jot Cand tidus Mata Leticia Fern ~ So Palos Contest, 2011. “Tuo orga: Mémoine er iden Biliran ISBN 978-85-7244-667-1 |. Hemiade (Peoogia) 2. Meméra 3 sicologia social 1. Tiel, 1105302 cop-153.12 Trace para catllogosivemaicos 1. Memeia eidentidade :Pcologia social 153.12 Eprrons Cowtexto iretor eer Jane Pinsky Run De, Jost Bias, 520 ~ Alo da Lapa (05053.030~ So Paulo sp an (11) 3882 5838 contero@edirorcontet.com.br rweditracntextcombr INTRODUCAO, PREAMBULO. MEMORIA E IDENTIDADE: DO INDIVIDUO AS RETORICAS HOLISTAS. Conceitos preliminares, As ret6ricas holistas, O grau de pertinéncia das ret6ricas holistas aplicadas 2 meméria e 3 identidade DA MNEMOGENESE A MEMOGENESE. A meméi dividual e a consciéncia. Nomeagio, meméria e identidade.. A totalizagio existencial SUMARIO 45 2d 21 28 30 59 59 67 70 PENSAR, CLASSIFICAR: MEMORIA E ORDENACAO DO MUNDO Representagio e modulagao do tempo. ‘Tempo profundo e memsria longa A medida do tempo. ‘Tempo privado ¢ tempo anénimo: do presente real ao tempo real (© campo do memorivel. A memséria das origens. A meméria dos acontecimentos. 0 JOGO SOCIAL DA MEMORIA E DA IDENTIDADE (1): ‘TRANSMITIR, RECEBER. A exteriorizagao da meméria A transmissio profusa As vias da transmissio. Meméria € protomemsria ‘Tradigao: a reproducao € a invencao. Receber. Direito, dever e necessidade de memoria. Direito, dever e necessidade de esquecimento ‘TransmissAo hist6rica ¢ transmissio memorial, © JOGO SOCIAL DA MEMORIA E DA IDENTIDADE (2): FUNDAR, CONSTRUIR. Memséria genealégica e familiar. A meméria geracional 83 85 85 m1 95 98 105 107 112 417 119 121 123 125 127 431 37 137 142 Prosopopeia Comemorar. A meméria das tragédias como recurso identitirio. Lugar de memoria e lugar de amnésia Busca memorial ¢ patrimonializagio. Manipular, dominar, diferenciar. ‘Memérias agonisticas ESGOTAMENTO E COLAPSO- DAS GRANDES MEMORIAS ORGANIZADORAS, O refrao da regressio memorial e identitaria. Medo da perda, memérias e identidades petrficadas Memrias e identidades vivas, assuncao da perda. CONCLUSAO, BIBLIOGRAFIA,, © AUTOR A TRADUTORA. 143, 147 151 156 158 164 170 181 183 189 192 199 207 221 223 INTRODUCAO “Durante os cinguenta anos que precederam e se seguiram ao ano mil, a meméria e as lembrancas foram objeto de grande interese, que se expressou de ‘utra forma no decorrer dos séculos seguintes"! Algumas is simples 1, Tal como a nogiio de cultura, os conceitos de meméria e iden- tidade sto fundamentais para qualquer um que tenha algum interesse no campo das Ciéncias Humanas e Sociais, 2. Contra as concepcdes “objetivistas”, “reificadoras”, “primordia listas”, “substancialistas", “essencialistas’, “origindrias*, “fixistas” etc. de identidade, observa-se um relativo consenso entre os pesquisadores ‘em admitir que essa seja uma construgao social, de certa maneira sem- pre acontecendo no quadro de uma telacao dialégica com 0 Outro. 3, © consenso existe igualmente em reconhecer que a meméria €,acima de tudo, uma reconstrugao continuamente atualizada do pas- sado, mais do que uma reconstituic2o fiel do mesmo: “a meméria é de fato mais um enquadramento do que um contetido, um objetivo sem- pre alcangavel, um conjunto de estratégias, um ‘estar aqui’ que vale menos pelo que é do que pelo que fazemos dele”? A ideia segundo a qual as experiéncias passadas seriam memorizadas, conservadas recuperadas em toda sua integridade parece “insustentavel”,? Memétia e Wdentidade 4, O mnemotropismo de numerosas sociedades modemas en- contra sua origem na “crise do presentismo’s o desaparecimento de referencias ¢ a diluicio de identidades. A busca memorial é entao con- siderada como uma resposta 2s identidades sofredoras e frigeis> que pemnitiria “apoiar um futuro incerto em um passado reconhecivel”’§ Variante 2 primeira vista, tende talvez a0 contradit6rio: as paixdes, considetando-se também as tenses identitirias contemporiineas, so a consequéncia de uma perda de meméria. 5. Enfim, admite-se geralmente que meméria ¢ identidade estio indissoluvelmente ligadas.* Essas ideias em conjunto sio desenvolvidas ad nauseam nas inu- meriveis publicagdes que, de acordo com diferentes pontos de vista disciplinares, abordam o tema da meméria ¢/ou identidade, Assim, no momento de comegar um livro que leva precisamente esse titulo — Me- ‘méria e identidade ~ devemos considerar que tudo 4 foi dito? Poderfamos nos valer da velha ret6rica da qual se usa ¢ abusa para introduzit uma obra: em um dominio tio vasto e abundante que € 0 das pesquisas sobre meméria ¢ identidade, nao € intl periodica- mente estabelecer uma averiguagao do estado da arte ou tentar um ba- lanco dos tiltimos avangos te6ticos. Esse balango € de fato necessiirio considerando que a “onda memorial” que atinge o ‘mundo inteiro”” znos tltimos vinte anos justifica, sem dtivida, que 0 conceito de identi- dade seja revisitado em relaco 4 Mnemosyne. No entanto, esse trabalho pretende ir mais além do que um ba- lango do estado da arte sobre meméria, Este livro € um ensaio de An- tropologia da memsria e identidade, Essa disciplina" se interessa pelo homem como animal social e cultural. Levar em conta essa especi cidade implica dizer que a Antropologia busca elucidar, com rigor, as modalidacles de acesso do homem ao seu estatuto de ser social e cul- tural. O objetivo € determinar como, a partir de uma forma individual — um ser humano — que € um dado imediato do cogito, mas também de toda a experiéncia intersubjetiva, passa-se para formas coletivas, 10 Introdugio nas quais a existéncia € esséncia sao problemdticas e demandam sem- pre uma confirmagio. Assim, enquanto a Psicologia e a Sociolo, dedicam a elucidar a natureza © 0 comportamento dos individuos, dos grupos e das sociedades, a Antropologia trabalha essencialmente na articulagaio dessas duas abordagens. Entrincheirada no ponto de passagem entre o individuo € o grupo, esforca-se em compreender, a partir de dados empiricos, como os individuos chegam a compantilbhar priticas, representagoes, crencas, lembrancas, produzindo, assim, em uma determinada sociedade, aquilo que chamamos de cultura Assim, © objeto deste livro € analisar como passamos de formas indlividuais a formas coletivas da meméria e identidade. Entretanto, nos cabe perguntar se essa questio & procedente. Interrogar-se sobre essa passagem do individual ao coletivo pressupde que ela efetivamente exista, logo isso deve ser demonstrado em cada caso considerado, Se admititmos essa reserva, devemos nos interrogar sobre a pertinéncia de nogdes ¢ conceitos que utilizamos para designar as formas coletivas da meméria ¢ identidade. Por outro lado, se existe essa passagem, isso quer dizer que podemos observar um momento no qual a meméria € identidade de um individuo sao ainda livres de toda influéncia co- letiva e outro no qual elas se manifestam exclusivamente sob a in- Aluéncia de determinismos sociais € culturais? Ou seré uma questio de grau, niveis, densidade? Entao, como observar os limiares em que as nogdes de memGria € identidade individuais serao pertinentes ¢ em que, além disso, aquelas de meméria € identidade coletivas terio um fundamento empirico? Com o objetivo de precisar 0 marco te6rico subjacente a es quest6es, no “Predmbulo” remeto-me 2 observagio dos termos atual- ‘mente mais comuns da problemitica relativa a identidade e ao mne- motropismo contemporaneo. primeiro capitulo é dedicado aos conceitos preliminares indis- pensiveis para abordar os problemas de ordem ontolégica: a qual rea- lidade remetem os conceitos de meméria e identidade, em particular 6 i Moméria e tdentidade quando sio utilizados como “frmulas consagradas’, nogdes de meméria e identidade coletivas. No segundo capitulo abordo questio da construgao e variagdes da meméria e identidade no nivel do individuo. No terveiro mostro que a “memorializagao” do mundo pressupoe seu ordenamento em particular gragas a uma domesticagio ou uma estruturagao do tempo: sem as balizas temporais que sio, principal- ‘mente, a origem e 0 acontecimento, nenhuma identificagio € possivel. Nos trés Ultimos capitulos busco observar algumas modalid: des de “passagem” de formas individuais da memoria ¢ identidade as formas coletivas. Argumentatei, finalmente, que em um contexto de esgotamento de grandes memérias organizadoras do lago social, em uma época marcada pelo retrocesso de memérias fortes em proveito de memérias miiltiplas, confusas e oportunistas, 0 recurso as reténi- cas holistas (meméria coletiva, identidade coletiva etc.) para definir € descrever as relagdes entre meméria € identidade a escala de grupos toma-se cada vez menos pertinente.? " tais como as NOTAS Patric J. Geary, La mémoie et Poubl la fd premier millénaire, Pris, Aubles, 196, p. 58 Piere Nora, “nite mémoire et histoire’, Les lex de mémoire, la République, Pars, Gallimard, 1984, p. va Suzanne Kichler, em Tim Ingold (org), Key Debates in Antbropology, Londres e New York, Routledge, 1996, p. 226, (© que Francois Hartog define como a expressio de wm “profundo questonsmento do regime ‘modemo de hisoricidade. O futuro, 0 progresso as ideologs que alse vinculam pesderam ‘sua forea de conviogto da mesma forma como a diferengs entre 0 horionte de expera € 0 ‘campo de experiéncss se tornava maximo": “Temps et histoire. Comment ecize Uhistoie de France’, Annales nov -de2. 1995, n. 6 p. 1255 ‘Um exemplo, ene tantos outros; “fim do século tende as retrospecgies, aos inventiros & aos balangos (.] Questionar a mena, como se fa hoje, nfo seia una outta forma deus ‘ar os peiagos de uma idenidade que se dispersae se pede ra neblna”.PoulekRingelheim (org), les jus entre la mémotr et Toubl, Brxelles, Ed de [Université de Braelles, 187, p. 6 [Nicol Lapierte, ‘Dialetique de la mémoire et de ub’, Cnmmuntcatons,n. 4, 198, . 