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Num contexto global de pane de projeto de Fear ate OREM COE, cre URS eNO abrir outros caminhos da convivialidade, Peete ete reer Cesta ordens: cultural, social, economica e politica, criando um novo espago de significacdes ¢ ordenando uma nova escala de valores, desta vez fundada em su Pertenece ro\walecanrtes AFROTOPIA Coomera eee te tenet para aqueles que as habitam. Commer tet econo Peer W|I PE): E 1) qq! == AFROTOPIA Felwine Sarr © n-l edigées, 2019 sn 978-85-66943-97-9 Emboraadote a matoria dos usosedtorias do tmbico brasileiro, ‘nel edigdesndo segue necessariamente as convengbes das insiuigdes normativas, pois considera a edigio um trabalho de ‘ragio que deve interagt com a pluralidade de linguagens ea cexpecificidade de cada obra publicads, cooRDENAGKO EDITORIAL Peter Pl Pelbart Ricardo Muniz Fernandes DIREGAO DE ARTE Ricardo Muniz Fernandes ASSISTENTE EDITORIAL Inés Mendonga TRADUGAO Sebastito Nascimento PREPARAGAO Flavio Taam ievisAo Pedeo Taam PROJETO GRAFICO Erico Peretca A reprodusio parcial deste loro sem fins lucrative, para uso privado ou coleiv, em qualquer meia pres eerrnic, etd ‘autorizada, dee que ctadaa font, Se for necesiria a reprodugéo na integra, slictacc entrar em cntato com os editore ‘ns orange pu dene cae da Progen dea I Pabeion 2019 Cresson de Andrade de sit Fas du Brn da enti dc Mine de Europe des Afr Evang Fae lio, pblada no ambit do Programs de Apo 3PblicagSo 2019 (Glo Drummond de Andrade do Into Francs do Bras cntou ‘cao opin do Minin da oro eds Reade Exterior 1" edigio | setembro, 2019 so lialetoaneles Aaa ee Seco te ea Sebastiao-Nascimento... eae eeeeeee rent Sx A Dialo Diop, sicémoro do Sahel... Nee CULL Oren A PROPOSTA DA MODERNIDADE Um vinculo tepensado com a tradigio » A reinvengao de si « Uma modernidade africana? So eer eee tea mutagio cultural EAT Ge eee end On ee grafia ¢ trafico transatlintico + Asraizes de um presente + Histeres Peer econo it ee eee Tete ert seu substrato cultural « corn Re sce ene tee ecient Frcccreu ata ERO hc ni een eee eres as economias africanas em seu contexto cultural Soret ory CUT UL octane teamed AREVOLUCAO SERA INTELIGENTE Livrar-se do odor persistence do pai HABITAR A PROPRIA CASA Ree RT cane Ua OL A sedugao das formas acabadas ETS PH ET UT TTT Pe eee ne en ere ECR enced eee eee econ A presenga cm si mesmo: o verdadeiro incremento MALLY iii ay Fe ee PENSAR A AFRICA Acercar-se a um pensamento que se debruca sobre o continente afticano é uma tarefa érdua, tio tenazes sao os esteredtipos, os cli- chés eas pseudocertezas que, como um halo nebuloso, cingem sua realidade. A partir dos anos 1960, no alvorecer das independén- cias afticanas, a vulgata afropessimista, sem qualquer resistencia, passou a qualificar a Africa como um continente mal encetado, & deriva; como um monstro agonizante cujos derradeiros estertores anunciavam o fim préximo, Os pressigios funestos a respeito de seu devir se sucederam no ritmo das convulsdes e crises vividas pelo,continente. No auge da pandemia da AIDS, chegou-se a vaticinar a extingdo pura e simples da vida humana sobre 0 con- tinente africano. Caso esse reseruatério de misérias se dissolvesse sob o efeito de uma calamidade sanitéria, no fundo, nada seria capaz de garantir que o resto da humanidade teria melhor sorte. Chega a ser eufemismo ressaltar a violéncia simbélica com que 0 destino de centenas de milhées de pessoas foi considerado, tra- tado, representado, inscrito no imagindrio coletivo sob a égide do fracasso, do déficit, da caréncia, da deficiéncia e da tara congénita por parte dos meias de comunicasio e de nma Farra literarara Essa propensio dos outros a fazer do continente afticano um espago de projecio de seus fantasmas é antiga. Jé desde a remota antiguidade, Plinio, o Velho, dizia que: “Da Africa vem sempre algo de novo.” Ao redigir sua Histéria Natural, pensava nas estra- has espécies animais que o continente jamais parava de reve- lar a esse mundo romano que o adentrava pela via de sua costa mediterranea. Ao longo de séculos de