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This article:

Costa, Sâmara Araújo - «Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë», pp. 637-660.

DOI 10.17990/RPF/2016_72_2_0637

Appeared in: Percepção e Conceito = Perception and Concept / Ed. Edgar


Marques, Christoph Asmuth & Álvaro Balsas, SJ. In: Revista Portuguesa de
Filosofia. – Braga. – Volume 72 (2016), Issue 2-3 [ISBN: 978-972-697-264-8;
eISBN: 978-972-697-265-5; ISSN: 0870-5283; eISSN: 2183-461X], published
by Axioma – Publicações da Faculdade de Filosofia.
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Revista Portuguesa de Filosofia, 2016, Vol. 72 (2-3), pp. 637-660.


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DOI  10.17990/RPF/2016_72_2_0637

Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë


SÂMARA ARAÚJO COSTA*

Abstract
This paper compares two accounts of perception, one by Alva Noë in Action in Perception
and another by Maurice Merleau-Ponty in his Phenomenology of Perception. I address the
difference between defending a thesis (as the former does) and developing a descriptive
phenomenology (as the latter does). Both authors take into account cases from Experimental
Psychology and deal with the problem of drawing philosophical conclusions from them. I
describe the link between perception and action in what Noë calls the Enativist thesis and
what he currently defends as Conceptual Pluralism, and I attempt to understand whether he
is committed to some kind of dualism in his account of the relationship between perception
and awareness, comprehension and self. My purpose here is to highlight relevant points for
a phenomenology of action in the works of both Merleau-Ponty and Alva Noë.
Keywords: Alva Noë, body skills, enativism, Maurice Merleau-Ponty, phenomenology of action,
perception.

1. Introdução

E
ste trabalho primeiro tentará mostrar a diferença da descrição
fenomenológica da ação e percepção de Merleau-Ponty e Alva Noë,
especificamente o que podemos chamar de esquema corporal no
primeiro e enativismo no segundo. Veremos que Noë quer apontar uma
tese, ao passo que Merleau-Ponty descrever o fenômeno. Na seção três
tento demonstrar algum tipo residual de dualismo quando Noë diz da
percepção estar atrelada a habilidade conceitual. Na quarta seção descrevo
o que Noë apresentou como pluralismo conceitual. Entendendo que os
acessos e habilidades culminam no modo pessoal digo da necessidade
de descrição das emoções para entendermos ações e percepção. Por fim

* Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil.


 samara.araujo@gmail.com

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proponho se a compreensão destes modos e habilidades culminariam na


descrição do self.1

2. Enativismo e Esquema Corporal

Em Action in Perception Noë está de acordo com a descrição feno-


menológica merleau-pontyana quando quer afirmar sua tese enati-
vista sobre a percepção ser uma forma de agir. O autor abre o capítulo
com uma citação de Merleau-Ponty, “a teoria do corpo é uma teoria da
percepção” e para ambos a percepção envolve ação e está ligada às habi-
lidades corporais. A percepção não pode ser meramente algo passivo, que
simplesmente acontece em nosso corpo. Noë, porém quer usar evidências
científicas para dar suporte à sua teoria da enação, quer uma ciência
exata, enquanto Merleau-Ponty recorre a uma fenomenologia descritiva.
Sobre esta diferença Merleau-Ponty diz: “É a ambição de uma filosofia que
seja uma “ciência exata”, mas é também um relato do espaço, do tempo,
do mundo “vividos”.2 “Trata-se de descrever, não de explicar nem de anali-
sar.”3
Ao longo da obra Noë deseja sustentar sua tese usando casos da psico-
logia experimental. Merleau-Ponty também faz uso destes casos em sua
fenomenologia, de épocas distintas obviamente. Será que as evidências
que Noë usa dão suporte à sua tese enativista? A questão que deve ser
colocada é: o quanto é difícil extrair conseqüências filosóficas de testes
empíricos, da psicologia experimental, porque o que estão a lidar são
relações causais, coisas deste gênero. Porém o que Noë quer é algo mais
forte, como defender uma tese. É importante saber se consegue fazê-lo, se
é uma, ou várias. Ele a defende de várias formas, e isso parece identificar
teses diferentes, parece difícil ser preciso. No primeiro capítulo de Action
in Perception a primeira afirmação é “perceber é um modo de agir”, mas
esta é a primeira de um leque de versões diferentes para afirmar o que
seria o enativismo, como:

Conteúdos de experiência perceptual são adquiridos graças a nossa


possessão de habilidades corporais. O que nós percebemos é determinado

1. Todas as traduções são de nossa responsabilidade.


2. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,
1999), .1
3. Ibid., 3

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pelo o que nós fazemos (ou pelo que nós sabemos como fazer); isto é,
determinado pelo o que nós estamos prontos para fazer.4

Neste momento vemos que Noë descreve o enativismo de várias


formas, como o que fazemos, o que sabemos fazer e o que estamos prontos
para fazer. O que parece serem três diferentes afirmações. Demonstra o
vínculo de percepção e ação nesse leque. Quando Noë fala sobre “o que nós
estamos prontos para fazer”, entendemos melhor nos termos de Merleau-
Ponty, quando diz que estamos sempre tencionados para o objeto, o corpo
sempre em tensão para realizar o movimento, e a tensão é aliviada quando
realizamos o que antes era intenção. Pensemos num atleta em tensão
corporal para o movimento, o corpo preparado para a ação, ao lançar-se
a tensão se transforma em movimento. Merleau-Ponty diz de intenciona-
lidade motora5, de como é este preparo do corpo sempre tensionado para
agir, diz de significação motora entrelaçada ao mundo. O autor provavel-
mente concordaria com a afirmação de Noë que a percepção é um modo
de agir, pois também diz: “a percepção e o movimento formam um sistema
que se modifica como um todo.”6

O fundo do movimento não é uma representação associada ou ligada


exteriormente ao próprio movimento, ele é imanente ao movimento,
ele o anima e o mantém a cada momento; a iniciação cinética é para
o sujeito uma maneira original de referir-se a um objeto, assim como a
percepção.7

Para Noë a percepção tem conteúdo representacional, ao contrário


de Merleau-Ponty. O conteúdo da experiência para Noë envolve habili-
dades corporais que determinam o modo como o mundo é apresentado.
Não exatamente como um representacionalista clássico segundo a filo-
sofia moderna, a exemplo de Descartes, que aceita a ideia de represen-
tações mentais. Para Noë e Merleau-Ponty não há representações mentais
neste nível na percepção, mas de uma forma moderada podemos ver que
é um tipo de representação a nível corporal no primeiro. Os dois negam
que a mente está carregada de representações quando agimos. Neste tipo
de percepção o mundo está a ser representado, ou apresentado de uma

4. Alva Noë, Action in Perception (Cambridge: The Mit Press, 2004), 14.
5. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,
1999), 159.
6. Ibid., 160.
7. Ibid., 159.