6 ‘Ana um exemplo: a inseguranga de ue mundo em profunda mutacao, as mmadangas sotais © colturaisaceleradas,suscitaram uma tomada de cooseiéncia coletiva telativa A diapidacto 12 Introd do patsimdnto pr6pelo a cada comunidade humana e encorsjou a uma busca de Wentidade” Freddy Raphael, “Le avail de la mémoice et les limites de Uhistoite orale’, Armas 1x m1, fan-fev. 1980, p. 127 "A meméra € um elemento essencial daqullo que passamos a chamar de (dentidade ndvidval cou coletiva, cya busca € uma das avidades fundamenais dos individu e ds sociedades do presente, na Febre e mt angina” Jtcques Le Gof, Hisoie of mémotre, Psi, Gallia, 1988, "74 » Pie Nor, Lal de a mémoke, Le Diane 199,078, p19. ® A antropologia sociale cultural ea antopologi fica constituem disciplins separadas, 1 Todo dominio de pesquisa fem suas Frmulas consagracas gras as quaispademos paris de pensar nos problemas anes mesmo de tos rescvides” John R. Seale, Sens et expression, nudes de tori des actes de langage, Pais, Minit, 979, p. 104 % agradego a meus colegas JeanPiere Jaret, Jear- Michel Marchal ¢ Jean Poitier por suss sis atenasleiuras do manusento. Apesar de seus preciosos conslhos, estou consclente de que esta obea apresenta ainda algumas insufeiénclas e as assumo como de mina ini responsabiidade 13 PREAMBULO Somos sempre “condenados ao tempo”,’ condigio a qual nao escapa nenhuma existéncia. O tempo “voraz”® que segundo a segun- do, como um inseto perseverante (Maeterlinck), devora mecanica € inexoravelmente toda vida, realizando assim sua obra de decomposi- Ao: o tempo presente, agonizante por esséncia (Borges inspirado em Arist6teles e Santo Agostinho), prestes a desaparecer no passado no momento mesmo em que anuncia o futuro, O fluxo do tempo, por essa razlo, ameaga 0s indivicuos € os grupos em Como parar esse tempo devastador, essa “cortida desabalada’,? como evitar seu trabalho “incoerente, indiferente, impessoal e destruidor’,* como se livrar da “ruina universal” com a qual ameaca toda a vida? A. meméria nos dari esta ilusio: © que passou nilo esti definitiva- mente inacessivel, pois € possivel fazé-lo reviver gragas & lembranga, Pela retrospeceo o homem aprende a suportar a duragao: juntando os pedagos do que foi numa nova imagem que poderd talvez ajudé-lo a encarar sua vida presente. De acordo com Santo Agostinho, “0 espirito €amemséria mesma” Buiuel dizia que era preciso perder a mem6ria, ainda que parcialmente, para se dar conta de que € ela que “constitui 7 O conhecimento de si, observa Jean-Yves Lacoste, “leva 1as existéncias Meméria e tdntidade consigo, necessariamente, os caminhos de uma meméria de si mes- mo® Mnemosyne, a “chave da consciéncia’,’ 6, portanto, uma fonte primordial para o que chamamos de identidade: “Memory make us, we ‘make memory’ ‘A meméria, a0 mesmo tempo em que nos modela, é também por 1nés modelada, Isso resume perfeitamente a dialética da meméria e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outta para produzir uma trajet6ria de vida, uma hist6ria, um mito, uma narrativa. Ao final, resta apenas 0 esquecimento. Essa complexa dialética tem sido objeto de inumeraveis trabalhos em Giéncias Humanas ¢ Sociais. A maior parte dos pesquisadores en- fatiza a importincia desse campo de estudo para a compreensio dos fenémenos humanos € sociais. Eles insistem igualmente sobre os lacos fundamentais entre meméria € identidade e sobre o fato de que é a meméria, faculdade primeira, que alimenta a identidade. identidade, meméria e patriménio sao “as trés palavras-chave da consciéncia contemporainea”” — poderiamos, alias, reduzir a duas se admitimos que o patriménio é uma dimensao da meméria =," é a meméria, podemos afirmar, que ver fortalecer a identidade, tanto no nivel individual quanto no coletivo: assim, restituir a meméria desapa- recida de uma pessoa € restituir sua identidade. Para Anne Muxel, o trabalho da meméria atua na construcio da identidade do sujeito, é “o trabalho de reapropriaclo e negociago que cada um deve fazer em relago a seu passado para chegar a sua pro- pria individualidade’.® Igualmente, Isac Chiva, ao definir identidade como “a capacidade que cada um tem de permanecer consciente de sua vida através das mudangas, crises ¢ rupturas”," enraiza igualmente a identidade em um processo memorial. Nesse sentido, Isac Chiva Anne Muxel sto figis a Maurice Halbwachs, que langou e explorou metodologicamente esse campo de pesquisa. As lembrancas que guardamos de cada época de nossa vida, ob- serva Halbwachs, se reproduzem sem cessar e permitem que se per- 16 Proimbulo petue, “como pelo efeito de uma filiago continua, o sentimento de nossa identidade”."* Halbwachs sustenta essa ideia no “Preficio” de Les cadres sociaux de la mémoire a0 falar do mito da jovem esquimé des- coberta no século xvm, que, totalmente despojada de quadros coletivos dla meméria que a vinculassem a sua sociedade de origem, estaria sem. nenhuma lembranga, logo sem nenhuma identidade individual e so- cial, A “conservagao de si através do tempo”, observa Ricoeur, implica a interdicao do esquecimento.* No universo orwelliano da Oceania, Winston Smith € destruido como individuo pelo esquecimento originado por aquilo que desapa- rece no “vazio de meméria”; sem lembrancas, o sujeito é aniquilado. £ @ memGria, ainda, que iria fundar as identidades coletivas: no final da Idade Média, na Alemanha, dizia-se que os camponeses, quando se re~ belavam frente ao poder senhorial, “esqueciam-se” de que “se haviam desconhecido” esquecendo “quem eram’.” Conhecemos as referéncias de Renan ao “rico legado das lem- brangas” e & “heranca recebida indivisa” e que constituem a alma e 0 principio espiritual da nagio."* No nivel de uma comunidade aldea, € a tese defendida por Philippe Joutard em seu prefiicio & pesquisa de Lucien Aschieri sobre os alaudianos.* Estes buscam reforcar suas identidades utilizando-se de todo tipo de instituigdes de meméria, que do sto necessariamente tradicionais: oficios de turismo, clubes de bo- liche, sociedades histéricas etc.” A meméria €, de fato, uma “forca de identidade”” Igualmente, outros autores observam que as ideologias que prevalecem nas “memsrias migrantes” jogam com as fronteiras da alteridade para produzit, pela distinglo, as identidades sociais.” Finalmente, € quase banal constatar que, no quadro de estra- \égias identitirias os individuos operam escolhas sempre no interior de um repert6rio flexivel e aberto a diferentes meios: representagoes, TN Tr Fabicantes dla regio de Allauch, nas proximidades da cidade de Marsetha. tra Moméria e idenidade “mito-hist6rias”,# crengas, ritos, saberes, herangas etc., ou seja, no in- terior de um registro memorial ‘A meméria € a identidade em agio, mas ela pode, ao contririo, ameacar, perturbar e mesmo arruinar o sentimento de identidade, tal ‘como mostram os trabalhos sobre as lembrangas de traumas e tragédias ‘como, por exemplo, a anamnese de abusos sexuais na infancia ou a meméria do Holocausto® De fato, 0 jogo da meméria que vem fundar a identidade € necessariamente feito de lembrangas esquecimentos: no dominio da “identidade étnica", a completa assimilacao dos indivi- duos pode ser contestada pela sociedade que os acolhe, desde que 0 trabalho de esquecimento de suas origens nao tenha se completado.* Em um registro diferente, o da “vertigem patrimonial’ contempo- nea, a paixio memorial pode revelar uma rejeigao da representaca que fazemos de nossa identidade atual, projetando no passado e, por vvezes, 20 mesmo tempo no futuro uma imagem do que gostariamos de ter sido, imagem obsessiva que nega as alteragdes e a perda, ou imagem alucinada da beleza do morto, constru‘da a partir de arquivos, tragos, monumentos, objetos, reliquias, ruinas e vestigios. Mesmo nes- ses casos de nostalgia identitiria mérbida, a meméria precede a cons- truco da identidade, sendo um dos elementos essenciais da sua busca “extrema, individual e coletiva’,% busca a qual se somam 0s etndlogos, museélogos etc., legitimando cientificamente os objetos patrimoniais. Entretanto, se a meméria vem antes, a demanda identititia pode vir reativa-la. E 0 que se pode observar em relacio & constructo da identidade judaica, que “encontrou um novo terreno de predilecao no trabalho de exumagio de tudo o que compée a meméria judaica’;” ‘uma reapropriagao que se manifesta sob intimeras formas: criacao de departamentos de estudos judaicos no ensino superior, casas edito- riais, revistas, programas televisivos, revitalizagao de linguas ¢ culturas judaicas etc, Essa identidade judaica — mas nio seria esse 0 caso de todas as identidades? — “se detxa menos reduzir a uma definigao e mais, do que tudo apela & meméria’* 18 Predbulo Sea memoria é “geradora’ de identidade, no sentido que partici a de sua construgao, essa identidade, por outro lado, molda predispo- sigdes que vao levar os individuos a “incorporat” certos aspectos parti- culares do passado, a fazer escolhas memoriais, como as de Proust na Busca do tempo perdido, que dependem da representagiio que ele faz de sua propria identidade, construida “no interior de uma lembranga”. Finalmente, no seria equivocado pensar meméria e identidade como dois fenémenos distintos, um preexistente 20 outro? Mesmo que ontol6gica ¢ filogeneticamente a memoria 6 necessariamente anterior em relaggio & identidade — essa tiltima nao é mais do que uma repre- sentagio ou um es ido adquirido, enquanto que a meméria é uma faculdade presente desde o nascimento e a aparigao da espécie huma- na -, toma-se dificil consentir sobre a preeminéncia de uma sobre a outra quando se considera o homem em sociedade. De fato, meméria € identidade se entrecruzam indissoctaveis, se reforcam mutuamente desde © momento de sua emergéncia até sua inevitivel dissolucao. ‘Nao hé busca identitiria sem meméria e, inversamente, a busca me- ‘morial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente. Desse ponto de vista a expressao “meméria ‘dentitavia”, utilizada por Janine Ponty a respeito da memsria dos po- loneses do norte da Franca ou ainda por Anne-Marie Granet-Abisset, em sua pesquisa sobre a meméria dos queyrasins," revela 0 quanto é dificil dissociar essas duas nogoes, sendo intitil tentar distingui-las sem um esforgo prévio de depuragao conceitual, NOTAS Mireille Cale Cong), Clade Simon. Chemis dela mémoie Sainte-Foy (Québec fon Maile ao Sainte-Foy (Québed, Fa, Le Gif Ovide, Métamorpbases ws, 234 Giles Deleuze, Prous ot es signs, Pats, nu, 194 e 1996, p. 27, Claude Simon, Za rowe de Flandres, Pai, Mins, 1960, p.314 Paul Ricoeur, “Entre mémoire et hisoe", Proje, 248, 19961997, p. 12 19 Meméria e identidade © Sunt Augustin, les Qoyesions x, Lue Butt, on deter supi Pas, Robert Llfont, 199,336. Jean-Yves Lacoste, Neve surf femps sat sur les raisons dela miémolne et de Vspivance, Pas, ur, 1860, p43. * Anthony P. Cohen © Nigel Rapport Comps), Questions of Consciousness, Londres © New York, 1995, p.8 © lzabeth Tonkin, Narating our pass. Te social construction of oralhistory, Cambridge, Cam bilge Univesey Press, 1992, p. 97-112 * Plerte Nora, Zes eux de mémotre. Les Prance, 3: De Varcive a lemblome, Pais, Gallimard, 1992, p. 1010. Durante um col6quio realizado em noverbro de 1994 por ocastio do 30 aniversiria do In- ventério Geral, Pete Nora observa que nos tims tint anos 0 patriménio “velo unit 2a _mesna conselacio passional as palavas mena e Kdentidade, das qual se tornou quase um sindnimo". P. Nora (org), Science et conscience du patrimoine, Pars, Fayaed & Batons di Patrimoine, 1997, p. 12 ® nme Mune, Indi et mémoire familial, Pais, Nathan, 1996, p. 207 Tste Chiva, em Marc Augé (ong), emotes de la mémoie, ThonontesBains, Fons de Talbaron, 1992, p. 14.16, © Maurice Halbwachs, Les cadres soca de la moins, Pais, Albin Michel, 1925 © 1994, p. 89. 