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Paseal Paseal “A ciftncia das coisas exteniores nao me consolara da ignorancia da moral, em tempo de afli¢ao; mas a ciéncia dos cos tumes me consolara sempre da ignoran- cla das ciéncias exteriores “Nessa natureza esta no movimento: 0 inteiro repouso & a morte.” "Ngo hi nada t8o conforme 3 razao como a retratagSo da raz3o” "© coragdo tem suas razdes, que a ra 20 nao conhece” “© pensamento faz a grandeza do homem.” “© homem nio passa de um canico, 0 mais fraco da natureza, mas 6 um canico pensante. N3o ¢ preciso que 0 universo: inteiro.se-arme para esmagé-lo- um vapor, uma gota de agua, bastam para mato. ‘Mas, mesmo que © univers 0 esmagasse, ‘fo homem seria ainda mais nobre do que quem o mata, porque sabe que morre ea vantage que © universe tem sobre ele; o universo desconhece tude isso.” “Como os sonhes s8e todos diferentes ese diversificam, o que se vé neles afeta- nos bem menos do que e que se vé em vi- gilia, por causa da continuidade, que no & contudo, tio continua e igual que nao mude também, mas menos bruscamente, se no raramente. como quando se vigia: @ entao se diz: ‘Parece-me que sonho’. pois a vida é um sonho um pouco menos inconstante.” PASCAL: Pensamentos Os PensadoréS CIP-Brasil, Causlogagao-na-Publicagdio Camara Brasileira do Livro, SP Pascal, Blaise, 1623-1662, Pensamentos / Blaise Pascal : introducdo € nots de Ch.-M. dex Granges : traducio de Sérgio Milliet, — 3, ed, — Sao Paulo ; Abril Cul- tural, 1984, (Os pensadores) Inclui vida ¢ obra do autor ¢ A vida de Pascal, eserita por Mme. Pé- er, sua irmé, 1. Filosofia francesa 2, Pascal, Blaise, 1623-1602 1. Des Granges, Charles Mare, 1861-1944, II, Milliet, Sérgio, 1898-1966. III. Péricr, Gilberte Paseal, 1620-1687. IV. Titulo, V. Série. Cbp-194, indices para eatélogo sistemstico: 1. Filosofia francesa 194 2. Fildsofos franceses : Biografia ¢ obra 194 3, Franga : Filosofia 194 BLAISE PASCAL PENSAMENTOS Introduce ¢ noms de Ch.-M. des Granges A Vida de Pascat escrita por Mme. Périer, sua irmi ‘Tradugio de Sérgio Millet 1984 EDITOR; VICTOR CIVITA Pensées @ Copyright desta edigao, Absi $A, Cultural, Sto Paulo, 1973, —2-ediplo, 1979. 36disho, 1984 ‘Traducin publicada sob licenga de Difel Difunio Edivorial §.A,, Sho Pato, Direitos exclusives sobee “'Pascal — Vida 2 Obra", Abril S.A, Cultural, Sao Paulo. PASCAL VIDA E OBRA Consultoria de Marilena de Souza Chawi Ne’: em Clermont-Ferrand, a 19 de junho de 1623, Blaise Pas- cal era filho de Etienne Pascal, presidente da Corte de Apela- Gao, e de Antoinette Bégon. Segundo sua irma e bidgrafa, Gilberte Pé- rier, Pascal revelou desde cedo um espfrita extrao: , nao s6 pe- las respostas que dava a certas questées, mas sobretudo pelas ques- tes que ele proprio levantava a respeito da natureza das coisas. Ten- do perdido a mae aos trés anos de idade e senda o Unico filho do se- xo masculino, © pai apegou-se muito a ele © encarregou-se de sua ins trugdo, nunca 0 enviando a colégios. Mesmo quando, em 1631, a fa- milia Pascal mudou-se para Paris, a educacio de Blaise permaneceu ao encargo do pai, A ima Gilberte escreveré mais tarde: “A maxima dessa educagio consistia em manter a crianga acima das tarefas que lhe eram impostas; por esse motive s6 deixou que aprendesse latim aos doze anos, para que aprendesse com maior facilidade. Durante esse intervalo nao @ deixou ocioso, ois o ocupava com todas as coi- sas de que o julgava capaz. Mostreva-lhe de um modo geral o que ram as linguas; ensinou-lhe como haviam sido reauzidas as gramati- as sob certas regras, que tais regras tinham excegdes assinaladas com cuidado, e que por esses meios todas as linguas haviam podido set Comunicadas de um pais para outro. Essa idéia geral esclarecias Ihe © espirito ¢ fazia-o compreender o motivo das regras da gramati- ca, de sorte que quando veio a aprendé-las sabia 0 que fazia e dedica- ‘a-se aos aspectos que Ihe cxigiam maior dedicagao”. Além das linguas, Etienne Pascal ensinava outras coisas ao filho: dava-lhe rudimentos sobre as leis da natureza e sobre as técnicas hu- manas. Tudo isso agugava ainda mais a curiosidade do menino, que queria saber a razao de todas as coisas e nao se satisfazia diante de explicagées incompletas ou superficiais. Diante de uma explicagao in- suficiente, passava a pesquisar por conta propria até encontrar uma resposta satisfat6ria e quando se deffontava com um problema, ndo o largava até resolvé-lo plenamente. Aos onze anos, suas experiéncias sobre os sons levaram-no a escrever um pequeno tratado, considera- do muito bom para sua idade. Etienne Pascal era matemético e sua casa era muito freqéentada por gedmetras. Como queria que Blaise estudasse linguas e, sabendo va PASCAL como a matemética é apaixonante ¢ absorvente, evitou por muito tempo que o filho a conhecesse, prometendo-lhe que a ensinaria quando ele j4 soubesse grego e latim. Essa precaucdo serviu apenas para aumentar a curiosidade de Blaise, que passou a se divertir com as figuras geométricas que o pai the havia mostrado. Procurava tracd- las corretamente; depois passou a buscar as proporgées entre elas e, afinal, depois de propor axiomas relativos as figuras, dedicou-se a fa. zer demonstracoes exatas. Com isso chegou até a 32." proposicao do livro | de Euclides. Estarrecido, o pai verificou que-o filho. descobrira sozinho a matemitica. A partir de entdo, Blaise recebeu os livros dos Elementos de Euclides e pode dedicar-se & vontade ao estudo da geo- metria, Os avancos foram rapirlos: aos dezesseis anos escroveu o Tra tado Sobre as Cénicas, que, no entanto, por sua propria vontade, nao foi impresso na época. Entre a cigncia ¢ a religiao Nao apenas na matemética revelou-se 0 génio precoce de Pas- cal. Nas demais ciéncias realizou surpreendentes progressos e aos de- zenove anos inventou a méquina aritmética, que permitia que se fizes« se qualquer operago sem lapis nem papel, sem que se soubesse qual- quer regra de aritmética, mas com seguranca infalivel. © invento de Paseal foi considerade uma verdadeira revolugdo, pois transformava uma méquina em ciéncia, cléncia que reside inteiramente no espiri- to, A construgdo da miquina foi, todavia, muita complicada e Pascal Jevou dois anos trabalhando