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certa forma, por exemplo: há um objeto a minha direita, outro à esquerda,


não é preciso usar conceitos, é esse tipo de representação que aceita Noë,
devido às capacidades motoras.
A experiência adquire conteúdo por habilidades corporais (“bodily
skills”). Este conteúdo da percepção é apresentado na teoria enativista
pelo modo como agimos, como sabemos fazer, como estamos preparados
para fazer. Lembrando que o saber fazer não é conceitual, é prático. Como
afirma Noë: “Ser um percebedor é compreender, implicitamente os efeitos
do movimento sobre estimulações sensoriais”8 Assim entendemos que é
necessário o movimento e seus efeitos que culminam na exploração do
mundo. Saber lidar com a iluminação e certos movimentos corporais
nos mostra o mundo, num jogo harmônico entre o mundo e corpo. Os
casos que Noë cita em Action in Perception no primeiro capítulo são casos
de desarmonia que pretendem demonstrar como a ausência de habi-
lidade corporais, de conhecimento sensoriomotor visual especificamente
impedem a percepção. Merleau-Ponty também defende esta harmonia
entre o mundo e o corpo como um conhecimento incorporado de explo-
ração do mundo. Estes movimentos de exploração do mundo pelo corpo
vão dando certo e temos sucesso ao perceber, assim criamos um back-
ground de vivências corporais. A fenomenologia de Merleau-Ponty remete
à descrição de um esquema corporal criado ao longo da vida com habili-
dades corporais que foram sedimentadas. Um processo de sincronização
entre o corpo e o mundo, pela exploração do mundo a partir de certos
movimentos e capacidades corporais adquiridas e retomadas pelo back-
ground. Aqui vou defender que as descrições de Noë confirmam muito
mais o que Merleau-Ponty chama de esquema corporal sedimentado.
Nossa habilidade de perceber, segundo Noë é constituído pela posse
desse conhecimento sensoriomotor. Falar que a percepção é constituída
por este conhecimento sensoriomotor é diferente de dizer que é conse-
qüente deste. O conteúdo da percepção é constituído por esta espécie de
conhecimento sensoriomotor. Essa afirmação tende a ser uma tese mais
forte que uma relação causal apenas, onde poderiam existir não somente
uma causa, mas, várias. É dizer que, de fato, para seres como nós, a
percepção se dá por este conhecimento sensoriomotor. Se não há conheci-
mento sensoriomotor, tal qual o conhecemos, não há percepção.
Ao lidar com sujeitos percebedores, Noë quer distinguir estes
conteúdos da percepção, e afirma que um percebedor normal obtém de sua

8. Alva Noë, Action in Perception (Cambridge: The Mit Press, 2004), 1.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 641

percepção conteúdo representacional genuíno. Dito isto, vai diferenciar


uma percepção normal “genuína” de outra que não é. Tenta demonstrar
isso através de relatos de casos e outras experiências. Incluso apresenta
casos de sujeitos que não percebem o mundo de um modo generalizável,
tentando demonstrar que por não terem este conhecimento sensoriomotor
quer concluir que estes sujeitos não são percebedores genuínos.
O primeiro caso que cita é o que chama de cegueira experiencial,
onde sujeitos que tem o aparelho visual perfeito, mas segundo Noë não
possuem conteúdo perceptual genuíno. A exemplo de quando estamos
num nevoeiro forte, podemos nos mover, mas não percebemos a não ser
“uma brancura homogênea”9, para o autor este não seria um conteúdo
representacional genuíno. O que pode ser contestado, afinal, estamos expe-
rienciando algo, estamos a ver a neblina. Noë também compara este efeito
da percepção com o experimento chamado Ganzfeld10, aparentemente
trata-se de uma privação sensorial, mas a princípio se pensarmos em
termos fisiológicos, o cérebro procura estruturas, como não as encontra,
passa a produzir. No exemplo do experimento Ganzfeld e da neblina há
representações e estruturas, no primeiro seria o da luz vermelha e no
segundo a própria neblina. Há percepção de algo. No Ganzfeld o cérebro
parece se confundir perceptualmente na sua relação com o mundo que é
alterada, uma espécie de blackout aconteceu em muitos casos do experi-
mento, seguido de alucinações, conteúdos mentais. Noë afirma que visual-
mente estamos como cegos, perdemos o acesso à percepção genuína_ fiz
o experimento e somente entrei num estado meditativo, estava a pensar
na minha vida, exceto num único momento que assustei com algo que
pareceu um vulto rápido, o fato é que estava predisposta e ansiosa em
criar estados mentais, alucinações, mas não, e devo fazê-lo novamente_
enfim, estava sempre ouvindo os ruídos, havia conteúdo num primeiro
momento, ao contrário do que diz Noë.
Para a tese enativista de Noë há dois tipos de cegueira, a primeira
causada por lesões no aparato sensitivo, incluindo cataratas e até lesões
cerebrais e a segunda causada por ausência de estimulação sensoriomotora.
Quando há incapacidade de coordenação entre movimentos e pensa-

9. Alva Noë, Action in Perception (Cambridge: The Mit Press, 2004), 4.


10. O experimento é citado por Noë em Action in Perception para apontar sobre a privação
de estímulos sensoriais padronizados e como propicia impressões geradas interna-
mente no indivíduo, algumas das quais poderiam ter origem extrassensorial. A técnica
foi idealizada por Wolfgang Metzger, em 1930, como parte de sua investigação sobre a
teoria gestalt, descrita também por James Jerome Gibson em 1979.

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mento, o autor chama de cegueira experiencial e é com estes relatos que


tentará fundamentar sua tese. Noë cita casos de pacientes que eram cegos,
com cataratas que impedem o input-output de imagens. Removendo-as
estes pacientes deveriam ver, o que não acontece. Em dois dos três casos
citados por Noë, os pacientes Virgil e S. B.11 não percebem normalmente,
ou não possuem conteúdo representacional genuíno após as intervenções
cirúrgicas. Noë então quer concluir que é porque não possuem o conhe-
cimento sensoriomotor visual necessário para a percepção e aponta que
não há percepção, ou seja, visão por falta de habilidade corporal. O fato
é que acabaram de ser operados, há a questão fisiológica localizada,
precisam se recuperar da operação e depois precisam de uma aprendi-
zagem visual. Precisam aprender a ver. O que parece favorecer muito
mais a noção de esquema corporal de Merleau-Ponty. Se há recuperação
da visão é preciso um ajuste entre o esquema corporal e o mundo, estes
indivíduos estavam harmonizados tatilmente, não visualmente. O vínculo
entre ação e percepção que quer Noë é visto, mas para defender sua tese
forte parece não ser suficiente os casos de cegueira experiencial. Estes
pacientes precisam reorganizar o conhecimento sensoriomotor visual, ou
seja, mudar o esquema corporal, adquirir habilidades necessárias para
aprenderem a ver com os olhos.
O paciente Virgil volta para o esquema corporal táctil que tinha antes
da operação, se nega a modificá-lo, retoma o uso da bengala, caminha
com os olhos fechados, o que impede-o de aprender a ver com os olhos
por varredura. Quando Virgil tentava ver, por seus relatos percebemos
que traduz muito uma expressão de Merleau-Ponty que diz do cego ver
com as mãos. Virgil via as partes do objeto uma de cada vez, ao olhar seu
cachorro via a pata, a cauda, a orelha, percorrendo o objeto como se fosse
uma exploração tátil, linear, diferente da visão onde ocorre a exploração
dos objetos de forma mais holística, espacial. Vejamos esta passagem que
me referi de Merleau-Ponty sobre pós-operatório em pacientes também
de cataratas:

O espanto do doente, suas hesitações no novo mundo visual em que ele


entra mostram que o tato não é espacial como a visão. “Após a operação”,
diz-se, “a forma tal como é dada pela visão é para os doentes algo de
absolutamente novo que eles não relacionam à sua experiência tátil”; “o
doente afirma que vê, mas não sabe aquilo que vê (...) Ele nunca reco-

11. São casos de pacientes de Oliver Sacks, Noë utiliza os casos na tentativa de defender
sua tese.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 643

nhece como tal a sua mão, ele só fala de uma mancha branca em movi-
mento”. Para distinguir pela visão um círculo de um retângulo, é preciso
que ele siga com os olhos a extremidade da figura, como o faria com a
mão, e ele sempre tende a pegar os objetos que se apresentam ao seu
olhar. O que concluir daqui? Que a experiência tátil não prepara para a
percepção do espaço? Mas, se ela não fosse de maneira alguma espacial,
o sujeito estenderia a mão em direção ao objeto que lhe mostrassem?
Esse gesto supõe que o tato se abre a um meio pelo menos análogo
àquele dos dados visuais. Os fatos mostram sobretudo que a visão não
é nada sem um certo uso do olhar. Os doentes “primeiramente vêem as
cores assim como nós sentimos um odor: ele nos banha, age sobre nós,
sem todavia preencher uma determinada forma de uma determinada
extensão”. Primeiramente, tudo está misturado e tudo parece em movi-
mento. A segregação das superfícies coloridas, a apreensão correta do
movimento só vêm mais tarde, quando o paciente compreendeu “o que é
ver”, quer dizer, quando ele dirige e passeia seu olhar como um olhar, e
não mais como uma mão.12

O paciente não possui conhecimento sensoriomotor visual e não


percebe genuinamente porque não modificou o seu esquema corporal,
o que é muito difícil, mas não impossível. Dependerá do engajamento
dos pacientes, outra noção merleau-pontyana, os pacientes citados por
Noë não conseguiram modificar os esquemas, é trabalho duro de adap-
tação e modificação de um conhecimento incorporado durante uma vida.
A conclusão que Noë quer tirar destes casos é que estes pacientes têm
cegueira experiencial, não possuem conteúdos representacionais genuínos
na percepção porque não possuem conhecimento sensoriomotor. O que
parece afirmar muito mais a descrição fenomenológica merleau-pon-
tyana de esquema corporal que é sedimentado. As habilidades corporais
envolvem um processo, Merleau-Ponty diz de esquema corporal como
algo que é estabelecido ao longo da vida. Referindo-se mais a segunda
parte da tese enativista de Noë que afirma a percepção “como saber fazer”.
Merleau-Ponty também descreve o corpo numa relação com o ambiente
que é adquirida num percurso de vivências formando o esquema corporal
que abrange estas habilidades adquiridas, um aprendizado, um back-
ground de capacidades, de movimentos, de exploração do mundo que
estão arraigados. Portanto, percebo que o que quer retirar Noë destes
casos no primeiro capítulo de Action in Perception favorece muito mais a

12. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 300-301.

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644 Sâmara Araújo Costa

noção de esquema corporal que diz Merleau-Ponty do que a tese enativista


propriamente.

3. Ainda no dualismo corpo e mente

Como apontou Merleau-Ponty, o “mediador do mundo é corpo”13,


não a mente, ou qualquer tipo de representações mentais. É nesta direção
que a fenomenologia da percepção merleau-pontyana aponta o corpo
como ser no mundo. Há em sua filosofia a busca de romper com uma
forte intelectualização da percepção, inserida na tradição filosófica por
Descartes, Kant entre outros. Merleau-Ponty não quer tratar do signi-
ficado do mundo, seja pela capacidade de conceituar, julgar, representar
como acessos primordiais ao mundo, como norteadores principais na
percepção. O autor diz de um contato ingênuo com o mundo através de
uma percepção pré-reflexiva, numa tentativa de resgatar e privilegiar um
contato natural com o mundo pelo corpo, ou podemos dizer uma mente
incorporada. A retomada da primazia da percepção, que é, sobretudo uma
fenomenologia do corpo, não de um corpo descrito pela ciência, carte-
siano, mas um corpo próprio que é vivido. O mundo está aí, muito antes
de pensarmos nele, estamos ancorados com um corpo e possuímos habili-
dades corporais para explorá-lo.
Hubert Dreyfus (2013) vai desenvolver a ideia de background
perceptivo sedimentado formando habilidades corporais e apontar
como estas são armazenadas em nós. Essa ideia continua o trabalho de
descrição do esquema corporal de Merleau-Ponty na contemporaneidade.
Para Dreyfus o conhecimento conceitual se passa somente no novato,
no expert, as habilidades sensoriomotoras e seu conhecimento está
incorporado, não reflexivo. O autor descreve a diferença entre estágios
iniciais na aprendizagem e outros onde as habilidades estão como que
encarnadas no sujeito. Também criticando o excesso de intelectualismo
na percepção como o faz Merleau-Ponty. É um trabalho de continuar a
descrição desta consciência pré-reflexiva, da percepção focada na ação,
onde as nossas habilidades sedimentadas são retomadas. Num trabalho
do corpo em tensão para efetuar a ação, de uma intencionalidade motora.
Merleau-Ponty também descreve a ação habitual em sua obra. As habi-
lidades corporais são encarnadas pela repetição naquele que executa o

13. Ibid., 203.

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movimento sem nenhum trabalho reflexivo. Merleau-Ponty entende que


sempre atribuímos significado ao mundo, isso não é negado, porém esta
seria uma habilidade simbólica, cultural. Há a ênfase de uma significação
motora que é primordial no contato corporal com o mundo.
Alva Noë diz de um modo de julgar, uma habilidade de acesso ao
mundo que é conceitual, continuando Descartes, Kant, e autores mais
atuais como John McDowell. No sexto capítulo de Action in Perception
(2004) Noë já defende que a percepção requer uma prática do uso de
conceitos, mas não parece dar conta da demonstração. Vejamos, o autor
retoma o tema para sua defesa com o nome Concept Pluralism, Direct
Perception, and the Fragility of Presence (2015). Noë está definindo o que
chama de acionismo, um novo nome para sua tese enativista. Ele quer
neste artigo demarcar o que chama de compreensão para explorar o
mundo, inserindo um novo tipo de intelectualismo, dizendo que perceber
não é mais somente habilidades corporais e também não se trata de repre-
sentação do movimento. O pluralismo conceitual de Noë envolve habili-
dades de acesso. Os conceitos são inseridos como técnicas que permitem
nosso acesso ao que existe. Favorecendo a compreensão do que enten-
demos como mundo.14 Conceitos são acrescentados ao enativismo e agora
este é chamado de acionismo.
Noë vai retomar o que é conceito em Kant, a relação com o juízo,
como é o nosso acesso ao que é dado, remetendo à lógica transcendental.
O conteúdo do mundo dado através do conceito, a coisa não acessada, o
conceito como uma técnica da racionalidade. Lembrando também Frege
onde os conceitos são usados como valor de verdade. Noë afirma que
Frege parece romper com Kant, pois não quer psicologizar os conceitos
e sim logicizá-los. Frege continua mantendo a ligação de conceitos com
julgamento e verdade. O conceito para Frege não é psicologizado, mas
não significa que as ideias e sentimentos não estejam vinculados com a
compreensão e julgamento. Mas os conceitos são mais objetivos em Frege.
Não importa o que são os conceitos exatamente, mas, sim o que
compreendemos como suas funções. A racionalidade está intrincada com
a capacidade de dar significação ao mundo, nomear, conceituar. Merleau-
Ponty talvez não estivesse de acordo com esta capacidade de compreensão
conceitual tão explícita que propõe Noë, como numa consciência carte-
siana que trabalha com uma percepção pura do mundo. Chamo de