conquistas, exploradores ‘© aventureiros povoaram essa Africa misteriosa com seus fantas- ‘mas mais primitivos ¢ mais escabrosos. O continente das mara- vilhas se tornou para muitos deles 0 exutério de uma selvageria que revolvia as entranhas das nagées civilicadas. Absolutamente tudo era permitido nesse continence: pilhagens, saqueamentos devidas ¢ de culturas, genocidios (como o dos hereros),estupros, experimentos cientificos, todas as formas de violencia nele vive- Fam tranquilamente seu apogeu, Mais recentemente, a0 sabor de um vento que parece ter vVitado, uma ret6rica de euforia e otimismo veio 3 tona. O Futuro seria doravante afticano. O continente concretiza avangos em termos de crescimento econdmico e as perspectivas por lé sio boas. Os economistas avaliam que a Africa serd 0 proximo destino dos capitais internacionais, pois ali obterao rentabi- lidade mais alea que em qualquer outro lugar. Ela abrigaré um crescimento acentuado que j parece se esgotar na China ¢ nos BRICS. Contando com a disponibilidade de recursos naturais ¢ cde matérias-primas, o continente afticano sero futuro Eldorado do capitalismo mundial, Doce pressigio de uma prosperidade vindoura em tempos de intempéries, ‘Também nesse caso, 0 que se exprime so sonhos produzi- dos por outros, durante uma noite de sono em que os prine Pais inceressados nao foram convidados para o anseio coletivo. Ceramente, a prosperidade ¢ um desejo compartilhado por todos os povos. Menos certo ¢ que todos compartilhem da vin- culagio 4 dimenséo econdmica de uma ordem mecanicista ¢ zacionalista que submere o mundo ¢ seus recursos a uma explo- rasio forgada em proveito de uma minoria, ao mesmo tempo que desequilibra as condigdes que viabilizam a vida. ‘Tendo em vista que o continente africano é o futuro ¢ que ele serd, essa retdrica diz obliquamente que ele nao é, que sua concomitancia com tempo presente é lacunosa. Os termos de intensificagao com que o adornam, num tempo vindouro, indi- cam acaréncia atual. A deslocalizagao de sua presenga no fueuro a realidade perpetua o juizo debilitante a que é submetido. De diversas maneiras se diz cotidianamente a milhées de pessoas que a vida que levam nao é apreciével. Alguns africanos, 20 ado- tar essa terminologia tomada de empréstimo ao economismo € A abstragio estatistica, parecem ter aderido a essa perspectiva invertida do humano, que consagea o primado da quantidade sobre a qualidade, do ter sobre o ser; sendo sua presenga no mundo avaliada somente em pontos do PIB ou em participagio no comércio internacional. Os discursos atuais sobre a Aftica sio dominados por este duplo movimento: a fé num fucuro radiante ¢ a consternagio dance de um presente que parece castico, atravessado por con- vulsdes as mais diversas.! A tentagio é grande, nesse contexto, de ceder a0 catastrofismo, ou 2 um otimismo ingénuo, seu duplo invertido. O que, sim, é certo é que as crises por que passa 0 con- tinente africano sio o sinal de que ele se enconera em trabalho de parto. Qual anjo ou gual monstro dard huz?O claro-escuro sob cuja gide nos agitamos por ora ainda no nos permite adivinhar. Porém, mais do que de um déficit de imagem, é de um deficit de pensamento e de produgio de suas proprias metéforas do facuro que padece o continence africano, da auséncia de uma teleonomia? auténoma e endégena, resultante de uma reflexio propria sobre seu presente, seu destino e sobre os futuros que 1 Cases politcas muleformesjihadismo, guerascivis, ma governanga,indigéncia material 2Finaidade de narureza mecinica em ago na narurezs. Por extensio, Ginalidade que 05 grupos ou os individuos aribuem a si mesmos. n confere a si mesmo. As sociedades humanas desde sempre se transformam de modo orginico, fazem frente aos desafios que se thes impdem e a cles respondem, sobrevivendo ou sucumbindo. Nessas condigées, por que articular um pensamento dedi- cado ao presente e 20 futuro do continente africano? Porque as sociedades se instituem antes de mais nada em seus imagindtios,> que sao as forjas das quais emanam as formas que as sociedades assumem para