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Nietzsche Os Pengadorés "Uma coisa sou eu, outra sto meus escritos. Aqui, antes que eu fale deles préprios, seja tocada a pergun- ta pela entendimento au ndo-entendi- mento desses escritos. Fago-o displi- centemente quanto convem, de qual- quer modo: pois essa pergunta ainda n30 esta no tempo. Lu préprio ainda nao estou no tempo. alguns nascem pastumos.” NIETZSCHE: kece Homo, “QO que é a verdade, portanto? Um batalhao movel de metiforas, me tonimias, antropomertismes. enfin, uma soma de relagdes humanas, que foram enfatizadas pottica e retorica- mente, transpostas, enfeitades, ¢ que, apds longo uso, parecem a um pove: sélidas, candnicas & obrigatérias: as verdades sao ilusdes, das quais se es- queceui que o sdo, metiforas que se tornaram gastas & sem forga sensivel, moedas que petderam sua efigie € agora s6 entram em consideragao co mo metal, nao mais como moedas.”” NIETZSCHE Sobre Verdade e Men. tira, “A” teologia inteira esta edificada sobre © falarse do homem dos ulti- mos quatro mildnios como de um eterno, em direcao ao qual todas as coisas do mundo desde seu inicio ten- deriam naturalmente. Mas tudo veio a ser; no ha fatos eternos: assim co- mo nao ha verdades absolutas”. NIETZSCHE: Humano, demasiado hu. mano. “Nisto consiste 9 projeto mais ge- ral de Nietzsche: introduzir na filoso- fia os conceitos de sentido e de valor E evidente que a filosofia moderna, em grande parte, viveu e vive ainda de Nietzsche”. GILLES DELEU Philosophie. Nietzsche et la Os PensadoréS NSlo Zed. 83.0257 CIP-Brasil. Catalogayao-na-Publicagdo: Camara Brasileira do Livro, SP Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900. Obras incompletas / Friedrich Nietzsche ; seleg’o de tex- tos de Gérard Lebrun ; traducdo ¢ notas de Rubens Rodrigues Torres Filho ; posfacio de AntOnio Candido. — 3. ed. — S80 Paulo : Abril Culrural, 1983, Os pensadores Inclui vida ¢ obra de Nietzsche. Bibliografia, 1. Filosofia alems 2, Nietzsche, Friedrich Wilhelm, {844-1900 1. Lebrun, Gérurd, 1930 - I. Candido, AntOnio, 1918 - TL, Titulo. IV. Série, epp-193 -190.92 indices para catélogo sistematico: 1, Alemanha ; Filosofia 193 2. Filosofia alema 193 Fildsofos alemaes 193 +. Filésafos modernos : Biografia e obra 190.92 5. Mictzsche : Obras filosGficas 193 FRIEDRICH NIETZSCHE OBRAS INCOMPLETAS Selegao de textos de Gérard Lebrun Tradugao € notas de Rabens Rodrigues Torres Filho Posfacio de Anténio Candido 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA Titulos originais: Die Geburt der Tragoedie aus dem Geist der Musik Dic Philosophie im tragischen Zeitatter der Griechen Ueber Wahrheit und Luege in aussermaratischen Sinne Unzeitgemaesse Retrachturgen Menschiiches Alaumenschliches (12 ¢ 2? val.) Morgenroete Die frochlicke Wissenschaft (La Gey Scienza} Also sprack Parathustea Jenseits von Gut und Boese ‘Zur Geneaiogie der Moral Goetzen-Daemmerung Der Aativhrist wige Widerkunt Die ewi ‘erufiing”” — “Im Sueden'* “Der Wanderer" — “Von der Armut des Reichsten" ‘© Copyright Abril S.A. Cultural ¢ Industrial, Sto Paulo, 1974, 2f edi¢ao, 1978, — 3% edigho, 1983, Aitigo publicado sob licenga de Antdaio Candido de Melo ¢ Souza, Sao Paula ("0 Postado"). Direitas exclusivos sobre “*Nietzsche — Vida ¢ Obra", ‘Abril S.A. Cultural e Industrial, $20 Paulo, Dircitos exclusivos sobre as tradugdes deste volume, Abril S.A. Cultural ¢ Industrial, $80 Paulo, NIETZSCHE VIDA E OBRA Pesquisa: Olgaria Chaim Ferex Consultoria: Marilena de Souza Chant F fiedrich Wilhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Récken, localidade proxima a Leipzig. Karl Ludwig, seu pai, pessoa culta e delicada, ¢ seus dois avés eram pastores prostes- fantes; © préprio Nietzsche pensou em seguir a mesma carreira, Fm 1849, seu pai e seu irmao faleceram; por causa dissu, a mae mudouse com a familia para Naumburg, pequena cidade as mar- gens do Saale, onde Nietzsche creseeu, em companhia da mae, duas tias e da av6. Crianga feliz, aluno modelo, décil ¢ leal, seus colegas de escola o chamavam “pequena pastor’: com eles criou uma pe. quena sociedade artistica c literaria, para a qual compés melodias e escreveu seus primeiros versos, Em 1858, Nietzsche obteve uma bolsa de estudos na entao fa- masa escola de Pforta, onde haviam estudade o poeta Novalis eo filésofo Fichte (1762-1814). Datam dessa época suas leituras de Schil- ler (1759-1805), Holderlin (1770-1843) ¢ Byron (1788-1824); sob essa in- fluéncia ¢ a de alguns professores, Nietzsche comecou a afastarse do cristianisma, Excelente aluno em prego ¢ brilhante em estudos biblicos, alem&o e latim, seus autores favoritos, entre os clissicos, foram Plato (428-348 a.C,) e Esquilo (525-456 a,C.). Durante o dltimo ano em Pforta, escreveu um trabalho sabre o poeta Tedgnis (ste. VI a.C), Parti em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia e fisototia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses estudos e passou a residir em Leipzig, dedicande-se a filologia, Ritschl considerava a filologia nao apenas como histéria das formas literdrias, mas como estudo das institui- Coes @ do pensamento. Nietzsche seguiulhe as pegadas e realizou investigacdes originais sobre Didgenes Laércio (séc. III), Hesiodo (sc. Vill aC.) « Homero. A partir desses trabalhos foi nomeado, em 1869, professor de filologia em Basiléia, onde permanecen por dez anos. A filosofia somente passou a interessé-lo a partir da leitura de O Mundo como Vontacle e Representag3o, de Schopenhauer (1788-1860), Nietzsche foi atraido pelo atersmo de Schapenhauer, as- sim como pela posicdo essencial que a experiéncia estética ecupa em sus filosafia, sobretudo pelo significado metafisico que atribul A miisica Em 1867, Nietzsche toi chamado para prestar 0 seevicé militar, mas um acidente em exercicio de montaria livrou-o dessa obrigacdo. Vollou entao aos estucios na cidade de Leipzig. Nessa época teve vin NIETZSCHE inicio sua amizade com Richard Wagner (1813-1863), que tinha qua- se.55 anos e vivia ent&o com Cosima, filha de Liszt (1811-1886). Nietzsche encantouse com a musica de Wagner ¢ com seu drama musical, principaimente com Tristo Isaida e com Os Mestres Can- tores. A casa de campo de Tribschen, as margens do lago de Lucerna, onde Wagner morava, tornou-se para Nietzsche lugar de “refuigio ¢ conselagao”. Na mesma €poca, apaixonou-se por Cosima, que viria a ser, em obra posterior, a “sonhada Ariane’. Em cartas a0 amigo Er- win Rohde, escrevia; “Minha Italia chama-se Tribschen e sinto-rme ali como em minha propria casa”. Na universidade, passou a tratar das relagdes entre a musica e a tragédia grega, eshocando seu livro O Nascimento da Tragédia no Espirito da Musica O filésofo eo misico Em 1870, a Alemanha entrou em guerra com a Franca; nessa ocasiae, Nietzsche serviu 0 exército como enfermeiro, mas por pauco tempo, pois logo adeeceu, contraindo difteria e disenteria. Essa doenca parece ter sido a origem das dores de cabeca e de estd- mago que acompanharam a fildsofo durante toda a vida. Nietz sche restabeleceu-se lentamente e voltou a Basiléia a fim de pros- seguir seus cursos Em 1871, publicou O Nascimento da Tragédia, a respeito da qual S¢ costuma dizer que o verdadeiro Nietzsche fala através das figuras de Schopenhauer ¢ de Wagner. Nessa obra, considera Sdcrates (470 ou 469 a.C-399 2.C.) um “sedutor’, por ter feito triunfar junto a ju- ventude ateniense o mundo abstrato do pensamento. A tragédia gro- ga, diz Nietzsche, depois de ter atingido sua perfeicdo pela reconci- liagao da “embriaguez e da forma’, de Dioniso e Apolo, comecou a declinar quanda, aes paucos, foi invadida pela racionalismo, sob a influéncia “decadente” de Socrates. Assim, Nietzsche estabeleceu uma distin¢ao entre o aporineo e 0 dionisiaco: Apolo 60 deus da cla- reza, da harmonia é da ordem; Dioniso, o deus da exuberancia, da desordem e da masica. Segundo Nietzsche, o apolineo e 0 dio- nisfaco, complementares entre si, foram separados pela civilizagde Nietzsche trata da Grécia antes da separacao entre o trabalho ma- nual e ¢ intelectual, entre o cidadao ¢ 9 politico, entre © poeta ¢ 0 fildsofo, entre Eros € Logos, Para ele a Grécia socratica, ado Logos da ldgica, a da cidade-Estado, assinalou © fim da Grécia antiga ¢ de sua forga criadora. Nietzsche pergunta como, num povo amante da beleza, Sdcrates péde atrair as jovens com a dialética, ista é, uma nova forma de disputa l4gon), ceisa tao querida pelos gregos, Nietzs- che respande que isso aconteceu porque a existéncia grega jd tinha perdido sua “bela imediatez", € tomowse necéssdrio que a vida emeagada de dissolugao langasse nao de uma “raza tiranica”, a fim de dominar os instintos contraditérias Seti livea foi mal acothido pela critica, o que o impeliu a refletir sobre a incompatibilidade entre o “pensador privado” eo “professor miblico”, Ao mesmo tempo, exasperava-se com seu estado de satide: VIDAEGBRA 1K dores de cabeca, perturbacdes oculares, dificuldades na fala. Inter: fompeu, assim, sua carreira universitaria por um ano. Mesmo doente toi até Bayreuth, para assistir 4 apresentagac de O Anel dos Nibelun- 805, de Wagner. Mas 0 “entusiasmo grosseiro” da multidao ¢ a atitu- de de Wagner embriagado pelo sucesso o irritaram. Jerminada a licenca da universidade para que tratasse da saude, Nietzsche voltou a catedra. Mas sua voz agora era tao imper- ceptivel que os auvintes deixaram de freqiientar seus cursos, outrora tao brilhantes. Em 1879, pediu demissao do cargo. Nessa acasiao, ini ciou sua grande critica dos valores, escrevendo Humano, Demasiado Humano; seus amigos nko o compreenderam. Rempeu as relacdes de amizade que o ligavam a Wagner e, a0 mesmo tempo, afastouse da filosofia de Schopenhauer, recusande sua nagao de “vontade cul- pada’ e substituinde-a pela de "vontade alegre”, isso Ihe parecia ne- cessdrio para destruir os abstaculos da moral e da metafisica. O ho- mem, dizia Nietzsche. 6 © criador dos valores, mas esquece sua propria criagao ¢ vé neles algo de “transcendente”, de “eterno” e “verdadeiro”, quando os valores nao sao mais do que algo “humano, demasiaco humano’, Nietzsche, que até entao interpretara a masica de Wagner como © “tenascimento da grande arte da Grécia”, mudou de opiniao, achando que Wagner inclinava-se ao pessimismo sob a influéncia de Schopenhauer. Nessa épaca Wagner voltara-se para o cristianismo e tornara-se devoto, Assim, o rompimento significou, ao mesmo tem- 0, a recusa do cristianismo e de Schopenhauer; para Nietzsche, am- ‘bos s8o parentes porque sic a manifestacao da decadéncia, isto 6, da fraqueza e da negacao. Irritado com 6 antigo amigo, Nietzsche ‘@screveu: “Nao hd nada de exausto, nada de caduco, nada de perigo- 80 para a vida, nada que calunie o mundo na reino do espirito, que ‘nag tenha encontrado secretamente abrigo em sua arte: ele dissimu- lao mais negro ebscurantisme nos orbes luminosos do ideal, Ele aca- ficia todo 0 instinto niilista (budista) e embeleza-o com a misica; acaricia toda forma de cristianismo e toda expressao religiosa de decadéncla’, Solidao, agonia ¢ morte Em 1880, Nietzsche publicou O Andarilho e sua Sambra; um ano depois apareceu Aurora, com a qual se empenhou “numa luta contra a moral da auto-rendincia” Mais urna vez, seu trabalho nao foi bem acolhido por seus amigos; Erwin Rohde nem chegou a agradecer.the 6 récebimento da obra, nem respondeu a carta que Nietzsche Ihe en- viara. Em 1882, veio a luz A Gaia Ciéncia, depois Assim falou Zaratus- va (1884), Para Além de Bem e@ Mal (1886), O Caso Wagner, Crespusculo des fdolos, Nietzsche contra Wagner (1888). Ecce Homo, Ditirambos Dionisiacos, O Anticristo e Vantade de Poténcia sé apare- ceram depois de sua morte, Durante o vero de 1881, Nietzsche residiu em Haute- Engandine, na pequena aldeia de Silvaplana, e, durante um passeio, teve a intuicao de O Fterno Retorno; redigido logo depois. Nessa x NIFTZSCHE obra defendeu a tese de que © mundo passa indefinidamente pela al- temancia da criagao ¢ da destruicdo, da alegria ¢ do sofrimento, do bem e do mal. De Silvaplana, Nietasche transferiu-se para Génova, no outono de 1881, e depois para Roma, onde permaneceu por in sisténcia de Fraulem von Meysenburg, que pretendia casé-lo com uma jovem finlandesa, Lou Andreas Salomé. Em 1882, Nietzsche propés-the casamento e foi recusado, mas Lou Andreas Salomé dese- jou continuar sua amiga e discipula, Encontraram-se mais tarde na Alemanha; porém, nao houve a esperada adesao a filosofia nietzs- chiana e, assim, acabaram por se atastar definitivamente. Em seguida, retornou a Itdlia, passando @ inverno de 1882-1883 na baia de Rapallo. Em Rapailo, Nietzsche nao se encantrava bem instalado; porém, “foi durante o inverno e no meio desse descontor- to que nasceu o meu nobre Zaratustra”, No outuno de 1883 voltou para a Alemanha ¢ passou’a residir em Naumburg, em companhia da mae ¢ da irma. Apesar da compa- nhia dos familiares, sentiase cada vez mais sé. Além disso, Mmostrava-se muito contrariada, pois sua irma tencionava casar-se com Herr Forster, agitador antisemita, que pretendia fundar uma empresa colonial no Paraguai, como reduto da cristandade teut6ni- ¢a. Nietzsche desprezava o antisemitismo, e, nao conseguinca in- fluenciar a irma, abandonou Naumburg. Em principio de abril de 1884 chegou a Vonoeza, partinde depois para a Suiga, onde recebeu a visita do barae Heinrich von Stein, jo- ven discipulo de Wagner. Von Stein esperava que o fildsofo o acom- Panhasse a Bayreuth para ouvir © Parsifal, talver pretendendo ser 0 mediador para que Nietzsche nao publicasse seu ataque contra ‘Wagner. Por seu laclo, Nietzsche viu no rapaz um discipulo capaz de compreender o seu Zaratustra. Von Stein, no entanto, veio a falacer muito cedo, 0 que o amargurou profundamente, sucedendo-se al- ternancias entre euforia e deprossao, Em 1885, veio a piiblico a quar- ta parte de Assim falou Zaratustra; cada vez mais isolado, 0 autor § ‘e@ncontrau sete pessoas a quem envia-la, Depois disso, viajou para Nice, onde veio a conhecer o intelectual alemao Paul Lanzky, que le- ta Assim falou Zaratustra e escrevera um artigo, publicado em um jomal de Leipzig e na Revista furopaia de Flarenga. Certa vez, Lanzky se ditigiu a Nietzsche tratando de “mestre” ¢ Nietzsche lhe respondeu. “Sois 0 primeiro que me trata dessa maneira” Dopois de 1688, Nietzsche passou a escrover cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise: escrevia cartas ora assinando “Dioniso”, ara “o Crucificado” e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma “paralisia pro- gressiva”, Provavelmente de origem sifilitica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia, Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900. O dionisiace © 0 sacratico Nietzsche enriqueceu a filosofia moderna com meios de ex: pressao: 0 aforismo © 0 poema. Isso trouxe como conseqiéncia uma VIDAEOBRA xt nova concepgae da filosotia e do fildsofo: nae se trata mais de pro- curar ¢ ideal de um cenhecimento verdadeiro, mas sim de interpre tar e avaliar, A interpretagdo procuraria fixar o sentido de um fendmeno, sempre parcial e fragmentano; a avaliagao tentatia deter- minaro valor hierarquico desses sentidas, tatalizande os fragmentos, sem, no entante, atenuar ou suprimir a pluralidade. Assim, o afaris- mo nietzschiano €, simultaneamente, a arte de interpretar e a colsa a ser interpretada, e 6 poema constitui a arte de avaliar ¢.a propria cor $a. a ser avaliada. O intérprete seria uma espécie de fisiologista e de médico, aquele que considera os fengimenos coma sintomas e fala hor aforismos, o avaliador seria o artista que considera ¢ cria pers pectivas, falando pelo poema. Reunindo as duas capacidades, o fildsofo do futuro deveria ser artista © médico-logislador, ao mesmo tempo. Para Nietzsche, um tipo de fildsolo encontrase entre os Pré-socriticos, nos quais existe unidade entre o pensamento e a vida, esta “estimulando” © pensamento, e © pensamento “alirmando” 2 vida. Mas o desenvolvimento posterior da filosofia tetia trazide con- sigo a progressiva Gegeneracao dessa caracteristica, e, em lugar de uma vida ativa e de um pensamento afirmative, a filosofia terseia }ropasto camo tarefa "julyar a vida”, opondo a ela valores pretensa- mente superiores, medindo-a por eles, imponde-lhe limites, condenando-a, Em lugar do fildsofodegisladar, ista 2, critica de to dos os valores estabelecidos e criacor de novos, surgi 0 fildsafo me- co, Essa degeneragae, afirma Nietzsche. apareceu claramente com Sécrates, quando se estabeleceu a distingso entre dois mundos, hela oposicae entre essencial e aparente, verdadeiro ¢ falso, inte- ligivel e sensivel. Sécrates “inventou” a metafisica, diz Nietzsche, fa- endo da vida aquilo que deve ser julgado, medida, limitada, em no: me de valores “superiores” como 0 Divino, o Verdadeiro, © Belo, ‘Bem. Com Socrates, teria surgicdo um tipo de fildsofo voluntarin e su- tilmente “submisso”, inaugurando a época da razdo ¢ do homem tedrico, que se opds ao sentido mistico de toda a tradigao da epoca da tragédia. Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como carac: teristica o saber mistico da unidade da vida e da morte e, nesse senti- do, constitul uma “chave” que abre o caminho essencial do mundo, Mas Sécrates interpretou a arte tragica como algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas € Causas sem efeitos, tude de ma- heira to confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sécrates colo- cou # tragédia ne categoria des artes adulacoras que representam 0 agradavel e nao o Util e pedia a seus discipulas que se abstivessem dessas emogbes “indignas de fildsofos”, Segundo Sécrates, a arte da tragédia desvia o homem do caminho da verdade: “uma obra sé & bela se obeclecer a raz80", formula que, segundo Nietzsche, corres- ponde ao aforismo ‘'s6.o homem que conhece © bem é virtuoso”. Es- se bem ideal concebido por Sécrates existiria em um mundo supra- sensivel, no “verdadeiro mundo”, inacessivel aa conhecimento dos sentidos, 03 quais 56 revelariam o aparente € irreal, Com tal con- eepgac, crouse. segundo Nietzsche, uma verdadeira oposigao dialética entre Sécrates © Dioniso: “enquanto que em todos os ho- XI NIETZSCHE mens produtivos o instinto é uma forga afirmativa e criadora, € a consciéncia uma forca critica © negativa, em Sdcrates 0 instinto tomarse critica e a consciéncia criadera”. Assim. Séerates, a “ho- mem tedrico”, fai a Unico verdadeiro contrario da homem tragico € com ele teve inicio uma verdadeira mutagdo na entendimento do Ser Com ele, o homem se afastou cada vez mais dese conhecimen- to. na medida em que abandonau o fenémeno do tragico, verdadeira netureza da tealidade, segundo Nietzsche. Perdende-se a sabedoria instintiva da arte tragica, restou a Sécrates apenas um aspecto da vi- da do espiito, o aspecte ldgico-racional, faltouthe a visio mistica, Dossuido que foi pelo instinto imefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, logico, racional. Penetrar a propria razdo das coisas, distinguindo o verdadeiro do aparente € do erro era, para Sécrates, a dnica atividade digna do homem, Para Nietzsche, porém, esse tipo de conhecimento nao tarda a encontrar seus limites: “esta sublime ilusao metafisica de um pensamento puramente racional associa-se 40 conhecimento como um instinto e a conduz incessan- temente a seus limites onde este se transforma em arte” Por essa razao, Nietzsche combateu a metafisica, retirando do mundo supra-sensivel tode e qualquer valor eficiente, e entendendo as idéias nao mais como “verdades” ou “falsidades”, mas como "si nais”, A dnica exist@ncia, para Nietzsche, é a aparéncia e seu revetso nao € mais o Ser; o homem esta destinado a multiplicidade, ¢ a nica coiss permitida & sua interpretacao. O véo da dguia, a ascengio da montanha A.iitica nietzschiana 4 metafisica tem um sentido ontolégico e um sentido moral: 0 combate a teoria das idéias socritico-platnicas ¢, a0 mesmo tempo, uma luta acirrada contra o cristianismo, Segundo Nietzsche, 0 cristianismo concebe o mundo terrestre como um vale de ldgrimas, em oposic¢ao ao mundo da felicidade ‘eterna do além. Essa concep¢ao canstitui uma metafisica que, a luz das idéias do outro mundo, aut€ntico ¢ verdadeiro, entende o terres- tre, 0 sensivel, 0 corpo, como 9 proviséria, o inauténtico e o aparen- te. Trata-se, portanto, diz Nietzsche, de "um platonismo para o po- vo'', de uma vulgarizacao da metafisica, que é preciso desmistificar, © cristianismo, continua Nietzsche, € a forma acabada da perversao dos instintos que caracteriza o platonismo, repousando em dogmas © crengas que permitem a consciéncia fraca e escrava escapar a vi- da, a dor e a tuta, e impondo a resignacao e a rentincia como virtu- des. $40 05 escraves ¢ 05 vencidos da vida que inventaram 9 aiém Para Compensar a miséria; inventaram falsos valares para se conso- lar da impossibilidade de participacao nos valores dos senhores @ dos fortes; forjaram 0 mito da salvacao da alma porque nio pos- suiam © corpa; criaram a ficcdo do pecado porque nao podiam parti- cipar das alegrias terrestres e da plena satisfagao dos instintos da vi- da “Este ddio de tudo que ¢ humano”, diz Nietzsche, “de tudo que é ‘animal’ mais ainda de tudo que é ‘matéria’, este horror dos senti- dos... este temor da felicidade e da beleza; este deseja de fugirde tu- do que € aparéncia, mudanca, dever, morte, esforco, desejo mesmo, VIDAEOBRA — XIII tudo isso significa... vontade de aniquilamenta, hostilidade a vida, re ‘Cusa em se admitir as condigdes fundamentais da propria vida.” Nietzsche propos a si mesmo a tarefa de recuperar a vida e transmutar todos os valores do cristianismo; “munido de uma tocha cuja luz nao treme, levo uma claridade intensa aos subterrdineos do ideal”, A imagem da tacha simboliza, no pensamento de Nietzsche, © métoda filolégico, por ele concebide come um metodo critica & que se constitui no nivel da patologia, pois procura “fazer falar aqui- lo que gostaria de permanecer mudo”. Nietzsche traz a tana, por exemplo, um significado esquecido da palavra “bom”, Em latim, bo- ‘us significa também 6 “‘guerreiro”, significada este que foi sepulta- do pele cristianismo. Assim como esse, outros significadas precisa- Fiam ser recuperados; com isso se poderia censtituir uma genealogia da moral que explicaria as etapas das nogdes de "bem e de “mal” Para Nietzsche essas etapas $0 0 ressentimento (''¢ tua culpa se sou fracoe infeliz”} a. consciéncia da culpa (momento em que as formas negativas se interiorizam, dizem-se culpadas ¢ voltamyse contra si mesmas), € 0 ideal ascético (momento de sublimacao do sofrimento ede negacao da vidal. A partir daqui, a vontade de poténcia toma-se vontade de nada e a vida transformase em fraqueza e mutilacao, triunfando © negative e a reagao contra a agao. Quando esse niilis- mo triunfa, diz Nietzsche, a vontade de poténcia deixa de querer sig nificar “criar” para querer dizer “dominar™; essa é a maneira como 0 escravo a concebe, Assim, na férmula “tu és mau, loga eu sau bom", Nietzsche vé o triunfo da moral dos fracos que negam a vida, que hegam a “afirmacao”, neles tudo é invertide: os fraces passam a se ‘chamar fortes, a baixeza transforma-se em nobreza. A “profundida- de da consciéncia” que buseao Bem ¢ a Verdade, diz Nietzsche, im- plica resignagao, hipocrisia e mascara, eo intérprete-fildlogo, ao per correr os signos para denuncii-las, deve ser um escavador das sub- mundos a fim de mostrar que a “profundidade da interioridade” é coisa diferente do que ela mesma pretende ser. Do ponto de vista clo intérprete que desca até aos bas-fonds da cansciéncia, o Bem & a vontade do mais forte, do “guerreito”, do arauto de um apelo perpétuo a verdadeira ultrapassagem dos valores estabelecidos, do