6B. Ricoeur, op. city p. 11 € 12, " Gadi Algzz, "Violence, mémnoke et pouvoir seigneuial & la fin ct Moyen Age’, Actes ela rechorcbo en science sociales 105, det, 1984, p. 26-28 "mest Renan, Quies-ce qu ne nation? Pas, Presses Pocket, 1992, 5A ' Philipp Jouard, em Lucien Asche, Le pass compost. iémoire d'une communauté proven- ale, Masel, Tacussel, 1985, p. 6. » P. Jouatd, “Le muse da desert. La minortéreformée", em P. Nora, Les Hews ae mémosre. my ‘us France, I: Confts et partages, Paris, Gallimard, 1992, p. 546. © iz Felipe Baéta Neves Flores, “Mémoires migrants. Migration et idéologie de le mémoire sociale”, #tbnologie Francaise, x, 1995, 1, p. 45. = Edmund R, each, Luntéde Pomme ef autres essats, Pats, Gallimard, 1980, p. 367 2 Ver Paul Antzee Michel Lambek (orgs), Tense past Cura essays in Trauma and Bemony, New York e Londres, Rowdedge, 1996, bbliografia, index, 266. * Philippe Poutignat ¢ Jocelyne SueiffFenas, Théories de Tetbnicié seguide de bes groupe ‘etbnigues et leurs fronlees (Fredrik Bath), Pats, or, 1995, 176, ® P, Nora, op. city p. 396, Jacques Le Gof, em P. Nora, op ck, p. 118. » Regine Aza, Reldenacation communautaire di fudaisme, em Grace Davie, Danidle HerviewLéger, Idents raligieuses en Europe, Pai, La Découvere, 1996, . 262 ® . 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Isso nao seri detalhado aqui, pois, no campo da Antropologia da mem6- tia,’ mais importante que memsria enquanto uma faculdade humana € analisar as formas como a mesma se manifesta (varidvel de acordo com 0s individuos, grupos, sociedades). No entanto, numa perspectiva antropol6gica, proponho a seguin- te taxonomia das diferentes manifestagdes da memoria: 1, Uma meméria de baixo nivel, que sugiro denominar protome- mria. Esta, tal como “protopensamento”, “ndo pode ser destacada da atividade em curso ¢ de suas circunstancias’? © antropélogo deve privilegiar essa modalidade de meméria, pois é nela que enquadramos ‘Meméria eidentidade aquilo que, no Ambito do individuo, constitui os saberes © as expe- ri€ncias mais resistentes e mais bem compartilhadas pelos membros de uma sociedade? Grosso modo, podemos dispor sob esse termo a meméria procedural — a meméria repetitiva ou memsria-habito de Bergson, a inteligéncia profunda que, de acordo com Marcel Jousse, permite ao cavaleiro lutar “sem se preocupar com sua montaria”> - ow ainda a meméria social incorporada,® por vezes marcada ou gravada na came,’ bem como as miiltiplas aprendizagens adquiridas na infan- cia e mesmo durante a vida intrautetina: técnicas do compo que si0 0 resultado de uma maturagio a0 longo de varias geragdes, memérias gestuais" que no sistema nervoso central so o resultado do fortaleci- mento ou enfraquecimento de conexdes sindpticas, esquemas sens6- rio-motor piagetianos, rotinas, estruturas dobras cognitivas, cadeias operat6rias inscritas na linguagem gestual ¢ verbal — acontecendo em uma “penumbra”? diferente do automatismo, mas onde “o exercicio do julgamento nao é realizado" -, transmissao social que “nos ancora em nossas priticas e cédigos implicitos’," costumes introjetados no “espirito sem que neles se pense” ou sem que disso se duvide,” tracos, marcas € condicionamentos constitutivos do ethos e mesmo alguns aspectos que jamais so verbalizados."¢ habitusdepende, em grande parte, da protomeméria, e Bourdieu descreveu bem “essa experiéncia muda do mundo como indo além daquele que procura o sentido prético”, as aprendizagens primérias que, do ponto de vista corporal, so como lembretes, as ligagoes ver- bo-acdo que fazem funcionar corpo e linguagem como “depésito de pensamentos diferenciados” e tudo o que depende de disposigoes cor- porais, incorporadas de maneira permanente, “maneira durdvel de se portar, falar, caminhar, e, para além disso, sentir e pensar’; saber her- dado “que nao se separa jamais do corpo que o carega”"* e que por essa razdo depende do que o autor chama de um “conhecimento pelo corpo”. Essa forma de conhecimento ou “senso pritico” é © que nos permite agir quando necessirio sem que se pergunte “como se deve 22 Moméria etdentidade fazer’.” Nesse caso, observa Bourdieu, 0 passado nto € representado, ‘mas age pelo corpo ou, mais exatamente, “est presente agindo nas disposigdes que ele produziu’."* © habitus como experiencia incorporada é uma presenca do pas- sado ~ ou no passado -, “e no a meméria do pasado’. A protome- mria, de fato, € uma memsria “imperceptivel”, que ocorre sem tomada de conscigncia.® Ela € essa forma de meméria bem descrita por Anne Muxel que trabalha o corpo sem relaxar, esculpindo-o para fazer dele lum corpo mimesis ¢ que € “a alienagao fundadora da identidade”.® 2. A meméria propriamente dita ou de alto nivel, que € essen- cialmente uma meméria de recordagio ou reconhecimento: evocag2o deliberada ou invocacao involuntétia de lembrangas autobiogrificas ou pertencentes a uma memiéria enciclopédica (saberes, crencas, sen- sages, sentimentos etc.). A memeéria de alto nivel, feita igualmente de esquecimento, pode beneficiar-se de extensdes artificiais que derivam do fendmeno geral de expansio da meméria. 3. Ametamemséria, que €, por um lado, a representagio que cada individuo faz de sua propria meméria, o conhecimento que tem dela e, de outro, o que diz dela® dimensdes que remetem ao “modo de afiliagdo de um individuo a seu passado™ e igualmente, como observa Michael Lamek e Paul Antze, a construgio explicita da identidade> A ‘metamemsria é, portanto, uma meméria reivindicada, ostensiva. A protomeméria € a memsria de alto nivel dependem diretamen- te da faculdade da meméria. A metamemria € uma representacéio relativa a essa faculdade. De fato, os trés termos podem ser igual- mente conceitos cientificos. Mas essa taxonomia é valida desde que 0 interesse sejam as memérias individuais. Nesse caso, essas diferentes nogdes sto perfeitamente adequadas para dar conta de certa realidade vivida por toda pessoa consciente. Andamos de bicicleta sem cair ou saudamos uma pessoa que encontramos na rua adotando uma gestua- lidacle incoporada, da qual nem nos damos conta: devemos isso & protomemiéria. Em nossa vida cotidiana, mobilizamos regularmente 2B Meméria o tdentidade miiltiplas lembrangas, recentes ou antigas, € temos por vezes a sorte ‘ow infelicidade de conhecer experiéncias proustianas, mesmo se nos sentimos impedidos de descrevé-las: temos aqui as duas formas de meméria de alto nivel, Enfim, cada um de nés tem uma ideia de sua propria memoria e € capaz, de discomer sobre ela para destacar suas particularidades, seu interesse, sua profundidade ou suas lacunas: aqui se trata ento da metameméria Entretanto, no momento em que passamos para o nivel de gru- os ou sociedades, o estatuto desses termos muda ou fica totalmente invalidado. Toma-se evidente que a nogio de protomemsria se torna inaplicdvel: nenhum grupo € capaz de ter uma memoria procedural ‘mesmo que ela possa ser comum, compartilhada pelos membros desse ‘mesmo grupo. Nenhuma sociedade come, danga ou caminha de uma maneira que Ihe € prOpria, pois apenas os individuos, membros de uma sociedade, adotam maneiras de comer, dangar ou caminhar que, a0 se tornarem dominantes, majoritérias ou unfnimes, serio considera- das como caracteristicas da sociedade em questio. Por consequéncia, em nivel de grupos, apenas a eventual posse de uma meméria evo- cativa ou da metamemséria pode ser pretendida. i essa eventualidade que aparece subjacente na expresso “meméria coletiva’. Porém, € impossivel admitit que essa expressio designe uma faculdade, pois a tinica faculdade de meméria realmente atestada € 2 meméria indi- vidual; assim, um grupo nao recorda de acordo com uma modalida- de culturalmente determinada e socialmente organizada, apenas uma Proporcao maior ou menor de membros desse grupo € capaz disso” De fato, em sua acepgio corrente, a expressio ‘meméria coletiva” € uma representacdo, uma forma de metameméria, quer dizer, um enunciado que membros de um grupo vao produzir a respeito de uma ‘memria supostamente comum a todos os membros desse grupo. Essa ‘metamemsria nao tem o mesmo estatuto que a metameméria aplicada & meméria individual: nesse caso é um enunciado relative a uma de- nominacao — “meméria” — vinculada ao que designa — uma faculdade 24 Unb - BIBLIOTECA CENTRAL Memeriaetdentidade atestada ~ “como a etiqueta em relagao & garrafa’* enquanto no que se refere ao coletivo é um enunciado relativo a uma descrigdo de um compartilhamento hipotético de lembrangas. Podemos encontrar na im- prensa” ou ainda na literatura de valorizagao do patriménio intimeros exemplos desses enunciados evocando a “meméria coletiva” de uma aldeia ou cidade, de uma regio, de uma provincia etc., enunciados que geralmente acompanham a valorizag2o de uma identidade local. Qual pode ser a realidad desse compartilhamento de lembrangas ou representagdes do passaclo? Essa € a pengunta que devem fazer os historiadores, os sociélogos ou os antropSlogos quando empregam a expresso “memoria coletiva’, o que nos leva a interrogar a pertinéncia dessa expressio utilizada entao como conceito. No caso da identidade, a tentativa de depuraco conceitual é mais dificil. No que se refere ao individuo, identidade pode ser um estado ~ resultante, por exemplo, de uma instincia administrativa: meu docu- mento de identidade estabelece minha altura, minha idade, meu ende- reco etc. - uma representagdo — eu tenho uma ideia de quem sou = € um conceifo, o de identidade individual, muito utilizado na Humanas € Sociais. Aplicada a um grupo, a complexidade aumenta. Passemos ao