com os artesdos. Essa fadiga comprome- keu definitivamente sua sade, que se tornou muito fragil dai por dian- te, ‘Aos 23 anos, tendo tomado conhecimento da experiéncia de Tor ricelli (1606-1647) referente a pressdo atmosférica, realizou uma ou- tra denominada “a experiéncia do vacuo’, provando que os efeitos comumentes atribuidos ao vacuo eram, na verdade, resultantes do pe- so do ar. Mais tarde —a partir de 1652 —, Pascal passou a se interes- sar pelos problemas matemdticos relacionados com os jogos de da- dos. As pesquisas que fez a esse respeito conduziram-no a formula- a0 do calculo das probabilidades, que ele denominou Aleae Geome- tria (Geometria do Acaso). QO chamado Triangulo de Pascal foi um dos resultados dessas pesquisas sobre jogos de azar: trata-se de uma tabela numérica que, entre outras propriedades, permite calcular as combinagées possiveis de m objetos agrupados nan. Um dos tltimos trabalhos cientificos de Pascal nesse perioda € 0 Jratado Sobre as Poténcias Numéricas, em que aborda a questio dos “infinitamente pequencs". A essa questo voltaré mais uma vez em 1658, num derradeiro estuda cientifico sabre a drea da cicldide, cur- va descrita por um porto da circunferéncia que rola sem deslizar so- bre uma reta. O métado aplicado por Pascal para estabelecer essa rea abriu caminho a descoberta, mais tarde, do calculo integral, rea- lizada por Leibniz (1646-1716) e Newton (1642-1727), Em Rudo, para onde se havia mudado a familia Pascal, Blaise co- nheceu Jacques Forton, senhor de Saint-Ange-Montcard, com quem teve as primeiras discusses a respeito da Biblia, dos dogmas da Igre- VIDAEOBRA IX ja Catélica e da teologia em geral. Blaise ¢ outros jovens, seus ami- gos, logo considerararn Saint-Ange-Montcard um herético perniciaso, Comega entéo a fase apologética da obra de Pascal, quando ele sc une aos jansenistas de Port-Royal, sob a influéncia de sua ira, Jac queline Pascal, que havia entrado para 0 convento. Segundo o relato de Gilberte, Jacqueline conseguiu persuadir o itmao de que “a salva- Gao devia ser preferivel a todas as Coisas e que eta um erro atentar pa- fa um bem passageiro do corpo quando se tratava do bem eterno da alma’. Paseal tinha entio trinta anos, quando “resolveu desistir dos compromissos sociais, Comegou mudando de bairro e, para melhor romper com seus hébitos, fol morar no campo, onde tanto fez para abandonar o mundo que o mundo afinal o abandonou’’. Assim, depois do perfodo em que procurou a verdade cientifica ea gléria humana no dominio da natureza e da razao, Pascal dirigiu seu interesse para as questées da igreja e da Revelacao, acalentando @ projeto de reunir a sociedade laica e a Crista e de combater a cor- Tupcao que teria sido causada pela evolucdo dos tiltimos séculos. Nes- se periodo escreve 0 Memorial, obra mistica, e os trabalhos de cunho apologético Coldquios com 0 Senhor de Saci Sobre Epicteto e Mon- taigne © as Provinciais. Na verdade, Pascal foi decisivamente marcado por um aconteci- mento, que determinou a mudanca de sua trajetéria espiritual: 0 “mi- lagre do Sante Espinho”. Q fato 6 narrado pela irma de Pascal, Gilber- te Périer: “Foi por esse tempo que aprouve a Deus curar minha filha de uma fistula lacrimal que a afligia hd trés anos e meio. Essa fistula era maligna ¢ os maiores cirurgides de Paris a consideravam incurd- vel; e enfim Deus permitiu que ela se curasse tocando o Santo Espi Aho que existe em Port-Royal, ¢ esse milagre foi atestado por varios ci- rurgides e médicos, e reconhecido pelo julzo solene da Igreja”’. A cu- ra de sua sobrinha e afilhada repercutiu profundamente em Pascal; ‘*... ele ficou emocionade com o milagre porque nele Deus era glorifi~ cade ¢ porque ocorria num tempe em que a fé da maioria era medio- cre. A alegria que experimentou foi téo grande que se sentiu comple- tamente penetrado por ela, e, como seu espirito ocupava-se de tudo com muita reflexdo, esse milagre foi a ocasiao para que nele se produ- zissem muitos pensamentos importantes sobre milagres em geral”’. As anilises sobre o milagre sio fundamentais no pensamento de Pascal, pois determinam o centro de todas as suas reflexdes religiosas € filosdficas: a figura ce Cristo, mediador entre o finito (as criaturas) © @ infinito (Deus criador. Em funcao de Cristo, Pascal estabelece a ver- dadeira relacdo entre os dois Testamentos: o Antigo revelaria a justica de Deus, perante a qual todos os homens seriam culpados pela trans- misao do pecado original: 0 Novo revelaria a miseriedrdia de Deus, que © leva a descer entre os homens por intermédio de seu Filho, cu- jo sacrificio infunde a graca santificante no coragao dos homens ¢ os redime. A idéia central de Pascal sobre o problema religioso €, portan- to, a de que sem Cristo 0 homem est4 no vicio e na miséria; com Cris- 10, est na felicidade, na virtude e na luz. A figura de Cristo permite ainda a Pascal distinguir os pagaos, os judeus € os cristaos: 93 pagaos (isto €, os fildsofos) seriam aqueles que acreditam num Deus que é simplesmente o autor das verdades geométricas © da ordem dos elementos; os judeus seriam os que acre- x PASCAL Jansenismo & ditam num Deus que exerce sua providéncia sobre a vida e os bens dos homens a fim de dar-Ihes uma seqiiéncia de anos felizes: jd os Cristéos seriam a5 que créem num Deus de amor © de consolagio, que faz cam que eles sintam interiormente a miséria em que vivem ¢ a infinita misericérdia de quem os criou. Somente aquele que chega ao fundo da miséria e da indignidade e que sabe que essa & a nature- za humana poderd sentir a necessidade do mediadar (Cristo), chegan- do por intermédio dele a conhecer 0 verdadeiro Deus, pois 56 0 me- diador poderia reparar a miséria do homem. monarquia absoluta Com © intuito de reformular globalmente a vida crista, 0 holane és Comélio Jansénio (1585-1638) deu inicio a um movimento que abalou a Igreja Cat durante os séculos XVII e XVIII. Descontente ‘com © exagerado racionalismo dos teGlogos escolasticos, Jansénio — doutor em teologia pela Universidade de Louvain e bispo de Ypres — uniu-se a Jean Duvergier de Hauranne, futuro abade de Saint-Cyran, que também pretendia o retorno do catolicismo a disciplina e A moral religiosa dos primérdics do cristianismo. Os