nutrira vida e aprofandé-la, para alcar a aventura social e humana a outro patamat. Esses imagindrios evoluem fambém porque se projetam no futuro, concebem as condigées de sua perenidade e, para tanto, transmitem um capital intelec- tual ¢ simbélico as gerages seguintes, sustentam um projeto de sociedade e de civilizagio, edificam uma visio do homem definem as finalidades da vida social. Cumpte, pois, descolar-se de uma dialética da euforia ou do desespeto ¢ de empreender uum esforgo de reflexio critica sobre si mesmo, sobre as pré- prias realidades e sobre a propria situagio no mundo: pensar-se, Fepresentar-se, projetar-se. De antemio, assumir 0 continente tal como nos é dado neste momento exato de sua evolugio his- t6rica ¢ tal como o moldaram séculos de relagdes de forga ea combinasio de dindmicas internas e externas, Ao enxergé-lo como é, ¢ no como deveria ser, ele revela os arcanos de suas dindmicas profundas. Pensar a Africa é caminhar numa alvorada incerta, a0 longo de uma via balisada na qual o caminhante é instado a apressar 0 asso para alcangar 0 trem de um mundo que, 20 que parece, jé partiu ha alguns séculos. £ mondar uma floresta densa e cerrada, E percorrer uma erilha no meio de um nevoeiro; um lugar prenhe 3 Comelius Castoriadis, A intinizdo imagindria da scedade, ered. Guy Reynaud, Sto Paulo: Paz e Tena, 1982 ome : © de conceitos, de injungées que supostamente refletem as teleolo- gas socais, um espagosaturado desentido, Aspalavras-chave “desenvolvimento, “economicamente emet- gente’, “erescimento, “lua contra a pobreza de certosestratos’ sio esses conceitos cruciais da episteme‘ dominante da época. steme essa que remete, em primeira linha, a esse sonho que 0 Ocidente exportou para o mundo a partir do século xv, a ebo- que de uma vantagem recnolégica ou a golpes de porretee de canhao quando fosse necessirio. Mas foi sobretudo ao imbuir 6s imagindrios coletivos de sua versio do progresso humano que cle venceu uma batalha decisiva. E desse estado de sitio que ser necessiio escapar para abrir espaco para outras possibilidades. Pensar a amplidio é conceber a vida, o vivivel, 0 vidvel, de outro modo que soba égide da quantidade eda vides. pensar uma vitalidade a ser levada ao seu ponto mais alto, Considerar aventura social como um dever de nutrir a vida, dissemind- -a, propagil,fazé-la crescer em qualidade a0 inserila nama perspectiva mais elevada, Na alvorada da histéria humana, os africanos colonizaram territorios hostis, obtiveram uma primeira vitéria contra a natureza ao estabelecerem sociedades durdveis. Permitiram, assim, & humanidade sobreviver e se perenizar? Foi seu primeito legado, ances do grande éxodo continental do Homo sapiens, Hoje, urn legado ulterior seria seguinte: nestes ‘Aint mang dcr tm perdu pests Nam into asamp 6 fra Se pent, dercepecn mundo‘ um conju eon ede cen damian uma pcs cueooendedeforea butte amples acu Vr Mil Foca Ai pleo ciéncias bumanas, trad. Salma Tannus A ple a ee = Un nie ka a ‘Mh i al: Maris Foes 5; aru dasa ead La Felipe DacaNes Pepa Lion Ve Cento d iy Be 1972 Sob lies fans - Hira dam coment bo Tea, 198 e reais tempos de crise de sentido de uma civilizagao técnica, oferecer uuma perspectiva distinta da vida social, emanada de outros uni- ‘versos mitolégicos e tomada de empréstimo 20 sonho comum de vida, de equilibrio, de harmonia e de sentido. O Afroropos é esse outro lugar da Attica, cujo advento precisa ser acelerado para a realizagio de suas auspiciosas potencialida- des. Fundar uma utopia nao é de modo algum se entregar a um doce devaneio, mas pensar espacos do real a serem aleangados por meio do pensamento e da ago; é discernir seus sinais ¢ seus sgermes no tempo presente, a fim de fomenté-los. A Afrotopia é uma utopia ativa, que se atribui a tarefa de, na realidade afticana, trazer & luz os vastos espagos do possivel e fecundé-los. O desafio consiste, pois, em articular um pensamento rela- cionado ao destino do continente africano, examinando o poli- tico, o econdmico, o social, o simbélico, a criatividade artistica, ‘mas também identificando os