14. Mundo cultural e natural entrelaçados na experiência descritos na fenomenologia de


Merleau-Ponty.

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percepção pura o que seria dado pelas sensações sem uma intervenção do
eu, sem algo que seria um sentimento de fundo, como afirmou Damásio.15
Para Merleau-Ponty consciência não é algo localizado, material, é antes
uma relação do ser com o mundo. O mundo é sempre visto com signi-
ficado, há um sujeito que percebe, e é influenciado por como seu corpo
reage e entende como sendo seu tal sentir. Remetendo ao background de
vivências que é acumulado formando um esquema corporal com uma
situação que foi dada e também é criada, o engajamento do corpo num
modo cultural, e natural que seria pré-reflexivo. Merleau-Ponty não deixa
escapar estas nuances e unifica-as numa experiência totalizante. É sempre
a percepção num trabalho constante com o cogito para buscar a verdade
do fenômeno. A compreensão não é puramente reflexiva e conceitual para
Merleau-Ponty, é dado a um certo indivíduo, com certas vivências, engajado
no mundo com seu corpo e suas habilidades de acesso, formando um
conjunto, um estilo, um modo de ser no mundo. O modo de compreender
conceitualmente o mundo que diz Noë, como habilidade de acesso, estaria
para Merleau-Ponty sempre relacionado com o esquema corporal e a
situação do sujeito, não há uma compreensão pura, um conceituar puro, a
percepção está entrelaçada ao mundo por um corpo que também é sujeito,
que não pode ser reduzido a sujeito ou a objeto, como apontou Barbaras:

Portanto, o corpo, em última análise só pode ser descrito como através


da exclusão simétrica dos dois termos de oposição que não está sujeito,
não é o objeto, mas a mediação do sujeito e do objeto tais como o lugar
ainda misterioso, onde seu relacionamento está vinculado.16

Merleau-Ponty quer tirar a primazia da intelecção como acesso ao


mundo para o devolver ao corpo, temos uma consciência porque temos
um corpo, a consciência só pode ser vista quando colocada no mundo,
se demonstra no trato do corpo como ser no mundo. Há habilidades
corporais e intelectuais, obviamente, Merleau-Ponty não rejeita a capa-
cidade de conceituar o mundo como uma técnica, como o diz Noë. Mas
esse acesso não é o acesso primordial ao mundo para Merleau-Ponty.

“compreender” é reapoderar-se da intenção total — não apenas aquilo


que são para a representação as “propriedades” da coisa percebida, a

15. Ver António Damásio, O Sentimento de Si: O corpo, a Emoção e a Neurobiologia da


Consciência.
16. Renaud Barbaras, De l’être du phénomenène (Grenoble: Editions Jérome Millon, 1991)
21-36.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 647

poeira dos “fatos históricos”, as “idéias” introduzidas pela doutrina —,


mas a maneira única de existir que se exprime nas propriedades da pedra,
do vidro ou do pedaço de cerca, em todos os fatos de uma revolução, em
todos os pensamentos de um filósofo.17

O corpo como núcleo da percepção merleau-pontyana não é um corpo


como ideia, representado. Mas o que é a representação? São imagens
que formam nossa consciência, estão em nosso pensamento e podemos
associá-las ao mundo externo? A nossa relação com o mundo se dá dessa
forma? Quando Merleau-Ponty aponta a pintura de Cézanne18 como um
dos maiores fenomenólogos, o autor nos diz das imagens que nos mostram
o mundo e assim este pode ser descrito de forma muito mais robusta, pois
é este o acesso relevante da consciência, o mundo dado como imagens.
Mas o que realmente o autor propõe não tem nada a ver com represen-
tação e sim um voltar a ter mais atenção ao acesso pré-reflexivo. Não cris-
talizado em ideias, palavras, rotulado. O mundo é o que vemos e sentimos,
mas também as coisas todas que se passam no exterior do pensamento, há
um mundo dos homens e um mundo natural entrelaçados. O mundo não
é o que pensamos dele. Pensamento é um mundo dos homens. O acesso
que quer Merleau-Ponty é de uma percepção atenta ao mundo natural
que é base para todas as criações de nosso mundo dos homens, cultural.
A relação de mente e mundo é um problema que permanece, a mente é
também a inteligência do corpo, a percepção e o mistério da união e sepa-
ração dos sentidos também está claro para o autor.
Noë parece ir para o mesmo caminho que sugeriu McDowell em Mente
e Mundo (1994) de uma maneira mais sutil, porque ainda permanece a
chamar a sua tese de acionismo. Sabendo da importância da percepção
que nem sempre está claramente conceituada, do corpo, do movimento
para a percepção, enfim, as habilidades de acesso não são excessivamente
conceituais em Noë como o faz McDowell. Os juízos não guiam totalmente
a percepção, há um modo ativo que diz do pessoal, e é isso que eu gostaria
de enfatizar. Quando digo que não há percepção pura, ou conceituação
pura, quero dizer do modo pessoal influenciando todas as habilidades de
acesso, algo que já disse Merleau-Ponty:

17. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 16.
18. Ensaio A dúvida de Cézanne de M. Merleau-Ponty.