jansenistas dedicaram-se particularmente a discussio do problema da graga, buscando. nas ‘obras de Santo Agostinna (354-430) elementos que permitissem conci- liar as teses dos partiddrios da Reforma com a doutrina catélica. Jansénio em sua odra Augustinus declarava que a raz0 filoséfica era “a mde de todas as heresias”. Baseando em Santo Agostinho sua doutrina do déplice amor, sustentava que Addo, antes de pecar, era li- vre; pelo pecado perdeu a liberdade e tornou-se escravo da concupis- céncia, que o arrastou para © mal. Em conseqiiéncia disso, o homem nao pode deixar de pecar, a no set que intervenha a caridade (amor celeste), que 0 orienta infalivelmente para o bem, Submetidos 4 lei fér- tea desse duplice amor, os seres humanos tornaram-se escravos da Terra ou do Céu, arrastados para a condenacao ou para a salvacao, Desse modo, independentemente das aces que cometa, o homem es- taria predestinado para 0 céu ou para o inferno, © jansenismo expandiu-se principalmente na Franca, gracas a atuagao do abade de Saint-Cyran ¢ de Antoine Arnauld (1612-1694), que, juntamente com outros intelectuais, instalaram-se em Port-Ro- yal. Ali jansenismo assumin forma asceética e polémica, apresentan- do-se como um verdadeiro cisma, que logo foi atingido pelos anste- mas do papa. Era uma época de profundas transformacoes politicas na Franca. ‘A monarquia, em sua evolucao, passava de monarquia temperada do antigo regime (caracterizada pela primazia da realeza sobre os senho- res, gragas ao apoio do Terceiro Estado, do corpo de legistas, de ad- ministradores e de oficiais) & monarquia absoluta, na qual as atribui- cbes dos oficiais e das cortes sio transferidas para 0 corpo de comissé- ios do rei. Os iniciacores do movimento jansenista na Franca — Saint-Cyran, Arnaud d’Andilly, Antoine Le Maitre — pertenciam 3 no- breza togada e em especial a um grupo desses nobres que esperavam passar a condicao de comissérios do rei. E a ideolagia que vai diversi ficar o interior desse grupo apresenta como micleo a afirmacdo da VIDAEOBRA XI possibilidade radical de se realizar uma vida vélida neste mundo; isso leva homens e mulheres nao apenas a abandonar a vida mundana, no sentido corrente do termo, mas a abandonar toda ¢ qualquer fun- ‘go social. Antes do inicio do movimento, os mais destacados integrantes do grupo de Port-Royal cram amigos ¢ companheiros da cardeal Riche- licu, embora dele discordassem quanto a alguns pontos importantes: preconizavam uma alianga com a Espanha catdlica e luta mortal con- tra-os huguenotes, que estivessem dentro ou fora do pats. Até 1637, a oposicdo entre o grupo e Richelieu nao consistia em indagar se a vida cristé era au nao compativel com a politica, mas sim qual era a politica crista. A vit6ria de Richelieu desencadeou a Fuptura com o grupo e um de seus membros (Saint-Cyran) permane- ceu, durante dez anos, na prisio do castelo de Vincennes. A partit de entao € que nasce © jansenismo prapriamente dito: afirmacio de que ¢ impossivel para @ verdadeiro cristao e para o verdadeiro eclesiasti- co participar da vida politica e social. A vanguarda jansenista era constituida por advogados e suas familias, que se incompatibilizaram com a politica de Richelieu; os simpatizantes do movimento eram, em geral, oficiais, advogados e membros das cortes supremas, desgos- tosos com o poder dos comissatios do rei, que passaram a exercer as antigas fungdes dos oficiais ¢ das cortes: Deve-se notar que o pai de Pascal era membro da Corte Suprema de Clermont-Ferrand. A oposigao dos jansenistas constitula apenas uma das modalida- des de oposiga que se fazia, na época, 4 monarquia e que contard com maior ndmero de adeptos depois da Fronda (sublevacao contra o primeiro-ministro Mazarin, que se estendeu de Paris as provincias, de 1648 a 1652). Mas o ansenismo apresentou duas vertentes: uma pre- conizava o retiro completo, a segunda optava pela militancia religio- sa, Esta dltima ¢ que teré maior sucesso depois da Fronda e 6 ela que prossegue, no século XVIll, a luta contra a monarquia absoluta, Pas- el participa de ambas as correntes, em momentos diversos de sua vi- a. Da militancia ao recolhimento ‘0 jansenismo podia propor uma atitude abstencionista em rela- (40 a politica porque estava constituido por pessoas que pertenciam a um grupo social cuja base econémica dependia diretamente do Esta- do. Enquanto nobreza togada, os oficiais, os membros das Cortes de- pendiam economicamente do Estado, embora, ideologicamente, dele se afastassem @ a ele se opusessem, A situagdo dos jansenistas ¢, as- sim, paradoxal: exprime o descontentamento em face da monarqt absoluta, sem, contude, pader desejar sua destruicdo ou sua transfor magao radical, Os jansenistas sf trdgicos porque vivem uma situa- gde trdgica — e por isso afirmam tragicamente a vaidade essencial do mundo e a salvacéo pelo retiro e pela solida centro da trajetéria espiritual de Pascal reside no seu encontro com o jansenismo, que Ihe permitiu exprimir melhor sua sede de ab- soluto ¢ de transcendéncia. A vecacio religiosa de Pascal encontea no jansenismo o solo favoravel para sua expanséo. O “milagre do xi PASCAL Santo Espinho”’ reforcou-lhe a tendéncia mistica e a certeza de que “ha alguma coisa acima daquilo que chamamos natureza’” — como escreve sua irma Gilberte. Até 0 encontro. com o jansenismo havia na vida de Pascal uma contradicao entre a primazia atribuida, em prinef- pio, a religiao, @ a realidade pratica de uma vida consagrada ao mun- do. Esse encontro permite a Pascal estabelecer 0 acordo entre a cons- ciéncia e a vida, através da militancia religiosa que procura o triunfo da verdade (ciéncia) na Igreja eo triunfo da {é (religiaa) na saciedade laica. Esse acordo, porém, néo se manteré. Todavia, serd ainda entre 0s jansenistas que Pascal chegaré a concluséo de que é importante re- Urar-se definitivamente do mundo até mesmo da militancia religio- sa. Pascal transita, astim, entre as duas atitudes que jd existiam entre 08 proprios jansenistas; da militéncia (Amauld, Nicole) passa ao retiro {Barcos, Jacqueline Pascal). A fase apologética das Provineiais segue- se entao a fase dos Pensamentos. Essa mudanga é determinada pela condenacao do jansenismo pe- 'o papa