superhamom, entendida esta expresso no sentido de um ser huma: RO Que transpde os limites do humano, ¢ o além-do-homem, Assim, o vo da dguia, a ascensAo da montanha e tedas as imagens de verti- calidade que se encontram em Assim falou Zaratustra representam a inversao da profundidade e a descoberta de que ela nao passa de um jogo da superticie. A etimologia nietzschiana mostra que nao existe um “sentido original”, pols as proprias palavras nao passam de interpretacdes, an- tes mesmo de serem signos, e elas sé significam porque sao “inter- pretacoes essenciais”, As palavras, segundo Nietzsche, sempre fo- ram inventadas pelas classes superiores e, assim, nao indicam um significado, mas impée uma interpretagao. O trabalho do etimalogis- ta, portanto, deve centralizar-se no problema de saber o que existe para ser interpretade, na medida em que tudo é mdscara, interpre- tagdo, avaliacdo, Fazer isso é “aliviar o que vive, dancar, criar”, Za- ratustra, 0 intérprete por exceléncia, é como Dioniso. Qs limites do humana: O além-do-homem Em Ecce Homo, Nietzsche assimila Zaratustra a Dioniso, conce- bendo 0 primeira como oa triunfo da afirmagie da vontade de poténcia eo segundo como simbelo do munde come vontade, como um deus artista, totalmente irresponsavel, amoral e superior ao logi- co. Por outre lado, a arte trafica € concebida por Nietzsche como. Oposta a decadéncia & enraizada na antinomia entre a vontade de poténcia, aberta para o futuro, eo “eterno retomo”, que faz do futu- ro.uma repeticao; esta, no entante, nao significa uma volta do mes- me nem uma volta go mesma; o eterno reterno nietzschiano é essen- clalmente seletivo. Em dois momentos de Assim falou Zaratustra (Za- Tatustra doente © Zaratustra convalescente), o eteme retorno causa ac personagem-titulo, primeiramente, uma repulsa e um medo into- lerdveis que desaparecem por ocasido de sua cura, pois 0 que 0 tor- nava doente era a idéia de que o eterno retarno estava ligado, apesar de tudo, a unt ciclo, ¢ que ele faria tudo voltar, mesmo @ homem, o “homem pequeno’”. O grande desgosto da homem, diz Zaratustra, ai esté © que me sufocou e que me tinha entrado na garganta e também © que me tinha protetizado o adivinho: tudo € igual. E @ étemo retorno, mesmo do mais pequeno, al estava a causa de meu cansago e de toda a eixsténcia. Dessa forma, se Zaratustra se cura 6 Porque compreende que o eterno retorne abrange 0 desigual ¢ a se- lecdo. Para Dioniso, 0 sofrimento, a morte € 0 declinio si apenas a outra face da alegria, da ressurrei¢ao e da volta. Por isso, “os homens nao tém de fugir a vida como os pessimistas”, diz Nietzsche, “mas, come alegres convivas de um banquete que desejam suas tagas no- vamente cheias, dirao a vida: uma vez mais”, Para Nietzsche, portanto, o verdadeiro oposto a Dionise nao ¢ mais Sécrates, mas © Crucificado, Em outros termos, a verdadeia Oposicdo ¢ a que contrapde, de um lado, testemunho contra a vida © 6 empreendimento de vinganca que consiste em negar a vida: de quire, a afirmagao do devir e do miltiplo, mesmo na dilaceragao dos membros dispersos de Dionise, Com essa concepgao, Nietzsche responde ao pessimismo de Schopenhauer: em lugar do desespero de uma vida para a qual tudo se ternou viio, o hamem descobre no eterno retomo a plenitude de uma existéncia ritmada pela al- temdneta da cria¢ao ¢ da destruigao, da alegria & do sofrimento, do bem edo mal. © eterno reterno, e apenas ele, oferece, diz Nietzsche, uma “saida fora da mentira de dois mil anos”, ¢ a transmutagac dos valores traz consigo o novo homem que se situa além do proprio homem. Esse super-homem nietzschiano nao é um ser, cuja vontade “de- sejé dominar”, Se se interpreta vontade de poténcia, diz Nietzsche, como desejo de dominar, faz-se dela algo dependente dos valores es- tabelecidos. Com isso, desconhece-se a naturezs da vontade de hoténcia como principio plastico de todas as avaliagdes © como for- a criadora de noves valores. Vontade de poténcia, diz Nietzsche, significa *criar’, “dar” @ “avaliar” Nesse sentido, a vontade de poténcia do super-homem nietzs- chiang 9 situa muito além do bem edo mal eo faz despreenderse VIDA E OBRA XY de tados os produtos de uma cultura decadente. A moral do alésn do-homem, que vive esse constante perigo e fazendo de sua vida uma permanente luta, é a moral oposta & do escravo ¢ 4 da rebanho. Oposta, portanto, a moral da compaixao, da piedade, da dogura te- Minina ¢ erista, Assim, para Nietzsche, bondade, objetividade, humil dade, piedade, amor ao préximo, constituem valores inferiores, impondo-se sua substitui¢ao pela virtd dos renascentistas italianos, pelo orgulho, pelo risco, pela personalidade criadora, pelo amor a0 distante. © forte é aquele em que a transmutagao dos valores faz triunfar o afirmativo na ventade de poténcia. O negative subsiste ne- la apenas como agressividade propria a afirmacio, como a eritiea total que acompanha a criacao; assim, Zaratustra, o profeta du além-do-homem, é a pura afirmagao, que leva a negacao a sou ulti- mo grau, fazendo dela uma acdo, uma instancia a servico daquele que cria, que afirma, Compreende-se, assim, por que Nietzsche desacredita das dou- trinas igualitérias, que Ihe parecem “imorais’, pois impossibilitam que so pense a diferenca entre os valores dos “'senhores e dos escra- vos". Nietzsche recusa o socialismo, mas em Vontade de Poténcia exorta os operdrios a reagitam “‘como soldados”. Uma filosofia confiscada Apoiado na critica nietzschiana aos valores da moral erista, em sua teoria da vontade de poténcia e no seu clogio do super-homem, desenvolveuse um pensamento nacionalista e racista, de tal forma Jue S@ Passou a ver no autor de Assim falou Zaratustra um precursor lo nazismo. A principal responsavel por essa deformacao foi sua Irma Elisabeth, que, ao assegurar a difusao de seu pensamento, orga- nizando © Nietzsche-Archiv, em Weimar, tentou colocislo a servico do nacionalsocialismo, Llisabeth, depois do suicidio do marido, que fracassata em um projeto colonial no Paraguai, reuniu arbitraria- mente notis ¢ rascunhos do irmas, fazendo publicar Vontade de Po- Jancla como a ultima @ a mais representativa das obras de Nietzsch Fetendo até 1908 Ecce Homo, escrita em 1888. Esta obra constitul uma interpreta¢ao, feita por Nietzsche, de sua propria filosofia, que hao se coaduna com o nacionalismo e o racismo germanicas, Ambos foram combatides pelo filésofo, desde sua participagao na guerra france: prussiana (1870-1871) Por ocasiao desse conflito, Nietzsche alistouse no exército alemao, mas seu ardor patridtico Jago se dissolveu, pois, para ele, a vitéria da Alemanha sobre a Franga teria como conseqiencia “um poder altamente perigoso para a cultura”, Nessa 6poca, aplaudia as palavras de seu colega em Basiléia, Jacob Burckhardt (1618-1897), que Insistia junto a seus alunos para que nao tomassem o triunfo mi- litat @ a expansdo de um Estada como indicio de verdadeira grandeza. Em Para Além de Bem e Mal, Nietzsche révela o desejo de uma Europa unida para enfrentar o nacionalismo (“essa neurose”) que ameagava subverter a cultura eurapéia, Por outro lade, quando con- fiou ao “loure” a tarefa de “virilizar a Europa’, Nietzsche lovou até RVI NIETZSCHE a caricatura seu desprezo pelos alemaes, homens “que introduziram no lugar da cultura a loucura politica e nacional... que s6 sabem obe- decer pesacamente, disciplinados como uma cifra eculta em um ndmero” No mesmo sentido, Nietzsche caracterizou os hersis wag- nerianos como germanos que nao passam de “obediéncia e longas pernas”. E acabou rompendo definitivamente com Wagner, por cau- sa do nacionalismo e antisemitismo do autor de Trist3o e Isola. “Wagner condescende a tudo que desprezo, até ao antisemitismo”. Para compreender corretamente as idéias politicas de Nietzs- che, 6 necessario, portante, purificd-lo de todos os desvios posterio- res que foram cometidos em seu nome. Nietzsche foi ao mesmo tem- po um antidemocratico e um antitotalitdrio, “A democtacia € a for ma historica da decadéncia do Estado”, afirmou Nietzsehe, enten- dendo por decadéncia tudo aquilo que escraviza o pensamento, so- bretudo um Estado que pensa em si ao invés de pensar na cultura, Em Consideracées Extemporaneas essa tese é reforcada: “estamos so- frendo as conseqiiéncias das doutrinas pregadas ultimamente por to- dos os lados, segundo as quais 0 Estado é 0 mais alto fim do homer, @, assim, nao ha mais elevade fim do que servilo. Considero tal fate nao um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso A estupidez”, Por outro lado, Nietzsche no aceitava as consideragdes de que a origem do Estado seja 0 contrato ou a convengaa; essas teorias se- riam apenas “fantésticas”; para ele, ao contrario, o Estado tem uma origem “terrivel”, sendo criacao da violéncia e da conquista e, como conseaténcia, seus alicerces encontram-se na maxima que diz: “0 poder dé 0 primeiro direito e nao ha direito que no funde nao seja ar- rogancia, usurpacao e violéncia’” O Estado, Nietzsche, esta sempre interessado na formagac de cidadées obedientes ¢ tem, portanto, tendéncia a impedir o de- senvolvimento da cultura livre, tornando-a estatica e estereatipada. ‘Ao contririo disso, o Estado deveria ser apenas um meio para a reali- zagao da cultura para fazer nascer o além-do-homem, Assim falow Zaratustra Em £ece Homo, Nietzsche intitulou seus capitules: “Por que sou tao fatalista?”, “Por que sou tao sdbio?", "Par que sou tao inteligen- te?”, "Por que escrevo livros tao bons?” Isso levou muitos a canside- rarem sua obra como anormal e desqualificada pela loucura, Essa opinide, no entanto, revela um superficial entendimento de seu pen- samento, Para entendé-lo corretamente, é necessirio colocar-se den- tro do préprie nuclea de sua concepcao da filosofia: Nietzsche in verteu © sentido tradicional da filosofia, fazendo dela um discurso ao nivel da patologia ¢ considerando a doenca como “um ponto de vista” sobre a satde, e vice-versa, Para ele, nem a saude, nem a doenca sao entidades; a fisiologia e a patologia sao uma unica cowsa: a8 oposigdes entre bem e mal, verdadeire e falso, doenga e satide s8o apenas jogos de superficie. Ha uma continuidade, diz Nietzsche, entre a doenca e a sadde ¢ a diferenca entre as duas é apenas de grau, sendo a doenga um desvio interior a prépria vida; assim, nao ha fato patoldgico. VIDAE OBRA xual 4 loucura nao passa de uma mascara que esconde alguma coi- 8a, esconde um saber fatal e “demasiado certo”. A técnica utilizada pelas classes sacerdotais para a cura da loucura é€ a “medicagao ascética’, que consiste em enfraquecer os instintos e expulsar as pai- xGes; com isso, considerase a vontade de poténcia, a sensualidade € 9 livre florescimento do eu como “manifestacdes diabdlicas”. Mas, para Nietzsche, aniquilar as paixies é uma “triste loucura”, cuja de- cifragao cabe a filasofia, pois é a loucure que tora mais plane 0 ca- minho para as idéias novas, rompendo os costumes e as supersticdes veneradas e constituindo uma verdadeira subversdo dos valores. Pa- ra Nietzsche, os hamens do passado estiveram mais proximas da idgia de que onde existe loucura ha um grao de génio e de sabedoria, alguma coisa de divino: “Pela loucura os maiores feitos foram espa- Thados pela Grécia”. Em suma, aos “fildsofos além de bem e mal”, 408 emissirios dos novas valores eda nova moral nao resta outro re- curso, diz Nietzsche, a nao ser o de proclamar as novas leis e quebrar 9 jugo da moralidade, sob o travestimente da loucura. E dentro des- Sa perspectiva, portanto, que se deve compreender a presenca da loucura na obra de Nietzsche. Sua crise final apenas marcou o mo- mento em que a “doenga” saiu de sua obra interrompeu seu pros- Seguimento. As dltimas cartas de Nietzsche 540 0 testumunho desse momento extremo €, come tal, pertencem ao canjunto de sua obra e de seu pensamento. A filosofia foi, para ele, a arte de deslocar as perspectivas, da satide 4 doenca, e a loucura deveria cumprir a tare- fade fazer a critica escondida da decad@ncia dos valores « do ani quilamento; "Na verdade, a doenga pode ser sade interior € vice- versa. A satide é coisa pessoal; é aquilo que pode ser util a um ho- mem ou a uma tarefa, ainda que para outros signitique doenca Nao ful um doente nem mesmo por ocasido da maior enfermidade” Cronologia ‘Tadd — Em Réicken, Prissia, a 15 de outubro, nasee Friedrich Nietzsche. 1869 — Torna-se projessor de fildlogia cldssica na Universidade de Basileia: 1672 — Publica O Nascimento da Tragédia no Espirito da Misica 4674 — Nasce Amold Schanbers. 875 — Nasce Thomas Mann 1878 — Nietzsche publica Humane, Domasiade Humano. 7883 — Moree Richard Waxner 884 — Publicagdo de Assim falou Zaratustra, de Nietzsche. 1888 — Nascimento de Thomas Stearns Fiat 7889 — Surge o Ensina sobre os Dados imediatos da Consiéneia, de Bergson, 1890 — Ledo XII promulga a Catholicae Ecclesive, sobre a aboli¢ao da escravatura WOT — Huser? 1896 — Freud ut 1898 — Nasce Bertolt Brecht. 1899 — Freud termina a interaretagio dos Sonhas. 1900 — Em Weimar, a 25 de agosto, more Nictesche, iblica a Filosofia da Aritmética. iza, pela primeita vez, @ lerme psicandlise, Bibliogratia Nevzsou, F: Obras Completas, Aguilar Editor, Buenos Aires, 1950, Duty Gs Nietzsche et la Philosophie, Presses Universitaires de Frarice, Paris, 1962. Dithua, Gu Nietzsche in Cahiers de Rayaumont, Editions Minuit, Pars, 1967 bin, E La Philosophie de Nietzsche, Editions Minuit, Paris, 1965. Growre, | Le Probleme de fa Verite dans la Philosophie de Nietzsche, Editions du Seuil, Paris, 1966, Kuossowsey, Pi: Metzsehe et le Cercle Vici, Mercure do France, Paris, 1969, Hnioiceax, Mi Chemins gui ne Ménent nulle Part. Gallimard, Paris, 1962. Hotticoair, RG. Nietasche: the Maer and his Philasaphy, Baton Rouge, 1965. Motian, G. A: What Nietesche Means, Cambridge, 1941 Jastias, Ko Nietzsche, Berlim, 1936, Wain, Le La Pensee Phifosophique de Nietzsche des Annies 1685-1888, Cours de Sorbonne, Paris, 1960, OBRAS INCOMPLETAS = — +s ~~ = es "O pensador: este & agora 0 ser em que 0 impuiso a verdade ¢ aqueles erras conserva: dores da vida combatem seu primeira comba- fe, depois que o inpulso a verdade se demonstrou como uma poténcia conserva- dora da vida,” (A Gaia Ciéncia) A selepio e a tradugao dos textos foram feitas com base ne edigao Kroner em 5 volumes (Friedrich Nietzsche, Werke, herausgegeben von Nietzsche-Arehiv, Alfred Kroner Verlag, Leipzig s/d, anterior @ edicdo om 42 volumes da mesma edftora, Stuttgart, 1964/5), cada um desses volumes enfeixando dois dos dez pri- meiros volumes da edigdo anterior dessa mesrna editora (1920-1930) e conser- vando a paginagdo respectiva. Os textos de 1881 sobre o eterno retorna encon- tram-se no 3. volume (2. parte), sob o fino: Die ewige Wiederkunit; os outros textos sobre niilismo e eterng retorne foram cothidas denire os textos pésiumos de 1884-1888, que se encontram no 3.° volume (2." parte), sob o titulo geral: “Der Wille zur Macht": ¢ numeragdo destes tiltimos aforismos ndo é de Nietzsche, cos- tumando vartay de ediedo para edigdo. Os demais textos sito facilmente loealizd- vels pelos titulos, O NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO ESPIRITO DA MUSICA (1871) §3 ja Awora como que se abre diante de nés a montanha magica do Olimpo, ¢ mostra-nos suas raizes. O grego conhecia e seatia os pavores e sustos da existén- cia: simplesmente para poder viver, tinha de estender d frente deles a resplande- cente miragem dos habitantes do Olimpo. Aquela monstruosa desconfianga diante das poténcias titanicas da natureza, aquela Moira reinando inexoravel sobre todos 98 conhecimentos, aquele abutre do grande amigo da humanidade, Prometeu, a sorte pavorosa do sdbio Edipo, a maldigao hereditiria dos Atridas, que forga Orestes ao matricidio, em suma, toda aquela filosofia do deus silvestre, acompa- nhada de suas ilustrag6es miticas, que levou os soturnos Etruscos & ruina — tudo isso era constantemente superado pelos gregos gragas Aquele artistico mundo intermedidrio dos Olimpicos, ou, em todo caso, encoberto ¢ afastado do olhar, Para poderem viver, os gregos tinham de criar esses deuses, pela mais profunda das necessidades: processo este que bem poderiamos representar-nos como se, 4 partir da ordem divina primitiva, titfiniea, do pavor tivesse sido deseavolvida, em lenta transigio, por aquele impulso apolineo a beleza. a ordem divina, olimpica, da alegria: como rosas irrompem de um arbusto espinhoso. De que outro modo aquele povo, to excitivel em sua sensibilidade, to impetuosa em seus desejos, to apto unicamente para o sofrimento, teria podido suportar a cxisténcia, se esta, banhada em uma gloria superior, niio lhe tivesse sido mostrada em seus deuses? ‘© mesmo impulso que chama a arte para 4 vida, como a complementacdo e per- feigéio da existéncia que induz a continuar a viver, fez também surgir 0 mundo olimpico, que a “vontade” helénica mantinha diante de si como um espelho trans- figurador, Assim os deuses legitimam a vida humana, vivendo-a eles mesmos — a Unica teodicdia satisfatdria! A existéncia sob a clara luz solar de tais deuses é sentida como o desejiivel em si mesmo, ¢ 0 que é propriamente dor para os ho- mens homéricos refere-se a deixi-la e, sobretudo, a deixa-la logo: de tal modo que agora se poderia dizer deles, invertendo a sabedoria de Silenos, “o pior de tudo & para eles morrer logo, em segundo lugar simplesmente morrer™. Se alguma vez 0 lamento soa, é mais uma vez pela curta vida de Aquiles, pela transitoriedade © inconstancia da espéci¢ humana, semeihante a das folhas, pelo declinio do tempo jos herdis. Nao é indigno do maior dos herdis aspirar 4 coatinungko da vida, mesmo que seja como tarefeiro. Tao impetuosamente a “vontade”, no estigio apo lino, anseia por essa existéncia, tao identificado a ela se sente o homem home: co, que © préprio lamento se torna um hino em scu louver. E aqui é precise que se diga que essa harmonia e mesmo unidade do homem com a natureza, vista com tanta nostalgia pelo homem moderno, ¢ que levou Schiller a por em circulagéo 0 neologismo “naif” (ingénuo), nio é, em caso nenhum, um estado tao simples, que resulta por si mesmo. como que inevitavel, que tivéssemas de encontrar no umbral de toda cultura como um paraiso da humanidade: nisto sé podia acreditar um tempo que teatava pensar o Emilio de Rousseau também como artista e acreditava ter encontrado em Homero esse Emi- lio artista edueado no coragio da natureza. Onde enceatramos o “ingénuo™ na arte, temos de reconhecer o efeito supremo da civilizagio apolinea: que sempre tem antes um reino de Tits para demolir e monstros para matar, ¢ precisa, atta vés de poderosas alucinagies e alegres ilusdes, triunfar sobre uma pavorasa pro fundeza da visio do mundo ¢ sobre a mais excitavel sensibilidade a0 sofrimento. Mas quao raramente o ingénuo, esse completo enleio na beleza da aparéncis, € alcangado! Quao indizivelmente sublime é, por isso, Homero, que como individuo esta para aquela cultura apolinea do pove assim come o artista individual do sonho esta para a aptidao ao sonho desse povo ¢ da cultura em geral ! A “ingenui- dade" homérica s6 se concebe como a vitdria completa da ilusio apolinea: ¢ uma ilusio tal como a que a natureza, para aleangar scus propésitos, tantas vezes emprega. O verdadeiro alvo é encoberto por uma imagem falsa: em diregdo a esta estendemos ax maos, ¢ a naturcza alcanga aquele através de nosso engano, Nos gregos a “vontade” queria intuir a si mesma na transfiguragio do génio ¢ do mundo da arte: para se glorificar, suas criaturas tinham de sentir-se dignas de Slorificagao, tinham de ver-se refletidas em uma esfera superior, sem que esse mundo perieito da intuigio atuasse como imperative ou como censura. Tal ¢a es- fera da beleza, em que os Olimpicos viam suas imagens em espelho. Com esse espelhamento de beleza, a “vontade” helénica lutava contra o talento, correlativo ao artistico, para o sofrimento e para a sabedoria do sofrimenta: e camo monu- mento de sua vitéria temas diante de nos Homero, o artista ingénuo, $7 (...) © consolo metafisico — em que nos deixa, como ja indico aqui, toda verdadeira tragédia — de que a vida no fundo das coisus, a despeito de toda mudanga dos fenémenos, @ indestrutivelmente poderosa ¢ alegre, esse consolo aparece com nitidez corporal como coro de sdtiros, como coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente como que por teas de toda civilizagao e que, a des. peito da mudanga das geragdes ¢ da historia dos povos, permanecem eternamente 0s mesmos. Com esse coro consola-se o heleno profundo, € apto unicamente a0 mais brando ¢ as mais pesado sofrimento, que penetrau com olhar afiado até o fundo da terrivel tendéneia ao aniquilamento que move a assim chamada historia univer O NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO ESPIRITO DA MUSICA 9 sal, assim como viu o horror da natureza, ¢ esté em perigo de aspirar por uma negagao budista da existéncia, Salva-o a arte, e pela arte salva-o para si... a vida. ‘O embevecimento do estado dionisiaco, com seu aniquilamenta das frontei- ras e limites habituais da existéncia, contém com efeito, cnquanto dura, um ele- mento ieldrgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivide no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, ¢ mundo do cotidiano ¢ a efetividade dionisiaca separam-se um do outro, Mas tio logo aquela efetividade cotidiana retorna a consciéncia, ela ¢ sentida. como tal, com nojo: uma disposigao ascética, de negagio da vontade, ¢ 0 fruto desses estacos. Nesse sentido 0 homem dioni- siaco tem semelhanga com Hamlet: ambos langaram uma vez um olhar verda deiro na esséncia das coisas, conheceram, e repugna-lhes agir: pois sua ago nao pode alterar nada na esséncia cterna das coisas. cles sentem como ridiculo ou humilhante esperarem deles que recomponham o mundo que saiu dos gonzas. O conhecimento mata o agir, o agit requer que se esteja envolto no véu Ga ilusio — esse € 0 ensinamento de Hamtlet. nao squela sabedoria barata de Hans, o Sonha- dor, que por refletir demais. como que por um excesso de possibilidades, nao chega a agir: odo é a reflexdo, no! — & 0 verdadeiro conhecimente, a visao da horrivel verdade, que sobrepuja todo motivo que impeliria a agir, tanto em Ham- let quanto no homem dionisiaco. Agora nao prevalece nenhum consolo mais, a aspiragao vai ajém de um mundo depois da morte, além dos préprios deuses: a existéncia, juntamente com seu reluzente espelhamento nos deuses ou em um Além imortal, é negada. Ne conscigncia da verdace contemplada uma vee, 0 homem vé agora, por toda parte, apenas © susto ou absurdo do ser, entende agora © que ha de simbdlico no destino de Ofélia, conhece agora a sabedoria do deus sil vestre Silenos: sente nojo. Aqui, neste supremo perigo da vontade, aproxima-se, como uma feiticeira salvadora, com seus biilsamos, # artes s6 ela ¢ cupaz de converter agueles pensa- mentos de nojo sobre o susto ¢ 0 absurdo da existéncia em representagdes com as quais se pode viver: o sublime como domesticagio artistica do susto eo cémico como alivio artistico de nojo diante do absurdo. O coro de sAtiros do ditirambo € 0 ato de salvagao da arte grega; no mundo intermedidrio desses acompanhantes de Dioniso esgotavam-se as crises deseritas acima. §10 € uma tradigo incontestavel que a tragécia grega om sua configuragio mais antiga tinha por objeto somente a paixdo de Dioniso e que por muito tempo o niga herdi cénico que houve foi justamente Dioniso. Mas com a mesma segu ranga poderia sor afirmado que nunca, até Euripides, Dioniso deixou de ser o herdi triigico, ¢ que todas as figuras célebres do palco grego, Prometeu, Edipo ¢ assim por diante, sio apenas mascaras dess¢ herdi