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A cada instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou


pessoas cuja presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia
eles não se misturam ao mundo, eles estão adiante do mundo, no teatro
do imaginário. Se a realidade de minha percepção só estivesse fundada
na coerência intrínseca das “representações”, ela deveria ser sempre
hesitante e, abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a
cada momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos
aberrantes que primeiramente eu teria excluído dele. Não é nada disso.
O real é um tecido sólido, ele não espera nossos juízos para anexar a si
os fenômenos mais aberrantes, nem para rejeitar nossas imaginações
mais verossímeis. A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem
mesmo um ato, uma tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre
o qual todos os atos se destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo
não é um objeto do qual possuo comigo a lei de constituição; ele é o
meio natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as
minhas percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas o “homem
interior”, ou, antes, não existe homem interior, o homem está no mundo,
é no mundo que ele se conhece.19

Aponto que não há uma relação direta entre a habilidade de


conceituar o mundo como habilidade de acesso numa técnica eficaz da
qual diz Noë, lógica e objetiva. Uma capacidade judicativa isenta de uma
consciência que remeterá ao problema da subjetividade. Há problemas
envoltos e percepção não se resumiria simplesmente em conhecimento
dos conteúdos gerados por habilidades corporais e conceituais. É um
trabalho enorme ao tentar descrever vários aspectos de como o homem
habita o mundo. Não podemos esquecer o trabalho das emoções e de uma
percepção não puramente impessoal, há uma composição de uma indivi-
duação, do que chamamos de eu. As emoções envolvem um sujeito que é
sempre situado, engajado em um modo de ser no mundo, que evidencia
seu estilo de vida, seu corpo, sua percepção de si e significação de tudo
com que entra em contato em seu campo fenomenal.
Noë está resgatando uma significação conceitual como modo de
percepção do mundo. Será que é uma percepção com intelectualidade
inflacionada no contato com o mundo que evitava Merleau-Ponty? Tendo
a pensar que sim, mas inevitável, sim, o homem é consciência de algo,
tenho consciência porque sou um corpo entrelaçado ao mundo, às coisas

19. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 6.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 649

e como as percebo, porém este algo é significado por uma consciência que
também é sujeito. Como afirma Merleau-Ponty:

A consciência, tematizada pela reflexão, é a existência para si. E, com o


auxílio dessa idéia da consciência e dessa idéia do objeto, mostra-se facil-
mente que toda qualidade sensível só é plenamente objeto no contexto
das relações de universo, e que a sensação só pode ser sob a condição de
existir para um Eu central e único.20

A dualidade parece ser inevitável com a racionalidade vista de um


lado e o corpo de outro expressando uma subjetividade que é algo mais
que os próprios movimentos e exploração do mundo. A racionalidade
envolve a capacidade de significação dos próprios atos e sentimentos, dos
outros em relação, de o que eu chamo de uma predisposição e manu-
tenção de um sentimento de fundo.21 Com a capacidade de elaboração da
resposta a cada estímulo. Há o pessoal que parece no natural e remete ao
corpo e todas as elaborações dos sentidos, por outro lado um eu virtual
na relação intersubjetiva e cultural. O corpo é presença da própria cons-
ciência. Enfim, o pessoal e o corpo são a mesma coisa, nunca devem ser
objetificados e, compreendidos como objetos separados22. Como vemos:

O sujeito da percepção permanecerá ignorado enquanto não soubermos


evitar a alternativa entre o naturante e o naturado, entre a sensação
enquanto estado de consciência e enquanto consciência de um estado,
entre a existência em si a existência para si.23

4. O Pluralismo Conceitual de Noë

A tese acionista de Noë (2015) afirma que a percepção é a atividade


de explorar o ambiente fazendo uso das contingências sensoriomotoras.
É um tipo de conhecimento que diz de como o nosso corpo lida com estas
contingências e padrões de alterações do movimento para exploração do
mundo. Afirma um tipo de conhecimento que remete à nossa capacidade

20. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 295.
21. Retomando a expressão de António Damásio.
22. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,
1999), 281.
23. Ibid.

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de perceber e lidar com as alterações do ambiente. Depois disso o autor


quer entender outra forma de conhecer a percepção e diz de planejamento
e pensamento. Vai evidenciar o que é o conhecimento prático e não propo-
sicional na percepção e o que é um tipo de intelectualização da percepção.
Retomando autores como John McDowell sobre o modo de compreensão
de a percepção ser conceitual. A questão é: não ter habilidades conceituais
não impediriam a percepção. Como o próprio Noë disse no cap. 6 de
Action in Perception há muitos filósofos que descrevem uma percepção
não conceitual. E é importante considerar a relação de conceituar e julgar.
Cito o autor:

Perceptual experience is not a kind of judgment, nor is it judgment-de-


pendent_ that is, you don’t need to judge that p to have a perceptual expe-
rience as of p. But concepts are creatures of judgments, that is, as a Kant
said, they are in nature just predicates of possible judgment; therefore,
you don’t need concepts to have perceptual experience.24

A capacidade de julgar estaria então separada da experiência


perceptiva como exemplos de vários casos de ilusão, como o da ilusão
das linhas de Müller. Temos o conhecimento das duas linhas serem do
mesmo comprimento, mas na percepção somos confundidos a perceber a
primeira maior que a segunda.

Para Merleau-Ponty as duas linhas “não são nem iguais ou desi-


guais”25pois são postas num contexto distinto comparado com a vida coti-
diana e mesmo se não fosse o caso, sabemos que parecem existir muitas
situações confusas, citando a percepção num nevoeiro, como também
fez Noë. Por outro lado Merleau-Ponty afirma que nenhuma paisagem é
confusa a não ser para nós, e retoma o papel da atenção dito por psicó-

24. Alva Noë, Action in Perception (Cambridge: The Mit Press, 2004),183.
25. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,
1999), 27.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 651

logos, afirmando que o indeterminado também deve ser visto como um


fenômeno positivo.
Noë parte da ideia de Wittgenstein que compreender é uma habi-
lidade, na seção 6.7 de Action in Perception defende que conceituar é uma
habilidade prática e vai desenvolver melhor esta noção no artigo sobre
pluralismo conceitual. Ele diz de técnicas de acesso ao mundo como uma
forma de compreensão do mundo. Será isso tão claro, a nossa habilidade
de conceituar culmina numa forma de compreensão? É claramente uma
forma de ter acesso ao objeto aplicar seu conceito? Noë afirma que a
percepção necessita de dois aspectos para acontecer, há uma variedade de
habilidades, tanto sensoriomotoras como conceituais em exercício. Afirma
que a compreensão e percepção estão atreladas. Parece retomar a dife-
rença de mundo natural e mundo dos homens que já havia mencionado
Merleau-Ponty, o confronto de uma vida humana cultural e outra natural
sempre associadas. Noë quer neste artigo abordar um “sistema unificado
tendo em conta a percepção, consciência, pensamento e ação”26. Pretende
definir o que seriam as habilidades de acesso como capacidades e o que
entende por compreensão conceitual. Quer demonstrar mais claramente
o que seria a relação entre percepção e compreensão, o que seria um tipo
de intelectualismo, e o chama de pluralismo conceitual, este que também
se baseia no que chama de acionismo, voltando à tese enativista de Action
in Perception.
Abordando o que concebe como intelectualismo de Kant e Frege,
no que diz respeito do julgamento estar associado aos conceitos, parece
propor que julgar conceitualmente não parece ser a única forma de
compreensão. É claro que há formas de acessar o mundo que são neces-
sariamente conceituais, como ler por exemplo. Significados e sentidos são
acessados por habilidades conceituais, exigindo categorização, raciocínio
e julgamento. Como afirma Noë sempre vemos as coisas como isto ou
aquilo.27O mundo sempre aparecendo com significado, mas o autor não
quer falar de representação, como também Merleau-Ponty. A capacidade
de conceituar é como uma engrenagem do motor percepção. Não é negada
a ligação entre julgamento e modos de perceber. A percepção permite o
julgamento. Por outro lado Noë vai defender que julgar e perceber são
coisas diferentes, como no exemplo da Ilusão de Müller, mas ambas são

26. Alva Noë, “Concept Pluralism, Direct Perception, and the Fragility of Presence,” Open
Mind 27, (2015): 2. DOI 10.15502/9783958570597.
27. Ibid., 3.