Alexandre VI. Pascal acaba submetendo-se ao poder papal — ¢ isso significa que a militancia religiosa nao mais pode ser efetuada. Nessa terceira fase de sua vida, Pascal volta a dedicar-se a ciéncia (es tudos sobre a cicldide e sobre a roleta, seguidos de discussées com varios sdbios da época), mas seus escritos religiosos perdem 0 tom apologético para se tornarem tragicos. Os Pensamentos revelam ser 5 escritos de um homem a quem “o siléncio eterno dos espagos infi- nitos apavora”, Na fase final de sua vida e de sua obra, Pascal exprime uma Gnis €a certeza: a de que a tnica verdadeita grandeza do homem reside fa consciéncia de seus limites e de suas fraquezas, “Pascal descobre a tragédia”, escreve Lucien Goldmann, “a incerteza radical ¢ certa, o paradoxo, a recusa inttamundana do mundo e o apelo de Deus. E é estendenda 0 paradoxo até o proprio Deus — que para o homem é certo e incerto, presente e ausente, esperanga e risco — que Pascal pdde escrever os Pensamentos ¢ abrir um capitulo novo na histéria do pensamento filosético,"" Pascal morreu a 29 de agosto de 1662, 4 uma hora da madruga- da, Tinha 39 anos de idade, O século do Grande Racionalismo © filésofo francés Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) denomi- nao século XVII de "século do Grande Racionalismo’, e explica: ‘Momento privilegiado em que 0 conhecimento da naturoza e da me- tafisica acreditaram encontrar um fundamento comum". Q Grande Racionalismo buscou a harmonia do finito com 0 infinito: da nature- za e de Deus, do homem e de Deus; buscou a harmonia do exterior ic do interior, isto é, da alma e do corpo; buscou os fundamentos de tu. do o que existe num plane visivel e num plano invisfvel; acreditou no poder teorico @ pritico da razdo, em sua capacidade para produzir o Conhecimento verdadeito das coisas e para dominar tecnicamente a natureza. A possibilidade dessas harmonias, dessas investigacdes e desse dominio fundam-se naquilo que € 0 “segredo do Grande Racio- nalismo'’: a admissio do infinito atual, isto é de um ser atualmente VIDAEOBRA XII infinito, ou infinitamente infinito, produtor de si mesmo, das coisas e das verdades, e que é denaminado Deus. O sécula XVII representa a vit6ria do racionalismo filoséfico e de seu corolério, 0 mecanicismo cientifico, contra a filosofia e a fisica aristotélico-tomista que preponderaram na Idade Média, e contra a fi- losofia animista que reinara durante o Renascimento. No periodo ini- ciado no século XVI, que se prolonga através do XVII, ocorre uma ver- dadeira revolugao espiritual, que jd foi chamada de “crise da cons- ciéncia européia’’. O desenvolvimento de uma nova cosmologia subs- titui 0 mundo geocértrico das gregos e o mundo antropomérfico da Idade Média pelo universo descentrado da astronomia moderna. Ao mesmo tempo, como assinalam alguns historiadores, a “‘ciéncia cone templativa’’ foi substituida pela “‘ciéncia ativa’” — o que fez com que 0 homem se transformasse de espectador em possuidor e senhor da natureza. No lugar da preacupacdo com 0 “outro mundo” (tipica da mentalidade religiosa que predominou na Idade Média) colocou-se o interesse por este mundo, enquanto a imagem do universo como um organismo regido por uma finalidade foi substituida pela explicacso causal e mecanicista. Todos esses aspectos seriam, porém, segundo A. Koyré, “expres- sdes concomitantes de um processo mais profundo @ mats grave, em vista do qual o homem perdeu seu lugar no mundo, ou, mais exata- mente, perdeu o préptio mundo que formava o quadro de sua existén- cia e 0 objeto de seu saber, e precisou transformar substituir nao so- mente suas concepgces fundamentais, mas as préprias estruturas de seu pensamento. |...) As mudangas produzidas no século XVII podem ser reduzidas a dois elementos principais, estreitamente ligados entre si: a destruic¢de do cosmo ¢ a geometrizacdo do espaco”’, A destruigéo do cosmo significa a destruigao do mundo enquan- to concebide come um todo finite e bem ordenade, no qual a estrutu- ra espacial encamava uma hierarquia de graus de valor e de perfei- co, indo da matéria corruptivel a0 espirito eterno e puro. Nessa hie- rarquia, a Terra, pesada c opaca, acupa o centro da regido sublunar, mutdvel, corruptivel.e situada abaixo das “esferas celestes’, dos as- tros imponderveis, incorruptiveis e luminosas. O cosmo — mundo ordenado e fechado, srovido de limites definidos — é entio substitul= do por um universo infinito, que ndo mais comporta hierarquia natu- ral € que se apresenta unido apenas pela identidade das leis que 0 re- gem em todas as suas partes componentes. Dessa nova viséo do universo decorre, como corolario, a geome- trizagdo do espago. A concepgao aristotélica do espaco era qualitati- va e diferenciava os “lugares naturais” (0 centro da Terra era o lugar natural dos corpos pesados, que por isso cairiam; o ar era o lugar na- tural dos corpos leves, que por isso subiriam, etc.). Essa concepgao & substitu(da pela do espago homogéneo da geometria euclidiana, on- de todos os lugares so equivalentes. A geometrizacio do espaco, de- corréncia das leis fisieas da queda livre e da gravitagao, expulsou do pensamento cientifico as nogdes de valor, de perteicéo, de hierar quia, de finalismo, estabelecendo o divdrcio entre 0 mundo neutro dos fatos governados pelas relagdes de causa ¢ eleita eo mundo dos valores. A infinitizacao do espaco sera vista por Pascal de maneita muito xIV PASCAL, peculiar. Por um lado, elaboraré a famosa alternativa dos dois infini- tos — em grandeza e em pequenez —, e, de outro lado, sentir-se- apavorado perante o siléncio glacial dos espacas infinitos. Pascal ex- trai as conseqiéncias humanas da revolucio cientifica de sua époc: Sua preocupacao serd a de saber onde colocar 0 hamem finito no uni= verso infinito. Trégica serd sua resposta, Uma ciéncia da ordem e da medida Caracteristica marcante do século XVII 6 a busca do método que permita 2 constituicao de legitimo @ seguro conhacimento. Varias pro- Postas séo feitas por diversos pensadores: Francis Bacon escreve 6 No- vum Organum; Descartes, 0 Discurso do Método e as Regras para a Direcéo do Espirito; Espinosa, 0 Tratado da Reforma da Inteligéncia: Malebranche, a Procura da Verdade; os jansenistas