primordial, Dioniso. Haver uma divindade por tras de todas essas mascaras ¢ o unico fundamenta essencial para a “idealidade” tipica dessas figuras eélebres, tantas vezes notada com espan- 10 NIETZSCHE to. Nao sei quem afirmou que todos os individuos, como individuos, s40 cGmicos © por isso nao-trgicos: de onde se poderia concluir que os gregos simplesmente nao podiam suportar individuos sobre o paleo tragico. De fato, cles parecem ter sentido assim; do mesmo modo que em geral cssas distinggo e valorizagdo plat- nicas da “idéia” em contraposigdo ao “idolo”, 4 06 estao profundamente entranhadas na esséncia helénica. Para servir-nos da terminologia de Platio, paderfamos dizer, das figuras trigicas do palco helénico, mais ou menos isto: 0 tinico Dicniso verdadeiramente real aparece em uma pluralidade de figuras, sob @ mascara de um heréi combatente ¢ como que emaranhado na rede da vontade individual. E assim que o deus, ao aparecer, fala e age, ele se assemelha a um indi- viduo que erra, se esforga'e softe: esse, em geral, aparece com essa preciso e niti- dez épicas, isso é o efeito de Apolo, esse decifrador de sonhos, que evidencia ao coro seu estado dionisiaco por meio dessa apari¢do alegorica. Em verdade, porém, esse her6i € o Dioniso sofredor dos Mistérins, aquele deus que experimenta em si o sofrimento da individuagdo, do qual mitos maravilhosos contam que, quando rapaz, foi despedagado pelos Titis ¢ nesse estado é venerado como Zagreu: a que sugere que esse despedagamento, em que consiste propriaments a paixdo dionisiaca. equivale a uma transformagio em ar, agua, terra e fogo, e que portanto temos de considerar o estado da individuagio como a fonte eo primeiro fundamento de todo sofrimento, cemo algo repudiavel em si mesmo. Do sorriso desse Dioniso nasceram os deuses olimpicos, de suas lagrimas os homens. Nessa existéncia como deus despedagado, Dioniso tem a dupla natureza de um demonic horripilante ¢ selvagem ¢ de um soberano brando ¢ benevolente. Mas a esperanga dos epoptes era um renascimento de Dioniso, que agora pressentimos como o fim da individuagao: era para esse terceiro Dioniso vindouro que soava o fervoroso canto de jubilo dos epopies. E somente nessa esperanga ba um claro de alegria no semblante do mundo dilacerado, destrogado em individuos: assim como 0 mito © mostra na imagem de Deméter mergulhada em eterne luto, que pela primeira vez se alegra ao lhe dizerem que pode dar & luz Dioniso mais uma vez, Nas int ges mencionadas temos ja todos os componentes de uma visio do mundo pro- funda € pessimista ¢ com eles, go mesmo tempo, a doutrina da tragédia gue es1é nos Mistérios: © conhecimento fundamental da unidade de tudo que existe, a consideragae da individuagao como © primeiro fundamento do mal, a arte como a alegre esperanga de que o exilio da individuagio pode ser rompida, como 0 pressentimento de uma unidade restaurada. Foi sugerido acima que a epopéia homérica & a poesia da cultura olimpica, em que ela entoou seu proprio canto de vitéria sobre os pavores do combate dos tits. Agora, sob a infuéncia predominante da poesia tragica, os mitos homéricos renaseem transformados ¢ mostraiti nessa metempsicose que, no meio tempo, tam- bém a cultura olimpica foi vencida por uma visio do mundo ainda mais profunda. O arrogante tit? Prometeu anunciou a seu carrasco olimpico que sua soberania estara algum dia ameagada do perigo extremo, caso nao se alie a tempo com ele. Em Esquilo reconhecemos o pacto do apavorado Zeus, temetoso de seu fim, com O NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO FSPIRITO DA MUSICA 17 © titd. Assim a epoca primitiva dos tits ¢ poueo a pouco trazida do Tartar, de yolta para a luz. A filosofia da natureza selvagem ¢ nua vé com o olhiar aberto da verdade os mitos do mundo homérico que dangam a sua frente: eles empalidecem, estremecem diante do olho fulgurante dessa deusa — até que o punho poderoso do artista dionisiaco os force a servirem & nova divindade. A verdade dionisiaca toma para si todo o reine de mito come simbolismo de sev conhecimento ¢ enun- cia este conhecimenta, em parte no culto piblico da tragédia, em parte nas prati- cas secretas das celebragdes dramaticas dos Mistérics, mas sempre sob 0 antigo invélucro mitics. Que forga era essa, que libertava Prometeu de seu abutre ¢ transformava o mito em veiculo de sabedoria dionisiaca? E a forga heracleana da musica: a qual, chegada na tragédia a sua manifestagao suprema, sabe interpretar © mito com nova, com a mais profunda significagao; ja tivemes ocasidio de carac- terizar isto como a mais poderosa das faculdades da muisica. Pois é 0 des- lino de todo mite ter de entrar pouco a pouco na estreiteza de uma pretensa efeti- vidade histérica ¢ ser tratado com pretensdes histéricas, por algum tempo mais tardio. como fato singular: ¢ os gregos ja estavam a caminho de remodelar, com perspicicia ¢ arbitrio. todo o sonho mitico de sua juventude em uma Aistdria prag- matica de juventude. Pois este é o mode como as religiées costumam morrer: ou seja. quando os pressupostos miticas de uma religido, sob os olhos rigorosos, razoaveis, dé um dogmatismo bem-pensante, sao sistematizados como uma soma acabada de acontecimentos historicos © se comega angustiosamente a defender a credibilidade dos mitos, mas a rebelar-se contra toda sobrevivéncia ¢ propagagiio dos mesmos, quando, portanto, o sentimenta pelo mito morre, e em seu lugar se introduz a pretensao da religido a ter bases histéricas. Desse mito moribundo lan- gava mio agora o génio recém-nascido da musica diomisiaca: ¢ em sua mao ele florescia mais uma vez, com cores como nunca antes mostrou, com um aroma que Gespertava um nostalgico pressentimento de um mundo metafisico, Depois desse Ultimo resplandecimento, ele definha, suas folhas murcham, e logo os sarcdsticos Lucianos da antiguidade se pSem A cata das flores espalhadas por todos os ventos, descoradas ¢ secas, Pela tragédia o mito chega a scu contedido mais profundo, a sua forma mais expressiva; mais uma vez ele s¢ levanta, como um herdi ferido, ¢ todo 0 exeedente de forga, ao lado da sabia trangliilidade do moribundo. queima em seu olho com tiltima, poderosa luminosidade. Que querias tu, sacrilego Euripides, ao tentares forgar esse moribundo, mais uma vez, a teu servico? Ele morreu entre (as maos violentas: ¢ precisaste entiio de um mito imitado, mascarado, que como o macaco de Héracles sé sabia enfei- tar-se com a antiga pompa. E assim como para ti o mito morreu, morreu também para ti o génio da miisica; podias até mesmo saquear com avidez todos os jardins da miisicn, mesmo assim s6 conseguiste uma miisica imitada e mascarada. E, por- que abandonaste Dioniso, assim também te abandonou Apolo; expulsa todas as paixdes de seus jazigos ¢ confina-as em teus dominios, afia ¢ lima uma dialética sofistica para as falas de teus herdis — até mesmo teus herdis tém apenas psixdes postigus € mascaradas ¢ dizem apenas falas postigas e mascaradas. §i3 Covad Mas # palavre mais penctrante desse culto nove e inaudito ao saber ¢ a0 entendimento, foi Sécrates quem a disse, quando constatau ser o bnico que con- fessava nada saber, enquanto. em sua perambulagao critica por Atenas, visitando OS grandes estadistas, oradorcs, poctas ¢ artistas, encontrava por tada parte a fan- tasia do saber. Com espanto, reconheceu que todas aquelas celebridades nao ti- nham um eatendimento correto ¢ seguro nem mesmo sobre sua Profissdo ¢ 4 exer- ciam apenas por instinto, “Apenas por instinto": com este expresso tocamos 0 Coracdo e © centro da tendéncia soeratica. Com ela 0 socratismo eondena tanto a arte vigente quanto a ética vigente: para onde dirige seu olhar inquisidor, 1 ele v8 a falta de entendimento ¢ a forga da ilusio, ¢ conelui dessa falta que o que existe ¢ inttinsecamente pervertide e repudidvel. A partir desse Gnico ponto aereditava Socrates ter de corrigir a existéncia: ele, sozinho, trazendo no rosto a expresso do desdém e da altivez, faz sua aparigdo, como o precursor de uma cultura, arte ¢ moral de espéci¢ totalmente outra, em um mundo que, para nds, haveria de sera maior das felicidades simplesmente vislumbrar. com respeito ¢ terror. Essa € a monstruosa perplexidade que toda vez. em face de Sdcrates. nos assalta, € que sempre ¢ sempre nos incita de novo a conhecer 0 sentido ¢ 0 props sito desse fendmeno, 0 mais problemdtico da antiguidade, Quem é esse que pode ousar. sozinho, negar a esséncia grega, essa esstneia que, em Homero, Pindaro e Esguilo. em Fidias. em Périeles, em Pitia ¢ Dioniso. come o mais profundo dos abismos ¢ a mais alta das wluitas, esti segura de nossa admiragao assombrada? Que forga demoniaca ¢ essa, que pode airever-se a despejar essa pogdo migica no pS? Que semideus ¢ esse, a0 qual o coro espiritual dos mais nobres da humani- dade tem de clamar: “Ai de nds! Ai de nds! Tu o destruiste, o mundo da beleza, com teu punho poderaso; ele desmorona, ele se desfaz 1". Uma chave para g esséncia de Sécrates nos é oferecida por aquele maravi- thoso fendmena, que ¢ designado como “demonic de Sdcrates”, Em situagoes particulares, em que seu descomunal entendimento cambaleava, cle ganhava um firme ponto de apoio gragas a uma voz divina que se manifestava em tais momen- tos. Essa voz, quando vem, sempre dissuade. A sabedoria instintiva 6 se mostra, nessa natureza inteiramente anormal, para contrapor-se aqui e ali ao conhecer consciente, Impedindo-o. Enquanto em todos os homens produtives o instinto & precisamente a forga criadora-afirmativa ea cansciéncia s¢ porta camo eritica ¢ dissuasiva, em Sécrates ¢ 0 instinto que se wrna critico e a consciéncia, eriadora — uma verdadeira monstruosidade per defectum! E alids pereebemos aqui um monstruoso defectus de toda disposi¢io mistica, de tal modo que Sderates poderia ser designado como © especifico ndo-misticg, em que a natureza logica, por uma superfetagiio, ¢ tio excessivamente desenvalvida quanto ao mistica aguela sabe- doria instintiva. Mas, por outro lado, era totalmente negado aquele impulso Kigico que aparece em Sdcrates voltar-se contra si mesmo; nessa torrente desenfreada ele mostra uma violencia natural. tal como a encontramos somente nas maiores de O NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO ESPIRITO DA MUSICA 13 todas as forgas instintivas, para nossa arrepiante surpresa. Quem adivinhou ape- nas um sopro daquela divina ingenuidade e seguranga da orientagao soorftica de vida, nos eseritos platinicos, sentiu também como a descomunal roda propulsora do socratismo ldgico esta em movimento como que por trds de Sécrates, ¢ como. isso tem de ser intuido por Sécrates como através de uma sombra, Mas que ele mesmo tinha um pressentimento dessa relagdo, é o que se exprime na digna serie- dade com que fazia valer sua vocagZo divina por toda parte, ¢ ainda diante de seus juizes. Refuté-lo nisso era no fundo tio impossivel quanto aprovar sua influéncia Ge dissolugao dos instintas, Dado esse conflito insoliivel, uma vez que ele teve de comparecer diante do foro do Estado grego. 2 unica forma de condenacao indi- cada era o exilio; teriam podido envid-lo para além da fronteira, como algo total- mente enigmitico, irrubricavel, inexplicavel, sem que alguma posteridade tivesse tide o direito de acusar os atenienses de um ato infame. Se entretanto a sentenga Pronunciada contra ele foi a morte, ¢ naa o exilio, esse veredito parece ter sido provocado pelo proprio Sécrates, com toda lucidez ¢ sem o arrepio natural diante da morte: ele foi para a morte com a mesma calma com que, na deserigao de Pla to, cle, © titimo dos convivas, deixa o banquete ao despontar da madrugada, para comegar um novo dia; enquanto atras dele, sobre os bancos eu no chao, ficam para tras 08 adormecidos companheiros de mesa, pata sonhar com Séera- tes, 0 verdadeiro erdtica. Sdcrates morrendo tornou-se o novo ideal, nunca antes contemplado, da nobre juventude grega: e 0 tipico jovem heleno, Platio, foi o pri meiro a lancar-se, com toda a ardente devogao de sua alma arrebatada, aos pés dessa imagem. §l4 Aqui 0 pensamento filosdfico cresce com mais vigo do que a arte ¢ obriga-a @ se agarrar ao caule da dialética. No esquematismo ldgico a tendéncia apolinea transformou-se em crisdlida: assim como em Euripides podiamos perceber algo correspondente e, além disso, uma transposigao do dionisaco em sentimento natural, Sécrates, o herdi dialético do drama platénico, lembra-nos, por afinidade de natureza, o herdi euripidiano, que tem de defender suas agdes com argumentos € contra-argumentos ¢ por isso tantas vezes corre © perigo de perder nossa com- paixdo trégica: pois quem seria capaz de desconhecer o elemento offmista na esséncia da dialética, que em cada conclusio comemora seu jubileu ¢ somente em fria clareza ¢ consciéncia pode respirar: o clemento olimista que, uma vez inocu- lado na tragédia. hé de infeccionar pouco a pouco suas regides dionisfacas ¢ leva- la necessariamente 4 autodestruigao — até 0 salto mortal no espetaculo burgués. Basta ter em mente as conseqiléncias das proposigdes socraticas: “Virtude é saber; s6 se peca por ignorancia; o virtuoso é o feliz”: nessas trés formulas basi- cas do otimismo estd contida a morte da tragédia. Pois agora o herdi virtuoso tem de ser dialético, agora preciso que haja entre virtude e saber, fe ¢ moral, um vinculo necessario @ visivel, agora a justiga transcendental de Esquilo se rebaixa 14 NIETZSCHE ao principio raso insolente da “justica poética”, com seu constumeiro deus ex raachina. Como aparece agora, contraposto a esse nove mundo cénico socritic- otimista, o coro ¢ em geral todo o pano de fundo musical-dionisiaco da tragédia? Coma algo contingente, como uma reminiseéncia, aliés bem prescindivel, da ori- gem da tragédia; enquanto vimos que o cora $6 pode ser entendida como cause da tragédia e do tréigico. Em Séfocies jé aparece aquela hesitagdo quanto a0 coro — um sina! importante de que nele o solo dionisiaco da tragédia jA comega a esho- roar. Ele ni ousa mais confiar ao coro a participago principal na aco, mas res- tringe seu ambito a tal ponto que ele aparece agora quase coordenado com os ato- res, como se fosse trazido da orquestra para 0 palco: com isto, sem divida, sua esséncia é totalmente destruida, mesmo se Aristotcles da scu assentimento a essa concepeao do core. Esse desiocamento da posigao do coro, que Séfocles recomen- dou, em todo caso, por sua pratica e, segundo a tradicdo, até mesme por um escri- to, € 0 primeiro passo para 0 aniquilamento do coro, que prossegue em Euripides, em Agathea ¢ na comédia nova, em fases que se sucedem com rapidez aterrori- zante. A dialética otimista, com o agoite de seus silogismos, expulsa a muisica da tragédia: isto é, destroi a esséncia da tragédia, que s6 se deixa interpretar como uma maniftstagdo ¢ figuragiio de estados dionisiacos, como simbolizagao visivel da misica, como o mundo sonhado por uma embrlaguez dionisiaca, Mesmo se temos de admitir, portanto, uma tendéncia antidionisiaca atuando J& antes de Sécrates e que somente neste ganha uma expresso de inaudita grande- 72, nfio podemos recuar diante da questi para a qual aponta um fendmena como 0 de Socrates, que, diante dos didlogos platénicos, nao estamos em condigdes de conceber apenas como uma poténcia negativa de dissolugao, E se & certo que 0 efeito mais imediata do impulso socratico levava a uma desagregagao da tragédia dionisfaca, ha uma profunda experiéncia de vida do prdprio Sécrates que nos Obriga a perguntar se, entre o socratismo ea arte, ha mecesseriamente apenas uma relagdo de antipodas ¢ se o nascimento de um “Sécrates artista” & em si mesmo uma contradigao, Esse légico despitico tinha, com efeito, aqui ¢ ali, para Com a arte, o senti- mento de-uma lacuna, de um vazio, de uma meia censura, de um dever talvez negligenciade, Muitas vezes the vinha, como ele conta na prisio a seus amigos, uma mesma visio de sonho, que sempre the dizia: “Sderates, pratica a musica !” Ele s¢ trangiiiliza até seus iltimos dias com a opinifio de que'seu filosofar é a Suprema arte das Musas ¢ nao consegue acreditar que uma divindade viesse lhe falar daquela “‘misica comum, popular", Finalmente, na prisiio, ele se decide, Para aliviar inteiramente sua conseiéncia, a praticar até mesmo aquela musica que menosprezava. E nessa intengao compée um hino a Apolo e poe em versos alpu- mas fabulas de Esopo. Foi algo semelhante a voz de adverténcia do deménio que the imps esses exercicios: foi sua compreensdo apollinea de que ele, como um rei harbaro, nao entendia uma nobre imagem divina ec estava em perigo de pecar con- tra a divindade — por desentendimento. Aquela palavra da visio socratica @ 0 Sinico indicio de uma perplexidade quanto aos limites da naturezs Iigica: sera — © NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO ESPIRITO DA MUSICA is assim devia ele se perguntar — que o que eu nao entendo nem por isso é ininteli- sivel? Serd que na um reino da verdade. de que o Jogico esta banido? Sera que a arte até mesmo um correlato ¢ suplemento necessario da ciéncia? 816 -) Como esta a misica para a imagem ¢ 0 conceito? — Schopenhauer, a quem Richard Wagner reconhece, precisamente quante a este ponto, uma clareza € transparéncia de expressao insuperaveis, manifesta-se sobre isso da maneira mais cxaustiva na seguinte passagem, que aqui reproduzirei em toda a sua exten- sao (Mundo como Vontade e Representagao, vol. I, p. 409): “Em decorréncia de tude isso, podemos considerar 9 mundo fenoménico, ou a natureza, ¢ a musica, como duas expresses diferentes da mesma coisa, @ qual, por sua vez, ¢ portanto © Gnico mediador da analogia de ambos, cujo conhecimento é requeride para ver aquela analogia, A misica é, portanto, se considerada como expressfio do mundo, uma linguagem universal em sumo grau, que até mesmo para a universulidade dos conceitos esté mais ou menos como esta estd para as coisas singulares. Sua universalidade, porém, nfio é de mode algum aquela universalidade vazia da abstragao, mas ¢ de espécie inteiramente outra ¢ esta ligada a uma completa & clara determinidade. Equipara-se isto as figuras geométricas e aos niimeros, que, como formas universais de todos os objetos possiveis da experiéncia ¢ aplicaveis @ priori a todos, ndo sio no entanto abstratos, mas intuitivos e completamente determinados. Todos os possiveis esforgos, emogics da vontade, wdo aquilo que s€ passa no interior do homem, € que a raz4o langa no amplo conceito negativo de Sentimento, pode exprimir-se pelas infinitas melodias possiveis, mas sempre na universalidade da mera forma, sem © conteiido, sempre segundo o em-si, nunca segundo 0 fendmeno, como que sua alma mais intima, sem o corpo. A partir desta intima relagio que a musica tem com a esséncia verdadeira de todas as coisas, pode-se também explicar por que, quando soa uma musica adequada a alguma cena, agio, evento, circunstancia, esta nes parece abrir seu sentido mais secrewo ¢ sé introduz como @ mais correto © mais claro dos comentarios: do mesmo modo que, para aquele que se abandona inteiramente ao impacto de uma sinfonia, & come se ele visse passarem diante de si todos os possiveis eventos da vida ¢ do mundo: contudo. quando presta atengio, néio pode indicar nenhuma semelhanga entre aquele jogo sonoro © as coisas que pairavam diante dele, Pois a musica, como foi dito, difere de todas as outras artes por ndo ser cépia do fendmeno ou, mais corretamente. da objetividade adequada da vontade, mas copia imediuta da propria vontade e portanto apresenta, para tudo 0 que é fisico no mundo, © corre- lato metafisico, para todo fendmeno a coisa em si. Poder-se-ia, portanto, denomi- nar © mundo tanto musica corporificada quanto vontade corporificada: a partir disto, pois, pode-se explicar por que a misies logo faz aparecer toda pintura, € alias toda cena da vida efetiva ¢ do mundo, em significagdo mais elevada; e isto, sem divida, tanto mais quanto mais andloga ¢ sua melodia ao espirito interior do fendmeno dado. E por isso que se pode associar a misica um pooma como canto, uma encenagdo intuitiva como pantomima, ou ambos como dpera. Tais imagens singulares da vida humana, associadas a linguagem universal da misica, nunca esto ligadas a ela ou Ihe correspondem com necessidade completa; esto para ela apenas na relagao de um exemplo arbitrario para um conceito universal: expdem na determinidade do efetivo aquilo que a misica enuncia na universalidade da mera forma. Pois as melodias sao, em certa medida, como os conceitos universais, uma abstragiio da efetividade. Esta, com efeito. o mundo das coisas singulares, oferece o intuitive, o particular ¢ individual. o caso singular, tanto para a univer- salidade dos conceitos quanto para a universalidade das melodias, universalidades estas que s80 ambas, sob certo aspecto, opostas entre si: enquanto as coneeitos contém somente as primeiras formas abstraidas da intuigao, como que a casca exterior tirada das coisas, e portanto so, bem propriamente, abstragdes, a misica por sua vez da o mais intimo nicleo que precede toda formagao, ou o coragao das coisas. Essa relagao se deixaria muito bem exprimir na linguagem das escolas- ticos, se se dissesse: os conceitos siio as wrtivversalia post rem, mas a misica di os universalia ente rem ¢ a efetividade os universalia in re. — Mas se em geral é pos- sivel uma referéncia entre uma composicdo ¢ uma representagao intuitiva, isso Tepousa. como foi dito, em que ambas so apenas cxpressées inteiramente diferen- tes da mesma esséncia interna do mundo. Ora, quando, no caso singular, uma tal referénoia existe efetivamente e, portanto, © compositor soube enunciar as emo- gdes da vontade que constituem o nticleo de um acontecimento dado na linguagem universal da misica: entio a melodia da cangdo, a misica da Gpera é expressiva. A analogia encontrada pelo compositor entre ambas, porém, tem de proceder do conhecimento imediato da esséncia do mundo, sem que sua razao tenha cons- ciéncia disso, ¢ n&o pode, com uma intencionalidade consciente, ser imitagio mediada por conceitos; do contrario, a musica ndo enuncia a esstncia interna, a prépria vontade; imita apenas, insufickentemente. seu fendmeno; como o faz toda musica propriamente descritive’ Assim, segundo a doutrina de Schopenhauer, entendemos imediatamente a musica como a-linguagem da vontade e sentimos nossa fantasia estimulada a dar forma aquele mundo spiritual que nos fala, invisivel ¢ no entanto to vivo & méyel, ¢ a corporificd-lo para nds em um exemplo anaKigico. Por outro lado, ima. gem e conceito, scb a agio de uma misiea verdadeiramente correspondente, che- gam a uma significagao aumentada. Duas sortes de efeitos costuma, pois, exercer a arte dionisiaca sobre a faculdade artistica apolinea: a misica incita a uma intui ao alegérica da universalidade dionisiaca, a masica, em seguida, fax aparecer a imagem alegérica em sua mais alta significagiio, A partir desses fatos, inteligiveis em si mesmos € que nio sdo inacessiveis a nenhuma observacdo mais aprofun- dada, concluo a aptidao da masica para gerar o mito, isto é, 0 mais significative dos exemplos, e precisamente o mito irdgico: o mito que fala do conhecimento dionisiaco em alegorias. Ao tratar do fendmeno do poeta lirica, mostrei como a miisica, no poeta Ifrico, tende a dar a conhecer sua esséncia em imagens apoli- neas: sé pensarmos agora que a musica, em sua suprema intensidade, tem também de procurar chegar a umia suprema figuraco, temos de considerar como possivel que ela saiba também encontrar a expressdo simbdlica para sua sabedo. ria propriamente dionisfaea; ¢ onde haveremos de procurar essa expressiio, seniio na tragédia ¢, em geral, no conceito do tragico? Da esséncia da arte, tal como costuma ser concebida, unicamente segundo a categoria da aparéncia e da beleza. o tragico, de maneira honesta, nda pode ser deduzido; somente a partir do espirito da masica entendemos uma alegria diante do aniquilamento do individu. Pois somente nos exemplos singulares de um tal aniquilamento fica claro, para nds, o fendmeno eterno da arte dionisiaca, que traz A expressfio a vontade, em sua onipoténcia, como que por tras do principium individuationis, a vida eterna, para alérn de tado fenameno e a despeito de todo aniquilamento. A alcgria metafisica face ao tragico ¢ uma transposigao da sabe- doria dionisiaca instintiva e inconsciente na linguagem da imagem: o herdi, esse supremo fendmeno da vontade, ¢ eliminado, para nosso prazer, porque, justa~ mente, ele é apenas fenémeno, e a vida eterna da vontade nao é tocada por seu aniquilamento, “Acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia: enquanto a misica é a idéia imediata dessa vida, Uma alvo inteiramente diferente tem a arte plastica: aqui Apolo supera o sofrimento do individuo pela luminosa glorificagao da efernidade do feadmeno, aqui a beleza triunfa sobre o sofrimento inerente 4 vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente afastada dos tragos da natureza. Na arte dionisiaca ¢ em seu simbolismo tragico, fala-nos a mesma natu- tezz com sua voz verdadeira, sem disfarce: — “Sede como eu sou! Sob a inces- sante mudanga dos fenémenos, a mie primordial, eternamente criadora, que eter namente forga a existir, que se regala ¢ternamente com essa mudanca de fendmenos !”