fato de que, nesse caso, o termo “identi is Ciéncias lade” & imprdprio® porque ele nunca pode designar com rigor uma “recorréncia”: em um momento preciso de uma observacio um individuo é idéntico a ele mesmo, mas duas pessoas ~ mesmo que se trate de gémeos — jamais sio idénticas entre elas." O temo € entio utilizado em um sentido menos restrito, pr6ximo ao de semelhanca® ou de similitude que satisfaz sempre uma inclinag&o natural do espirito. Se admitirmos esse uso pouco rigoro- so, metaforico,* a identidade (cultural ou coletiva) é certamente uma representacdo, Exemplos nfo faltam para mostrar que, de maneira constantemente renovada, 0s individuos percebem-se ~ imaginam-se, ‘como diria Benedict Anderson’ — membros de um grupo e produzem diversas representagdes quanto 2 origem, historia e natureza desse 25 Meméria e identidade grupo: no dominio da acio politica pensamos evidentemente nas te- ses racistas, nos projetos regionalistas ou étnicos e, de maneira mais geral, em todo discurso de legitimagio de desejos nacionalistas; no dominio da ago cultural, podemos nos referir aos discursos veicula- dos por coletividades territoriais, Estados, museus e mesmo instituigoes de pesquisa sobre as priticas patrimoniais. © objeto pattimonial que é preciso conservar, restaurar ou “valorizar” € sempre descrito como um marco, dentre outros, da identidade representada de um grupo: os bretdes, os franceses, os nuers, “nossos ancestrais” etc. Mas pode a identidade coletiva ser um estado? Aborcamos aqui uma questio que € objeto de uma abundante literatura e cuja discus- so ultrapassa o marco desta obra, Darei conta unicamente do que falei mais anteriormente sobre protomemsria: € provavel que os mem- bros de uma mesma sociedade compartilhem as mesmas maneiras de estar no mundo (gestualidade, maneiras de dizer, maneiras de fazer etc.) adquiridas quando de sua socializacao primeira, maneiras de es- tar no mundo que contribuem a defini-los e que memorizaram sem ter consciéncia, o que € 0 principio mesmo de sua eficicia. Desse ponto de vista, seria preciso atribuir nuances as concepgdes situacionais de identidade sem, no entanto, rejeité-las, afirmando que pode existir um niicleo memorial, um fundo ou um substrato cultural, ou ainda o que Emest Gellner chama de “capital cognitivo fixo’,> compartilhado por uma maioria dos membros de um grupo e que confere a este uma identidade dotada de uma certa esséncia. Essa afirmacdo, a qual numerosos trabalhios etnogrficos conferem, algum peso, permanece, entretanto, exposta & ctitica por pelo menos dluas razdes. De um lado, parece-nos abusivo utilizar as expressoes “identidade cultural” ou “identidade coletiva” para designar um supos- to estado de um grupo inteiro quando apenas uma maioria dos mem- bros desse grupo compartiha 0 estado considerado: de fato, mesmo que nos limitissemos a um estado exclusivamente “protomemorial”, descarto a possibilidade de que todos os membros do grupo compar 26 vunB - BIBLIOTECA CENTRAL Memériae tdentidade tilhem esse estado. Por outro lado, é reducionista definir a identidade de um grupo a partir unicamente da protomeméria, pois as estratégias identitarias de membros de uma sociedade consistem em jogos muito mais sutis que o simples fato de expor passivamente habitos incor- porados. Evidenciar essa sutileza constitui, aliés, 0 aporte principal das teses situacionais, desenvolvidas em oposigio ao primordialismo. Essas teses so muito convincentes, uma vez que sustentam que as identidades nao se constroem a partir de um conjunto estavel e obje- tivamente definivel de “tragos culturais’ ~ vinculagdes primordiais -, ‘mas sto produzidas € se modificam no quadro das relagdes, reacbes € interagdes sociossituacionais ~ situagées, contexto, circunstancias -, de onde emergem os sentimentos de pertencimento, de “visdes de mundo” identitérias ou éticas, Essa emergéncia € a consequéncia de processos diniimicos de inclustio ¢ exclusio de diferentes atores que colocam em acdo estratégias de designagiio e de atribuigao de caracte- risticas identivirias reais ou ficticias, recursos simbélicos mobilizados em detrimento de outros proviséria ou definitivamente descartados.” Esses destaques das “dimensdes" e das “significagdes da identida- de" sao geradores de diferencas ou, mais exatamente, de “fronteiras sociais™ escorregadias a partir das quais os atores estimam que as coisas © as pessoas ~ “nds” versus “os outros” ~ sto diferentes. Essas variagdes situacionais da identidade impedem de reifici-la, de redu- zicla a uma esséncia ou substincia. Entretanto, a critica de sua completa dessubstanciagao" dispoe de argumentos fortes tais como os que sugeri propondo a nocao de protomemiria. De novo, tal como para a nog&o de meméria coletiva, coloca-se a questio da pertinéncia dos conceitos de identidade quando aplicados a grupos, quer dizer, a pertinéncia de expressdes tais como “identidade cultural” ou “identidade coletiva’ Em resumo, nos dois casos, tanto para meméria quanto para identi- dade, somos levadosa questionar sobre o grau de pertinéncia do que cha- mo de retdricas holistase convém, portanto, defini-las preliminarmente. 27 Momértae tentidade AS RETORICAS HOLISTAS A retérica é uma técnica de persuasio “para o melhor ou para 9 pior’ Por consequéncia, parece sabio e desejivel evitar 0 tisco do pior, eximindo-se de todo recurso a formulas ret6ricas. Por outro lado, considerando que a Antropologia apresenta uma pretensio a cientifi- cidade, poder-se-ia considerar que a priori uma retérica jamais seria pertinente, pois o ideal cientifico € o da “erradicagao da retérica", num discurso no qual subsistiriam apenas “fatos, cifras, leis”. Entretanto, a hist6ria mostra, por um lado, que “por vezes se faz a boa ciéncia de uma maneira errada” €, de outro, que existe “transcendentais ret6ri- cos”, verdadeitos indices do saber “que nao sao a indumentiria do Pensamento, mas sua condicaio mesma”. O desafio é, portanto, distin- guir entre as retéricas heuristicamente necessérias € aquelas que sio “concessdes 2 facilidade”,® Reafirmo que um dos objetivos fundamentais da Antropologia é 0 da compreensio da passagem do individual ao coletivo. Nesse sentido, as Ciéncias Humanas e Sociais raramente deram prova de grande tigor. Elas sofreram —e continuam a softer terrivelmente ~ de sua propensio “em tansformar um singular ou um particular em um geral”. Assim, esse nuer ou esses nuers com quem o antropélogo conversou um dia se transformam, pela magia da escrita etnogrifica, em os nuers.* Pode- riamos multiplicar os exemplos* dessa hipostasia do coletivo, obser vando que sto formas de generalizacao que nio diferem fundamen- talmente daquelas que consistem em intuir sobre a existéncia de uma memiéria coletiva ou de uma identidade cultural no interior de um grupo, a partir da observacao sempre singular de alguns individuos,* membros desse grupo, Ora, se as memsrias individuais sio dados (no se pode, por exemplo, registrar por escrito ou por suporte magnéti- co a maneira pela qual um individuo tenta verbalizar sua meméria), @ nocao de meméria compartilhada € uma inferénicia expressa por metiforas (memsria coletiva, comum, social, familiar, histérica, pabl 28 Meméria etdentidade ca), que na melhor das hipéteses dario conta de certos aspectos da realidade social ¢ cultural ou, na pior delas, serio simples flatus vocis sem nenhum fundamento empitico. Essas generalizagdes parecem, no entanto, inevitaveis se ndo se quer impedir a possibilidade de qualquer teoria antropol6gica. f preciso admitir que essas ret6ricas possuem um estatuto cientifico extremamente frigil e, ao mesmo tempo, postular que sto heuristicamente necessirias porque podem nos dizer “alguma coisa” da realidade, Mas o que é esta “coisa” a qual pretendem nos remeter as ret6ricas holistas? Entendo por “tetsticas holistas™* © emprego de termos, expres- ses, figuras que visam designar conjuntos supostamente estiveis, du- riveis e homogéneos, conjuntos que sio conceituados como outra coisa que a simples soma das partes € tidos como agregadores de elementos considerados, por natureza ou convengio, como isomorfos. Designamos assim um reagrupamento de individuos (a comunidade, a sociedade,"” 0 povo), bem como representagdes, crencas, recordagdes (ideologia X ou Y, a religiio popular, a consciéncia® ou 2 meméria coletiva) ou ainda elementos reais ou imagindrios (identidade étnica, identidade cultural), Essas ret6ricas holistas fazem parte da heranca de nossas disciplinas (Sociologia, Antropologia Social e Cultural) que, no quadro de problemiticas integrativas® e de esquemas de perten- cimento, constituiram uma boa parte de seus vocabulétios na era in- dustrial, quer dizer, na era das massas representadas (pensadas) como entidades coletivas, Em geral, tratamos essas nogdes simbolicamente,* como termos que remetem mais ou menos a uma realidade, mas sem ter uma ideia precisa do que isso implica. Em outro lugar tentarei um inventério e um estudo de toda a terminologia holista produzida nesse ‘momento hist6rico singular que certamente favoreceu a emergéncia de conceitos “superinterpretativos"® ou subinterpretativos de acordo com © ponto de vista que se adote: classe operitia, opiniao publica, corpo social etc, Essa época favoreceu a emergéncia de nogdes que envol- vem a “ficcio” de um ou varios sujeitos coletivos.* De fato, 0 termo 29 Meméria eidentidade “ficedo” 6, sem diivida, excessivo, salvo nos casos caricaturais em que se afirmara que 0s nuers, os italianos, as gregos,* osjudeus, os bretes ‘ou os parisienses pensam isso ou acreditam naquilo.