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formas de compreensão. Afirmando que há outras formas de compreender


que estão ligadas ao emocional, ou melhor, ao pessoal ou interpessoal.
O que novamente retoma a noção de situação em Merleau-Ponty, onde
o esquema corporal e engajamento expressam uma situação com signi-
ficado vivida pelo sujeito, envolvendo sentidos dados por cada um a sua
própria vida e que se coloca em ação também por uma compreensão da
própria situação, como sujeito sempre situado.
Noë delimita quatros modos de compreensão que seriam o modo
de julgamento, o modo de percepção, o modo ativo e o modo pessoal.
Penso que o mais genuíno seria o último, envolvendo a noção de
situação e engajamento já desenvolvida por Merleau-Ponty que nasce no
âmbito das vivências de cada um. E não o conceitual, de julgamento e
compreensão como quer Noë. Ao fim desenvolverei melhor o que entendo
de a compreensão como condição de possibilidade e necessidade se passar
no modo pessoal. Enfim, quando Noë cita Stanley diz que só podemos
falar de ação hábil quando há compreensão, quando o agir é guiado pela
apreensão de verdades. Este seria um tipo de intelectualismo inflacionado,
já que ação se torna hábil é por repetição.28 Noë diz:

Que há compreensão, e há conceitualidade, em trabalho sempre que


pensamos, percebemos, agimos e falamos, como temos vindo a consi-
derar. Conceitualidade, compreensão e conhecimento não permeiam
apenas os mentais, mas nossas vidas e nosso ser.29

É preciso pensar qual a relação entre a visão intelectualista no


empreendimento da ação como compreensão e no que abrange a vida
emocional como uma demanda própria de cada indíviduo. Afirmar que a
percepção e ação são baseadas em atos de julgamento parece ser simples
demais. E a pergunta principal segundo Noë é:

Será que precisamos de pensar que o que garante e assegura o envolvi-


mento do entendimento é o fato de que nossos seeings, ações, e senti-
mentos são guiados por julgamentos?30

28. Ver Komarine Romdenh-Romluc, Merleau-Ponty and Phenomenology of Perception.


(London-New York: Routledge Taylor e Francis Group, 2011), 82. Conhecimento prá-
tico não é constituído por crenças.
29. Alva Noë, “Concept Pluralism, Direct Perception, and the Fragility of Presence,” Open
Mind 27, (2015): 5. DOI 10.15502/9783958570597.
30. Ibid.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 653

A questão é que conceitos auxiliam no entendimento da percepção


e Noë não nega que há uma relação entre julgar e perceber, a percepção
propicia a faculdade de julgar. E mesmo que perceber e julgar sejam coisas
distintas, estão associadas. Lembrando, por outro lado que o que torna a
compreensão da percepção possível não é simplesmente a capacidade de
julgar ou conceituar. Há várias formas de compreensão, incluso o modo
emocional, pessoal como quero enfatizar. Quando a ação envolve emoção
a percepção é modificada. Sartre já dizia de uma magia que se coloca no
ar31 quando a emoção toma a percepção. Merleau-Ponty não possui uma
fenomenologia das emoções, mas sabe da influência destas na percepção
e há muitas descrições de como estas modificam os aspectos de como o
mundo nos aparece saliente.32

5. Emoções e percepções

Jesse Prinz (2004) é um destes autores que retomam a importância


das emoções na percepção e como influenciam a ação. As emoções podem
motivar a ação, ou inibi-la. Quando as percebemos mudamos a forma
como percebemos o mundo, e como agimos. Como afirma:

I have said out that emotions are motivating. They impel us to act. Being
afraid can usher in an urge to flee, and being angry can usher in an urge
to fight. In contrast, there is nothing very moving about seeing a red
patch or hearing a tone. When paradigm cases of perception are moti-
vating, it is usually in virtue of inciting an emotional response.33

Prinz também incorre em afirmar que as respostas para ação podem


não ser diretamente influenciadas pela emoções, mas podem instigar para
ações apropriadas, preparando nosso corpo para uma ação. Emoções
como percepção de affordances, por exemplo, ao sentir as mudanças em
nosso corpo provocadas pelas emoções, algumas respostas são requeridas,
e vistas no comportamento que poderá refletir uma resposta esperada.
Neste sentido, a relação da emoção e percepção não pode ser ignorada. As
respostas motoras dadas à percepção das emoções culminando em ação
impelida. O autor aponta que emoções se relacionam com a ação em parte

31. Ver Esboço de uma teoria das emoções de Jean-Paul Sartre.


32. Ver a Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty.
33. Jesse J. Prinz, Gut Reactions: A Perceptual Theory of Emotion (Oxford: Oxford University
Press, 2004), 228.

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por seus marcadores de valência, que seriam mais sutis quando perce-
bemos alterações corporais e agimos, neste caso, nem sempre fazemos o
registro destes estados e a ação poderá vir como um imperativo. Vemos
isto mais claramente no próprio texto:

Valence markers are another story. They do not register bodily states.
Their content is best understood as imperative. It can be glossed by
the instruction “More of this!” in the case of positive valence, or “Less
of this!” in the case of negative valence. Valence markers are internal
commands to sustain or eliminate a somatic state by selecting an appro-
priate action. Valence markers are not perceptual states. They are not
states in our somatosensory systems. They can become decoupled from
embodied appraisals, and they can be affixed to other kinds of mental
states. I concede, then, that emotions contain a nonperceptual compo-
nent.34

Mesmo afirmando que possa existir um componente não perceptual


nestas emoções, Prinz afirma que é completamente aceitável afirmar que
as emoções são percepções e que podem nos obrigar a agir. Podemos
retomar o quanto Merleau-Ponty em sua fenomenologia insistiu em
noções de engajamento e situação que referem a como o indivíduo se
coloca significativamente para a ação, a situação do sujeito se relaciona
com o sentido e trato com as próprias emoções. A percepção não é nunca
pura neste sentido, pois há um indivíduo que sente e se emociona sem ter
acesso ao porquê de muitas de suas reações frente a estas. Assim, a noção
de esquema corporal de Merleau-Ponty também pode ser vista como uma
forma de reagir emocionalmente. A percepção das próprias emoções,
conscientes ou não, estarão abrangidas, abarcando o que seria a persona-
lidade, o estilo do indivíduo, com respostas emocionais que muitas vezes
são retomadas de acordo com o background, as vivências adquiridas,
como habilidades sentimentais. Nos modos de compreensão que afirma
Noë este seria o modo pessoal, emocional, apontado aqui também como
uma habilidade de explorar o mundo.
Quero aqui ressaltar a importância da significação da situação de um
sujeito engajado envolto por emoções, há a percepção de um sentimento
de fundo da consciência, como afirmou Damásio, que cria a base do que
o indivíduo entende como o próprio eu. A significação da própria situação
com criação de uma narrativa própria com sentido dado aos fatos da