. § £ um fenémeno cterno: a vontade avida sempre encontra um meio, gragas a uma ilusdo espraiada sobre as coisas, para manter suas criaturas na vida e forga- las a continuar a viver. Este é acorrentado pelo prazer socratico do conhecimento € pela ilusdo de poder curar, com ele, a eterna ferida da existéncia, aquele é enre- dado pelo véu de beleza da arte que paira sedutor diante de seus olhos, aquele Outro, por sua vez, pela consolagéio metafisica de que sob o torvelinhe dos fend- menos a vida eterna continua a fluir indestrutivel: para nao falar das ilusdes mais comuns ¢ quase que ainda mais fortes que a vontade tem a sua disposi¢do a cada instante. Aqueles trés niveis de ilusio destinam-se apenas as naturczas mais nobremente dotadas, que sentem, em geral, a carga eo peso da existéncia com um desgosto mais profundo que precisam ser iludidas com estimulantes seletos para superar ess¢ desgosto. Desses estimulantes & constituido tudo aquilo que denami- ivilizagia: de acorde com as proporges das misturas, temos uma civ! zaGa0 predominantemente socrdtica ou artistica ou tragiea; ou, se nos permitirem exemplificagdes histéricas: ocorre uma civilizagdo alexandrina, ou helénica, ou hindu (bramaiinica), Todo 0 nosso mundo moderno esta preso na rede da civilizagao alexandrina = conhece como ideal o homem f0rico, equipado com os maximos poderes de conhecimenta, trabalhando a servigo da 18 NIETZSCHE crates. Todos os nossos meios de educagio tém em vista, primordialmente, esse ideal: todo outro modo de existéncia tem de lutar com esforco para se afirmar, mas acessoriamente, como existéncia permitida, mas ndo almejada, E cm um sea- tido quase apavorante que aqui, por longo tempo, o homem culto s6 foi encon- trado na forma do erudito; mesmo nossas artes poéticas tiveram de se desenvalver 4 partir de imitagdes eruditas. ¢ na rima, seu recurso principal, reconhecemos ainda que nossa forma poética nasce de experimentos artificiais com uma lingua- gem nao familiar, ¢ bem propriamente erudita. ensinada. Como haveria de parecer ininteligivel a um grego auténtico 0 moderno homem de cultura, em si mesmo inteligivel. Fausto, esse Fausto que se precipita através de todas as faculdades, insatisfeito, que por sede de saber se entrega & magia e ao deménio, 2 que nos basta colocar ac lado de Sécrates, ¢ compara-los, para reconhecer que o homem moderno comega @ pressentir os limites daquele prazer soordtico de conhecer e, do yasto © ermo mar do saber, aspira por terra firme. Goethe, ao dizer certa vez a Eckermann, referindo-se a Napoleao: “Sim, meu caro, h4 também uma produtivi- dade dos atos”, recordou-nos, com encantadora ingenuidade, que para o homem moderno o homem nao-te6rico é algo inacreditavel ¢ assombroso, a tal ponto que é preciso a sabedorin de um Goethe para achar concebivel, ou mesmo desculpa- vel. uma forma de existéncia to estranha, E agora nao devemas esconder aquilo que se escende no seio dessa civiliza- gio socratica! © otimismo que se cr& sem limites! Agora niio devemos ficar apavarados, se os frutos desse otimismo amadurecem, se a sociedade, azedada até as mais profundas camadas por uma civilizagao dessa espécie, estremece pouco a pouco sob exuberantes ebulicdes ¢ apetites, se a crenga na felicidade terrestre para todos, se a crenca na possibilidade de uma tal civilizagiio do saber universal Pouca a pouco se transforma na ameagadora exigéncia dessa felicidade terrestre alexandria, na invocagao de um deus ex machina euripidiano ! Devemos notar: a civilizagdo alexandrina precisa de uma casta de escravos para poder existir ¢ curar: mas nega, em sua consideragao otimista de existéncia, a necessidade de tal casta ¢, per isso, quando o efeito de suas belas palavras de sedugao e apazigua- mento sobre a “dignidade do homem” ¢ a “dignidade do trabalho” estiver gasto, ir& pouco a pouco ao encentro de um horrivel aniquilamento. Nao ha nada mais terrivel do que uma casta barbara de escravos que aprendeu a considerar sua exis- téncia como uma injustica e que prepara a vinganga, nao so por si mesma, mas por todas as geragdes, Quem ousa, diante de tais tempestades ameagadoras, fazer apelo, com anima seguro, ais nossas palidas e cansadas religiGes, que até mesmo cm scus fundamentos degeneraram em religides de eruditos: a tal ponto que o mito, pressuposto necessirio de toda religido, jé estd, por toda parte, aleijado, ¢ mesmo nesse dominio reina aquele espirito otimista que acabamos de designar como 0 germe de aniquilamento de nossa soviedade. Enquanto a desgraga que cochila no seio da cultura weériea comega pouco a pouco & amedrontar 0 homem modemo e ele, intrangililo, procurs, no tesouro de suasexperiéncias, meios para afastar o perigo, sem mesmo acreditar muito nesses meics; enguanto, pois, ele comega a pressentir suas proprias conseqiiéncias, natu- © NASCIMENTO DA TRAGEDIA NO ESPIRITO DA MUSICA 15 Tezas superiores. dotadas para 0 universal, souberam, com inacreditdvel lucidez. utilizar o arsenal da propria ciéncia para demonstrar os limites ¢ a cond’ lidade do conhecer em geral e com isso negar décisivamente a pretensdo da cién- cia a validez universal e a fins universais: demonstragio esta em que pela primeira vez foi reconhecida como iluséria aquela representagio que, levada pela mao da causalidade, tem a pretensao de poder sondar a esséncia mais intima das coisas, A audacia e sabedoria descomunais de Kant e Schopenhauer conquistaram a mais dificil das vitdrias, a vitéria sobre 0 otimismo que esté eseondido na esséncia da légica ¢ que, por sua vez,é 0 fundamento de nosse civilizagdo, Se este, apoiado nas aeternae veritates, para ele indubitaveis, havia acreditado que todos os enig- mas do mundo podem ser conhecidos e sondados, ¢ havia tratado o tempo, o espa- go en causalidade como leis totalmente incondicionadas, dotadas da mais univer- sal das validades, Kant revelou como estes propriamente serviam apenas para ctigir 0 mero fenémeno, a obra de Maia, em Gnica ¢ suprema realidade. po-la no lugar da esséncia intima e verdadeira das coisas ¢, com isso, tornar impossivel © Conhecimento. efetivo desta, isto é, segundo a sentenga de Schopen- hauer, para adormecer ainda mais profundamente o sonhador (Mundo como Fon- tade e Representacao, vol. 1, p. 498). Com esse conhecimento ¢ iniciada uma civi- lizag&o, que cu ouso designar como tragica: cujo cardter mais importante é colo- car no lugar da ciéncia, como alvo supremo, a sabedoria, que, sem se deixar eaganar pelas digressSes sedutoras das ciéncias, volta-se com olhar impassivel para © panorama total do mundo € pracura, com amorosa simpatia, assumir o sofrimento eterno como seu proprio sofrimenta, om § 24 Entre os efeitos artisticos especificos da tragédia musical, destacamos uma ilusdo apolinea, que deve salvar-nos da identificacao imediata com a misica dionisiaca, enquanto nossa emogio musical pode descarregar-se em um territério apolineo © em um mundo intermedidrio visivel que se intercala, Na ocasidio acre- ditamos ter observado como, justamente por essa descarga, aquele mundo inter- medifrio do evento cénico, o drama em geral, se tornava visivel ¢ compreensivel de dentro para fora, cm um grau que é inalcangével a todo o restante da arte apoli- nea: de tal modo que aqui, onde esta era como que algada ¢ transportada pelo espirito da misica, tinhamos de reconhecer a suprema intensificagao de suas for: ¢a8 ¢, com isso, nessa alianga fratema de Apolo ¢ Dioniso, o apice das finalidades artisticas apolineas, assim como das dionisiacas, E certo que a imagem luminosa apolfnca, aq ser iluminada interiormente pela misica, nfo aleangava 0 efeito especifieo do grau mais fraco da arte apolinea; e aquilo de que sio capazes a epopéia ow a pedra espiritualizada, forgar o olho que gontempla Aquela tranqiiila fascinagao diante do mundo da individwatio, no havia como alcanga-lo aqui, a despeito de uma espiritualidade e nitidez superio- res. Conlemplavamos o drama e penetravamos com olhar perfurante em seu mundo interno e mével de motivos — eno entanto, para nés, era como se apenas passasse diante de nos uma imagem alegérica, cujo sentido mais profundo acredi- tavamos quase adivinhar e que desejariamos abrir como uma cortina, para avistar atras dela o protétipo. A mais luminosa nitider da imagem nao nos bastava; pois esta parecia tanto revelar algo quanto encobri-lo; ¢ enquanto, com sua revelacdo alegérica, parecia convidar ao dilaceramento do véu, a descoberta do fundo secre- to, precisamente essa evidéncia translicida mantinha o olho cative ¢ o impedia de penetrar mais fundo. Quem nfo viveu isto, ter de olhar ¢ ao mesmo tempo aspirar a ir além de olhar, dificilmente se representara com que precisio e clareza esses dois proces- 80s, na consideragao do mito tragico, subsistem lado a lado ¢ so sentidos lado a lado; enquanto o verdadeiro cspectador estético me confirmaré que, entre os efci- tos especificos da tragédia, esse lado-a-lado é 0 mais notavel. Transponha-se agora esse fendmeno do espectador estético para um processo anélogo no artista tragico, ¢ s terd entendido a génese do mito’ irdgico. Fle partilha com a esfera artistica apolinea © pleno prazer com a aparéncia e a contemplagao ¢, ao mesmo tempo, nega esse prazer ¢ tem uma salisfagio ainda mais alta com a aniquila- mento do mundo visivel das aparéncias, O contetdo do mito tragico é a primeira vista, um acontecimento épico, com a glorificagaa do heréi combatente: de onde provém, entio, aquele trago, em si enigmatico, de que ¢ sofrimente no destino do herdi. as mais dolorosas provagSes. as mais torturantes oposigdes de motivos, em suma, a exemplificagdo daquela sabedoria de Silenos, ou, para exprimi-lo estetica- mente, 0 feio ¢ 0 desarmonioso, é sempre apresentado de novo, ém tio inimeras formas, com tal predilecao, ¢ isso precisamente na idade mais exuberante ¢ mais juvenil de um povo — se precisamente nisso tudo nfo for percebido um prazer superior? Pois. s¢ cfctivamente na vida as coisas se passam tao tragicamente, isso ¢ 0 que menos explicaria o surgimento de uma forma artistica; de resto, a arte no somente imitagao da efetividade natural, mas precisamente um suplemento meta- fisico da efetividade natural, colocado ao lado desta para sua superacaa. O mito tragico, na medida em que pertence A arte, também participa plenamente dessa intengio metatisica de transfiguragdo que é propria de arte em geral: o que ele transfigura, porém, quando exibe o mundo fenoménico na imagem do herdi sofre- dor? A “realidade” desse mundo fenoménico é que nao, pois ele nos diz precisa- mente: “Vede! Vede bem ! Esta é vossa vida! Este ¢ 0 ponteiro de horas no reldgio de vossa existéncia ! E essa vida, © mito a mostraria, para com isso transfigurd-la diante de nés? Mas se ndo é isso, onde esta cntio o prazer estético. com que vemos passar diante de nds até mesmo aquelas imagens? Pergunto pelo prazer estético, ¢ sei muito bem que miuitas dessas imagens podem, alm disso, engendrar ainda um deleite moral, eventualmente sob a forma da compaixao ou de um triunfo d¢ico. Mas quem quisesse deduzir o efeito do tragico somente a partir dessas fontes morais, como sem divida foi costumeiro na estétiea por um tempo longo demiais, 36 nao deve acreditar ter feito com isso algo pela arte: 2 qual, antes de tudo, tem de exigir pureza em seu dominio. Para a explicagdc do mito tragico, a primeira exigéncia é, precisamente, procurar o prazer que ihe ¢ proprio na esfera puramente estética, sem extrapolar para o territério da compaixao, do medo. do sublime ético. Como podem o feio e o desarmonioso, v conteido do mito tragico. suscitar um prazer estetico? ‘Ora, aqui preciso, com um lance audacioso. alear-nos a uma metafisica da arte, repetindo minha proposigio anterior de que somente como um fenémeno estético a existéncia eo mundo aparecem como legitimados: sentido este em que precisamente o mito tragico tem de convencer-nos de que mesmo o feio € o desar- monioso so um jogo artistice que a vontade, na eterna plenitude de seu prazcr, Joga consige mesma. Este fendmeno primordial. dificil de captar, da arte dioni- siaca, sb é dirctamente apreendido, de maneira inteligivel e imediata, na significa- ¢a0 admiravel da dissondncia musical: assim como somente a misica, colocada ao lado do mundo, pode dar um conceito daquilo que se deve entender por legiti- magio do mundo como fenémeno estético. © prazer que o mito tragico engendra tem a mesma patria que a alegre sensagdo da dissonancia na musica. O dioni- siaca, com seu prazer primordial, percebido até mesmo na dor, ¢ a matriz comum de que nascem a miisica eo mito tragico, Nao poderia ser que, ao tomarmos em auxilio a relaga musical da dissonan- cia, facilitamos essencialmente aquele dificil problema do efeito tragico? Sim. entendemos agora o que quer dizer, na tragédia, querer olhar ¢ ao mesmo tempo aspirar a ir além do olhar: estado este que, no tocante a dissonancia empregada artisticamente, teriamos de caracterizar do mesmo modo; queremos ouvir ¢ ao mesmo tempo aspiramos a ir além do ouvir. Aquela aspiragao pelo infinito, o bater de asas da nostalgia, por ocasiZo do supremo prazer diante da efetividade claramente percebida, recordam que em ambos os estados devemos reconhecer um fenémeno dionisfaco, que nos revela sempre de novo o construir e demolir li- dicos do mundo individual como a efusio de um prazer primordial, de mancira semelhante a como Heraclito 0 Obscuro compara a forga formadora do mundo a uma crianga que ludicamente poe pedras para cd ¢ para li, e faz montes de arcia os desmantela, Assim, para apreciar corretamente a aptidao dionisiaca de um povo, pode ser que tenhamos de pensar nfo somente na musica do povo, mas, com a mesma hecessidade, no mito tragico desse povo, coma o segundo testemunho dessa apti- dio. E, dado esse estreito pareatesco entre misica ¢ mito, é de se supor, do mesmo. mado, que a uma degenerescincin ou depravagio deste estaré ligada uma atrofia daquela: de resto, no enfraquecimento do mito em geral se exprime uma debilita- gio da faculdade dionisiaca. Mas, sobre esses dois pontos, um olhar langade ao desenvolvimento da esséncia alema nao poderia deixar divida: na Spera como no cardter abstrato de nossa existéncia desprovida de mito, em uma arte decaida a condigdo de entretenimento como em uma vida guiada pelo conceit, havia-se revelado a nds aquela natureza, (Ao inartistica como consumidora da vida, do oti- mismo sacratico. Para nosso consolo, porém, havia sinais de que, apesar disso, 0 espirito alemio, intacto em sua espléndida saide, profundidade e forga dionisiaca, 22 NIETZSCHE somo um cavalciro mergulhado no sono, repousa c sonha em um abismo inacessi- vel: abisme de onde se eleva até nés 2 cangao dionisiaca, para nos dar a entender que esse cavaltiro alemao sonha, ainda agora, seu mito dionisiaco ancestral, em visdes sérias ¢ venturosas. Que ninguém acredite que o espirito alemdo perdex para sempre sua patria mitica. se ele ainda entende Lao bem as vozes de passaros que the falam dessa patria. Um dia ele estara desperto, em todo o frescor matinal de um sono imenso: entdo mataré dragées, aniquilard os andes pérfidos e desper- taré Brunilda — e nem mesmo a langa de Wotan podera barrar a seu caminho! Meus amigos, vocés, que acreditam na musica dionisiaca, savem o que signi- fica para nds a tragédia. Nela, renascidos da misica, temas 0 mito tragica — & nele vocés podem ier todas as esperancas e esquecer o mais doloroso! E o mais doloroso é para todos nds... . o longo aviltamento sob 0 qual o génio alemao, tor- nado estrangeiro em sua casa e em sua patria, viveu a servigo de andes pérfides. Vocés entender estas palavras — assim como entenderao também, por fim, mi- nhas esperancas, SOBRE “O NASCIMENTO DA TRAGEDIA” (1888) O Nascimento da Tragédia $1 Para ser jusio cam O Nascimento da Tragédia (1872), serd preciso esquecer cerias coisas. Ele surtiu efeita ¢ mesma fascinou pelo que mele era defeita — por sua aplicacdo a0 wagnerismo, come se este fosse um sintoma de comego. Esse escrito foi, por isso mesmo, na vida de Wagner, uin acontecimento: foi desde entdo que puseram grandes esperangas no nome Wagner. Ainda haje, em meio as circunsténcias provenientes do Parsifal, me lembram que sou eu propriamente o vesponsavel, se uma tao alta apinido sobre o yalor cultural desse movimento prevaleceu. — Encontrei esse escrito varias vezes citado camo “a re-nascimento da tragédia no espirito da misica"' sé tiveram ouvidos para uma nova formula da arte, do propésito, da missdo de Wagner — com isso, deixaram de ouvir 0 que 0 escrito guardave de valioso, no fundo. “Helenidade e pessimismo ": esse teria sido um titulo mais inequivaco, visto que é a primeira li¢do sobre como os gregos leva- ram @ cabo 0 pessimismo — e cam isso 0 superaram,, , A tragédia € precisa- mente 4 prova de que os gregos nao eram pessimisias; Schopenhauer enganow-se agui, como se enganow em tudo. — Tomado em méos com alguma neutralidade, © Nascimento da Tragédia pareve muito extempordneo: ninguém sequer sonharia que ele fol iniciado sob os estrondos da batatha de Wérth. Meditei nesses proble- mas diante dos muros de Metz, em frias noites de serembro, em meio ao servico de cuidar dos doenies; em vez disso, jé se poderia acreditar que a escrito é cin- qienta anos mais velho, Ele é politicamente indiferente — “ndo-alemao", como se diria hoje —, cheira chocantemente a hegelianismo ¢ somente em algumas formu- Jas estd impregnado do fiinebre perfume de Schopenkauer. Uma “idéia” — a opo- sigda entre dionisiaco e apolinea — traduztda para o metafisico: a propria histé- ria como desenvolvimento dessa “idéia"; na tragédia, a oposi¢do relevada em unidade; soh essa dtiea, coisas que munca antes se olharam de frente colocadas subitamente face a face, lluminadas nma pela outra ¢ concebidas. .. 4 dpera, por exempla, ¢ a revolucéo. .. As duas inovagies decisivas do livro sdo, primeira mente, 0 entendimento do ferdieno dionisiaco entre as gregos — ele dé a pri- sneira psicologta deste, vé nele a raiz unica de toda a arte grega. A outra é 6 enten- dimento do soeratismo: Sécrates como instrumento da dissolugdo grega, reconhecido pele prinseira vez como tipico décadent, "Ravionalidade” contra ins- Hinto. A “racionalidade" a todo preco como poténcia perigosa, como poténecia que solapa a vida! — Profundo siténcio hostil sobre a cristianismo no livre inteiro. O cristianismo nao é apolineo nem dionistaco; nega tados 05 valores estéticos — as unicos valores gue © Nascimento da Tragédia reconhece: é niilisia no sentido mais profunda, enquanto no sinbolo dionisiaco € alcangado 0 extremo limite da afirmagdo. Uma vez é feita alusde aos padres eristdos, coma uma “pérfida espécie de andes”, de“subterréneos".(... .) §2 Esse inicio € noidvel, ecima de todas as medidas. Eu havia descoberto, para minha experiéncia mais intima, o tlnico simbola e o tinteo par que a histdrla cem — com issa havia sido o primeirc a compreender 0 maravilhoso fendmena do dionisiaco. Da mesmo modo, haver reconhecido Sécrates como décadent era uma prava totalmente inequiveca de quéo poueo minha compreensdo psicolégica corre perign da parte de alguma idiossincrasia moral: — a prépria moral como stroma de décadence ¢ uma inovagao, uma singularidade de primeira ordem na histéria do conkecimento. A que altura eu havia, com esses dois pontos, saltado além da deploravel tagarelice de cabecas ocas sobre otimismo versus pessimisma ! Eu fui 0 primeiro que viu a verdadeira oposigado: — o instinto degenerado, que se volta contra a vida com subterrdnea sede de vinganga (— cristianismo, a filesofia de Schopenhauer, em certa sentido jd a filosafia de Platio, o ideatismo inteiro, coma formas tipieas), e, nascida da plenitude, da abundancia, uma formula da suprema. afirmagao, um dizer-sim sem reserva, mesmo ao sofrimento, mesmo a culpa, mesmo a tudo o que é problemdtico e estranho na existéncia... Este tltima sim G vida, @ mais alegre, o mais efusivamente arragante, néo é samente a viséo mais aita, é também a mais profunda, a mais rigorosamente confirmada e sustentada pela verdade e pela ciéncia. Nada do que é deve ser excluido, nada é dispensdvel — os lados da existéncia recusados peios cristaos e outros niilistas sdo até mesmo de ordem inflnitamente superior, ne hierarguia dos valores, do que tudo 0 que o instinzo de décadence poderia aprovar, chamar de bom.’ Para compreender isso, é preciso coragem &, como sua condigdo, um excedente de forga: pois é precisa mente até onde a coragem pode cusar avangar, precisamenie na medida da forga, que nos aproximamos da verdade. O conhecimento, o dizer-sim & realidade, é para os fortes uma necessidade, tal como para os fracos, sob a Inspiragdo da fra- queza, a covardia e a fuga da realidade — 9 “ideal"... Eles nao tém a liberdade de conhecer: os décadents precisam da mensira — ela é wna de suas condigdes de conservagdo. — Quem ndo 5 compreende a palavra “dionisiaco”, mas se com. preende na palavra “dionisiace”, née previsa de nenhuma refutagdo de Plato ow do cristlanismo ou de Sckopenkauer — sente o cheiro da decomposig’o.. . 