de Port-Royal, a Arte de Pensar; e Leibriz dedica ao assunto varios e importantes optis- culos. Essa generalizada preocupagdo com © método é explicada pela ruptura dos pensadores com toda autoridade preestabelecida em ma- iéria de conhecimento. Tal ruptura exigiu que os pensadores encon- trassem apoio para suas idéias, independentemente da tradicdo e das ‘opiniées correntes. O método surge, assim, como garantia para um pensamento verdadeiro; por isso, sua procura torna-se urgente e im- prescindivel. A novidade trazida pelo século XVII nio pretende valer apenas porque € novidade, mas porque € verdadeira. E s6 sera verda- deira se for encontrada gracas a um métoda que conduza eficaz ¢ fir- memente a razio, Para o racionalismo do século XVII, 0 método ¢ fundamentalmen- te sindnimo de regra e de ordem: 0 método deve forecer 0 conjunto de regras que permitam ao pensamento ordenar numa “cadeia de ra- 26s" todas as idéias, O modelo do método é 0 procedimento deduti- vo da geametria: lugar privilegiado da aplicagia do método, a mate- matica passa entdo a servir de modelo para os outros ramos do saber, Nao que se aplicasse a matemitica a filosofia ou & tecnologia: 0 que se aplica é 0 procedimento dedutivo, pois ‘0 encadeamento ordenade da geometria é que seve de padrio bésico para outras areas do co- nhecimento. O método € entéo entendido como um instrumento da razio — eesta é a “luz natural” que pode conhecer tudo © que estiver a seu al- cance, diferindo da “‘luz sobrenatural’’, isto 6, da {6. Mas os pensado- res da @poca estabelecem diferentemente as fronteiras entre esas duas “luzes": para Descartes (1596-1650), a razao humana pode co- nhecer a verdade, mas encontra certos limites intransponiveis; no inte- rior de seus limites a razdo encontra certeza completa; para além des- ses limites © conhecimento seria revelado por Deus e objeto da fé; ra za¢ ¢ fé teriam cada qual uma certeza que lhe é propria. Em Espinosa (1632-1677), a f8 6 totalmente eliminada, sendo colocada junto as for mas imperfeitas de connecimento; a razdo humana, embora limitada, pode conhecer mesmo aquilo que antes se atribuia a fé; 0 que nio po- de ser conhecido pela tazéo € obscuro, absurdo, contradit6ria ou fal- 50, J4 para Pascal a razio $6 conhece se for iluminada pela fé: a “luz VIDAEOBRA XV natural é impotente mesmo pata conhecer as verdades naturais se nao for sustentada pela fé"’. Pascal permanece, portanto, desconfiado quanto aos poderes da razao. Sob a inspiracdo da matematica, o racionalismo do século XVII projeta construir uma ciéncia universal da ordem eda medida, uma mathesis universalis que transforma a analise num método de aplica- ao universal, Desde Descartes, a andlise aparece como procedimen- ta capaz de produzir um conhecimento novo, referindo o desconheci- do que se procura ao j4 conhecido. E, nesse sentido, a andlise, que ¢ © método, subordinase 4 nocgdo de ordem. A matematica serve de exemplo: a progressao aritmética e geométrica consistem essencial- mente numa série de termos ordenados de tal maneira, que dessa or dem decorre a determinagio do termo seguinte pelo termo preceden- te. A ordem permite nao apenas colocar cada termo em seu lugar, co- mo também © sobretudo determinar — pelo prdéprio lugar que deve ocupar — © valor de outro terma desconhecido. Assim, a ordem ofe- rece uma realidade na qual os vinculos das partes so determinados internamente, de sorte que a ordenacéo ¢ inerente aos termos ordena- dos, Por isso mesmo, a ordem permite a comparacdo entre termos co- nhecidos para determinar um outro desconhecido. E, para o raciona- lismo do século XVII, essa ordem € tanto a ordem da propria realida- de quanto a ordem dos conhecimentos sobre a realidade. Mas, se conhecer é referir 0 desconhecido ao j4 conhecido, ¢ ne- cessdrio supor que esses dois termos tenham a mesma medida, isto 6, sejam da mesma natureza. A medida 6, portanto, 0 critério da homo- geneidade e da diferenca entre os seres, Assim, a medida do corpo se- fla a extensdo, enquanto a da alma seria © pensamento. Esse dualis- mo, que provém de Descartes, leva A conclusio de que o conheci- mento do corpo nio pode ser alcangado mediante 9 conhecimento da alma, e o da alma nao pode ser feito por meia do conhecimento do corpo. Um corpo $5 permitiria conhecer outro corpo, coma 0 estu- do de uma figura geométrica, ¢ uma idéia pode levar ao conhecimen- to de outra idéia. Por outro lado, torna-se impossivel conhecer uma fealidade por intermédio de outra que the é heterogénea, isto é, que nao possui a mesma medida, A questdo da medida coloca um dos principais problemas pro- pastos a meditagao dos racionalistas do século XVII: o das relacoes entre corpo e alma, Sob a influéncia do jansenismo, esse problema se aguga em Pascal. © sacriffcio ascética do corpo é por ele considera do uma condicio pare a salvagdo da alma. Mas como essa relacdo é possivel se o corpa € a alma sdo incomensuraveis? Racionalismo e consciéncia tragica Cruzam-se em Pascal duas histérias: a do racionalismo e a do jansenismo, a ciéncia ¢ a apologética. No prefacia ao Tratado do Va- cua, ele define a histéria das ciéncias como progressao e a da teolo- gia como transmissao. Os conhecimentos que dependem da razio aperfeicoam-se com o tempo — e por isso 0s madernos conheceriam mais e melhor a ffsica do que o¢ antigos. As verdades da {é, ao contré- rio, seriam fundadas na autoridade ¢ na meméria; assim, numa ques- XVI PASCAL 180 como a da graga, torna-se necessdrio averiguar 0 que pensaram Sao Paulo ou Santo Agostinha. Essa pasicao conduz Pascal a critica a0 conservadarismo de seu século: combate os fisicos que apelam pa- ta a autoridade dos antigos e os tedlogos que pretendem inventar “verdades” novas. A escoldstica, de um lado, e os jesuftas, de outro, suscitam em Pascal — como em todos os grandes pensadores da épo- ‘ca — uma atitude permanentemente polémica. , 10 entanto, a visdo pascalina é uma visdo tragica, que nao se concilia com 0 racionalismo expansionista tipico de seu tempo. Carte- siano pelo método, Pascal é um anticartesiano resoluto pelas idéias, A fisica, ao destruir 0 cosmo e geometrizar o espaco, construiu a imagem de um universo infinite; 4 Filosofia, por sua vez, propés um método