34. Ibid., 229.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 655

própria vida, o que lhe aparece, como percebe o mundo e pensa o mundo,
suas relações interpessoais e percepção de si. Assim vemos a percepção
como uma trama muito mais complexa, além de capacidades corporais e
conceituais. Envolve como um sujeito engajado em sua situação sente e
percebe o mundo, significando-o, numa relação de conhecimento de si, do
mundo, entrelaçados. Quando penso no que seria o modo pessoal que disse
Noë, e como seria este tipo de compreensão, influenciando a percepção,
seja de si ou dos fatos, significando as aparências e sentindo-as integradas
a uma individuação. Este modo de compreensão pessoal seria o elo pelo
qual todos os outros modos estariam submetido. As coisas vistas, o vivido
pretendido numa narrativa, traçado por um eu que sente, que pensa e é seu
corpo. Os pensamentos, ou pluralismo conceitual quem acessa é o sujeito
que não se sabe como cria sentido. Como afirmou Prinz sobre o papel das
emoções para a percepção e sua relação que impele a ação. A ação é com
significado para o sujeito, envolve a capacidade de significação da própria
ação, uma narrativa dos fatos. A percepção está atrelada ao tempo, é um
fluir com os eventos que são vistos e sentidos, significados por um eu
incorporado que não se manifesta apenas com habilidades conceituais ou
motoras. Mesmo quando a significação é motora, como na ação habitual,
aparece a subjetividade na forma que resulta o comportamento.
O esquema corporal merleau-pontyano é descrito atrelado a uma
função simbólica. A capacidade de significar o mundo influenciando
como sentimos o mundo, emocionando e agindo, sendo uma pessoa com
uma história. A história que o próprio sujeito narra a si próprio, dando
significado aos seus fatos, às suas vivências. Diz de uma situação criada
e dada, do nosso engajamento associado tanto ao corporal, conceitual,
emocional. Sobre o comportamento afirmou Merleau-Ponty, o homem não
é o homem interior, o homem está no mundo. Não há síntese da percepção
pela capacidade de conceituar, julgar, refletir. A síntese nunca é completa.
Pensar e perceber não se distinguem para Merleau-Ponty.35
Penso que o modo pessoal na compreensão da percepção seria o modo
mais ativo, não o modo de julgamento, como entende Noë. A capacidade
de julgar passa pela subjetividade e narrativa do sensível. Por outro lado
a própria narrativa não se compromete com as outras, eu posso confa-
bular a compreensão de minhas vivências, meus comprometimentos com
minhas próprias emoções. Nós não nos conhecemos e tampouco podemos

35. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 287.

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ter uma narrativa do mundo, uma fenomenologia descritiva parte de uma


subjetividade que percebe. A descrição pura de uma percepção, de um
vermelho, por exemplo, é distinta de significações mais complexas, como
relações interpessoais. Estamos em comunidade, fazemos filosofia para
homens pensarem que se conhecem mais. Descrever é significar. Como
afirmou Merleau-Ponty, a fenomenologia não tem fim, estamos no fluxo, o
homem se mostra em ação, nossas significações narram uma tentativa de
história que quer ser conhecida por seus próprios agentes.

6. Modos de compreensão culminam em self ?

A fenomenologia não faz teses, isso é ter a pretensão de conheci-


mento do real a partir de hipóteses, concepções. As habilidades humanas
de acesso ao mundo não podem ser reduzidas às definições como: o
homem como ser racional, econômico, entre outras, seja qual for. O pensa-
mento da ciência como pretensão de acesso a um conhecimento universal
puro, se afasta da filosofia que pode considerar todos os aspectos da exis-
tência, do homem como um agente que explora o mundo a partir da suas
próprias vivências, dos seus próprios sentidos, com todas as relações. O
conhecimento científico, como pretensão de uma compreensão do mundo
que seria acessada por todos e assim aceita, parece ser mais ingênuo que a
descrição de um acesso ao mundo pré-reflexivo e primordial.
Quero chegar ao ponto em que poderia afirmar que as habilidades
de compreensão do mundo, incluindo as capacidades sensoriomotoras,
conceituais, emocionais, sejam quantas forem, capacidades da percepção,
culminam em individuação. Não são apenas sensações no próprio corpo
ou reflexões, mas um eu que tenta se narrar num tempo que flui, e só
se percebe porque age e é consciência de si antes de ser do mundo. A
descrição desta individuação não seria apenas uma descrição do mental,
mas de um mental incorporado como podemos pensar em Merleau-Ponty,
e ainda a perspectiva de uma subjetividade na sensibilidade.
Voltando ao pluralismo conceitual de Noë, quando diz que conceitos
e habilidades sensório-motoras são do mesmo gênero, porque são habi-
lidade de acesso, talvez a relação não seja assim tão objetiva. Dizer da
capacidade de conceituar como habilidade de acesso ao mundo, não há
problemas em afirmar nisso, mas é preciso entender que os acessos motores
são distintos dos conceituais. Como podemos lembrar da imaginação que
se liga a uma elaboração de uma resposta corporal. Enfim, vejo o modo
pessoal interferindo em todas as elaborações mesmo que numa camada

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 657

pré-reflexiva. Atrelar a percepção e a capacidade conceitual e tratá-las


separadas do modo pessoal, que ainda não sabemos o que é exatamente e
como aparece, não me parece ser uma descrição correta. Ainda é tratar a
percepção de um modo intelectualista. Precisamos incluir a subjetividade
as emoções e imaginação na tentativa de descrever melhor o que seria a
percepção como habilidades e capacidades de acesso. Descrever como o
modo de compreensão pessoal aparece na ação e percepção é também
uma tentativa de uma fenomenologia da mente. O desafio é descrever o
mental incorporado e a subjetividade.
Quando Noë diz de capacidades sensoriomotoras e conceituais como
modos de compreensão da percepção quer fazer com que sua tese acio-
nista esteja cada vez mais completa. O fato é que ao dizer de quatro modos
de compreensão da percepção, ou ainda afirmar que possam existir
outros, sejam estes modo ativo, modo de julgamento, modo de percepção,
e talvez o modo pessoal (emocional e também interpessoal) apontá-los
não é o suficiente, é preciso descrevê-los. Pressupomos que o modo de
julgamento esteja atrelado à capacidade de conceituar. Mas para conhe-
cermos os modos e habilidades precisamos de sua descrição fenomeno-
lógica, o que não aconteceu especificamente. Apontar que para obtermos
a compreensão precisamos da capacidade de conceituar e dizer que este
seria o modo intelectualista, será que o passo de demonstrar descritiva-
mente que se há compreensão há conceituação é tão explícito?36 Noë se
pergunta por que pensamos que o julgamento é o modo de compreensão
mais ativo, e diz que o julgar está sempre em jogo. Mas não descreve
como. Quando ele retoma o julgamento como uma habilidade e condi-
ciona-o à percepção, quase sempre diz da percepção de um mundo que
é dado sempre conceitualmente, mas há quem descreva percepção não
conceitual, e ele sabe disso.
Conhecimento prático envolve julgamento, dizer “eu posso” é dife-
rente de “eu conheço”. Noë afirma a relação de conhecimento conceitual
com know-how e diz de ser um acesso mais qualificado. Uma alternativa
para o intelectualismo é o que Noë chama de pluralismo conceitual afir-
mando que há diferentes modos de compreensão genuínos, mas não
os descreve. O conhecimento ganha expressão tanto no fazer como no
conceituar. Conceitos para o autor são como habilidades que garantem o
acesso ao conhecimento. Como também a presença das coisas exigindo

36. Merleau-Ponty amplia a noção de significação e compreensão pela ação habitual, é


o corpo que compreende o movimento neste tipo de ação, ver na Fenomenologia da
Percepção.