1 Gutheisen, ga helsten — Aqui w radlaglo nie Kom recurso para recoustcuir 0 jogo de palavras do texto, ‘gue consiste em chamiar @ atengio para v senle esquicico da palaves gurheissio’ — que gostuma scr ioimadh mplesmente coo sindnima de bilien (grove) — separando sus componente: ut ¢ rise. (NS. foT) $3 Em que medida encontre? com isso 0 conceito de “trdgico”, 0 conhecimento Jinal sobre 0 que é a psicologia da tragédia, eu 0 exprimi, por iiltimo, ainda em O Crepisculo des Idoios,? p. 139: “O dizer-sim d vida, até mesma em seus proble- mas mais esiranhos ¢ mais duros, a vontade de vida, alegrando-se no sacrificio de seus (pos mais superiores d sua prépria inexauribilidade — foi isso que denomi- nei dionistaco, foi isso que entendi como ponte para a psicalogia do poeta tragico. Nao para desvencilhar-se do pavor ¢ da compaixdo, ndv para purificar-se de uma afeczdo perigosa por uma descarga veemente — assim o mal-entendeu Aristételes —, mas para, além do pavor e da compaixéa, scr cle mesmo o eterno prazer do vir-a-ser — esse prazer que encerra em si até mesmo o prazer pelo aniquilamen- -* Nesse sentido, tenho 0 direito de entender-me camo o prinieiro fildsofo — isto é, 0 extremo aposto e 0 antipoda de um fildsafo pessimista, Antes de mim nao hd essa transposigéa do dionisiaco em um pathos filoséfico: falta @ sabedoria trigica — procurei em véo por indicios dela mesmo nos grandes gregos da filosofia, os dos dois séeulos antes de Séerates, Restou-mie uma divida quanto @ Heraclito, em cuja proximidade me sinto mais aquecido, sinto mais bem-estar do que em qualquer owtra parte. A afirmagao do perecimento e do aniquilamento, o que é decisivo em uma filosofia dionistaca, 9 dizer-sim d contradicdo e @ guerra, @ vir-a-ser, com radical recusa até mesmo do conceito de “ser” — nisso tenko de reconhecer, soh todas as circunsténcias, 0 mais aparentado a mim que aié agora foi pensado. A doutrina do “eterno retorno", isto 6, da translagdo incandicionada ¢ Infinitamente repetida de todas as coisas — essa doutrina de Zaratustra poderia, afinal, jé ter sido ensinada também por Heréelito. Pelo menos 0 estoicismo. que herdou de Herdelito quase todas as suas representagdes fundamentats, rem vesit- gios deia. §4 Nese eserito fata uma descomunal esperanga. Afinal, faltame guaiquer fun- damento para renegar @ esperanga de um futuro dionisfaco da misica, Lancemos um othar hé um século atrds, ponhamas @ caso de que tenha éxito meu atentado conira dois milénios de antinatureza ¢ violagdo do homem, Esse novo partido da vida, que toma em mdos a mator de todas as tarefas, 0 culzive superior da kuma- nidade, inciuindo nisso 0 aniquilamento implacdvel de tudo o que é degenerado ¢ parasitéria, tornaré possivel outra vez sobre a Terra aquela demasia de vida, da qual também o estado dionisiaco terd de brotar outra vez. Prometo uma época tragica: @ arie mais alia no dizer-sim d vida, @ tragédia, renascerd quando a kurna- nidade fiver atrds de si a consciéneia da mais dura, mas da mais necessdria Eediciio Kriiner, volume Vp. 106,(N.doT) ® Citundo au proprio texto, Nistansie o altera igeiraments, Eim O Crepiiseude daw fdokos ele havia escrito: “L...) ft isso que adivimhel como ponte para e psicologia Ue posta trigico (,.)"<"%, .) assim 0 entendee Arimbteles(..)"(N.deT) das guerras, scm sofrer com isso... Vin psiedlogy poulerta ainda acrescentar que aguilo que ouvi nos anos de mocidade na miisica wagneriana simplesmente nada tem que ver com Wagner: que, se descrevi a rmisica dionisiaca, descrevi aquilo que eu ouvira — que instintivamente eu iinka de traduzir e transfigurar tudo no novo espitito que trazia em mim. A prova disso, forte como somente uma prova pode ser, € meu escrito Wagner em Bayreuth: * emt todas as passagens psicologica mente decisivas, trata-se apenas de mim — poderiam colocar seni @ menor cer ménia meu nome ou a palavra “Zaratustra” onde o texto traz a palavra Wagner. A imagem tada do artista ditirambico é a imagem do poeta preexistente de Zara- tustra, delineada com abissal profiundeze ¢ sem tocar um instante sequer @ reali- dade wagneriang. O prdpria Wagner tinha wma nogdo disso; ndo se reconheceu no escrito. — Do mesmo modo, “o pensamento de Bayreuth" havia-se convertide em algo que, para as leitores de meu Zaratusira, ndo seré um conceito-enigma: naquele grande meio-dia em que os mais seletos se consagram d maior de todas as tarefas — quem: sabe? — Aviséo de uma festa, que et ainda viverei... O pathos das primeiras paginas é 0 da histéria universal; o olhar de que se trata na sétima pagina é propriamente.o olhar de Zaratustra; Wagner, Bayreuth, toda a deplo rdvel mesquinkaria alemd é uma nuvem em que se espetha uma infinita fata Mor: gana de futuro. Mesmo psicologicamente, todos os tragos decisivos de minka pré- pria natureza estdo inscritos na de Wagner — © lado-a-lado das forgas mais duminosas e das mais fatais, a vontade de patéacta como munca um homer a pos suit, a auddcia sem cerimdnia no espiritual, a ilimitada forga de aprender, sem que a vontade de aedo fosse esmagada eom isso. Tisdo nesse eserito é premincio: 2 proximidade do retorno do espirita grego, a necessidade de anti-Alexandres, que atem outra vez o nd gdrdio da civilizagdo grega, depois que ele foi desfeito, , ‘Ouga-se 0 acento de histéria universal com que, na pdgina 30 (final do segundo parigrafo),” € intraduzido a conceito de “sentimento trdgica”: 56 id acentos de histdria universal nesse escrito, Essa é a mais estranha “objetividede” que pode Haver; a certeza absoluta quanto ao que eu sou prajetava-se sobre aiguma reall: dade contingente — 2 verdade sobre mim falava de uma arrepiante profundeza. Na pagina 71 (intcio do nono pardgrafo)® 6 estilo de Zaratustra é deserito ¢ ante- cipado com incisiva seguranca; e jamais se encontrar wna expresso mais gran- diosa para acontecimento Zaratustra, o ato de uma descomunal purificagdo e Sagrado da humanidade, do que aquela que foi encontrada as paginas 43-46 fsexto pardgrafo).” (Ecce Homo) * Refere-sia quarts duns Considoragces Extempordineas. (Nido T,) © Edicie Kriner, vel. 1, p. $6.(N. do T.) © Edigdo Kedner, el. 1, p.91.(N. do T) * Bdi¢do Krdner, vol. I.p, 12.8 16, (N.doT.) A ARTE EM “O NASCIMENTO DA TRAGEDIA” (1888) £ A concepedo da obra, com que se depara no fundo desse livro, & singitlar- mente sombriz e desagraddvel; entre os tipos de pessimismo conhecidos até agora, nenhuma parece ter alcancado esse yrau de malignidade, Falta aqui uma oposigao entre um mundo verdadeiro e um mundo aparente. ha somente um mundo, € este € falso, cruel. contraditério, enganoso, sem sentido, .. Um tal mundo € 0 mundo verdadeiro. Precisamos da mentira para triunfar sobre essa realidade, essa "verda- de”, isto é, para viver... Sea mentira é necessdria para viver, até isso faz parte desse cardter ‘errivel e problemdtico da existéncia. A metafisica, a moral, a religiao, a ciéncia — sdo tomadas em consideracdo nesse livra apenas como diferentes formas da mentira: com sex auxilio acredita-se na vida. “A vida deve infundir confianca”: ¢ problema, assim colocado, é desco- munal, Para resolvé-to, o homem tem de ser mentiroso jd por natureza, precisa, mais do que qualquer outra coisa, ser artista, E ele o &: metafisica, religida, moral, eiéncia — tudo isso so rebentos de swa vontade de arte, de mentira, de fuga da “werdade". A prépria faculdade gracas d qual a realidade é violentada pela menti- ra, essa faculdade-artista do homem par excellence — ele ainda a tem em comum com tudo 0 que é. Ele mesmo 6, por certo, um pedaco de efetividade, verdade, natureza: como ndo kaveria de ser também um pedago de génio da mentira! Que o cardter da existincia seje ignorade —- a mais profunda ¢ mais alta Intenedo secrera, que esta por irds de sido 0 que é virnude, cténcia, deveao, indole artistica, Muito munca ver, muito ver falsamente, muito ver a mais: oh, como ainda se & esperto, ent estadas em que se estd tdo longe de se tomar por esperta! O amor, 0 entusiasmo, “Dens” — puros refinamentos do tiitime dos duto-enga- nas, puro aliciamenta & vida, pura crenga na vida! Ent instantes em que o homem se rornow 0 enganado, em que ele se enredou em seu proprio ardil, em que ele acre- dita na vide: oh, como ela cresce nele! Que deleite! Que sentiment de poténcia! Quanto triunfo de artista no sentimento da poténcia!,.. O homem tornou-se outra vez serhor sobre a “matéria" — senhor sobre a verdade!,,. E sempre que o hamem se alegra, ele & sempre o mesma em sua alegria: alegra-se como artista, Jrui de si mesmo como poténcia, frui da mentira como sua poténcia. it A arte ¢ nada mais que a arte! Bla & a grande possibilitadora da vida, a grande aliciadora da vida, 0 grande estimulante da vida. A arte como tinica forga superior contraposia a toda vontade de negagdo da vida, como o antieristdo, antibudista, antiniilista par excellence. A arte como a redengio do que conhese — daquele que vé 0 cardter terrivel e prablemdtico da existéncia, que quer vé-lo, do conkecedor trégieo. A arte como a redengdo do que age — daquele que nda samente vé a cardter terrivel ¢ problemdtica da existéncia, mas a vive, quer vivé-lo, da guerreiro trdgi ca, do herdi. A arte como a redencao do que sofre — como via de acesso a estades onde 0 softimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de grande delicia. it Vé-se que nesse livro a pessimismo, digamos mais claramente: o niilismo, é tamado como a “verdade”. Mas a verdade ado é tomada como eritério mais alto de valor, e menos ainda como poténeia mais alta..A vontade de aparéncla, de ilu- so, de engano, de vir-a-ser e mudar (de engano objetivado), 6 tomada aqui como mais profunda, mais origindria, mais “metafisica” do que a vontade de verdade, de ofetividade, de aparéncia: mesmo esta tiltima é meramenie uma forma da von- fade de ilusdo, Do mesmo modo, 0 prazer é tomado como mais origindria do que a dor: a dor somente como condicionada, camo um fendmeno que decorre da ven- tade de prazer (da vontade de vir-a-ser, crescer, dar forma, isto é, de eriar: ¢ no eriar esté inclutdo @ destruir). E concebide um estado supremo de afirmagao da existéncia, da qual nem mesmo a suprema dor pode ser excluida: o estado magico-dionisiaco. w Esse livro &, dessa forma, aé mesmo antipessimista: au seja, no sentido em que ensina algo que é mals forte do que o pessimisie, gue é mais “divina "do que a verdade: o arte. Ninguém, ao que parece, divia a palavra de uma negacdo mais radical da vide, de um dizer-ndo, mais ainda, de une efetivo fazer-ndo vide, com mais seriedade do que o autor desse livro. S6 que ele sabe — ele a viveu, ¢ talver no tenka vivido nada outro! — que a arte tem mais valor do que a verdade: Jd no preficto, em que Richard Wagner é convidado come para um didlogo, aparece esta profissiio de fe, este evangélio de artista: “A arte como a tarefia pro- pria da vida, a arte como sua atividade metalisica...” (A Vontade de Poténcia, § 853) FN PELPWIWYETSN NA EPOCA TRAGICA DOS GREGOS (1873) gl Con) E certo que se empenharam em apontar 6 quanto os gregos pederiam encon- trar ¢ aprender no estrangeiro, no Oriente, e quantas coisas, de fato, trouxeram de la. Era, sem divida, um espetdculo curioso, quando colocavam lado a lado os pre- tensos mestres do Oriente ¢ os possiveis alunos da Grécia e exibiam agora Zoroastro ao lado de Herdclito, os hindus ao lado dos eleatas, os egipcios a0 lado de Empédocles, ou até mesmo Anaxigoras enue os judeus € Pitigoras entre os chineses. No particular, pouca coisa ficou resolvida: mas ja a idéia geral, nds a aceitariamos de bom grado, contanto que niio nos viessem com a conclusio de que a Filosofia, com isso, germinou na Grécia apenas como importada © nao de um solo natural doméstico, ¢ até mesmo que ela, como algo alheio, antes arruinaw do que beneficiou aos gregos. Nada é mais tolo do que atribuir aos gregos uma cultura autéctone: pelo contrario, cles sorveram toda a cultura viva de outros Povos e, se foram tao longe, ¢ precisamente porque sabiam retomar a lanca onde um outro povo a abandonon, para arremessi-la mais Jonge. Sao admiraveis na arte do aprendizado fecundo, ¢ assim como eles devemos aprender de nossos vizi- nhos, usando o aprendido para a vida, nfo para o canhecimento erudito, como esteios sobre os quais langar-se alto, ¢ mais alto do que o vizinho. As perguntas pelos inicios da filosofia sio completamente indiferentes, pois por toda parte o ini- cia € 0 tosco, o amorfo, © vazie & 0 feio, ¢ em todas as coisas somente os niveis superiores merecem consideragiio. Quem, em lugar da filosofia grega, prefere dedicar-se 4 egipeia ou persa, porque essas silo talvez mais “originals” e, em todo caso, mais antigas, procede com tanta desatengdo quanto aqueles que nao podiam contentar-se com a mitologia grega, tio espléndida e profunda, enquanto nao a reduziram a trivialidades fisicas, sol, rekimpago, tempestade e nuvem, como seus Primérdios, ¢ que, por exemplo, pensam ter reencontrado na limitada adoragio de uma tinica abébada celeste, nos outros indogermanos, uma forma de religido mais pura do que a politeista dos gregos. O caminho em diregdo aos inicies leva por toda parte 4 barbarie; ¢ quem se dedica aos grepos deve sempre ter presente que ‘© impulso de saber, sem freios, ¢ em si mesmo, em todos os tempos, tao barbaro quanto o ddio ao saber, e que os gregos, por consideracao a vida, por uma ideal necessidade de vida, refrearam seu impulso de saber, em si insacidvel — porque aquila que cles aprendiam queriam logo viver. Os gregos filosofaram também como homens elvilizados ¢ com os alvos da civilizagio ¢, por isso, pouparam-se de inventor mais uma vez, por alguma presungan autéctone. as elementos da filo sofia ¢ da ciéncia, mas partiram logo para cumprir, aumentar, elevar ¢ purificar esses elementos adquiridas. de tal modo que somente agora, em um sentido supe: ior © em uma esfera mais pura, tornaram-se inventores, Ou seja. inventaram a ¢a- beca filoséfica ripica, e 2 posteridade inteira nada mais inventou de essencial a aerescentar, Ga) §2 Ramal Um tempo que sofre da assim chamada cultura geral, mas sem civilizagao e sem nenhuma unidade de estilo em sua vida, nao saberia fazer nada de correto com a filosofia, ainda que ¢la fosse proclamada pelo génio da verdade em pessoa nas Tuas ¢ nas feiras, Em tal tempo, cla permanece mondlogo crudito do passea- dor solitario, presa fortuita do individuo, oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entre ancifios académicos e criangas. Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si mesmo, ninguém vive filosoficamente, com aquela lealdade sim- ples que obrigava um antigo. onde quer que estivesse, o que quer que fizesse. a portar-se como esidico, caso tivesse uma vez jurado fidelidade ao Pértico. Todo filosofar moderno esta politica e policialmente limitado 4 aparéncia erudita, por governos, igrejas, academias, costumes, modas, covardias dos homens: ele perma- nece no suspiro: “mas se ou no reconhecimento: “era uma vez, ..~. A filo- sofia ndo tem direitos; por isso o homem moderna, se pelo menas fosse corajaso © consciencioso, teria de repudid-la ¢ bani-la, talvez com palavras semelhantes a com que Platao expulsou os poetas tragicos de seu Estado. Sem diivida, restaria a cla uma réplica, como lambém restou Aqueles poetas tragicos uma réplica con- tra Plato. Ela poderia talvez, se a obrigassem a falar, dizer: “Payo miserdvel! £ culpa minha se em vosso meio vagucio como uma cigans pelos campos e tenho de me esconder ¢ disfargar, como se fosse cu a pecadora ¢ vos meus juizes? Vede minha irma, a arte! Ela esta como eu: caimos entre barbaros ¢ nie sabemos mais nos salvar. Aqui nos falta, é verdade, justa causa: mas os juizes diante dos quais encontraremos jusliga tem também jurisdigdo sobre vs ¢ vos dirio: — Tende antes uma civilizagao, ¢ entio ficareis sabendo vos também 0 que a filosofia quer © pode.” $3 (...) Contraposto a esse filosofar obscuramente alegdrico, que mal se deixa traduzir em imagens visuais, Tales é um mestre criador que, sem fabulagdo fantis- tica, comegou a ver a natureza em suas profundezas, Se para isso serviu-se da ciéncia e do demonstravel, mas logo saltou além detes, isso é igualmente um cara- ter tipico da cabega filosdfica. A palavra grega que designa o “sabio™ prende-se A FILOSOFIA NA EPOCA TRAGICA DOS GREGOS 3 etimologicamente a sapiv, eu saboreio, sapiens, o degustador, sisyphos, 9 homem. do gosto mais apurado: um apurado degustar ¢ escolher. um significative discer- ‘fimento constitui. pois, segundo @ consciéncia do povo, a arte propria do filosofo. Este no é prudente, se chamamos de prudente dquele qué. em seus assuntas pro- prios, sabe distinguir o bem. Aristoteles tem razao ao dizer: “Aquilo que Tales ¢ Anaxagoras sabem serd chamado de insélito, assombroso, dificil, divino, mas ini: Bl, pois no se importavam com os bens humanos”. Ao eleger e discriminar assim © ins6lito, assombrosa, dificil, divino, a filosolia marca o limite que a separa da ciéncia, assim como, ao preferir © inatil, marca o limite que a separa da prudén- cia. A ciéncia, sem essa disctiminagao, sem esse refinamento do gosta, precipita- se sobre tudo © que é possivel saber. na cega avidex de querer conhecer a todo prego; o pensar filos6fico, ao contrario. esta sempre no rastro das coisas dignas de serem sabidas, dos conhecimentos grandes ¢ importantes. Ora, o conceito de gran- deza é mutavel, tanto no dominio moral quanto no estético: assim, a filosofia co- mega com uma legislagao sobre a grandeza, traz consigo uma doagao de nomes, “Isto é grande”, diz ela, ¢ com isso eleva o homem acima da avidex eega, desen- freada, de seu impulso a0 conhecimento, Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse impulso: ainda mais por considerar o conhecimento maximo, da esséncia ¢ medula das coisas, como alcangavel ¢ alcangado. Quando Tales dia: “Tudo é Agua”, © homem estremece ¢ ergue-sé do tatear e rastejar vermiformes das cién- cias isoladas, pressente a solugdo ultima das coisas e, com esse pressentimento, supera © ecanhamento comum dos graus inferiores de conhecimento. O fildsofo busca fazer ressoar em si mesmo o clangor total do mundo ¢ tird-lo de si para exp-lo em canceitos; enquanto ¢ contemplative como o artista plastico, compas- sivo como © religioso, 2 uspreita de fins ¢ causalidades como o homem de ciéncia, cnquanto s¢ sente dilatar até a dimensiio do macrocosmo, conserva a lucidéz dese considerar friamente como o reflexo do mundo, essa mesma lucidez que tem o poeta dramatico quando se transforma em outros corpos, fala a partir deles e. contudo, sabe projetar essa transformagao para 0 exterior, em versos escritos. O que © verso é aqui para o poeta ¢ para o filésofo o pensar dialética: é deste que ele langa mio para fixar se em seu enfeitigamenta, para petrificd-lo. E assim como, para o dramaturgo, palavra ¢ verso so apenas o balbucio em uma lingua estran- geira para dizer nel o que viveu € contemplou e que, diretamente, sb paderiat anunciar pelos gestos ¢ pela miisica, assim a expresstio daquela profunda intuigio filosdfica pela dialética ¢ pela reflexio cientifica é. decerto, por um lado, o énico meio de comunicar o contemplado, mas um meio miseravel, no fundo uma trans- posigao metaférica, totalmente infiel, em uma esfera ¢ lingua diferentes. Assim Tales contemplou a unidade de tudo © que é: e quando quis comunicar-se, falou ds agua! §4 {...) Pode nao ser logic, mas em todo caso é bem humane e, além disso, esta bem no estilo do salto filosdfico descrito antes, considerar agora, com Anaxi- By NIETZSCHE mandro, todo vir-a-ser como uma emancipagdo do ser eterno digna de castigo, como uma injustiga que deve ser expiada pelo sucumbir. Tudo o que uma ver veio a ser também perece outra vez, quer pensemos na vida humana, ou na agua, ou no quente ¢ no frio: por toda parte, onde podem ser percebidas propriedades determi- nadas, podemos profetizar o sucumbir dessas propriedades, de acordo com uma monsiruosa prova experimental, Nunca, portanto, um ser que possui propriedades determinadas, ¢ que consiste nelas. pode ser origem ¢ principio das cois; que € verdadeiramente. concluin Anaximandro. nao pode possuir prapriedades deter- minadas, sendo teria nascido, como todas as outras coisas, ¢ teria de ir ao fundo. Para que 0 vir-a-ser nfio cesse, o ger primordial tem de sor indeterminado. A imor talidade ¢ eternidade do ser primordial nao esto em sua infinitude ¢ inexauribi- lidade — como costumam admitir os comentadores de Anaximandro —, mas em ser destituido de qualidades determinadas: que levam % sucumbir: ¢ é por isso também que ele leva o nome de “o indeterminado™. O ser primordial assim deno- minado esta acima do vir-e-ser. E certo que essa unidade dltima naquele “indeter- minado”, matriz de todas as coisas, s6 pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que ni pode ser dado nenhum predicado do mutde do vir- a-ser que ai esta, e poderia por isso ser tomada como congénere A “coisa em si” kantiana, E certo que quem ¢ capaz de se pér a discutir com outros sobre o que tenha sido propriamente essa matéria primordial, se é porventura uma coisa interme- diéria enire ar ¢ agua, ou talvez entre ar © fogo, nao entendeu nessa filésofo: 0 mesmo se pode dizer dos que perguatam seriamente se Anaximandro pensou sua matéria primordial como mistura de todas as matérias existentes. Temos, antes, de dirigir nosso olhar ao panto onde pocemos aprender que Anaximandro ja nao mais tratou & pergunta pela origem deste mundo em termos puramente fisicos, ¢ de orienté-lo segundo aquela proposigao lapidar apresentada no inicio. Se ele pre- feriu ver, na pluralidade das coisas nascidas, uma soma de injustigas a serem expiadas, foi o primeiro grego que ousou tomar nas maos 0 novelo do mais pro- fundo dos problemas éticos. Como pode perecer algo que tem direito de ser? De onde vem esse vir-a-ser ¢ engendrar sem deseanso, de onde vem aquela cantorgda de dor na face da natureza, de onde vem o infindavel lamento mortuario em todo © reino do existir? Desse mundo do injusto, do insolente declinio da unidade pri- mordial das coisas, Anaximandro s¢ refugia em uma cidadela metafisica, da qual se debruga agora, deixa o olhar rolar ao lange, para enfim, depois de um siléncio meditativo, dirigit a todos os seres a pergunta: “O que vale vosso existir? E se nada vale, para que estais ai? Por yossa culpa, observe eu, demorai-vos nessa existéncia. Tereis de expidta com a morte. Vede como murcha vossa Terra; 0s mares minguam ¢ secam: a concha sobre a montanha vos mostra quanto j& Secaram; desde ja o fogo destréi vesso mundo, que. no fim, sé esvaira em vapor 2 fumaga. Mas sempre, de novo, voltara a edificar-se um Lal mundy da transitorie- dade: quem seria capaz de redimir-vos da maldicdo do vir-a-ser?” Gees) A FILOSOFIA NA EPOCA TRAGICA DOS GREGOS 3s a5 No meio dessa noite mistica em que estava envalto o problema do vir-a-ser, de Anaximandro, veio Herdclito de Efeso ¢ iluminou-a com um relampago divino. “Vejo o vir-a-ser”, exclama, “¢ ninguém contemplou to atentamente esse eterno quebrar de ondas ¢ ritmo das coisas. E o que vi? Conformidade a leis, certezas infaliveis, trilhas sempre iguais do justo. Por tras de todas as trangressdes das leis vi Erineas julgando. Vi o mundo intelro como o espeticulo de uma justiga rei- nante € forgas naturais demaniacamente onipresentes subordinadas a seu servigo. Nao vi a punigo do que veio a ser, mas a justificagio do vir-a-ser. Quando se manifestou o crime, @ declinio, nessas formas inflexiveis, nessas leis santamente respeitadas? Onde reina a injustiga ha arbitrio, desordem, desregramento, contra- digao: mas onde, como neste mundo, regem somente a lei ¢ a filha de Zeus, Dike, coma poderia ser ali a esfera da culpa, da expiagao, da condenagao e como que o patibulo de todos os danados?” Dessa intwi¢io Herdclito extraiu duas negagdes conexas, que somente pela comparagiio com as teses de seus antecessores so trazidas a clara luz. Primeira mente, negou a dualidade de mundos intejramente diferentes, que Anaximandro havia sido forgado a admitir; ndo separava mais um mundo fisico de um metafi- sico, um reino das qualidades determinadas de um reino da indeterminagao indefi- nivel. Agora, depois dese primeiro passo, nao podia mais ser impedide de uma audacia muito maior da negagao: negou, em geral, o ser. Pois esse mundo tnico que Ihe restou — cercado e protegida por eternas leis no escritas, fluindo © refluindo em brénzeas batidas de ritmo — nao mostra, em parte nenhuma, uma permanéncia, uma indestrutibilidade, um balvarte na correnteza. Mais alto do que Anaximandro, Herfclito proclamou: “Nao vejo nada além do vir-a-ser. Nao vos deixeis enganar! & vossa curta vista, ¢ nao a esséncia das coisas, que vos faz acre- ditar ver terra firme em