* Sem divida, ‘melhor tomar de Ricoeur a nogo de “configuragao narrativa", pois as ret6ricas holistas no sto necessariamente inverossimeis no sentido de que podem remeter a fendmenos que sio (pelo menos aproxima- damente) 0 que elas pressupdem. F, efetivamente, uma possibilidade com a nocao de meméria coletiva ou identidade cultural No discurso antropol6gico e sociol6gico, as ret6ricas holistas ali- mentam as configuracdes narrativas mais ou menos aptas a dar conta de certa realidade, A adequacio de uma configuragio narrativa a essa realidade depende precisamente do grau de pertinéncia da retética holista. A questio da pertinéncia da re rica holista 6, portanto, no meu entendimento, uma questo essencial se pretendemos conferir “implicagdes ontol6gicas” aos trabalhos antropol6gicos que, segundo Sperber, sto marcadamente desprovides disso, sendo 0 vocabulitio técnico da disciplina puramente interpretativo.6 Na seco seguinte estabelecerei os termos com os quais podemos abordar essa questo, Em uma primeira parte delimitarei o quadro te6- tico. Na segunda parte darei um exemplo de avaliagio do engajamento ontol6gico ~ de acordo com uma formula de Russell — de ret6ricas ho- listas, a partir de dados etnogrificos relativos 4 noc&io de meméria co- letiva. No entanto, o exemplo apresentado poderd facilmente ser extra- polado para discutir as nogdes de identidade coletiva e meméria, que, tal como havia apresentado anteriormente, € a identidade em aco. O GRAU DE PERTINENCIA. DAS RETORICAS HOLISTAS APLICADAS A MEMORIA E A IDENTIDADE Em nosso século climatérico, os homens mostraram, com inegavel zelo, que poderiam morrer em nome das ret6ricas holistas: em 1974, 30 Momértao kdentidade Greeley estimou que 0 conflitos étnicos tinham provocado a morte de algo em torno de 20 milhoes de pessoas desde a Segunda Guerra Mundial” Podemos estar seguros de que, desde 1974, essa cifra au- ‘mentou consideravelmente, A identidade (cultural, coletiva) que serviu de substrato para todos os grandes slogans totalitétios do século certamente uma “ideia de morte”.* Isso significa que certas ret6ricas holistas podem ter uma grande pertinéncia para um grande ntimero de individuos. Mas 0 que dizer de sua pertinéncia cientifica? Se admitirmos que os seres humanos no sio “individuos” ato- mizados, “criando suas identidades e perseguindo seus objetivos in- dependentemente uns dos outros’, reconhecemos 20 mesmo tempo que a sociedade existe. E necessirio entio supor que 0s sujeitos sto capazes de se comunicar entre eles® © acessat, assim, um “compar- tilhamento minimo do trabalho de producio de significagdes’ * seja um compartilhamento de conhecimentos, de saber, de representacdes, de crencas cuja descri¢io € explicitagao irio justificar © recurso as retGricas holistas. Nao discutirei a realidade da comunicacao — ela € incontestavel -, ‘mas unicamente a natureza: 1) dessa comunicago e 2) de seu re- sultado, quer dizer, 0 compartilhamento efetivo daquilo que foi co- municado. Idealmente, a metifora “memsria coletiva" apticada a um determinado grupo seria totalmente pertinente se todos os membros do grupo fossem capazes de compartilhar integralmente um nimero determinado de representagdes relativas a0 passado que Ihes teriam. sido previamente comunicadas de acordo com as modalidades varié- veis, mas socialmente determinadas € culturalmente regradas. Assim, € frequente definir a meméria social como o “conjunto de lembran- ‘cas reconhecidas por um determinado grupo™* ou a meméria coletiva ‘como um “conjunto de lembrangas comuns a um grupo". Poderfamos entao falar de meméria publica ou de “comunidade de pensamento”,* ou, ainda, de acordo com a formula prudente de Tzvetan Todorov, de certa meméria comum. Entretanto, é dificil aceitar essa ideia, pois de 31 Memriae tdentidade um lado ela é empiricamente impossivel e de outro é insustentavel sob © ponto de vista teérico, jé que encobre uma tripla confusio: a primei- a, entre as lembrangas manifestadas (objetivadas) e as lembrancas tais como stio memorizadas; a segunda, entre a metameméria e a memoria coletiva; ea tiltima, entre o ato de meméria ¢ o contetido desse ato. Desenvolverei meus argumentos a partir de dados etnogréficos re- colhidos em Minot (Chatillonnais, Bourgogne) por Francoise Zonabend, concemente mais especificamente 2 relacao entre os habitantes dessa aldeia € 0 cemitério: ‘As mulheres o visitam no domingo ou em algumas noites de verao. “No domingo se diz: Vamos dar uma volta no cemitério, vamos olliar as tumbas, Vamos com as vizinhas, mas apenas aquelas que _possuem familiares enterrados alt’ ser da aldeia nao é apenas #e- sidir ali, mas ter suas tumbas no cemitério, Passando de tumba em ‘tumba, os ancidos leem as inscrigdes ¢ recordam a vida dos defuntos € € por ocasiao desses passeios que se forja a meméria da comu- nidade, que se transmite a todos histéria das familias da aldeia‘S Temos ai um bom exemplo de tet6rica holista. Apés ter citado alguns informantes (cujo ntimero ignoramos), Frangoise Zonabend afirma que, por ocasido dos passeios que as mulheres de Minot fazem no cemitério, a hist6ria das familias “se wansmite a todos”, produzin- do e mantendo assim a “meméria da comunidade". © que se pode pensar dessa inferéncia? A primeira vista, a generalizacao da etndloga € plausivel, pois € provavel que a visitagio regular das tumbas do ce- mitério favoreca uma familiaridade com os desaparecidos, permitindo, assim, aos habitantes de Minot ~ ao menos a uma grande parte deles -, aqueles que “possuem fami res ali”, construir e manter, por ocasi dos repetidos passeios dominicais, uma meméria coletiva que poderia ter 0 seguinte contetido: Fulano morreu em tal ano, tal linbagem foi exttinta, os descendentes dessa familia deixaram a regido, a defunta X era amante do defunto ¥ etc, No entanto, se olharmos mais de perto, essa generalizagto parece discutivel 32 Moria e identidade E discutivel e mesmo empiricamente impossivel, porque um fato pUblico supde seu conhecimento comum por varias pessoas. Ora, ri- gorosamente falando, “o conhecimento comum de um fato por varias pessoas € 0 conhecimento que possuem essas pessoas desse fato, do conhecimento que os outros possuem dele, do conhecimento que os outros tém de seu proprio conhecimento desse fato ete.” E suficiente aprofundar um pouco mais essa légica para que per- cebamos que se chega a um nivel de conhecimento compartilhado que € inacessivel. Em sentido estrito, um fato nunca € totalmente ptiblico. Contudo, do ponto de vista da Antropologia, que nao € uma ciéncia dura ou exata, mas uma ciéncia “flexivel" exercendo sem complexos © principio epistemol6gico da reciprocidacle,® esse argumento é fraco, pois o pesquisador pode ver realizada essa reciprocidade apenas para um primeito nivel do conhecimento do fato. ‘Um argumento mais forte € 0 da confusito entre a evocagio (as, lembrangas manifestadas quando sio, por exemplo, verbalizadas ou transcritas) € as lembrangas propriamente ditas. As lembrangas ma- nifestadas nao se confundem com as lembrancas tais como s40 con- servadas (€ cujo contetido resta incerto, inclusive para os primeiros interessados) e stio apenas a expressio parcial entre outras tantas pos- siveis. Observando as variagdes da lembranga por ocasiio de uma pe: quisa sobre a meméria da revolta de 1947 em Madagascar,” Maurice Bloch ~ que retomava assim uma intuigo de Russel -" chegou & con- clusio de que nao se poderia, em nenhum caso, “confundir a narrativa de um acontecimento com a lembranga que guardam dele os partici- antes”, A parte da lembranga que é verbalizada (a evocagio) nao € a totalidade da lembranga. A descoberta da multiplicidade de lembran- ‘sas possiveis de um mesmo acontecimento, estimuladas por contextos que mudam, tem um escopo antropolégico considerivel: ela mostra que “a presenca do pasado no presente é bem mais complexa, bem menos explicita, mas talvez bem mais forte que a existéncia de nar- rativas explicitas nos poderia fazer crer”.”* O que niio expresso nas 33 Memérae identidade lembrancas manifestadas, acrescenta Bloch, “tem significag20 social, pois se trata de um ativo colocado em reserva para futuras represen- tagdes sociais’.” F importante, portanto, distinguir entre competéncia ¢ performance da meméria. Nesse sentido, toda tentativa de descrever ‘a meméria comum a todos os membros de um grupo a partir de suas Jembrangas, em um dado momento de suas vidas, é reducionista, pois ela deixa na sombra aquilo que nao € compartilhado. Da confusio entre metamemsria e meméria coletiva pode resultar igualmente a ilusio de uma meméria compartihada, & comum insistir sobre a necessidade de distinguir a proposigzio como fato € a proposi- ‘a0 propriamente dita, somente esta tiltima podendo ser julgada verda- deira ou falsa de acordo com a representagio que fornece da realida- de, Enquanto a proposicio propriamente dita “é que é expresso por um enunciado, um pensamento ou uma escrita’, a proposi¢ao como fato “€ 0 fato, que isso seja dito, escrito ou pensado”.* Ora, confundi- ‘mos muitas vezes 0 fato de dizer, escrever ou pensar que existe uma ‘memsria coletiva ~ fato que é facilmente atestado ~ com a ideia de que © que € dito, pensado ou escrito da conta da existéncia de uma memé- tia coletiva. Logo, confundimos o discurso metamemorial com aquilo que supomos que ele descreve. Quando varios informantes afirmam, recordar como eles acreditam que os outros recordam, a tinica coisa atestada é a metameméria coletiva, ou seja, eles acreditam se recordar da mesma maneira que os outros se recordam, Certamente, a proposi- do como fato deve despertar a atengo do antrop6logo: de um lado, a existéncia de um discurso metamemorial é um indicador precioso, revelador de uma relago particular que os membros de um grupo consideraclo mantém com a representacao que eles fazem da meméria desse grupo, e, de outro lado, esse discurso pode ter efeitos performa- ‘os sobre essa memsria, pois, retomado por outros membros, esse discurso pode reuni-los em um sentimento de que a meméria coletiva existe e, por esse mesmo movimento, conferir um fundamento realista a esse sentimento,” Ocorre af uma espécie de “ratificagao de um regis fod Meméria e idetidade tro" do trabalho de construco de uma realidade memorial. Contudo, cabe ao pesquisado mio se enganar de nivel de anilise, identificando essa metameméria com a meméria coletiva. Por isso, num primeiro momento, deve-se fazer a distingao entre o dizer que ha uma meméria coletiva ¢ realmente acreditar que ela exista, ou seja, ela existe no pla- no discursivo, mas no no concreto. A realidade dessa meméria, por outro lado, parece poder ser deduzida da existéncia de atos de me- méria coletiva, exist@ncia facilmente verificével com a ajuda de dados empiricos: comemoragdes, construgdes de museus, mitos, narrativas, passeios dominicais em um cemitétio efc. Ora, a existéncia de atos de meméria coletiva no € suficiente para atestar a realidade de uma ‘meméria coletiva. Um grupo pode ter os mesmos marcos memoriais sem que por isso compantilhe as mesmas representagdes do pasado. Por outro lado, é uma caracteristica geral