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habilidades sensoriomotoras para serem exploradas, um trabalho do


corpo, não de representações mentais.

A cena está presente para nós na forma de um campo de jogo. Isto é a


fragilidade da presença. Esta presença não é dada a nós somente graças
ao que pode acontecer em nossos cérebros, graças a eventos neurais
desencadeados por eventos ópticos. Esta presença é adquirida graças a o
que nós sabemos fazer. A base de nosso acesso hábil no mundo é, preci-
samente, nossa posse de skills of acess.37

O mundo nos aparece e é explorado proporcionalmente por nossas


habilidades de acesso, sejam capacidades conceituais ou sensoriomotoras.
Esta é uma descrição que soma a sua tese chamada enativista, incluindo
conceitos. Quando Noë diz de essas habilidades de acesso culminarem
em modos de compreensão, a coisa parece complicar, porque ele não liga
essa compreensão à subjetividade. O autor nos ofereceu a importância
dos fatores do leque da tese enativista, que agora chama de acionista e
ressaltou a prioridade do saber fazer, que também retoma o esquema
corporal merleau-pontyano. Como há o esquema corporal há também um
esquema conceitual, ambos como possibilidades para o engajamento. A
compreensão, seja ela conceitual ou sensoriomotora é entrelaçada por
outros vetores que precisam ser observados, como as emoções, imagi-
nação, e um fundo simbólico que seria o self.
A minha observação é que Noë afirma que estas habilidades culminam
em vários modos de compreensão que ainda não foram descritos. Entendo
sua ambição de se fazer uma teoria da percepção mais unificada possível.
A meu ver o que unifica, dizer de modos de compreensão apontam para
alguém que compreende, um self, individuação. O modo pessoal abrange
todos os outros, não é apenas uma modalidade da experiência, quem possui
todas as habilidades é um corpo sujeito. Afirmo que quando queremos
falar do que é compreensão, esta noção não pode permanecer expressa
por dicotomias, ora aparece como motora, ora conceitual. O modo pessoal
não seria um dos componentes de um leque de modos de compreensão,
mas o que dá forma a todos os outros. Uma tese unificada da percepção e
ação deveria incluir a descrição das emoções como percepção, de como
significamos e centralizamos todo nosso esquema conceitual e motor. O
eu incorporado influenciando as habilidades de acesso e motivando ou

37. Alva Noë, “Concept Pluralism, Direct Perception, and the Fragility of Presence”, 27.

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Ação e Percepção em Merleau-Ponty e Alva Noë 659

não a ação, numa descrição do que poderia nos levar a compreender o


modo pessoal. Algo já indicado na fenomenologia de Merleau-Ponty:

Uma percepção sensível ou um raciocínio não podem ser fatos que se


produzem em mim e que eu constato. Quando depois eu os considero,
eles se distribuem e se dispersam cada um em seu lugar. Mas isso é apenas
o rastro do raciocínio e da percepção que, tomados em sua atualidade,
deviam, sob pena de se desmancharem, envolver de um só golpe tudo
aquilo que era necessário à sua realização e, conseqüentemente, estar
presentes a si mesmos sem distância, em uma intenção indivisa. Todo
pensamento de algo é ao mesmo tempo consciência de si, na falta do que
ele não poderia ter objeto. Na raiz de todas as nossas experiências e de
todas as nossas reflexões encontramos então um ser que se reconhece
a si mesmo imediatamente, porque ele é seu saber de si e de todas as
coisas, e que conhece sua própria existência não por constatação e como
um fato dado, ou por uma inferência a partir de uma idéia de si mesmo,
mas por contato direto com essa idéia.38

Ao falar de modos de compreensão, acho preferível estarmos atentos


de como estes modos são, seja acompanhados por uma auto-compreensão.
É isto que nos faz retomar o trabalho fenomenológico de descrição dos
fenômenos. Precisamos dos dados que o sujeito reporta acerca do que
lhe acontece ao perceber, significando algo de certo modo, se isso pode
ser chamado de fenomenologia do self, ainda não sei. A ideia de que seria
o sujeito que é capaz de compreensão ou auto-compreensão, em relação
com a percepção e com a ação, ter um self, uma imagem, mais ou menos
conceitual, mais ou menos experiencial, é o que precisa ser descrito.
Termino com uma citação de autores que se importam com este apon-
tamento, e retomo, a intenção da fenomenologia merleau-pontyana de
descrição do corpo no mundo vivido, e não explicado como querem tais
filósofos, pois a descrição correta do fenômeno já o revelaria:

Se o self é real ou ficção, uma coisa ou várias, é claramente algo que


precisa ser explicado, por pelo menos duas razões. Primeira, há um
inegável sentido de self que acompanha a experiência e ação. Se a feno-
menologia aponta para algo real, então uma total explicação da cognição
deve ser necessária tendo em conta o self. Quanto aos que afirmam que o
self tem um estado ficcional, eles ainda precisam explicar porque a ficção
surge, e para quem. Neste caso, voltamos à fenomenologia, e para a

38. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percepção (São Paulo: Martins Fontes,


1999), 496-497.

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660 Sâmara Araújo Costa

neurofisiologia tendo em conta os mecanismos responsáveis pela impli-


cação (ecológica e proprioceptiva) estruturas da percepção e ação, para
memória autobiográfica, e para a geração de narrativas.39

Referências

Barbaras, Renaud. De l’être du phénomenène. Grenoble: Editions Jérome Millon, 1991, 21-36.
Dreyfus, Hubert. A Phenomenology of Skill Acquisition as the basis for a Merleau-Pontian
Nonrepresentationalist Cognitive Science. University of California, Berkeley. 2013.
Gallagher, Shaun & Zahavi, Dan. The Phenomenological Mind: An Introduction to Philosophy of
Mind and Cognitive Science. New York: Routledge-Taylor & Francis Group, 2008.
Merleau-Ponty, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Trad. Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Noë, Alva. Concept Pluralism, Direct Perception, and the Fragility of Presence. In T. Metzinger &
J. M. Windt (Eds). Open Mind, 27 (T). (Frankfurt am Main: MIND Group, 2015).
DOI 10.15502/9783958570597
Noë, Alva. Action in Perception. Cambridge: The Mit Press, 2004.
Prinz, Jesse J. Gut Reactions: A Perceptual Theory of Emotion. Oxford University Press. 2004.
Sartre, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre:
L&PM, 2008.

39. Shaun Gallagher e Dan Zahavi, Phenomenological Mind: An Introduction to Philosophy


of Mind and Cognitive Science. (New York: Routledge-Taylor & Francis Group, 2008) 213

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