alguma parte no mar do vira-ser ¢ do perecer. Usais nomes das coisas-como se estas tivessem uma duragao rigida: mas nem mesmo o rio em que entzais pela segunda vez é o mesmo que da primeira vez". ie) O eterno © Gnico vir-a-ser. a total inconsisténcia de redo o efetivo, que constantemente apenas faz efeito ¢ vem a ser mas nio ¢, assim como Herdelito o ensina. é uma representagao terrivel e atordoante, ¢ em sua influéncia aparenta-se muito de perto com a sensagio de alguem, em um terremoto, ao perder a con fianga na terra firme. Era preciso uma forga assombrosa para transpor esse efeito em seu Oposto, no sublime, no assombro afortunado, Isto Herdclito alcangou com uma abservagio sobre a proveniéncia prépria de todo vir-a-ser e perecer, que con. cebeu sob a forma da polaridade, coma 0 desdobramento de uma orgs em duas atividades qualitativamente diferentes, opostas, ¢ que lutam pela reunificagao. Constantemente uma qualidade entra em discérdia consigo mesma e¢ separa-se em scus contrfrios; constantemente esses contririos lutam outra vez um em diregdo ao outro. O povo pensa, por certo. conhecer algo rigido, pronto, permanente; na verdade, ha a cada instante luz e escuro, amargo e doce lado a lado e presos um a0 outro, come dois contendores, dos quais ora um, ora outro, tem # supremacia. © mel, segundo Heraclito, é.a um tempo amargo ¢ doce, e 0 préprio mundo é um eadinho que tem de ser constantemente agitado, Da guerra dos opostos nasce todo vir-wsert as qualidades determinadas, que nos aparecem como duradouras, expri- mem apenas a preponderancia momentiinea de um dos combatentes, mas com isso a guerra ndo chegou ao fim, a contenda perdura pela eternidade. Tudo ocorre na medida dese conflito, e precisamente esse conflito que revela a eterna justiga (os ) §7 Go) Ha culpa, injustiga, contradigdo, sofrimento, neste mundo? Sim, exclama Heraclito, mas somente para o homem limitado, que vé em separado ¢ nio em conjunto, nao para o deus contuitivo; para este, todo conifli- tante conflui em uma harmonia, invislvel decerte ao olho humane habitual, mas inteligivel aquele que, como Heraciito, é semelhante ao deus contemplativo. Dian- te-de seu olhar de fogo, nao resta nenhuma gota de injustiga no mundo que se der- rama em torno dele; ¢ mesmo aquele espanto cardeal — Como pode o fogo puro tomar formas tio impuras? — é superado por ele gragas a uma sublime alegoria. Um vir-a-ser ¢ parecer, um construir ¢ destruir, sem nenhuma prestagio de contas de ordem moral, s6 tem neste mundo 0 jogo do artista eda crianga. E assim coma Joga a crianga e o artista, joga o fogd eternamente vive, constrdi em inocéncia — € esse jogo joga o Aion consigo mesmo. Transformando-se em Agua e terra, faz, como uma crianga, montes de areia & borda do mar, faz ¢ desmantela; de tempo em tempo comega 0 jogo de novo, Um insiante de saciedade: depois a necessidade © assalta de novo. como a necessidade forga o artista a criar, Nac é 0 animo cri- minosa, mas o impulso lidico, que, sempre despertando dé novo, chama a vida outros mundos. As veres a erianga atira fora seu brinquedo: mas logo recomega, em humor inocente. Mas, tao logo constrdi, ela @ liga. ajusta ¢ modela, regular- mente € segundo ordenagdes internas. Assim intui 0 mundo somente o homem estético, que aprenden com o artista € com o nascimento da obra de arte come o conflito da pluralidade pode trazer consigo lei ¢ ordem, como 0 artista fica em contemplagio ¢ em ago sobre a obra. de arte, come necessidade ¢ jogo, conflito e harmonia. tém de se emparelhar para gerar a obra de arte. Quem pediré ainda a uma tal filosofia também uma ética, com o necessario imperative “tu deves", ou mesmo faré de tal lacuna uma censura a Heraclito? O homem, ate sua tiltima fibra, necessidade, ¢ totalmente nao-livee — sc se entende por liberdade a tota pretensio a poder mudar arbitrariamente de esséncia como quem muda de roupa, pretensio que até agora toda a filosofia séria rejeitou com © devido sarcasmo. Se tao poucos homens vivem com conseiéncia no logos e em cenformidade com o otho artista que contempla tudo, isso provém de que suas A FILOSOFIA NA EPOCA TRAGICA DOS GREGOS 37 almas sao mothadas ¢ de que as olhos ¢ ouvidos dos homens ¢, de modo geral, seu intelecto, sio maus testemunhos quando 0 “iodo amido ocupa suas almas”. Por que ¢ assim, no se pergunta, assim como nao se pergunta por que 0 fogo se torna Agua ¢ terra. Heraclito ndo tem nenhuma razao para ter de demonstrar (como Leibniz teve de fazer) que este mundo ¢ até mesmo © melhor de todos: basta-lhe que cle seja © belo, © inocente jogo do Aion. Mesmo o homem, para ele, &, em geral, um ser irracional: 0 que ndo impede que em toda a sua esséncia a lei da raze onipotente se cumpra, Ele no ocupa um lugar purticularmente privilegiado ha natureza, cujo supremo fendmeno @ 0 foga — par exemplo, como astro — e n&o o homem simplorio, Se este, pela necessidade, conserva uma participagado no fogo, ele é um pouco mais racional; na medida em que consiste em Agua ¢ terra, sua razio vai mal. Uma obrigacao de conhecer a /ogos, por ser homem, nao exis- te, Mas por que hd gua, por que ha terra? Isto é para Herdclito um problema muito mais sério do que perguntar por que os homens saq tao estiipidos ¢ ruins, Nos homens mais superiores e nos mais pervertidos revela-se a mesma legalidade ¢ justic¢a imanentes. Mas, se se quisesse propor a Herfclito a questao: por que o fogo nao @ sempre fogo. por que ora é Agua. ora é terra? —. ele responderia ape- nas: “E um jogo, nao o tomeis tao pateticamente e, antes de tudo, nao 0 tomeis moralmente (..) 510 aad) Foi antes em um estado oposto que Parménides encontrou a doutrina do ser. Naquele dia ¢ nesse estado ele examinava seus dois contrérios cooperantes, cujo desejo ¢ ddio constituem 0 mundo o vir-a-ser, 0 que ¢ € 0 que nio é, as proprie- dades positivas ¢ negativas — ¢ subitamente deteve-se no conceito da propriedade negativa, do que nao & com desconfianga. Pode entao algo que nao ¢ ser uma propriedade? Ou, perguntado mais principialmente: pode entao algo que nao é ser? A Gnica forma de conhecimento, porém, a que desde logo conferimos uma confianga incondicionada ¢ cuja negagao equivale ao desvario, ¢a tautologia A = A. Mas justamente esse conhecimento tautolégico lhe clamava implacavelmente: © que nao é, nado é! O que é, é! Subitamente ele sentiu um descomunal pecado |é- gicO pesar sobre sua vida: ¢ no entanto ele havia sempre admitido sem escripulo que havia propricdades negativas, em geral algo nao scendo, ¢ que, portanto, expresso formalmente, A era = nao A: 0 que, no entanto, somente a completa perversao do pensamento poderia afirmar. Decerto, como ele se deu conta, toda a grande maioria dos homens julga com a mesma perversio: ele mesmo nao fez mais do que tomar parte no crime universal contra a kbgica. Mas o mesmo instan- te, que o acusa desse crime, ilumina- com a gloria de uma descoberta: ele encon- trou um principio, a chave para o segredo do mundo, a parte de toda ilusio huma- na: agora, levado pela firme e terrivel mao da verdade tautolégica sobre a ser, ele desce-ao abismo das coisas, 38 NIETZSCHE No caminho se defronta com Herdclito — um encontro infeliz! Para ele, que esperava tudo da separagao mais rigorosa entre ser n40-ser, havia de ser profun- damente odioso, logo agora, o jogo de antinomias de Herdclito; uma proposigao como: “Somos ¢ nao somos ao mesmo tempo”, “ser e nda-ser & a0 mesma tempo © mesmo € nao o mesmo”, uma proposigao pela qual se tornava outra vez confuso ¢ inextricavel tudo aquilo que ele acabava de esclarecer ¢ desembaragar, levava-o a0 furor: “Fora com os homeas” — gritou ele — “que parecem ter duas cabecas € no entanto nada sabem! Neles tudo esta em Muxo, mesmo seu pensamento! Olham pasmados para as coisas, mas tém de ser tao surdos quanto cegos para misturarem assim o5 contrarios!* O desentendimento da massa, glorificado por antinomias lidicas ¢ exaltado como o pice de todo conhecimento, era para ele uma vivéncia dolorosa ¢ inconcebivel. E ele mergulhou no banho gelado de suas terriveis abstragdes. Aquilo que é verdadeiramente tem de ser em cterno presente. dele nao pode ser dito “era”, “sera”. O que é ndo pode ter vindo a ser: pois de onde teria padido vir a ser’? Do que nao &? Mas-este ndo é e nao pode produzir nada. Do que é? Isto nao seria nada outro do que engendrar a si mesmo. O mesmo se da com o perecer; ele ¢ tio impossivel quanto o vir-a-ser, quanto toda alteragao, quanto todo crescimento, toda diminuigao, Por toda parte vale a proposigao: tudo aquilo de que se pode dizer “foi"* ou “sera nao é, mas do que ¢ nunca pode ser dito “nao é”, O que é, é indivisivel. pois onde esta a segunda forga que haveria de dividi-lo? E imével, pois para onde haveria de mover-se? Nao pode ser nem infinitamente grande nem infinitamente pequeao, pois esta completo, ¢ uma infinitude completa, dada, & uma contradi¢ao. Assim ele paira, delimitado, completo, imével, completamente em equilibrio, em cada ponto igualmente perfeito. como uma esfera, mas no em Um espago: pois senZo este espago seria um segundo ente. Mas nao pade haver diversos entes, pois para separi-los teria de haver algo que nao estaria sendo: uma suposi¢ao que suprime a si mesma. Assim, ha somente a eterna unidade. Se agora, porém, Parménides tornava a voltar o olhar a0 mundo do vir-a-ser, ‘cuja existéncia ele havia antes procurade conceber através de combinagdes tio ‘engenhosas, zangava-se com seus olhos porque viam o vir-a-ser, com seus ouvidos Porque o ouviam. “Nao sigais o olho estipido” — assim diz agora seu imperative —, “niio sigais 0 ouvido ruidoso ou a lingua, mas examinai somente com a forga do pensamento !” Com isso, executou a primeira e sumamente importante, se bem que ainda téo insuficiente ¢ fatal em suas conseqiiéncias, critica do aparetho cog- nitivo: ao apartar abruptamente os sentidos e a aptiddo de pensar abstragdes, por- tanto araz4o, coma se fossem duas faculdades totalmente separadas, ele dilacerou © prdprio intelecto © encorajou Aquela separagao totalmente errénea entre “espiri- to” ¢ “corpo” que, particularmente desde Plato, pesa como uma maldi¢ao sobre a filosofia. Todas as pereepgdes dos sentidos, julga Parménides, sé nos dio ilu SOes; e sua ilusao-mestra é justamente simularem que aquilo que nao é também é © que mesmo o vir-a-ser também tem um ser. Toda aquele multiplicidade e colo- rido do mundo conhecido conforme « experiéncia, a mudanga de suas qualidades, a ordenagio de scu acima ¢ abaixo, so implacaveimente postas de Indo como A FILOSOFIA NA EPOCA TRAGICA DOS GREGOS 39 mera aparéncia ¢ ilusao; desse lado nao hé nada a aprender, portanto todo esforgo dedicado a esse mundo de mentira, inteiramente nulo, e que é como que ume frau- de dos sentidos, é desperdicado. Quem julga assim no geral, como o fez Parméni- des, deixa com isso de ser um investigador da natureza em particular: seu inte- resse pelos fendmenas estanca, ele cria um édio de si mesmo, por no poder desvencilhar-se desse eterno engodo dos sentidos. Somente nas mais desbotadas, nas mais abstratas generalidades, nos estojos vazios das palavras mais indetermi- nadas hé de morar agora a verdade, como num casulo de fios de aranha: junto de uma tal “verdade” senta-se agora © filésofy, ¢ ali4s exangue como uma abstragao emaranhado em férmulas. A aranha. no entanto, quer o sangue de suas vitimas; mas 0 filésofo parmenidiano odeia precisamente o sangue de sua vitima, o san- gue da empiria, sacrificada por ele, $16 G.) Foi a observagao dos processos de nascimento na natureza, e nao a conside- ragio de um sistema anterior, que inspirou a Anaxagoras a doutrina de que tudo nasce de tudo: esta era a convicgo do investigador da natureza, fundada sobre uma indugao multiforme ¢, no fundo, naturalmente, de uma precariedade sem limites. Ele a demonstrava assim: se mesmo o contrario puder nascer de seu contrario, por exempio o preto do branco. entao tudo ¢ possivel: ¢ iss ocorre na dissolugiio da neve branca em agua preta. Ele se explicava a nutrig3o do corpo dizendo que nos géneros nutritivos deveria haver componentes invisivelmente Pequenos de carne ou sangue ou Ossos, que, na nutrigdo, se separariam e se unifi- eariam, no corpo, com seu homogénco. Mas se tudo pode provir de tudo, 0 sblido do liquido, 0 duro do mole, 6 preto do branca, a carne de pao, entiio tudo tem de estar contide em tudo, Os nomes das coisas exprimem, pois, somente a preponde- rancia de uma substancia sobre as outras substncias que aparecem em massas menores, muitas vezes imperceptiveis, No ouro, isto &, naquilo que se designa a potiore’ com o nome de “ouro”, tém de estar contidos também prata, neve, pao ¢ carne, mas ¢m partes componentes extremamente pequenas: o todo recebe 0 nome da substincia preponderante, do ouro. Como é possivel, porém, que uma substéingia prepondere © preencha uma coisa em massa maior do que as outras? A experiéncia mostra que somente pelo, movimento essa preponderancia é pouce a pouco engendrada, que « preponde rancia € o resultado de um proceso, que comumente denominamos vir-a-ser; se, em contrapartida, tudo esti em tudo, isso ndo é resultade do processo, mas, ao contrario, pressuposto de toda vir-a-ser, e de tado movimento ¢, por isso, precede todo vir-a-ser. Em outras palavras: a empiria ensina que constantemente o igual é acrescido ao igual, por exemplo pela autrigio; portanto originariamente nao esta- vam juntos ¢ aglomerados, mas separados. Pelo conte4ric, nos eventos empiricos * Me preteréncin antes. (N. do'E.) que esto diante dos alhos, o igual é sempre expelido e afastado do desigual (por exemplo, na nutrigao, as particulas de carne do pag, ¢ assim por diante); assim, a mescia das substancias diferentes € a forma mais antiga da constituigdo das coisas € precede no tempo tedo vir-a-ser ¢ movimento. Se, portanto, todo o assim chama- do vir-a-ser pressupde uma separapao © urna mistura, pergunta-se, entdo, qual deve ter sido, na origem, o grau dessa mescla. Embora ja durando por um tempo descomunal 0 processo de um movimento do homogénes para o homogéneo, o vir-a-ser, reconhece-se, apesar disso, como ainda estio encerrados em todas as coisas restos € sementes de todas as outras coisas, que esperam por sua segrega- 40, e come somente aqui e ali se instituiu uma preponderancia; a mistura primor- dial deve ter sido uma mistura completa, isto é, estendendo-se até ao infinitamente pequeno, ja que a desmistura gasta um espaco de tempo infinito, fans) § 17 © que tinha de ser feito com aquela mescla eadtica do estado primordial anterior 2 todo movimento, para que dela se fizesse, sem nenhum acréscimo de novas substaacias ¢ forgas, o mundo existente com as trajetorias ordenadas dos astros, com as formas regulares das estagdes do ano ¢ das horas do dia, com a variada beleza e ordenagdo, em suma, para que do caos se fizesse um cosmo? Isto 56 pode ser conseqiiéncia do movimento, mas de um movimento determinado ¢ inteligentemente arranjado. Esse movimento mesmo ¢ 0 meio empregado pelo nous, seu alyo seria 4 completa segregagao do igual, um alvo até agora inalcan- gada, porque a desordem ¢ mistura no inicio eram infinitas. Esse alvo 6 pode ser petseguido por um processo descomunal, ndo conseguido de uma vez por um passe de magica mitolégico: se alguma vez, em um ponto infinitamente distante no tempo, todo homogéneo chegar a ser reunido ¢ entio as existéncias primor: is, indivisas, descansarem lado a lado em uma bela ordenagao, quando cada particula encontrar suas companheiras ¢ sua patria, quando vier a grande paz de- pois da grande dispersio ¢ divisio das substancias e nao houver mais nada de dividido ¢ disperso, entéo o moiis retornara a seu automovimento, ¢, ndo estando mais dividido ele mesmo, vagaré pelo mundo, ora em massas maiores, ora em menores, como espirito vegetal ou espirito animal, ¢ ira habitar em outra matéria. Por enquante, a tarefa ainda ndo foi levada a termo: mas o modo de movimento que o nots engenhou para resolvé-la demonstra uma maravilhosa conveniéncia a seus fins, pois, através dele, a tarefa vai ficando, a cada novo instante, mais resol- vida. A saber, tem o cardter de um movimento circular que prossegue concentrica- mente: em algum ponte da mistura cadtica ele comegou, na forma de um pequeno giro ¢, em trajetorias cada vez maiores, esse movimento circular percorre todo ser existente, fazendo por toda parte o igual precipitar-se para o igual. Primeiro, essa evolugiio rotativa leva todo denso ao denso, iodo sutil ao sutil, e do mesmo modo todo escuro, claro, (imido, seco, a seu semelhante: acima dessas rubricas gerais ha ainda duas outras mais amplas, ou seja, o Eter, isto é, cudo o que & quente, leve, sutil, ¢ o Ar, designando todo o escuro, frie, pesado, sdlido, Pela separacao entre ‘a8 massas etéreas ¢ 45 aéreas forma-se, como efeito mais proximo daquela roda que faz circulos cada vez maiores, algo semelhante a um redemoinho que alpuém faz em uma gua parade: es componentes pesados sho levados ao centro e comprimidos. Do mesmo modo, a tromba-d’4gua que avanga no caos é formada, do lado de fora, de componentes etéreos, sutis, leves. do lado de dentro de compo- nentes nebulosos, pesados, timidos. Em seguida, na continuidade dese processo, separa-se, daguela massa aérea que se aglomera no interior, a 4gua, e da égua 0 terrestre, ¢ do terrestre, sob @ efeito do terrivel frio, as rochas. Por sua vez, algu- mas massas rochosas, pela fitria do giro, sig As vezes arrancadas da Terra ¢ lan- gadas dentro do reino do Eter quente e leve; ali, no elemento igneo, levadas a incandescéncia ¢ transportadas no movimento circular do Eter, irradiam luz, ilu- minam ¢ aquecem a Terra, em si mesma escura e fria, convertidas em Sol ¢ astros. Toda essa concepgao é de uma admiravel audicia ¢ simplicidade e nada tem em si daquela teologia canhestra e¢ a semelhanga do homem, freqientemente associada ao nome de Anaxégoras. Essa concepgao tem sua grandeza e seu orgu- tho exatamente em derivar do circulo em movimento todo o cosmo do vir-a-ser, enguanto Parménides via aquilo que é verdadeiramente como uma esfera morta em Fepouso, Se aquele circulo s6 ¢ movida ¢ posto em rotagiio pele nots, entio toda ordem, legalidade e beleza do mundo sito as conseqiiéncias naturais daquele primeiro abalo, Que injustiga se faz a Anaxagoras quando o censuram pela sabia abstengao de teleologia que se mostra nessa concepedo ¢ falam desdenhosamente de seu nots como de um deus ex machina, Pelo contrario, Anaxagoras, precisa- mente porque poe de lado as intervengdes miraculosas de ordem mitolégica ou tcista ¢ os fins ¢ utilidades antropomérficos, teria podido empregar. palavras orgu- lhosas semelhantes As que Kant usou em sua historia natural do céu. E de fato um pensamento sublime reduzir inteiramente aquele espiendor de cosmo ¢ © arranjo assombroso das trajetérias das estrelas a um movimento simples, puramente mecénico, € como que a uma figura matematica em movimento, e, portanto, nio @ intengdes © maos intercessoras de um deus-maquina, mas somente a um modo de oscilagao que, desde que tenha comegado uma vez, tem seu curso necessario ¢ determinado ¢ obtém efeitos que se equiparam ao mais sibio céleulo da perspi- cécia ¢ 4 mais meditada finalidade, sem ser nada disso. “Sinto o contentamento”, diz Kant, “de ver engendrar-se, sem 0 auxilio de ficgdes arbitrarias, mas sob o patrocinio de leis de movimento bem estabelecidas, um todo bem ordenado, que parece tio semelhante aquele sistema do mundo que é 0 nosso, que nia posso impedir-me de tomé-lo por ele, Parece-me que se poderin aqui, em certo sentido, dizer sem presungio: Dai-me matéria ¢ eu construirei um mundo !* g 19 Ge.) Para 0s filésofos posteriores da Antiguidade, 0 modo como Anaxagoras fez uso de scu wos para a explicagao do mundo era curioso, € mesmo dificilmente a2 NIETZSCHE perdosivel: aparecia-lhes como se ele tivesse encontrado um soberbo instrumento, mas nio o tvesse entendido bem, e eles procuraram reparar o que foi desperdi- gado pelo deseobridor. Nao reconheceram, pois. que sentido tinha a abstengio de Anaxiigoras, inspirada pelo mais puro espirito do método da ciéncia natural, que, em cada caso e antes de tudo, se pergunta por que algo é (causa efficiens) ¢ nao para que algo é (causa flualis). O nots nao é introduzido por Anaxdgoras para responder & pergunta especial: “Por que ha movimento e por que hd mavimentos regulares?”; Platdo, entretanto, objeta-Ihe que ele deveria ter mostrado, mas nao mostrou, que cada coisa 4 sua mancira e em seu lugar encontra-se em seu [estado] mais belo, melhor ¢ mais adequado. Isso, porém, Anaxéigoras nao teria ousado afirmar em aenhum caso singular; para ele 0 mundo presente nem sequer era o mais perfeito dos pensdveis, pois ele via cada coisa nascer de outra e nunca encon- (ava a separagio das substincias pelo nous completa e terminada, nem na extre- midade do espago preenchido do mundo, nem nos seres singulares. E totalmente suficiente para seu conhecimento ter encontrado um movimento que, na continua- sao simples de sua atuagao, pode criar, a partir de um caos inteiramente mistura- do, a ordem visivel, e ele tinha todo 0 cuidado de no colocar a pergunta pelo “para que?” do movimento, pelo fim racional do movimento. Se o noiis tivesse um fim, necessdrio segundo sua esséncia, para cumprir por meio dele, nao estaria mais em seu arbitrio iniciar alguma vez 0 movimento; na medida em que é eterno, ele teria também de ja estar cternamente determinado por esse fim, ¢ nesse caso nao poderia haver nenhum ponto do tempo em que © movimento ainda faltassse, © até mesmo estaria logicamente proibido admitir, para o movimento, um ponto inicial: com isso, entéo, mais uma vez, a representagao do caos originario, o fun- damento de toda a interpretagdo anaxagérica do mundo, ter-se-ia tornado, do mesmo modo, logicamente impossivel. Para obviar essas dificuldades, criadas pela teleologia, Anaxagoras tinha sempre de acentuar ¢ encarecer com a maxima energia que © espirito & arbitrario; todos os seus atos, mesmo o daquele movi- mento primordial, sie atos da “vontade livre”, enquanto todo o resto do mundo se forma rigorosamente determinado, ¢ alias determinado mecanicamente, depois daquele momento primordial. Essa vontade absolutamente livre, entretanto, $6 pode ser pensada como sem finalidade, mais ou menos ao modo do jogo da crian- ga ou do impulso hidico do artista, GC.) SOBRE VERDADE E MENTIRA NO SENTIDO EXTRA-MORAL (1873) a $l Em algum remoto rincao do universo cintilante que se derrama em um sem- niimero de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inyentaram o conhecimento. Foi o minuto mais soberbo ¢ mais mentiroso da “ toria universal: mas também foi somente um minuto. Passados poucos fOlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram de morrer. Assim poderia alguém inventar uma fabula e nem por isso teria ilustrade suficien- temente quio lamentavel, quao fantasmagérico ¢ fugaz, quao sem finalidade ¢ gratuito fica o intelecto humane dentro da natureza. Houve etemnidades, em que cle nao estava; quando de novo cle tiver passado, nada tera acontecido. Pois no ha para aquele intelecto nenhuma missdo mais vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrario, ele é humano, ¢ somente seu possuidor ¢ genitor o toma tio pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se pudés- semas entender-nos com a mosca, perceberiamos entio gue também ela béia no ar com esse pathos © sente em si © centre voante deste mundo, Nao ha nada tio desprezivel ¢ mesquinho na natureza que, com um pequeno sapro daquela forga do conhecimento, nao transbordasse logo como um odre; @ como todo transpor- tador de carga quer ter seu admirador, mesmo o mais orgulhoso dos homens, o fildsofo, pensa ver por todos os ladas os olhos do universe telescopicamente em mira sobre seu agir e pensur. E notivel que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais infelizes, delicados ¢ pereciveis dos seres, Para firma-los um minuto na existéneia, da qual, sem essa concesso. cles teriam toda razdo para fugir tao rapidamente quanta o filho de Lessing. Aquela altivez associada ao cenhecer ¢ sentir, nuvem de cegueira pousada sobre os olhos ¢ senti- dos dos homens, engana-os pois sobre o valor da existéncia, ao trazer em si a mais Hsonjeira das estimativas de valor sobre o proprio conhecer. Seu efeito mais geral é engano — mas mesmo os efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo carater, ‘O intelecto, como uri meio para x conservagao do individuo, deslobra suas forgas mestras no disfarce; pois este é.