do simbolismo cultural “se criar uma comunidade de interesses, mas no de opiniGes’.” Se a pro- babilidade do compartilhamento total ou parcial dos afos de meméria (0 fato de se lembrar) é em getal elevada — esse compartilhamento € empiticamente verificavel: por exemplo, desde um decreto de 3 de fe- vereiro de 1993, existe na Franga uma jornada nacional comemorativa das perseguigdes racistas € antissemitas cometidas durante o regime de Vichy, que a cada ano dé lugar a varias manifestagoes oficiais coletivas -, ele se diferencia das representagdes associadas a esses atos, quer dizer, 0 que é lembrado: nesse caso, a possibilidade de comparti- Ihamento total € nula, a de compartilhamento parcial é fraca ou média. Mesmo que as lembrangas se nutram da mesma fonte, a singularidade de cada cétebro humano faz com que eles nao sigam necessariamen- te o mesmo caminho. Os atos de meméria decididos coletivamente podem delimitar uma rea de circulagio de lembrangas, sem que por isso seja determinada a via que cada um vai seguir. Algumas vias stio objeto de uma adesto majoritaria, mas memsrias dissidentes preferirio caminhos transversais ou seguirio outros mal tragados. Assim, o com- partilhamento memorial seré fraco ou quase inexistente, Moma eidentidade Enfim, mesmo que exista em uma determinada sociedade um conjunto de lembrangas compartilhadas pelos seus membros, as se- quéncias individuais de evocacao dessas lembrangas serio possivel- mente diferentes, levando em consideragio as escolhas que cada cé- rebro pode fazer no grande mimero de combinagées da totalidade de sequéncias. Quando se refere a “multiplicidade de séries causais’™ na origem de um ato de meméria, Halbwachs se equivocou em nao distinguir a ago inicial da lembranga (a recordagio de tal ou tal acon- tecimento a partir de indices efetivamente fornecidos pela sociedade) € 0 desenvolvimento da amnésia, sempre idiossincritica, tanto pelo contetido como pela maneira pela qual esse contetido é integrado no conjunto de outras representagdes do individuo. Chegamos aqui a um argumento decisive que € a incomunica- bilidade dos estados mentais, 0 que pode ser um problema antro- poldgico. E quase certo, observa Leach, "que dois observadores nito compartilhem jamais a mesma experiéncia’.” “Nada indica que duas pessoas produzam a mesma interpretacao do mesmo acontecimento”, observa Fredrik Barth,® retomando assim 0 neurobiologista Gerard M, Edelman, que lembra que a experiéncia fenomenolégica “é uma questio que se refere a primeira pessoa” e que, por essa 12730, no pode ser compartilhada com os outros." Essa ideia é sustentada repe- tidamente por Russell: “o contetido total de um espirito jamais é por mais que possamos conhecé-lo empiricamente, exatamente parecido com 0 contetido desse espitito em outro momento, ou de outro espi- fito ndo importa em qual momento”." Ele acrescenta ainda que ‘nao ha absolutamente nada que seja visto por dois espititos simultanea- mente”.® Nessas condigées, o grau de pertinéncia das ret6ricas holistas (em geral) deve ser fortemente reduzido, e o da expressio “memoria piblica”, pouco usada, se torna nulo. Resumindo: mesmo que suponhamos que as representagdes rela tivas a esses atos dle meméria sao corretamente comunicadas e transmi- tidas, nada nos permite afirmar que sio compartilhadas, Retomo aqui 36 Meméra e tdentdade 08 trabalhos de Sperber sobre a epidemiologia das representagdes, que tém por objeto nao as representacdes por si préprias, mas seus proces- sos de distribuicao: “Explicar a cultura € explicar [..] por que e como certas ideias se contagiam."* Sperber distingue os processos intraindi- viduais ¢ os processos interindividuais do pensamento e da meméria, ‘ou seja, entre as representagdes mentais € as representacdes public Ele coloca entre as primeiras as crencas, as intengdes, as preferéncias, € entre as segundas os sinais, 05 enunciados, os textos, as imagens. Quando uma representagzo mental € comunicada de um individuo @ outro ~ a maior parte permanece prépria a um indivicluo — ela se transforma em representagao piiblica. Se esta tem um aspecto material evidente,® a descrigaio desse aspecto material “deixa na obscuridade © essencial, o fato de que esses tracos materiais sio interpretaveis, sio capazes de representar algo para alguém”* A representagao piiblica, memorizada, é, portanto, transformada em representago mental p los destinatatios, representagio esta que, como todo estado mental, € @ priori inacessivel, Por consequéncia, se as representacdes piiblicas distribuidas so sempre transformadas em representagdes mentais ina~ cessiveis, o grau de pertinéncia das ret6ricas holistas como suposta descricao do compartilhamento de representagdes ser sempre impos- sivel de ser avaliado. Aplico aqui esse primeiro resultado aos dados etnograficos re- colhidos em Minot. Mesmo que os dados factuais que mencionamos sejam efetivamente transmitidos a todos € mesmo que suponhamos possfvel definir essa totalidade (s20 as condigdes minimas para poder falar de “memoria da comunidade”), a recordagdo que cada habitante da aldeia teré de Fulano, de uma linhagem desaparecida, dos descen- dentes da familia que deixaram a regido ou as relagdes amorosas entre ‘05 defuntos X e Y diferira em proporgdes menores ou maiores da me- méria de outro habitante em fungio de sua histéria pessoal, daquela de sua familia, das caracteristicas de sua propria meméria biol6gica etc. Se a lembranca desses acontecimentos (memeéria factual) pode ser 37 Meména edentdade compartilhada, suas representagdes (a meméria semantica relativa a esses acontecimentos) permanece idiossineritica.” Nessas condigdes ‘© que pode significar a expresso “memsria da comunidade”? Qual & seu grau de pertinéncia? Tal como afirma Sperber, uma representacio publica pode per manecer relativamente estével em alguns casos limite. De fato, uma Pequena proporcio das representagdes comunicadas “o so de ma- neira repetida”, Sperber retoma aqui uma tese de Finley, para quem “a meméria coletiva, afinal, nao € outra coisa que a transmissio, a um grande ntimero de individuos, das lembrancas de um nico homem ou de alguns homens, repetidas vezes’™ Essas representagdes repe- tidas, por exemplo, por ocasitio de um passeio semanal ao cemitério, difuncem-se em uma populag2o de maneita muitas vezes duravel € passam a “constituir por exceléncia as representacées culturais”. Uma Tepresentacdo cultural “compreende um conjunto de representagoes mentais e pablicas. Cada versio mental € produto da interpretagio de uma representagao publica que é ela propria a expresso de uma representaco mental”. O antrop6logo pode dar-se como objeto de estudo esses encadeamentos causais com Postos de representacdes mentais € de representagdes piblicas € rocurar explicar conjuntamente como os estados mentais clos or- ganismos humanos os levam a modificar seu entomo, em particu lar emitindo sinais, e como essas modificagées de seu entorno os eva a modificar seus estados mentais.” Por certo, esses tltimos permanecem a prior! inacessiveis, € por essa razdo Sperber nao cré que seja possivel propor uma grande teoria unificada de distribuigiio das representagOes tais como, por exemplo, as classificacdes populares, os mitos, as formas artisticas, os rituais etc., € eu acrescentaria as lembrangas. Mas, ele conclui, “é uma pritica cien- tifica comum a de completar as observagdes com as hipéteses sobre as entidades que nao foram observadas, ou que sio inobservaveis’ Petmito-me, entio, a seguinte hipétese proviséria, em nada popperia- 38 Memsriae tdentidade 1a: sob certas condigdes sociais, qualificadas por Sperber de “fatores ecolégicos” € que vio interagit com os fatores psicolégicos,” certos estados mentais podem ser compartilhados pelos membros de um gru- po Nesse caso, as ret6ricas holistas, tais como a “meméria coletiva” ou “identidade cultural’, tero certo grau de pertinéncia. A distingao estabelecida por Sperber entre representagdes men- tais ¢ representag6es ptiblicas apresenta um grande interesse tedrico, ‘mas a natureza € a extensio do compattilhamento de reptesentagdes pUblicas continuam imprecisas, tanto mais quando se admite que a repetico nunca impediu a variago. £ provavel que nao dissipemos totalmente essa imprecistio, mas podemos progredir, creio eu, fazendo outta distingao, que € a que proponho entre as representacdes factuais, que sdo representagdes relativas a existéncia de certos fatos, € as repre- sentacdes semédnticas, que slo as representagdes relativas ao sentido atribuido a esses mesmos fatos.* Quando uma ret6rica holista remete a representacdes factuais supostamente compartilhadas por um grupo de individuos, ha uma forte probabilidade de que seu grau de pertinéncia seja elevado, Quando uma representagio holista remete a representa- des seménticas supostamente compartilhadas por um grupo de indivi- duos (por exemplo, as representagdes relativas aos dads factuais), ha «uma forte probabilidade para que seu grau de pertinéncia seja fraco ou nulo, Em Antropologia, esse thimo caso € 0 mais interessante, porque ele permite formular hipsteses menos triviais que aquelas alusivas ape- ‘nas & suposta comunidade de representagdes factuais. De fato, levantar a hipstese de que todos os franceses compartilham a memGria de fatos hist6ricos, como, por exemplo, a Ocupagio ou a morte de Charles de Gaulle, ndo é correr grandes riscos. Admitamos que todos os franceses (Gigamos “quase todos”) sabem que a Franga esteve ocupada duran- te a Segunda Guerra Mundial ou que De Gaulle morreu (mesmo que uma grande parte tenha provavelmente esquecido a data precisa de sua morte). Podemos dizer, portanto, que hé uma forma de meméria coletiva desses fatos hist6ricos. Sob esse Angulo, evocar “a meméria a Momérta e tenidade dos franceses™ tera um forte grau de pertinéncia, mas aquele que a utiliza triunfard sem gl6ria, pois terd arriscado pouco! Ao contritio, se nos interessamos pelos significados que os franceses conferem a esses acontecimentos, verificamos que 0 compartithamento destes por todos 6s franceses se tora muito problemitico. E a esse tipo de problema que devemos investir nossos esforgos de pesquisa. Quando afirmo que, no caso das representacdes semanticas, ha uma forte probabilida- de de que grau de pertinéncia seja fraco ou mesmo nulo, a nocao de probabilidade indica bem que nao