cuja garantia seria a propria corregdo do ato de pensar. Com isso elas destruiram duas nogées medievais; a de mundo e a de comu nidade. Em seu lugar surgiram a de espago infinito e a de individuo ra~ cional. O mundo, de um lado, nao apresenta mais hierarquia, en- quanto © conhecimento, de outro lado, tem de encontrar em si mes- mo © seu fundamento, Essas duas inovagées liberam, no plano social, as idéias de liberdade, de igualdade, de justica, mas, sobretudo, a de isolamento ou de auto-suficiéncia individual, Trata-se, na verdade, de uma caracteristica do Terceiro. Estado — como se designava, na época, a parte nao prvilegiada da nacéo francesa (as duas ordens pri- Vilegiadas da sociedade eram a nobreza eo clero, enquanto essa ter- ceira ordem era constituida por burgueses, artesdos, operdrios e cam- poneses), Explica Lucien Goldmann: “Em vez de uma sociedade hie. rarquizada, na qual cada homem possuiria seu lugar préprio, diferen- te de todo outro homem, segundo 0 oficio ou a categoria social, @ on- de cada um julgava o valor de seu lugar comparando-o com 0 dos de- mais, 0 Terceiro Estado desenvolveu progressivamente individuos iso- lados, livres e iguais, irés condigées inerentes as telagGes de troca en- tre vendedores e compradores”. Nesse isolamento é que Pascal enfrenta os espagos infinitos, © infinito em grandeza € 0 infinito em pequenez. © mecanismo e 0 racionalismo esvaziaram a nacde de mundo fi- sico e de comunidade humana e explicaram a natureza ea sociedade através de leis naturais; com isso, esvaziaram também os problemas do bem e do mal e a necessidade de o homem encontrar um apoio ex- terior a ele. Deus, nao mais podendo falar aos homens por intermé- dio do mundo, abandonov-o, escondeu-se, O “Deus dos fildsofos” apresenta-se apenas como uma hipétese, um artificio para provar, co- mo em Descartes, a existéncia do mundo: é um puro conceito tedri- €0. Opondo-se a essa concepsio generalizada em seu século, 0 janse- nista Pascal desenvolye uma consciéncia trégica: reconhece tudo 0 que havia de precioso e de definitive no novo conhecimento cientifi- £0 ¢, simultaneamente, recusa-se radicalmente a considerar este mun- 10 como a Unica perspectiva para o homem. Considera a razdo como um fator importante da vida humana, um fator de que o homem pode se orgulhar; mas ela nao seria todo o homem, nem deve ¢ nem pode ser suficiente para a sua vida, mesmo no plano da investigacdo cienti- fica, Por isso Pascal retorna ao que o racionalismo havia abandona- do: 4 moral e a religiao — esta no sentido amplo de f8 num conjunto de valores transcendentes aa individuo. Mas essa volta nao significa a VIDAEOBRA XVII recriagao da nogdo antiga de comunidade: a moral e a f€ pascalinas sdo a moral e a fé do homem solitario, do homem perdido em busca de apoio. O individualismo marca Pascal como marcou os outros ra- cionalistas, 36 que para estes o individue constitufa uma fortaleza ra- ional, enquanto para Pascal ele seria um abismo de mis¢ria e de fra- queza. A consciéncia tragica faz de Pascal um filésofo do paradoxo: afir- ma que a verdade & sempre a reuniao des contrérios e que @ homem € um ser paradoxal, 20 mesmo tempo grande © pequeno, fraco & for- te. Grande e forte porcue nunca abandona a exigéncia de uma verda- de e de um bem puros, sem mistura com 0 falso @ com o mal. Peque- no e fraco porque jamais pode chegar a um conhecimento ou produ- uma agao que alcance plenamente esses valores. © pensamento de Pascal € tragico justamente porque assume esse "tudo ou nada’, que profbe o abandono da busca dos valores e, no entanto, proite qualquer ilusdo quanto aos resultados alcancadas pelo esforco huma- no. Para o racionalismo classico tudo 0 que existe ¢ tudo o que o ho= me conhece tém uma causa ou uma tazdo que deve ser encontrada; a totalidade das coisas e a totalidade das idéias teriam, portanto, um fundamento real e incubitdvel. Haveria um ponto fixo, a partir do qual as coisas passam a existir: Deus. Haveria também um ponto fixo a partir do qual as idéias passam a ter existéncia: 0 sujeito racional. Para Pascal, tadavia, ¢ impossivel encontrar o ponto fixo das coisas e das idéias, embora “ardamos de desejo de encontrar uma base cons- tante e um ponto segu'o”. Para exprimir sua visio de um universo & de um homem marcados pelo dilaceramento e pelo paradoxo, Pascal utiliza a imagem dos dois infinitos e a do efreulo cujo centro est em toda parte, enquanto a circunferéncia nao ests em nenhuma. A essas imagens acrescenta uma terceita: a da balanga cujos bracos $30 infini- tos e pendem incessaniemente para um e para outro lado, sendo im- possivel fixd-la ou equilibré-la. E se a ordem consistisse justamente nesse desequilibrio permanente da balanga? “A oposigdo faz apare- Cer a ordem e a ordem faz aparecer a oposicao”, afirma Pascal. A or- dem seria, assim, circular @ os bragos da balanga sé se encontrariam no infinita, O ponto de encontra dos bragas da balanga e o centro do cireulo infinito néo estariam situados nem na natureza (fisica), nem fa natureza humana (razdo), mas em Jesus Cristo. Para Pascal, a fisi- ca ea filosofia deveriam desembocar na fé, pois 0 ponte fixe no se= ria nem fisico nem metafisico, mas religioso. ‘As razdes do coracao Ao contrério de Descartes, que busca um método universal, Pas- cal fala em métodos: para cada problema preciso deve-se elaborar 0 método preciso para resolvé-lo. Haveria, assim, tantos métodos quan- tos os problemas a resolver. A particularidade da questao exige a par- ticularidade do instrumento capaz de resolvéla, @ esse renovado es- forgo de invencao 6 que caracterizaria © matemiatico, cujo talento re- sidiria justamente em descobrir as nodes @ 0s prineipios Gteis a reso- lucao dos diferentes problemas. O descobrimento das relagdes entre XVIII PASCAL as figuras nao dependeria, portanto, de um métoda "democraticamen- te” comunicavel a todas (como em Descartes), mas de certo talento, de certo espirito que muito poucos possuem: 0 espirito geométrico. Mas © espirito de geometria no constitui, para Pascal, a totalida~ de do espirito cientifica. Quando se faz experiéncia em fisica, verifi- a-se que na determinacéo de cada fenémeno entra grande niimero de principios. Na fisica deve