¢ meio pelo qual os individuos mais fracos, menos robustos, se conservam, aqueles aus quais esta vedado travar uma luta pela existéncia com chifres ou presas agugadas. No homem essa arte do disfarce chega seu fipice: aqui o engano, © lisonjear, mentir e ludibriar, a Falar-por-tras-das 4h NIETZSCHE costas. © representar, o viver em gléria de empréstimo, 0 mascafar-sé, a conven- gao dissimulante, 0 jogo teatral diante de outros e diante de si mesmo, em suma, © constante bater de asas em torno dessa siniea chama que a vaidade. é a tal Ponte a repra € lei que quase nada & mais inconcebivel do que como pode apare- cer entre os homeas um hanesto € puro impulso 4 verdade. Eles estdo profunda- menie imersos em ilusGes e imagens de senha, scu olho apenas resvala as tontas pela superficie das coisas ¢ vé “formas”, sua sensagiio nio conduz em parte algu- ma 4 verdade. mas contenta-se em receber estimulos e como que dedilhar um teclado as costas das coisas. Por isso 0 homem, &. noite, através da vida, deixa que © sonho [he minta, sem que seu sentimento maral jamais tentasse impedi-lo; no entanto, deve haver homens que pela forga de vonlade deixaram o habito de ron- car. © que sabe propriamente o homem sobre si mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se completamente, como se estivesse em uma vit na iluminada’? Nao The cala a natureza quase tudo, mesmo sobre seu corpo, para manté-lo a parte das circunvalugdes dos intestinos, do fluxo rapido das correntes sanguineas, das intrineadas vibragdes das fibras, exilado ¢ @ancado em uma cons- ciéncia orgulhosa, charlati! Ela atirou fora a chave: ¢ ai da fatal curiosidade que airavés de uma fresta foi capaz de sair uma vez do cubiculo da conseiéncia e olhar Para baixo, ¢ agora pressentiu que sobre © implacavel, o dvido, o insaciivel, o assassino, epousa ¢ homem, na indiferenga de seu ndo-saber, e como que pen- dente em sonhos sobre o dorso de um tigre. De onde neste mundo viria, nessa constelagao, o impulso a verdade! Enquanto o individuo, em centraposigado a outros individuos, quer conser- var-se, ele usa © intelecto, em um estado natural das coisas, no mais das vezes somente para a representagao: mas, porque o homem, ap mesmo tempo por neces- sidade e tédio, quer existir socialmente ¢ em rebanho, ele precisa de um acordo de paz € se esforga para que pelo menos & maxima bellum omnium contra omnes' desaparega de seu mundo. Esse tratado de paz traz consiga algo que parece ser 0 primeiro passo para aleangar aguele enigmtica impulse a verdade. Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser “verdade”, isto & ¢ descoberta uma designagio uniformemente valida e obrigatGria das coisas, ¢ a legislagdo da lin- guagem dé também as primeiras leis da verdade: pois surge aqui pela primeira vez © contraste catre verdade e mentira, O mentiroso usa as designagies validas, as palavras, para fazer aparecer 0 ndo-eletive como efetivo; ele diz, por exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seria precisamente “pabre” a designagio cor- reta. Ele faz mau uso das firmes convengdes por meio de trocas arbitririas ow mesmo inversGes dos nomes. Se cle o faz de maneira egoists ¢ de resto prejudicial, a sociedade nao confiara mais nele ¢ com isso o excluira de si, Os homens, nisso, nao procuram tanto evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo engano: 0 que odeiam, mesmo nesse nivel, no fundo niio é a ilusdo, mas as conse qliéncias nocivas, hostis, de cértas especies de ilusdes. & também em um sentido restrito semelhante que © homem quer somente a verdade: ‘Weseja as * Guveria de todos eontra (odds, (N. do FE) conseqiiéncias da verdade que sao agraddveis e conservam a vida: diante do coahecimento puro sem conseqiténcias cle ¢ indiferente, diante das verdades talvez perniciosas @ destrutivas ele tem dispasigdo até mesmo hostil. E além disso: 0 que se passa com aquelas convengdes da linguagem? Sia talver frutos do conheci- mento, do senso de verdade: as designagdes e as coisas se recobrem? £ a lingua- gem @ expressao adequada de todas as realidades? Somente por esquecimento pode o homem alguma vez chegar a supor que possui uma “verdade” no grau acima designada. Se ele nao quiser contentar-se com a verdade na forma da tautologia. isto ¢, com os estojos vazios, comprara eternamente ilusdes por verdades. O que ¢ uma palavra? A figuragdo de um esti mulo nervoso em sons. Mas concluir do estimule nervosa uma causa fora de nds 4 € resultado de uma aplicagio falsa ¢ ilegitima do principio da raz3o. Como poderiamos nds, se somente a verdade fosse decisiva na génes¢ da linguagem. se somente o ponto de vista da certeza fosse decisive nas designagdes, como pode- riamos no entanto dizer: a pedra ¢ dura: como se para nos esse “dura” fosse conhecido ainda de outro modo, ¢ no somente como uma estimulagio inteira- mente subjetival Dividimos as coisas por géneros, designamos a arvore como feminina, o vegetal como masculino: que transposigdes arbitrdrias ! A que distan cia voamos além do cfinone da certeza! Falamos de uma Schlange (cobra): a designagio nao se refere a nada mais do que o enrodilhar-se. ¢ portanto poderia também caber ao verme.? Que delimitagées, arbitrarias, que preferéncias unilate- fais, ora por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! As diferentes linguas, colocadas lado a lado, mostram que nas palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressdo adequada: pois sendo nfo haveria tantas linguas. A “coisa em si” (tal seria justamente a verdade pura sem conseqdéncias) &, também para o forma- dor da linguagem, inteiramente incaptavel ¢ nem sequer algo que vale a pena, Ele designa apenas as relagdes das coisas aos homens ¢ toma em auxilio para expri- mi-las as mais audaciosas metaforas. Um estimulo nervoso, primeiramente trans- posto ¢m uma imagem! Primeira metifora, A imagem, por sua vez. modelada em um som ! Segunda metifora, E a cada vez completa mudanga de esfera, passagem para uma esfera inteiramente outra ¢ nova, Pode-se pensar em um homem, que seja totalmente surdo ¢ nunca tenha tide uma sensagao do som e da misica: do mesmo modo que este, porventura, vé com espanto as figuras sonoras de Chladni? desenhadas na arcia, encontra suas causas na vibragio das cordas ¢ jurara agora que ha de saber © que 03 homens denominam o "som", assim também acontece & todos nds com 4 linguagem. Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se fala mos de drvores, cores, neve ¢ flores, no entanto nao possuimos nada mais do que metiforas das coisas, que de nenhum modo correspondem as entidades de ‘origem. * A pulavra Settange & diretamente derivada, por apolonia, do verbe schtingen (torcer, enroseat) a0 sentido sxpecifice da forma proposicianal sich sohlIngen, que equivale ao dle sfok winden {enrodilhar se). Em porta Bods u lleneto entre a paluvra cobra ¢ 0 verbo eolear € bem mais renous; mais proxima, twlver, seria a osha ‘go entre seqrente serpear. Proferimos, em todo case, mater # exsmplo original do texto. (N. dT.) ? Chladni, Hast Friedrich — fisico alemio (1756-1826): celehsizow-se por suas engenhosas experiéncias sobre a tcoria do som.(N, Jo T,) 48 NIETZSCHE Assim como o som convertido em figura na areia, assim se comporta o enigma- tico X da coisa em si, uma vez como estimulo nervoso, em seguida como imagem, enfim come som. Em todo caso. portanto, nao é logicamente que acarre 4 genese da linguagem. ¢ o material inteiro, no qual ¢ com o qual mais tarde o homem da verdade, 0 pesquisador, 0 fildscfo. trabalha e constrdi, pravém, se nay de Cuco- \andia das Nuvens, em todo caso nao da exséncia das coisas, Pensemos ainda. em particular, na formagio dos conceitos, Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando nao deve servir, como recordacao, para a-vivéncia primitiva, completamente individualizada ¢ Gnica, a qual deve seu sur gimentg, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-nimero de casos, mais ou menos semelhuntes, isto é, tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, # casos claramente desiguais, Toda conceito nasee por iqualagao do ndo-igual. As- sim como ¢ certo que nunca uma folha ¢ inteiramente igual a uma outra. é certo que © conceito de folha é formado por arbitrario abandono dessas diferengas indi- viduais, por um esquecer-se do que € distintive. ¢ desperta entao a represuntagio, como se na natureza além das folhas houvesse algo, que fosse “fotha", uma espécie de folha’ primordial, segundo a qual todas as folhas fos- sem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mios inabeis. de tal mode que nenhum exemplar tivesse saido correto ¢ fidedigno coma cépia fiel da forma primordial. Denominamos um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tao honestamente? — perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua honestidade. A honestidade! Isto quer dizer, mais uma vez: a folha a causa das folhas. O certo é que nao sabemos nada de uma qualidade essencial, Que se chamasse “a honestidade”. mas sabemos, isxo sim, de numerosas agdes individualizadas, portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual ¢ designamos, agora, como agdes honestas; por fim, formutamos a partir delas uma quatitas occulta com © nome: “a honestidade”, A descansideragao do individual e efetivo nox di o coneeito, assim como nos da também a forma, enquanto que a natureza nao conhece formas nem conceitas, portanto também nao conhece espé cies, mas somente um X, para nds inacessivel ¢ indefinivel, Pois mesmo nossa oposigiio entre individuo ¢ espécie ¢ antropomertica eno provém da esséncia das Goisis, mesmo se na ousimes dizer que ndo Ihe corresponde: isto seria, com efi {o, ums afirmagao dogmatica c como tal tio indemonstravel quanto seu contrario. © que é # verdade, portanto? Um batalhdo-mével de metéforas, metonimias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relagdes humanas, que foram enfatizadas poética ¢ retoricamente, transpostas, enfeitadas, ¢ que, apés longo uso, Pparecem a um povo sdlidas, candnicas ¢ obrigatérias: as verdades so ilusdes. das quais se esqueceu que o do, metaforas que se tornaram gastas ¢ sem forga sensivel, moe- das que perderam sua éfigis ¢ agora s6 entram em consideragao como metal, nio mais como moedas. ‘Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso a verdade: pois ate agora s6 ouvimos falar du obrigagao que a sociedade, para existir, estabselece: de dizer a verdad, isto ¢, de usar as metiforas usuais, portanto, expresso moral- SOBRE VERDADE E MENTIRA. ay mente: da obrigagdo de mentir segundo uma convengio sélida, mentir em reba tho, em um estilo obrigatério parn todos. Ora. o homem esquece sem divida que € assim que se passa com ele: mente. pois, da mancira designada, inconscien- temente ¢ segundo habitos seculares — ¢ justamente por essa inconsciéncia, justa- Mente por esse esquecimento, chega ao sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como “vermelha™, outra como “fria”, uma terecira como “muda”, desperta uma emogio que se refere moralmente a verdade: 4 partir da oposi¢ao. ao mentiravo, em quem ninguém confia, que todos exchiem, o homem demonstra a si mesmo o que ha de honrado. digno de confianga e itil na verdade. Coloca agora seu ugir como ser “racional” sob regéncia day abstra- es; nao suporta mais ser arrastado petas impresses sibitas, pelas intuicdes untiversaliza antes todas essas impressdes em conceitos mais descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver e agir. Tudo o que destaca o homem do animal depende dessa aptidao de liquefazer a met4fora intuitiva em um esque ma, portanto de dissolver uma imagem em um conceito, Ou seju. no reino daque les esquemas, ¢ possivel algo que aunea poderia ter éxito sob o efeito das primei- tes impressdes intuitivas: edificar uma ordenagdo piramidal por castas e graus, criar um novo mundo de leis, privilégios, subordinagées, demarcagdes de limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitive das primeiras impressdcs como o mais s6lido, 0 mais universal, o mais conhecida,o mais humano e, por isso, como © reguiador ¢ imperativo. Enquanto cada metifora intuitiva 6 individual ¢ sem igual ¢, por isso, sabe escapar a toda rubricagiio. © grande edificio dos conceitos Ostenta a regularidade rigida de um columbario romano ¢ respira na logica aquele rigor ¢ frieza, que sio da propria matematicn. Quem é bafejado por essa frieza ificilmente acreditard que até mesmo o eonccilo, Gsxco ¢ -octogonal como um Gado ¢€ tao Facil de destocar quanto este, é somente 0 residvo de uma metéfora, © que a ilusao da wansposigao artificial de um estimulo nervoso em imagens, se nao € a mie. é pelo menos a avé de todo ¢ qualquer concejto, Ne interior desse jogo de dados do conccito, porém, chama-se “verdade” usar cada dado assim como ele € designado, contar exatamente seus pont formar rubricas eorretas ¢ nunca pecar contra a ordenagdo de castas ¢ a seqiiéncia das classes hierirquicas, Assim come os romanos ¢ elruscos retalhavam © céu com rigidas linhas matematicas ¢ em um espago assim delimitado confinavam um deus, como em um templo, assim cada povo tem sobre si um tal céu conceitual matematicamente repartido ¢ enten- de agora por exiggncia de verdade que cada deus. conccitual s¢ja procurado Somente em sua esfera. Pode-se muito bem, aqui, admirar o homem como um podereso géniv construtivo, que consegue erigir sobre fundamentos méveis ¢ como que sobre 4nua corente um domo conceitunl infinisamente complicado: — sem divida. para encontrar apoio sobre tais fundamentos, tem de ser uma cons- trugio como que de fios de aranla, téo ténue a ponto de ser carregada pelas ondas, tao firme a ponto de nfo ser espedagada pelo sopro de cada vento, Como génio construtivo o homem s¢ eleva, nessa. medida, muito acima da abelha: esta constroi com cera, que recolhe da natureza, ele com a matéria muito mais ténue dos conceitos, que antes tem de fabricar a partir de si mesmo. Ele é. aqui. muito admiravel — mas sé que nao por seu itpulso a verdade, ao conhecimento pure: das coisas. Quando alguém esconde uma coisa atris de.um arbusto, vai procurd- ie ali mesmo e a encontra, no ha muito que gabar nesse procurar ¢ encontrar: ¢ & assim que se passa com o procurar ¢ encontrar da ““verdade” no interior do dis- trito da razdo. Se forjo definigao de‘animal mamifero e em seguida declaro, de- pois de inspecionar um camelo; “Vejam, um animal mamifero”, com isso decerto uma verdade é trazida a luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, ¢ cabal mente antropomérfica ¢ nao conuém um tnico ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente valido, sem levar em conta 0 homem. O pesquisador des. sas verdades procura, no fundo, apenas a metamorfase do mundo em homem, luta Por um entendimento do mundo como uma coisa 4 semelhanga do homem e con- quista, no melhor dos casos, o scntimento de uma assimilagio. Semelhante 20 asirélogo que observava as estrelas a servigo do homem em fungio de sua sorte € sofrimento, assim um tal pesquisadar observa o mundo inteiro como ligado 20 homem. como 2 repercussio infiaitamente refratada de um som primordial, do homem, como a iniagem multiplicada de uma imagem primordial, do homem. Seu procedimento consiste em tomar o homem por medida de toslas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que tem essas coisas imediatamente, camo obje- tos puros diante de si. Esquece, pois, as metiforas intuitivas de origem, como metaforas, ¢ as toma pelas coisas mesmas. (ad foras, esse impulso fundamental do homem, que no se pode deixar de levar em conta nem Por um instante, porque com isso 9 homem mesmo nio seria levado em conta, quando se consirdi para ele, a partir de suas criavuras liquefeitas, as conceites, um novo mundo regular ¢ rigido como uma praga forte, nem por isso, na verdade, ele é subjugado ¢ mal é refreado, Ele procura Um nove territorio para sua atuagdo ¢ um outro leito de rig, € 0 encontra no mito e, em geral, na arte. Constantemente ele embaralha as rubricas ¢ compar- timentos dos coneeitos, propondo novas transposigdes, metaforas, metonimias, constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispde 0 homem acordado uma forma tio cromaticamente irregular, inconseqlentemente incoe- Fente, estimulante ¢ eternamente nova como a do mundo do sonho. E verdade que somente pela teia rigida e regular de conceito 0 homem acordado tem certeza clara de estar acordado, ¢ justamente por isso chega as vezes a crenca de que sonha, s¢ alguma vez aquela teia coneeitual é rasgada pela arte, Pascal tem raziio quando afirma que, sc todas as noites nos viesse o mesmo sonho, ficariamos tio Ocupados com ele como com as coisas que vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar cada noite. doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria to feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é umn trabalhador manual”. O dia de vigilia de um povo de emogGes miticas, por exemple os gregos antigos, é de fato, pelo milagre constante- mente atuante, que o mito aceita, mais semelhante ao sonho do que © dia do pen- sador que chegou A sobriedade da ciéncia, Se uma vez cada Arvore pode falar como ninfa ou sob o invélucro de um toura um deus pode seqiiestrar donzelas, se mesmo a deusa Atcna pode subitamente ser vista quando, com sua bela parelha. no séquito de Pisistrato. passa pelas pragas de Atenas — ¢ nisso acredita 0 ate- niense honrado —, ent@o a cada instante, como no sonho, tudo é possivel, ea natureza inteira esvoaga em torno de homem como se fosse apenas uma masca- rada dos deuses. para os quais seria apenas uma diversio enganar os homens em todas as formas. O préprio homem, porém, tem uma propensdo invencivel a deixar-se enganar e fica como que enfeitigado de felicidade quando 0 rapsodo Ihe narra contos épi- cos como verdadeiros, ou o ator, no teatro, representa 0 rei ainda mais regiamente do que 0 mostra a cfetividade. O intelecto, esse mestre do disfarce, esta livre e dis. pensado de seu servico de escravo, enquanto pode enganar sem causar dano, ¢ selebra entio suas Saturnais. Nunca ele ¢ mais exuberante, mais rice, mais orgu- thoso, mais habil ¢ mais temerario; com prazer criador ele entrecruza as metifo- ras © desloca as pedras-limites das abstragdes, de tal modo que, por exemplo, designa 9 rio como caminho em movimento que transporta o homem para onde ele, do contrario, teria de ir a pé. Agora ele afastou de si o estigma da servilidade: antes empenhado em atribulada ocupagao de mostrar a um pobre individua, cobi goso de existéncia, o caminho e os instrumentos ¢, como um servo, roubando ¢ saqueando para seu senhor, ele agora se tornou seahor ¢ pode limpar de seu rosto a expressiio da indigéncia, © que quer que ele faga agora, tudo traz em si, em comparagao com sua atividade anterior, o disfarce, a camo a anterior trazi em si a distorgdo. Ele copia a vida humana, mas a toma come uma boa coisa ¢ pa- rece dar-se por.bem satisfeite com ela. Aquele descomunal arcabougo e¢ traveja- mento dos conccitos, ao qual o homem indigente se agarra, sulvando-se assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre somente um andaime ¢ um Joguete para seus mais audazes artificios: ¢ quando ele o desmantela, entrecruz: Frecompée ironicamente, emparelhando 0 mais alheio ¢ separando o mais proximo, ele revela que nao precisa daquela tabua de salvagao da indigéneia e que agora nao & guiado por conceltos, mas por intuigdes. Dessas intuigdes nenhum caminho regular leva a terra dos esquemas fantasmagéricos, das abstragdes: para clas nao foi fcita a palavra,o homem emudece quando as vé, ou fala puramente em metifo- ras proibidas ¢ em arranjos inéditos de conceitos, para pelo menos através da demoligao ¢ escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder criado- ramente 4 impressaio de poderosa intuigao presente, Ha épocas em que o homem racional ¢ o homem intuitive fieam lado a lado. um com medo da intui¢’e, 0 outro escarnecendo da abstragao; este ultimo € tao irracional quanto © primeiro é inartistico. Ambos desejam ter dominio sobre a vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudencia, regularidade, enfrentar as principais necessidades, aquele, como “hetdi euférico”, niio vendo aquelas necessidades © tomando somente a vida disfargada em aparéncia e em beleza como real. Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que seu reverso, pode configurar-se. em caso favoravel, uma civ lizagao ¢ fundar-se o dominio da arte sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigéncia, aquele esplendor das intuigGes metaforicas c cm geral aquela imediatez da ilusio acompanham todas as manifestagdes de tal vida. Nem a casa, nem o andar, nem a indumen- téria, nem o cantaro de barro denunciam que a necessidade os inventou. parece camo se em todos eles fosse cnunciada uma sublime felicidade ¢ uma olimpica fuséncia de nuvens € como que um jogo com a seriedade. Enquanto 0 homem guiaco por conecitos e abstragdes, através destes, apenas se dlefende da infelici. dade, sem conquistar das abstracdes uma felicidade para si mesmo, enquanto cle lua para libertar-se © mais possivel da dor, o homem intuitivo, em meio a uma civilizagiio, colhe desde logo, ja de suas intuigdes, fora 4 defesa contra omal,um counstante ¢ torrencial contentamento, entusiasmo, redengaa. Sem divida, cle sofre com mais veeméncia, quarido sofre: e até mesmo safte com mais freaiiéncia, pois ndo sabe aprender da experiéncia ‘¢ sempre torna a cair no mesmo buraco em que caiu uma vez. No softimento, entao. é tao irracional quanto na felicidade, grita alto ¢ nada o consola. Como é diferente, sob o mesmo infortiinie, 0 homem estbico instruido pela experiéncia e que se governa por conceitos! Ele, que de resto s6 pracura retiddo, verdade, imunidade a ilusdes, protegio contra as tenta- g0e8 de fascinagdo, desempenha agora, na infel dade, a obra-prima do disfarce, como aquele na fclicidade; ndo traz um rosto humano. palpitante ¢ mével, mas Como que uma méscara com digno equilibrio de tragos, nao grita ¢ nem sequer al- (era a voz: se uma boa nuvem de chuvs se derrama sobre ele, ele se envolye em ‘scu manto ¢ parte a passos lentos, debaixo dela. CONSIDERACOES EXTEMPORANEAS (1873-1874) “1S fell SET aaace 3 Jind ip ge ae i 71h I— DAVID STRAUSS, 0 DEVOTO EO ESCRITOR (1873) §6 C.. .) 0 fato simplesmente incrivel de que Strauss nao soube aproveitar nada da critica kantiana da razao para seu testamento das idéias modernas ¢ de que por tada parte so fala a0 gosto do mais grossciro realismo faz parte, precisamente, das surpreendentes caracteristicas desse novo evangelho, que de resto 33 se apre- senta camo o resultado laboriosamente conquistado de continua pesquisa historicae natural e, com isso,renega até mesmo o elemento da filosofia. Para o chefe dos filisteus ¢ para scu “nds”, nao hé uma filosofia kantiana. Ele nada pres- sente da antinomia fundamental do idealismo ¢ do sentido sumamente relativo de toda ciéncia ¢ razdo. Ou: precisamente a razio deveria dizer-lhe quao pouco se pode estabelecer pela razio sobre o em:si das enisus. Mas € bem verdade que, para gente de uma certa idade da vida, é impossivel entender Kant, particular. mente quando se trata de alguém que entendeu na juventude, como Strauss. 