hé nenhum automatismo que fatia com que todas as ret6ricas holistas aplicadas a essas representagdes fossem pertinentes. £ provavel, mas nao é seguro. Entao, que hipé- teses poderfamos formular para tentar responder & seguinte questio: como avaliar o grau de pertinéncia das ret6ricas holistas aplicadas 1) as representagdes factuais ¢ 2) as representacdes semanticas? Argumentarei a partir de uma distinggo que faz Vincent Des- combes no preambulo de sua tese sobre o “holismo antropolégico".” Descombes opde os termos (acontecimentos) naturais aos termos (acontecimentos) intencionais, oposigo que intercepta, em parte, aquela que faz Sperber entre a descricio e a interpretacio, Os temmos naturais Sio constatagSes (“Chove"), 20 paso que os termos intencio- nais slo discursos sobre supostas constatagdes: “Diz-se que chove'. Quando 0 acontecimento (do fendmeno) nao € dito “ser dito”, 0 com- partilhamento acontece quase por si s6. Se eu cair da escada a0 sair da universidade, todos os que testemunharam essa queda (estudante: colegas, transeuntes) compartilhario comigo, sem dtivida, da idei ou seja, uma forma de representagio factual ~ de que eu cai. Eu seria simplesmente um pouco mais “sensivel” que eles a esse acontecimen- to, A nenhum espectador ocorreria dizer: “Ele disse que cait’’, Por ou- tro lado, isso seria possivel para uma pessoa a quem se contasse es incidente, mas que no tivesse assistido 2 cena: nao tendo ela mesma constatado 0 incidente, deveria imaginar a queda em questio. Com essa ideia da constatagio dispomos de um primeito critério, © que permite avaliar a pertinéncia de uma retrica holista, Quando 40 Meméria eidenudade esta pressupde 0 compartilhamento por todos os membros de um grupo da crenca em fendmenos derivados da constatagao, podemos supor que seu grau de pertinéncia € elevado. Contudo, o estatuto da constatagto nao é evidente, pois depende estreitamente da significacao acordada por cada individuo as palavras utilizadas para estabelecer a constataco™, ¢ & com frequéncia relati- vo a um sistema de valores, crengas ¢ teorias diversas.” Isso tem por consequéncia que, se de um ponto de vista puramente te6rico pode- ‘mos definir com rigor os acontecimentos naturais ou intencionais, na pritica se passa muito facilmente de uns para outros. Suponhamos a seguinte constatagio feita por um médico ateu ao observar um cor- po sem vida, em presenga de outro testemunho: “Esse individuo esta ‘morte’. &, a priori, um enunciado “natural” relativo a um individuo falecido, mas para o testemunho, que imaginamos crente na vida eter- na, essa constatagio pode ser: “O médico diz que esse individuo esta ‘morto” (enunciado intencional que exprime a representagllo de um dado factual). O que caracteriza a passagem do primeiro ao segundo enunciado e que os distingue radicalmente um do outro € a irrupeo da diivida ou, mais exatamente, a aparicao das condigdes que tornam possivel essa ckivida:"® porque o testemunbo é crente, ele nao acredita (ele duvida) que a pessoa esteja realmente morta, como afirma o médi- co que acaba de constatar seu falecimento. Tomemos outro exemplo: © acontecimento “O sol se eleva”, considerado como um acontecimento natural por muitos, set qualificado por um astrénomo como aconteci- ‘mento intencional (“Eles dizem que o sol se eleva’), pois ele sabe muito bem que o sol nao “se eleva’. Como dispoe de um saber, o astronomo pode colocar em diivida (e mesmo refutar) outro saber compartilhado por um grupo de individuos e, por essa razio, introduzir o ceticismo no espitito de uma parte dos membros desse grupo. A intupgio da possibilidade da divida no grupo fragilizars ou ‘mesmo arruinard uma ret6rica holista do tipo: “Os camponeses conside- ram que o sol se eleva’. Tomo um tiltimo exemplo: o de qualquer seita 41 ‘Memiria edentidade crente na proximidade do fim do mundo. f possivel que a nenhum membro dessa seita ocorra de colocar em diivida essa crenga. “O imi- nente fim do mundo" seré entao considerado como um acontecimento natural no interior do grupo em questio. Entretanto, ocorreré algo muito diferente desde que submetido ao olhar de outro. Encontramos, endo, os limites das retéricas holistas fundadas sobre a hipétese da existéncia de acontecimentos “naturalizados” (isto €, que niio slo pos- tos em dilvida) por todos os membros de um grupo, pois, como sabe- ‘mos, ndo existe um grupo fechado.”" Em todo grupo, os enunciados sio sempre submetidos em um momento ou outro a um julgamento exterior € correm, assim, 0 risco de ver germinar a dtvida (desencan- tamento, “desnaturalizacio" dos acontecimentos), dtivida que pode ser introduzida em um primeiro momento pelos individuos estrangeiros 0 grupo considerado e difundida eventualmente pelos membros do grupo que foram convencidos por esses individuos. Isso justifica os esforcos feitos pelas seitas para se proteger de toda influéncia exte- rior: em uma seita que conseguisse impedir toda irupcio da davida gragas ao isolamento total de seus membros, o grau de pertinéncias das ret6ricas holistas utilizado para descrevé-la seria muito elevado. Ao contririo, quando a possibilidade da diivida existe, a utilizacdo das retoricas holistas se tora arriscada. Com a nogao de “colocar em diivi- da” dispoe-se, por consequéncia, de um segundo critério, permitindo estabelecer as condigdes de pertinéncia de uma ret6rica holista. Colocar em dtivida € quando em um determinado grupo um ‘membro qualquer pode dizer, a respeito das crengas ou representa ‘ses aparentemente compartilhadas: “Diz-se que..." ou “E dito que..", tomando assim distincia em relagio a essas crengas ou representa- ges." Logo, cada vez que € dito “ser dito” (mesmo por uma tini- ca pessoa no interior de um determinado grupo), a unanimidade é impossivel, 0 pressuposto do compartilhamento (de ideias, crengas ¢ Jembrancas) que veicula as ret6ricas holistas se toma problemético, 0 que nao significa que esse pressuposto seja totalmente equivocado. 42 Momértae tdentidade Em diversas sociedades, algumas pessoas compartilham incontesta- velmente a ideia de que Deus existe, que no se deve comer porco, que suas nagdes encontram sua origem em tal ou tal acontecimento hist6rico, que a ascensdo social é um objetivo a ser perseguido, que os homens possuem direitos ete. Algumas pessoas, mas certamente nao todas as pessoas. Sempre € possivel imaginar que em uma sociedade de crentes alguém duvide da existéncia de um ser divino, que em uma sociedade muculmana um individuo coma came de porco, que em uma sociedade ocidental alguns desdenhem da ascensio social, que na nagao francesa uma grande parte desconhega Valmy etc. Mesmo nas sociedades simples, estudadas pelos antropélogos, € possivel afirmar que todos os membros, sem nenhuma excecio, creem em tal mito fundador,® reconhegam-se em tal ou tal rito ete.? Responder afirmativamente supde que 0 antropélogo tenha procediclo ‘uma pesquisa com entrevistas profundas com cada membro da socie- dade considerada, e nao apenas com alguns informantes, como ocorre frequentemente. Sem isso devemos, com todo o rigor, considerar a hipétese de que 0 compartilhamento (ctengas, tepresentacdes) possa ser parcial, relativo a uma parte somente do grupo. A hipétese mesma do compartilhamento deve ser vista mais de perto. Podemos admitir, em linhas gerais, que em tal ou tal sociedade as pessoas acreditem em Deus, que em outra as pessoas acreditem que nao se pode comer came de porco etc. “Em linhas gerais", mas nao em detalhes, pois o que sabemos nés das modalidades individuais dessa crenca? Nada, ou muito pouco, que mais nao seja porque cada cérebro 6 tinico, o que permite supor o cariter individual de todas as representagdes. Apis ter esgotado todo meu arsenal de argumentos “anti-holistas”, busco ver as afirmagdes das ideias expressas anteriormente, observan- do que: 1) 0 “contigio das ideias” ocorre, sem diivida mais facilmente, em um grupo de menor ntimero de individuos do que em outro de ‘maior tamanho; 2) no primeiro caso é mais facil ao pesquisador contro- lar a realidade desse compantilhamento que no segundo. Observarei, 43 Memiria eidentdade portanto, que o tamanho do grupo € um terceiro critério que permite formular as hipoteses sobre o graui de pertinéncia das ret6ricas hollistas. Em resumo, formulo duas hipéteses que integram os diferentes ctitérios de pertinéncia que propus: 1) Quando as ret6ricas holistas Pressupdem o compartilhamento de representagdes factuais por todos os membros de um grupo, seu grau de pertinéncia € proporcional frequéncia da repeticlo dessas representagdes e inversamente pro- porcional ao tamanho do grupo considerado; 2) Quando as retéticas holistas pressupdem o compartilhamento de representagdes semanti- cas, seu grau de pertinéncia € sempre inferior ao das ret6ricas holis- tas aplicadas as representagdes factuais e € igualmente proporcional a frequéncia da repeticao dessas representagdes e inversamente pro- porcional ao tamanho do grupo e sua permeabilidade diivida. A permeabilidade & divida dependers por vezes de fatores internos a0 grupo (Por exemplo, 0 carisma maior ou menor do lider do grupo ou a existéncia de condigdes que permitem que se constituam grandes categorias organizadoras de representagdes factuais € seminticas) de fatores externos (frequéncia ¢ intensidade da interago com outros grupos, pot exemplo). Entre as categorias organizadoras de representacdes vou privile- iar aqui a meméria. Seu efeito seré proporcional a sua forca. Deno- mino memGéria forte'™ uma meméria massiva, coerente, compacta € profunda, que se impde a uma grande maioria dos membros de um ‘grupo, qualquer que seja seu tamanho, sabendo que a possibilidade de encontrar tal meméria € maior quando o grupo é menor. Uma ‘memGria forte € uma meméria onganizadora no sentido de que € uma dimensio importante da estruturacio de um grupo e, por exemplo, da representagio que ele vai ter de sua propria identidade. Quando essa meméria é propria de um grupo extenso, falarei de uma grande meméria organizadora, Denomino meméria fraca uma meméria sem contomos bem de- finidos, difusa e superficial, que é dificilmente compartilhada por um 44 Memoria etdentidade conjunto de individuos cuja identidade coletiva €, por esse mesmo fato, relativamente inatingivel. Uma memOria fraca pode ser desorga- nizadora no sentido de que pode contribuir para a desestruturagao de um grupo. Por vezes, essa debilidade da memoria nao € ontol6gica: em um momento histérico particular, nao pode prover de sua capacidade de onganizar e estruturar 0 grupo social por razOes vinculaclas as mutagdes que 0 mesmo possa ter sofrido. Eo que parece acontecer em diversos paises modemos que apresentam formas antigas de mem6ria religiosa Na realidade, essa oposicdo nao € assim to demarcada e se observam, ‘na maior parte do tempo, grupos que se otganizam em toro de me- mérias que tendem a se fortalecer € conjuntos de individuos que evo- luem no quadro de memérias em via de desaparecimento. O grau de pettinéncia das retGricas holistas sera sempre mais elevaco na presenga de uma meméria forte, vigorosa, do que de uma fraca, inconsistente. E possivel alimentar essas hipéteses enriquecer essas defi com certas observagdes de Maurice Halbwachs [uu a0 passo que € facil se fazer esquecer em uma grande cidade, 5 habitantes de uma aldeia nto cessam de se observarem, e a ‘meméria de seu grupo registra fielmente tudo o que pode alcangar dos fatos € gestos de cada um deles, porque eles agem sobre essa pequena comunidacle ¢ contribuem para modific-la Em meios como esse, acrescenta 0 autor, “todos os individuos se recordam ¢ pensam em comum’.