imperar, portanto, outro tipo de espirito: © espirito de justeza. Todavia, ha casos em que o cientista nao traba- tha, nem pode trabalhar, com prinefpios. Entao — como no caso do estudo do vicuo —, nem o espirito de geometria, nem o de justeza 540 Uteis: ¢ imprescindivel adotar o método experimental. Cada um dos métodes revela, segundo Pascal, uma diregie ¢ um dom do espirito. Pascal n&o os descreve, ndo especula sobre eles ¢ nem thes da regras: pratica-os, porém, com entusiasmo. Sua idéia fun- damental & a do ajustamento do espirita ao dominio dos objetivos de que se ocupa. Assim, um espirito que é “‘correto” num dominio pode- Td tornar-se “falso e insuportavel"’ noutro. © tipo peculiar de espirito do homem comum é um talento que hada tem a ver com 9s Faciocfnios e as observagdes das cientistas. O- homem comum sente mais do que raciocina. Ele pensa, mas pensa es- pontaneamente, naturalmente, tacitamente. Est dotado de um espiri« to muito diferente do geométrico: 0 espirito de finura, que consiste principalmente em "ver a coisa de uma s6 vez © nio por progresso fe raciocinio”. Trata-se do espirito intuitive, que apreende num sé lance. Pascal separa aquilo que Descartes unira: a unidade do método. Entretanto, de outro ponto de vista, compara e aproxima, pois consi- derando, embora, que o valor de um “‘espirito’’ consiste em sua apti- dao para resolver os problemas de seu proprio dominio, pondera que estimd-lo apenas por esse valor 6 julgar somente como especialista, Alem disso, acha Pascal, ¢ necessario também julgar o que aquele “espirito” vale para o hamem como homem. E novamente aqui Des- cartes @ Pascal se separam: para o primeiro todas as ciéncias servem para fortificar 0 julzo porque seriam uma inteligéncia Gnica a utilizar um Gnico método; para Pascal a especialidade prevalece e para que um espirito seja fecundo € preciso que seja exclusive em seu domi- nig. Afitma: “t raro que os gedmetras tenham finura @ rao que os dotados de finura sejam geémetras’ Desse modo, segundo Pascal, somente a religido teria resposta NO que tange a vida humana. Aqui o espfrito de geometria nada pode fazer. Mas, assim como em geometria e em fisica cada problema e Re que se encontre una solugdo que lhe é peculiar, recorrendo nao 0s préprios dados dos problemas, mas a certas relacdes exteriores a cles e, todavia, capazes de resolver a questéo, também no problema do homem a solucdo deve ser particular e nao é fornecida pelos pré- prios dados da existéncia humana, e sim por algo exterior a cla e que, no entanto, seric 0 Gnico capaz de justificar a humanidade: Je- sus Cristo. Embora veaha de fora do humano e seja ininteligivel para 95 critérios humanos, $6 a religiéo seria capaz de esclarecer o misté- rio do homem. Pascal tem horror aos principios considerados validos para tudo © para todos. Detesta tanto a casuistica dos jesuftas quanto a filosofia VIDA E OBRA XIX de um dos seus discipulos, Descartes, as quais através de principios universais afinal ndo explicam nada, Os principios poderiam ser uni- versais $e @ somente s¢ o homem pudesse alcancar os primeiros prin- cipios de tudo © que existe — mas a natureza humana nao tem essa forca. Nos Pensamentos Pascal escreve: “O homem €, na natureza, nada com relacao ao infinito, tudo com respeito ao nada: um meio entre o nada e 0 tudo”. Eis por que o homem pode conhecer alguma coisa de sie dos outros seres, mas nao deve esperar conhecer 0 prin- cipio e o fim deles € de si préprio. Como usar, entéo, certos conhecimentos como principios para ‘outros? Qual a faculdade que permite ao homem fazer isso? Pascal diz que € 0 “coracao". Mas nao se trata dos sentimentos, pois, ac contrdrio, as paixoes impedem o homem de se conhecer e de se sal- var; trata-se de um tipo peculiar de inteligéncia, que Pascal opde a ra- 240 dos racionalistas. & razd0 6 © conhecimento discursive, demons- trative, que funciona extrainde conclusdes de certas premissas dadas. © coracao, essa forme singular de inteligéncia, seria, ao contrério, o Conhecimento imediato e intuitive dos principios, Assim, seria o cora- 40 que alcanga os axiomas da geomettia, ou que Jesus Cristo ¢ 0 me- diador entre o finito e 9 infinito: o coracao ¢ a intuicdo dos principios indemonstraveis. Ao dizer que "o coragdo tem raz6es que a razéo desconhece”, Pascal nio estd afirmando que os sentimentos @ a inteli- geéncia se opdem. Esta mostrando que ha no homem duas maneiras de conhecer: © conhecimento intuitive e imediato de uma verdade (p. €x., que © espaca tem trés dimensoes) e 0 conhecimento discursi- vo ou mediato de uma realidade (p. ex., que a quarta proporcional é encontrada pela operagéo com os outros trés elementos dados). A fé seria um conhecimento do coracao — e por isso Pascal critiea os fil6- sofas que pretendem demonstrar ou desacreditar as verdades da fé por meio da razéo, que nada tem a ver com ela, do mesmo modo ‘que 0 cspirito de geometria nada tem a ver com o de finura, O Deus. dos fildsofas nao ¢ 0 Deus da fé: nao é Deus. O Deus irremediavelmente escondido As Provinciais foram escritas por Paseal na fase em que, militan- te, defende a concepgio jansenista da graga, do milagre, da razdo © da fé. J4 no periodo final de sua vida, a partir de marco de 1657, & marcado pela submissao exterior aos poderes politicos e eclesidsti- cos, embora interiormente os recuse através do recurso ao paradoxo, a tragédia e a Deus. Nessa fase — que é a dos Pensamentos —, Pas. cal aproxima-se da pasi¢ao dos jansenistas do retiro completo, da vi- Sao trdgica da vaidade do mundo e dos homens, Os jansenistas das duas tendéncias tinham em comum o postulado do Deus escondido, isto 6, da distancia insuperavel entre Deus e 6 homem. Mas os mili- tantes © a Pascal das Provinciais acreditavam que Deus deu a0 ho- mem os meios de conhecer as verdades essenciais por meio da luz na- tural e das Escrituras, e se algumas vezes 0 homem as ignora é por uma depravacao da vontade ¢ por viver fora dos quadros da Ipreja. Ja 05 jansenistas tragicos @0 Pascal dos Pensamentos acreditam que a in- certeza recobre tudo e que a vida crista é um misto de esperanga ¢ tre- XX PASCAL mor. Deus se esconde irremediavelmente e nao ha Graca que o tone manifesto ao homem. Deus tendo abandonado