0 “es- pirito de gigante™ de Hegel, ou acredita té-lo entendido. ¢ até mesmo, ao lado disso, teve de ociipar-se com Schleiermacher, “que possuia perspicdcia quase em demasia”, como diz Strauss. Soard estranho para Strauss se eu Ihé disser que mesmo agora ele esté ainda na “pura e simples dependéncia” de Hegel ¢ Schicier- macher, ¢ que sua doutrina do universo, do modo de consideragdo dus coisas sub Specie bienti e suas mesuras diame das situagdes alemas, mas acima de tudo seu desavergonhado otimismo de filisteu, explicam-se a partir de certas impressdes de juventude, hibitos © fenémenos doentios passados. Quem uma vez adoeceu de hegelismo ¢ schleiermacherismo nunca mais fica completamente curado. fuss #8 ( eee) E assim também ele” trata a cultura, Comporta se como se a vida para ele fosse apenas ovium, mas sine dignitate: ¢ nem mesmo em sonho langa fora seu Jugo, como um escravo que mesmo depois de se libertar de sua miséria sonha com sua press ¢ suas pancadas, Nossos eruditos quase nZo se distinguem, e em todo easo ndo em seu favor, dos lavradores que querem aumentar uma pequena * Ohomem de cidncia contemparinen, wit Alemania. (S, i"T ) Propriedade herdada e assiduamente, dia'e noite a fie, se estorcam em lavrar campo. conduzir 9 arado e espicagar os bois. Gra, de mado geral. Pascal ¢ de opi- Avion que os homens cultivam com tanto afinco. seus afazeres e suas ciéncias Simplesmente para com isso fugir As perguntas mais importantes, que toda soli dio. todo Scio efetivo, Ihes imporia, justamente aquelas perguntas pelo porqué. pelo de onde, pelo para onde. Ads nossos eruditos. curiosamente, nem sequer Ocorre a mais proxima de todas as perguntas: para que serve seu trabalho, sua Pressa, seu doloroso atordoamento. Porventura nao scria para merecer o pio ¢ conquistzr posigdes dignas? Nao. verdadciramente nao. E no entanto vos esfor- gais ao mode dos indigentes ¢ famintos de pio, ¢ até mesmo arrebatais com tal avider ¢ sem nenhuma escolha os pratos da mesa da ciéncia, como se estivésseis a@ ponto de morrer de fome. Mas se vos, como homens de ciancia, procedeis com a ciéneia como os trabalhadores com as tarefas.que Ihes impdem sua indigéncia ¢ as necessidudes da vida, o que ser de uma civilizago que est condenada, preci- samente diante de uma tal cientificidade agitada, sem folego, que corre de ca para la, ¢ atG mesmo se debate cm estertores, a esperar pela hora de seu nascimento ¢ redengdo? Para ela ninguém tem tempo — ¢ no entanto o que ha de ser, em geral, a cigncia, se no tem tempo para a civilizagdo? Respondei-nos, pela menos aqui; de onde, para onde, para que toda a ciéneia, se nio for para levar a ci ilizagao? Ora, talvez entio A barbaric! E nessa diregao vemos ja a comunidade erudita Pavorosamente avangada, se pudermos pensar que livros tdo superficiais como 0 de Strauss dio satisfagao a seu grau atual de civilizagao, Pais precisamente nele encontramos aguela repelente necessidade de moderacio ¢ aquela tolerancia casual, ouvida com meia atencdo. para com « filosofia ¢ a civilizagao e em geral para com toda sericdade da existéncia. Isso nos faz lembrar a vida em sociedade das classes eruditas, que, quando a linguagem especializada se cala, s6 dao teste- munho de cansago, gosto pela diversio a toda prego, de uma meméria desbastada € uma experitncia de vida desconexa, Se se ouve falar Strauss sobre as quesides da vida, quer seja sobre os problemas do easamento ou sobre @ gucrra ou a pena de morte. cle nas apavora pela falta de toda experiéncia efetiva, de toda penetra «io original no homem: a tal panto todo seu julgamento é livrescamente uniforme, € até mesmo, no fundo, somente jornalistico; reminiscéncias literarias tomam © lugar de idéies ¢ entendimentos cfetivos, um fingide comedimento ¢ afetagho na mancira de expresso deveriam compensar-nos pela falta de sabedoria ¢ de matu- ridade de pensamento. Com que precisio tudo isto corresponde ao espirito dos tuidosos cendculos da ciéncia alema nas grandes cidades! Com que simpatia deve falar esse espirito dquele espirito: pois precisamente naquelas cidades a civiliza- sao mais se perdeu, precisumente nelas até mesmo a germinacdo de uma nova se tornou impossivel ze tao ruidosos que siio os preparativos das ciéncius aqui culti- vadas, de Lo numerasos que sio os rebanhos que invadem as disciplinas predile- tas, em detrimento das mais importantes. Com que lunterna seria preciso, aqui, procurar por homens que fassem capazes de um mergulho interior ¢ de um aban. dono puro uo génio ¢ tivessem a coragem ¢ forga suficientes para invocar demé. nios que fugiram de nosso tempo! Olhando de fora, encontra-se sem divida CONSIDERACOES EXTEMPORANEAS sf naquelas cidades toda a pompa da civilizagao, elas, com seus ‘@paratos imponen- tes,s¢ assemelham aos arsenais com seus canhdes ¢ instrumentos de guerra: vemos preparativos e uma assidua movimnentagao. como sé o céu fosse ser tomado de assalto ou w verdade trazida do fundo do pogo mais profundo, ¢ no cntanto ¢ na guerta que pior podem ser usadas as maiores méquings. F assim a civilizagao ele tiva, em seu combate, deixa de Jado aquelas cidades ¢ sente com 0 melhor de seus instintos que ali, para ela, nao ha nada a esperar e muito a temer. Pois a Gnica forma de civilizagao de cultura que pode ser oferecida pelo olho anagade e pela embotado drgio de pensamento da corporago dos cruditos ¢ justamente aguela euitura de filtsteu, cujo evangelho Strauss anunciou. Ge) ll — DA UTILIDADE EDESVANTAGEM DA HISTORIA PARA A VIDA (1874) soa) Se ¢ uma felicidade, se é uma ambigdo por uma nova felicidade em um senti do qualquer, aquilo que firma o vivente na vida eo forga a viver, entao talvez ne- ahuin fildsofo tenha mais raxdo do que 9 efnico: pois a felicidade do animal, que € 0 cinico perfeito. ¢ « prova viva da razdo do cinismo. A menor das felicidades, se simplesmente é ininterrupta e faz feliz inincerruptamente, é sem comparacda mais felicidade do que a maior delas, que venha samente como um episédio, por assim dizer como humor, como incident extravagante, entre o puro desprazer, a avider ¢ a privagio. Mas nas menores como nas maiores felicidades é sempre o mesmo aquilo que faz da felicidade felicidade: 0 poder esquecer ou, dito mais eruditamente, # faculdade de, enquanto dura a [clicidade, sentir a-historicamente, Quem no se instala no limiar do instante, esquecendo todos. os passudos, quem nao € capaz de manter-se sobre um ponto como uma deus de vitéria, sem verti gem e medo, nunca sabera o que é felicidade e, pior ainda, nunca fara algo que Lorne outros felizes, Pensem © exemplo extremo, um homem que niio possuisse a forga de esquecer. que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem niio acredita mais em seu proprio ser, nao acredita mais em si, vé tudo desmanchar-se em pontos mbveis ¢ se perde nesse rio do vir-a-ser: finalmente, como o bom uiseipulo de Herdclito, mal ousari levantar o dedo. Todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orginico requer nio somente luz. mas também escuro, Um homem que quisesse sempre sentir apenas historica- mente seria semelhante aquele que se forgasse a abster-se de dormir, ou ao animal que livesse de sobreviver apenas da ruminagio e ruminagie sempre repetida, Por- tanto; € possivel viver quase sem lembranga, ¢ mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas € inteiramente impossivel, sem esquecimento, simplesmente viver. Ou, para explicar-me ainda mais simplesmente sobre meu tema: Ad um grau de insdnia, de ruminagdo, de sentida histérieo, no qual o vivente chega a safer dano e por fim se arcuiaa, seja ele un homem ou um povo ov uma eivillzagdo. (. «Quem pergunta a seus conhecidos se desejariam viver mais uma vez of Ultimos dez ou vinte anos perceberd Facilmente quem dentre eles esti preparado para aquele ponto de vista supra-historico: decerto todos tesponderao: Nao !. mas esse Ndo!, cada um deles fundamentara diferentemente. Uns, talvez, por espera- CONSIDERACOES EXTEMPORANEAS 3 rem confiantes: “Mas os préximos vinte sero os melhores”; sdo aqueles de quem David Humezombeteiramente diz: And from the dregs of life hope to receive, Wat the first sprightly ranning could not give.® Vamos denomina-los homens histéricos; o olhar ao passado os impele ao futuro, inflama seu animo a ainda por mais tempo concorrer com a vida. acende a esperanga de que a justica ainda vem, de que a felicidade est atras da montanha em cuja direcdo ales caminham. Esses homens histéricos acreditam que o sentido da existéncia, no decorrer de seu proceso, vira cada vez mais a luz: eles sé olham para tris para, na consideragio do process até agora, entenderem © presente € aprenderem a desejar com mais veeméncia o futuro. Niio sabem quao a-historicamente, a despeito de toda a sua historia, eles pensam ¢ agem, ¢ como até mesmo sun Geupagao com a histiria nao estd a servigo do conheeimento puro. mas da vida. Mas aquela pergunta. cuja primeira resposta ouvimos, pode também ser res- pondida de outro modo. Decerto mais uma vez com um Nao! — mas com um Nao fundamentado de outro modo. Com o Nao do homem. supra histérieo. que nao vé-a salvagio no proceso, para quem o mundo em cada instante singular esta Pronto € aleangou seu termo, O que poderiam efsinar dez novos anas, que os dez anos passados néo foram capazes de ensinar Agora, se o sentido da doutrina é felicidade ou resignago, virtude ou expia So. quanto u isto os homens supra-historicas nunea estiveram de acordo entre si: mas, em contraposigio a todos os modos histéricos de considerar o que passou, chegam A total unanimidade da proposigdo: 0 passado ¢ o presente sio um ¢ 0 mesmo, ou soja, em toda diversidade so tipicamente iguais e. como onipresenga de tipos impereciveis, uma formagio estivel de valor inaiterado e significagdo eternamente igual, Assim como as centenas de linguas diferentes correspondem as mesmas necessidades tipicamente estdveis dos homens, de tal modo que um gue entendesse essas necessidades niio poderia aprender. em todas as linguas, nada de ovo: assim © pensador suprachistOrico ilumina toda a histéria das povos © dos individuas de dentro para fora, adivinkando com clarividéncia o sentido primor- dial dos diferentes hierdglifos ¢ pouco a pouco afastando-se, cansada, até mesmo da eserita de signos que continua a jorrar sempre nova: pois como, na infinita pro- fusiio do acontecimento, ndo chegaria ele a saciedade, & saturagdo. ¢ mesmo ao nojo! De tal modo que o mais temerario acabara, talvez, a ponto de dizer, com Giacomo Leopardi, a seu coragao; “Nada vive, que fosse digno De tuas emogdes, ¢ a Terra ndv merece um sé suspiro, Dor e tédio é nosso ser e 0 mundo é lode — nada mais, Aquieta-te * “8 dos detritos da vida espera arrecadar/O que o primelco sive jorro no pide dar” (N.do T:) 60, NIETZSCHE Mas deixemos 0 homem supra-historico com seu nojo ¢ sua sabedoria: hoje preferimos, por uma vez, alegrar-nos de coragao com nossa falta de sabedoria ¢ fazer para nds um bom dia, como se fassemos os alives ¢ em progrésso, como os adoradares do processo. Que nossa apreciagiio de histGrico seja apenas um preconceito ocidental; contanto que, no interior desses preconceitos. pelo menos fagamos progresso ¢ ndo nas detenhamos! Contanto que aprendamos cada vez melhor precisamente isso, a cultivar historia em fungae des fins da vida! Entio concederemos de bom grado aos supra-histéricos que cles possuem mais sabedo ria do que nds; caso pudermos. simplesmente, estar seguros de possuir mais vida do que eles: pois assim. em todo caso, nossa falta de sabedoria ter mais fruto do que a sabedoria deles. E para que no subsista nenhuma diivida sobre o sentido dessa oposigio entre vida e sabedoria, recorrerei a um procedimenta que s¢ con servou intacto através das idades, ¢ estabelecerei diretamente algumas teses. Um fendmeno histérico, conhecide pura ¢ completamente e resolvido em um fendmeno de conhecimento, &, para aguele que © conheoe, moro: pois cle conhe eeu nele a ilusdo, a injustica, a paixdo cega. ¢ em geral todo o horizonte sombrio © terrestre desse fendmeno ¢ ao mesmo tempo conheceu, precisamente nisso. sua potencia histériea. Agora. essa poténcia tornou-se para ele, 0 que sabe, impotente: talvez ainda niio para ele, 0 que vive. ‘A histéria pensada como ciéncia pura e tomada soberana seria uma especie de encerramento ¢ balango da vida para a humnanidade. A cultura historica, pelo contrario, s6 é algo salutar ¢ que promete futuro cm decorréncia de um poderoso © novo fluxo de vida. por exemplo. de uma civilizagdo vindo a ser, portant somente quando ¢ dominada e conduzida por uma forga superior e nia é ela mesma que domina e conduz. A historia, na medida em que esta 4 servigo da vida, esta @ servigo de uma potencia a-historica © por isso nunca, nessa subordinagio, podera e deverd tor nar-se ciéneia pura. como. digamos, a matemitica. Mas a questao: até que grau a vida precisa em geral do servigo da histéria,é uma das questdes ¢ cuidados mais altos no tocante 4 saiide de um homem, de um pove, de uma civilizagdc, Pois, no caso de uma certa desmedida de historia, a vida desmorona ¢ degencra. © por fim, com essa degeneragio. degencra também a prépria historia. Ges) Em que, entdo. ¢ itil ao homem do presente a consideragdo monumental do Passado, ocupar-se com os classicos e os raros de tempos untigos? Ele aprende com isso que 2 grandeza, que existiu uma ve; . €m todo caso, possivel uma vez €. por isso, pode ser que scja possivel mais uma vez; segue com dnimo sua mar. cha, pois agora a ddvida, que-o assalia em horas mais fraeas, de pensar que talvez queira @ impossivel é climinuda, Admitamos que alguém acredite que nao seria preciso mais do que cem homens pradutivos. educados ¢ atuantes em um novo espirilo, para dar cabo do cruditismo que precisamente agora se tarnou moda na CONSIDERACOES EXTEMPORANEAS. ot Alemanha; como ele haveria de se sentir fortalecido, 20 perceber que a civilizagao da Renascimento ergueu-se sobre os ombros de um tal grupo de cem homens. E, no entanto — para, nesse mesmo exemplo, aprender ainda algo de novo —, quio fluids ¢ oscilanie, quio inexata, seria essa comparagao! Quantas dife rengas é preciso negligenciar, para que cla faca aquele efeito fortificante. com que yioléncia é preciso meter a individualidade do passado dentro de uma forma uni- versal e quebra-la em todos os dngulds agudos e linhas, em beneficio da concor- dancia! No funda, alias, aquilo que foi possivel uma vez so poderia comparecer pela segunda vex como possivel sc os pitagoricos tivessem razio em acreditar que, quando ocorre a mesma constelagdo dos corpos celestes. também sobre a Terra tem de se repetir © mesmo, ¢ isso até os minimos pormenores: de tal modo Que Sempre, se Os outros tem uma certa disposi¢ao entre si, um estéico pode aliar se outra vez com um epicurista € assassinar César, ¢ sempre. em uma outra con- juntura, Colombo descobrird outra vex a América, Somente se a Terra iniciasse sempre de novo sua pega de teatro depois do quinto ato, se estivesse firmemente estabelecido que 9 mesmo nd de motivos, o mesmo deus ex machiaa, a mesma Catastrofe, retornassem a intervalos determinados, poderia o forte desejar a historia monumental em toda a sua veracidade icénica. isto é, cada fato precisamente des crito em sua especificidade ¢ singularidade: provavelmente, portanto, nao antes que os astrénomos se tenham tornado outra vez astralogos. Até entio, a historia monumental nao podera usar daquela veracidade total: sempre aproximard, uni- versalizara ¢ por fim igualaré o desiguals sempre depreciara a diferenga dos moti vos ¢ das ocasides, para, a custa das causas, monumentalizar os effectus, ou seja, apresenti-los come modelares ¢ dignos de imitagio: de tal modo que, porque ela prescinde © mais possivel das causas, poderiamos denomina-la, com pouco exage- ro, uma coletdnea de “efeitos em si”, de acontecimentos que em todos as tempos Faro efeito. Aquilo que é celebrado nas festas populares, nos dias comemarativos religiosos ou guerreiros. € propriamente um tal “efeito em si: é ele que nao deixa dormir os ambiciosos, que esti guardado como um amuleto no coragao dos em- preendedores, ¢ ndo a conexio verdadeiramente historica de causas ¢ efeitos que, completamente conhecida, s6 provaria que nunca saira de nove um resultado exa- tamente igual no jogo de dados do futuro ¢ do acaso. (ee) §4 (..,) Certamente um tal astro, um astro luminoso e soberbo, se interpds, a constelagiio efetivamente se alterou — pela cidncia, peta exigéncia de que a hist ria seje citncic. Agora nao & mais somente a vida que rege € refreia o saber em torne do passado: todas as estacas de limite foram arrancadas e tudo o que era uma vez precipita-se sobre e homem, Até onde houve um vir-aser, até 1é se deslo- caram, para tris, ao infinito, todas as perspectivas. Nenhuma geragio viu ainda um espetaculo tio inabarcavel come o que a ciéncia de vir-a-ser universal, a his- 2 NIETZSCHE t6tia. mostra agora: & certo, porém, que eta o mostra com a perigosa audacia do lema que escolheu; fat veritas, pereat vite? Formemos agora uma imagem do evento espiritual que se produriu, com isso. ne alma do homem modemo. O saber histrico jorra de fontes inexauriveis, sempre de novo ¢ cada vez mais; o que é estrangeiro ¢ desconexo entre si se aglo- mera; d memdria abre todas as suas portas ¢ no entanto ainda nag esta suficiente- mente aberta: a naturez2 se esforca ao extreme Para acolher esses hdspedes estrangeiros, ordena-los ¢ honra-los, mas estes mesmos esto em combate entre si, © parece necessiria dominar e vencer todos eles, para ndo perecer, ela mesma, nesse combate entre eles. O hibito a uma tal vida daméstica desordenada, tempes tuosa ¢ combatente, torna-se poueo a pouco uma segunda natureza, embora estgja fora de questo que essa segunda natureza é muito mais fraea, muito mais intran- ‘ila ¢ em tudo menos sadia do que a primeira. O homem moderns acaba por arraster consigo, por toda parte, uma quantidade descomunal de indigestas pedras de saber, que ainda, ocasionalmente, roncam na barriza, como se diz no conto, (Com esses roncos denuncia-se a propriedade mais propria desse homem moderna. ® notavel oposigao entre um interior, a que nao corresponde nenhum exterior, ¢ um exterior, a que no corresponde nenhum interior, opasi¢io que os povos anti- gos ndo conhecem. O saber, que ¢ absorvide em desmedida sem fome, ¢ mesmo contra a necessidade. ja ndo atua mais como motivo transformader, que impele Para fora, ¢ permanece escondido em um certo mundo interior cadtico, que esse homem medetno. com curiaso orguiho, designa como a “interioridade" que Ihe & propria. E certo que se diz, entio, que se tem 9 cantetido © que falta somente a forma; mas, em todo vivente, esta é uma eposigio completamente indevida, Nossa cultura moderna, par isso mesmo, nao é nada de vivo. Porque, sem aquela oposi 40, absolutamente niio pode ser concebida, isto é: nda éde modo algum uma cul- ‘ura efetiva, mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-ce-cultura, no sentimento-de-cultura, dela nao resulta nenhuma decisiio-de-cultura. Em contrapartida, aquilo que é efelivamente motivo e que, como ato, s¢ torna visivel na exterioridade, muitas vezes nao significa, entio, muito mais do que uma convengio indiferente, uma deplorivel imitacio ow mesmo um grotesco esgar. B a interioridade que repousa entao a sensagiio, igual 4 cobra que engoliu coelhos inteiros ¢ em seguida. quieta e serena, se delta ao sol ¢ evita todos os movimentas, além dos mais necessarios, © proceso interno: tal € agora a coisa mesma, tal é propriamente a “cultura”. Todo aquele que passa por ali tem um Gnico desejo — que uma tal cultura nao morra de indigestio, Que se Pense. por exemplo, um grego passando diante de uma tal cultura; ele perceberia que para os homens modernos ser “culto™ € ter uma “cultura histérica™ parecem lio solidarios como se fossem um sd ¢ somente se distinguissem pelo nimero d: Palavras, Se entdo ele pronunciasse sua frase: alguém pode ser muito culio ¢ no entanto nga ter nenhuma cultura histérica, acreditariam ndo ter ouvido bem ¢ Sacudiriam a cabega. Aquele pequeno povo bem conhecide, de um passado nio * Maja a verde. pevegien vida. (N. do Es) Sere Tw ee Re ae demasiado distante — refiro-me justamente aos gregos —, havia preservado em si, n@ periodo de sua maxima forga, um sentido a-histérico; se um homem Gontempordneo tivesse de retornar, por magia, iiquele mundo, provavelmente acharia os grepos muito “incultos”, com o que entdo o segredo tao meticulosa- mente oculto da cultura moderna seria descoberto. para a zombaria publica: pois, de nds mesmos, nds mademos nao temos nada: & somente por nos enchermos e abarrotarmos com tempos, costumes, artes, filosofias e retigides alheios que nos tornamos algo digno de atengia, ou seja, enciclopédias ambulantes, ¢ como tais. talvez, um heleno antigo extraviado em nosso tempo nos dirigisse a palavra, G..) G..) Em que situagdes desnaturadas, artificiais ¢, em todo caso. indignas ha de cai, em um tempo que sofre de cultura geral, a mais verdadeira de todas as cién- cias, a honrada deusa nua, a filosofia. Em um tal mundo da uniformidade exterior forgada, ela permanece mondlogo erudito do passeador solitario, fortuita presa de caga do individu, oculto segrede de gabinete ou inofensiva tagarelice entre anciaos académicos ¢ criangas. Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si mesmo, ninguém vive filosaficamente, com aquela lealdade simples, que obri- gava um antigo, onde quer que estivesse. o que quer que fizesse. a portar se como. estdico, caso tivesse uma vez jurado fidelidade ao Pértico, Todo filosofar moder- Ro est’ politica e policialmente limitado & aparéncia erudita, por governos, igre Jas, academias, costumes © covardias dos homens; cle permanece no suspiro: “mas se. ..", ou no reconhecimento: “era uma vex" filosofia, no interior da sultura histérica, ndo tem direitos, caso queira ser mais do que um saber interior- Mente recolhido, sem efeito; se, pelo menos, o homem moderne fosse eorajoso ¢ decidido, ele nao seria, também em suas inimizades, apenas um ser interior: cle a baniria; agora, contenta-se em revestir envergonhadamente sua nudez, ‘Sim, pen- Sa-se. escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente — ate al tudo & permitido; somente no agir, na assim chamada vida, é diferente: ali o permitido & sempre um 35, ¢ todo o resto é simplesmente impossivel: assim o quer a cultura histérica. So homens ainda — pergunta-se entao —, ou talvez apenas maquinas de pensar, de eserever ¢ de falar? Goethe diz uma vez de Shakespeare: “Ninguém mais que ele desprezou o traje material; cle conhece muito bem o traje humano intericr, ¢ ai todos sao iguais. Diz-se que ele mostrou com perfeigdo os romanos: nao acho, sao puros ingleses encarnades, mas, sem divida, homens sao homens desde o fundo, ¢ aos guais s¢ adapta perfeitamente também a toga romana”. Agora pergunto eu se seria sequer possivel apresentar nossos literatos, homens do pova, funcionarios, politicos de hoje, como romanos: isso nao pode ser, porque estes nao siio homens, mas apenas compéndios encarnados e, por assim dizer, abstragdes concretas, Se & que tém carater e modo proprio, isso tudo esti tao profundamente veulto que nao

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