™® Existe, assim, para adotar uma linguagem weberiana, uma socializacto da meméria, que pode ser objetiva quando se trata de uma meméria factual e que €, pelo menos, © sentimento subjetivo que os membros de um grupo possuem de compartilhar a mesma mem6ria.™ [As sociedades caracterizadas por um forte e denso conhecimento teciproco entre seus membros so, portanto, mais propicias 4 consti tuigdo de uma meméria coletiva ~ que sera nesse caso uma memoria organizadora forte ~ do que as grandes megalépoles andnimas. Nesse 45 Meméra etdentidade sentido, podemos qualificé-las como meios de memeéria. £ mutatis mutandis o mesmo fendmeno que se produz no interior de uma fami lia concebida como um “grupo de pessoas diferenciadas", mas no qual € exercido um controle permanente. De fato, observa Halbwachs, nio existe meio “onde a personalidade de cada homem se encontre mais demareada’, mas é também um meio fechado no interior do qual, “por casio dos contatos cotidianos que temos uns com os outros, nos ob- servamos mais longamente e sobre todos os aspectos’,}” 0 que pode favorecer a emergéncia de uma meméria familiar De fato, cada vez. que no interior de um grupo restrito as memérias individuais querem e podem se abrir facilmente umas as outras, como Nos casos em que existe uma “escuta compartilhada™ vis ‘mos objetos (por exemplo, monumentos, comemoracdes, lugares que terdo 0 papel de “ponto de apoio", de “sementes da recordagao") percebe-se entio uma focalizacao cultural ¢ homogeneizagao parcial das representagdes do passado, processo que permite supor um com- partilhamento da meméria em proporgOes maiores ou menotes. As- sim, como bem mostra Jean-Pierre Vernant, na Grécia arcaica se consti- tui uma meméria comum dos herdis-clefuntos e esta indo os mes nantida presente no interior do grupo gracas & epopeia, a meméria do canto “repetida a todas as orelhas", estabelecendo uma relagao entre a comunidade dos vivos ¢ o indlividuo morto, que entra, entao, no “dominio piiblico” A memorizacio coletiva € possivel, pois © contexto é aquele de uma memoria forte enraizada em uma tradigo cultural —a glorificaca0 € elogio dos herdis ~ “que serve de cimento ao conjunto dos helenos, em que eles se reconhecem a si mesmos porque é apenas através da gestio dos personagens desaparecidos que suas prdprias existéncias sociais adquirem sentido, valor € continuidade”, Ea gléria imortal, niio perecivel, que se canta aos vivos, aqueles que no concebem sua Prépria identidade “a ndo ser por referéncia ao exemplo heroico” Nesse sentido ainda, Patrick J. Geary descreveu a eficicia das comunidades textuais de monges e esctibas que, ao final do primei- 46 Momértae identidade 10 milénio, forjaram uma meméria coletiva - meméria compartilhada mente pelos clérigos € principes -, manipulando cartas (mo- imos, dissimulagdes etc.). De novo, as essenc dificagoes, destruigdes, acrés memérias individuais se abriam umas as outras visando um mesmo objeto, que era o poder, e se unindo produziam uma meméria com- partilhada, “espécie de meio no qual se forma a identidade”. Mas se a meméria coletiva é isso, enfatiza Geary, hd uma boa razio: [J longe de ser 0 compantlhamento espontineo de uma experién- «ia viva e transmitida, a mem6ria coletiva foi também orquestrada, iio menos que a meméria hist6rica, como uma estratégia favore- cendo a solidariedade © mobilizagio de um grupo através de um processo permanente de eliminagao ¢ escolha.!" ‘Uma meméria verdadeiramente compartilhada se constréi e refor- sa deliberadamente por triagens, acréscimos € eliminagdes feitas sobre as herancas. Pude verificar isso por ocas#io de uma pesquisa sobre a meméria dos odores e saberes profissionais." Meus informantes eram perfumistas que exerciam sua profissio em pequenos grupos em que as trocas eram intensas € nos quais existia uma meméria organizadora forte, No processo de constituigio de uma meméria compartilhada, pude observar a importincia que tinha, por vezes, objetivos comuns essa abertura reciproca de memérias individuais. De fato, durante as sessdes coletivas de aprendizagem € treinamento, os “natizes" fazem corresponder certos adjetivos — verde, frutado, floride, amadeirado, animal, balsdmico, oriental, cftrico etc. — &s sensacdes experimentadas 0 se aspirarem os componentes utilizadlos para a criagiio de perfumes. O objetivo, dizem eles, é chegar progressivamente “a usar os mesmos adjetivos’. O léxico & por vezes aleatstio (tentamos dar um nome’), mas é o contexto da enunciacao, quer dizer, a situagiio de descricio da experiéncia olfativa que € o determinante. Quando essa situacio de compartithamento da experiéncia olfativa, as tentativas de descricio dla mesma (que sao tentativas de redugio da diferenca entre 0 odor percebido ¢ 0 odor nomeado) sero controladas coletivamente € assim 47 Meméria tdentidade Progressivamente focalizadas pela ajuda de uma denominagao consen- sual que poder ser memorizada, pronta a ser utilizada por ocasidio de uma experiéncia posterior. Para empregar uma linguagem fotografica, ha um “enquadramen- to” sensorial, uma otientacdo, uma objetivacao progressivamente com- Partilhada por aqueles que vivem juntos a mesma experiéncia olfativa. A incorporaglo da experiéncia se conjuga com a sua descrigio verbal, objetivando chegar a uma harmonia olfativa no quadro de um trabalho de equipe no qual os perfumistas se esforgam por “estabilizar” um k xico. A partir de um caos sensorial origindrio, a objetivagao léxica pro- gressivamente compartilhada permite identificar as confluéncias entre (8 miiltiplos sinais olfativos, ajudando a construir formas olfativas per- Unentes para o exercicio da profissdo: o tom verde, aquoso, leve etc HG, assim, uma construgio empirica de orcem classificat6ria propria 40 grupo de perfumistas considerados. Uma vez colocada em pritica, essas formas olfativas serio memorizadas, reconhecidas e tomar-se-40 operatorias. Pode-se entiio afirmar a existénci forma de meméria coletiva esse caso, de uma Essa pesquisa nos mostra que niio pode haver construgio de uma ‘memria coletiva se as memsrias individuais nao se abrem umas 3s ou- tras visando objetivos comuns, tendo um mesmo horizonte de ago. 1ss0 € evidentemente mais fécil em grupos menores, como, por exemplo, as familias cuja trama memorial é 0 objeto de trabalho de Anne Muxel.! Nesses grupos nos quais, para falar de termos durkheiminianos, a pro- babilidade de uma solidariedade de tipo mecdnico € mais elevada, a cultura, “memiéria oral ¢ aura’, “se tece entre a boca e a orelha”" Hesitando entre uma concepeao positivista’™ da meméria segun- do a qual, como critica Roger Bastide, “tudo 0 que niio € fisiolbgico € sociolégico"” ¢ um individualismo minimo que “consiste em des- crever 0 individuo como sendo exclusivamente a sede ou 0 ponto de passagem de forcas ow ideias coletivas’," Maurice Halbwachs se equivocou em ver nas memérias individuais os “fragmentos”™ da me- 48 Memériae identidade méria coletiva, conferindo a essa a substncia® com a qual tende a despojar as primeiras, Mas teve razo em insistir sobre a importincia dos quadros sociais que fazem com que “uma corrente dle pensamen- to social [..J tdo invisivel quanto o ar que respiramos"™ isrigue toda rememoragao. A evocagio, observa Maurice Bloch, implica em uma comunicagao com o outro €, no curso desse processo, a lembranca individual, sem cessar, submetida as transformagoes e reformulacées, “perde seu cariter isolado, independente e individual.” Nesse sen- tido, observa Danigle Hervieu-Léger, a meméria coletiva “funciona ‘como uma instincia de regulagao da lembranga individual”. Os qua- dros sociais facilitam tanto a memorizagao como a evocagio (ou 0 quecimento) ~ "podemos nos apoiar sobre a meméria dos outros’ 8 orientam,” conferindo-thes uma “luz de sesiido"* comandada pela visio de mundo atual da sociedade considerada, Nisso toda a me~ méria € social, mas nao necessariamente coletiva — e em alguns casos € apenas sob certas condigdes se produzem “interferéncias coletivas” que permitem a abertura reciproca, a inter-relagdo, a interpenetragio € a concordancia mais ou menos profunda de memérias individuais. Quando os caminhos tomados por estas se cruzam e se confundem, esse encontro confere alguma pertinéncia A nogio de meméria coleti- va que, nesse momento, da conta de uma relativa permeabilidade de consciéncias, em certos casos excepcionais e provisorias, de sua “fu- sio"”” e da convergéncia perfeita entre as representagdes do pasado elaboradas por cada individuo. Quanto maior essa convergéncia, maior seri aquela das representagdes icentitirias € mais pertinente ser a ret6rica holista. Ao final, a meméria coletiva segue as leis das memérias individuais que, permanentemente, mais ou menos influen- ciada pelos marcos de pensamento e experiéncia da sociedade global, se retinem e se dividem, se encontram € se perdem, se separam e se confundem, se aproximam e se distanciam, miltiplas combinagoe: ‘que formam, assim, configuracées memoriais mais ou menos estaveis, duriveis ¢ homogeneas. 49

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