o mundo e a Igreja, © homem s6 pode ser um miseravel pecador. No terceiro periodo de sua vida, Pascal vive assim 0 paradoxo de ter de se submeter a0. po- der monarquico e eclesiastico, e de dedicar-se aos trabalhos cientifi- Cos, 20 mesmo tempa que admite a incerteza radical de tudo, Assu- me entio 0 paradoxo jansenista do "pecador justo”, de homem que vive simultaneamente na recusa e na aceitacao do mundo, Desse mo- do @ que se deve compreender a famosa “aposta” que aparece nos Pensamentos: j4 que a0 se pode provar nem que Deus existe, nem que Deus nao existe, }4 que néo se pode provar que haverd ou ndo- salvagao eterna — sé Se pode apostar. Mas ao apostar, deve-se levar em conta as perdas e¢ as ganhos; assim, se se aposta que Deus nao existe, € se ele existir, esté-se perdido; se se aposta que Deus existe, e cle nao existir, nada acontece. Deve-se entdo apostar na existéncia de Deus, pois a condigao humana ¢ risco, perigo de fracasso e espe- ranca de vitdria: © homem sente que Deus existe quando experimen- ta cruelmente sua auséncia. © Pascal apologeta ndo | as Escrituras para demonstréslas, mas para mostrar que somente nelas existe aquela religida que correspon- de completamente as necessidades do homem. A tinica prova das ver- dades religiosas é, para ele, a revelagdo, e Deus — fonte dessa revela- Gdo — ¢ a Gnica autoridade. Por isso es. Pensamentos partem de ver- dades reveladas referentes ao destino sabrenatural do homem e 3 me- diagao de Cristo. Se as provas aqui fossem como as geométricas, a apologética seria indtil. pois as provas religiosas — milagres ¢ profe- cias — sao iniiteis para o inerédulo. Nelas Deus se revela ocultando- se, @, por isso, 56 a fé as alcanga. E a f¢ depende da graca, nao do ra- ciocinio. Dirigindo-se ao incrédulo, ¢ necessdrio empregar provas, mostrar que a religitio crista ¢ a tinica que pode levar o homem a compreender a si mesmo, Mas as provas néo sao provas da verdade religiosa, mas um estimule para que o incrédulo venha a crer. Para Pascal, o ponto de partida para se subir a {6 6 o autoconhe- cimento, Os estdicas ¢ Descartes teriam, portant, entrevisto uma par- te da verdadeira natureza humana. Montaigne (1533-1592) também teria tide razéo ao apontar a fraqueza © a debilidade do homem, do homem sempre enganado por sua imaginacda, vollivel e escravo da gpinido ptiblica, sujeita as doencas e A morte. Mas isso seria também. apenas uma parte da natureza humana. Esta, para Pascal, 6 a unidade paradoxal e tagica daquelas duas verdades contrarias, Q homem 6 uma incoeréncia e essa incoeréncia 6 trdgica, porque nio se oferece a0 préprio homem coma um quadro que ele pode contemplar com in- aiferenea: a0 Contrario, diz respeito ao que ele tem de mais intime e profundo. A incoeréncia do homem retira de sua moral ¢ de sua cién- cia todo apoio e toda a seguranga, deixando-o desesperado e descen- trado. O homem é essa “giéria @ escéria do universo”’, que nao sabe de onde veio e nem para onde ir. Em si mesmo o homem encontra seu préprio eu miseravel € cujo sentido s6 poderd ser encontrado refe- do-o ao seu destino sobrenatural revelado pelo cristianisme: sua grandeza vem de sua origem divina, sua esperanga de salvagdo € sus- tentada pela redencdo de Jesus Cristo, sem a qual o conhecimento de Deus seria inuti! para ohomem, Cronologia VIDAEOBRA XX! O Deus das Escrituras, ao contrario do Deus dos fildsofos, nao € uma idéia da razao: 0 homem o perde e o reencontra, pade sentir sua existéncia ao sentir sua auséncia. Encontrd-lo nao significa sentir uma satisfacao intelectual, 3 semelhanga da que o matemitico experimen- ta ao resolver um problema dificil: encontrd-lo 6 mudar de vida, & es- quecer tuda, menos o proprio Deus. A apologética pasealina comeca, portanto, provecando uma to- mada de consciéncia da contradigao irredutivel que definiria uma vi- da humana, Estabelece, de saida, uma exigéncia de lucidez: 0 ho- mem nao pode nem ceve fugir de si mesmo, inventar desculpas para suas fraquezas ¢ glérias para suas grandezas, nem inventar razées filo- sGficas para justificar o que ele € Em seguida, a apologia consiste em decifrar os dois Testamentos e a histéria da igreja, enunciando os mo- tivos para se crer no drama da queda e da redengdo, que explicaria a antinomia da condigée humana, Nao se trata de provar a fé, mas de estimular sua vinda, Mesmo porque nao € possivel transformar a natu reza humana: sé 0 mistério da Graga pode realizar essa transforma- io ¢ isso depende de Deus, A tarefa do apologeta nao pode, portan- to, ser demonstrativa, mas apenas persuasiva. Fis por que Pascal nio emprega a arte de demonstrar, mas a de persuadir, que 6 a que se ajusta 4 disposicéo do ouvinte © que “consiste tanto em agradé-lo co- mo em convencésla, pois os homens sé governam mais por capricho do que pela razio” 1623 — Nascimento de Pascal, em Clermont-Ferrand, a 19 de junho. 1631 — O pai de Pascal instala-se em Paris com os filbos. 1635 — Manifestagio de precocidade do génia cientftico de Pascal, que des- cabre sozinho as primeuras 32 proposigdes de Euclides, 1638 — A familia Pascal retira-se para a provincia de Auvergne, 1639 — Pascal inventa a maquina de caleular. 1640 — Impressio do Ensaio Sobre as Cénicas, primeita obra de Pascal, 1645 — Publicagdo da Carta Dedicatéria a Monsenhor Chancele: Acerca da Nowa Maquina (Aritmética) Inventada pelo Senhor Blaise Pascal. 1646 — Pascal converte-se a0 jansenismo; repete, em Rudo, as experiéncias de Torricelli sobre 0 vacuo. 1647 — Pascal encontra-se com Descartes; publica as Novas Experidncias So- bre 0 Vacuo ¢ rechige 0 Preficio para um Tratado do Vacuo. 1648 — Pascal escreve, em latin, a Generatio Conisectionum; faz experién- cias sobre pressda atmostérica na torre de Saintslacques, em Paris; sedige 2 Deserigio da Grande Experiéncia do Equilibrio das Licores, 1651 — Morre a pai de Psscai a 24 de setembro, 1653 — Pascal redige o Tratado do Equillbrio dos Licores e Tratado da Gravi- dade da Massa de Ar. 1655 — Pascal redige 0 Coldquic de Pascal com o Senhor de Saci Sobre Epic- teto ¢ Montaigne 1656 —Condlenagio de Antoine Amnauld pela Sorbonne; Pascal entra na por Kenic e publica a primeira Provinetal

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