locais de onde se enunciam novas priticas, novos discursos e onde se elabora essa Africa vindoura. Tiata-se de decifrar as dindmicas em curso, identificar a emergén- cia de uma novidade radical, pensar o contetido dos projetos de sociedade, analisar 0 papel da culeura nessas mutagSes, empre- ender uma reflexio prospectiva. Trata-se também de pensar um projeto de civilizagio que coloque o homem no centro de suas reocupagdes, a0 propor um melhor equilibrio entre as distin- tas ordens (0 econdmico, o cultural, o espiritual) e 20 articular uma relagio diferente entre 0 sujeito e o objeto, a archée 0 novo, © espirito ¢ a matéria. Realizar essa empreitada é necessdrio, a fim de desobstruir horizontes ¢ contribuir para a transforma- 40 positiva das sociedades africanas, pois essa é a responsabi dade primordial dos intelectuais, pensadores e artistas afticanos. Aambigio deste ensaio ¢ abarcar os contornos desse projeto, CONTRA A MARE Para ser fecundo, um pensamento do continente afticano carrega em sia exigéncia de uma absoluta soberania intelectual. Trata-se de conseguir pensar essa Africa em movimento para além das bengalas linguisticas que sio: desenvolvimento, emergente, ODM, ODD... que bem podem ter servido até aqui para descrevé-la, mas serviram acima de tudo para projetar os mitos do Ocidente sobre as trajetdrias das sociedades africanas. Esses conceitos nao foram capazes de dar conta das din&micas em curso no conti- nente, de refletir sobre as mutages profundas que ali se operam, tio ligadas que so a uma cosmologia ocidental que condiciona sua leitura do real, Ao inscrever a marcha das sociedades afti- canas numa teleologia de pretensoes universais, esas categorias, hhegemdnicas por sua prevensio de qualificar e descrever as dina- micas sociais, negaram a criatividade propria dessas sociedades, bbem como sua capacidade de produzir as préprias metéforas de seus futuros possiveis, Esses conceitos tropesaram na com- plexidade cultural, social, politica e econdmica das sociedades afticanas, pois o que fizeram foi fundamentalmente tomar de cempréstimo a outros universos mitolégicos sua chave de leitura. ‘Um de seus principais defeitos estérelacionado ao que se pode- ria chamar de seu viés quantofrénico: essa obsessio por numerar, avaliar, quantificat, colocar tudo em equagoes. Essa vontade de resumir as dindmicas sociais em indicadores que reflitam sua 1 Objetivos de Desenvolvimento do Milénio e Objetivos de Desenvolvimento Sus- tentivel, especeivamence. [N22] ® coment ” 18 evolugio. Quantificar ¢ witl para prever, gevir, antecipar, estimar a distincia percorrida e 0 caminho que falta, alocar determinados tipos de bens; contudo, ao operar essa redugéo matemética da realidade,o risco é 0 de sub-repticiamente transformar medidas imperfeieas e meras referéncias em finalidades da aventura social. O que colocaa questéo da avaliagio da vida social e de sua evo- lugio com as categorias habituais que sio os indicadores socio- ‘econémicos ¢ sociopoliticos. Um dos critérios frequentemente utilizados é a riqueza de uma nagio calculada pot seu Produto Interno Bruto ou seu Indice de Desenvolvimento Humano. Esses agregados nao se contentam em indicar um limite quan- tificado de tiqueza ou de “capacidades”? que seriam almejéveis para um maior bem-estar dos individuos e das populagdes, mas classificam e hierarquizam as nagies numa escala padronizada, com os primeiros € os tiltimos da lista. Além de suas fragilidades estatisticas,? esses indicadores associados as condigées de vida nada dizem sobre a vida em si. A qualidade dos vinculos sociais, sua intensidade, sua fecundidade, a distancia social, a natureza da vida relacional, culeural, espiritual etc., tudo isso que compoe a existéncia, sua esséncia ¢ seu sentido, as raz6es para viver, em suma, escapam por entre os nés dessa malha com espagamentos argos demais para reté-las. Esforgos tém sido feitos atualmente para enriquecer e comple- xificar esses indicadores, ¢ assim levar mais em conta as dimen- sbes que vio além do valor agregado ~ a educago, a saide, a 2 Capability, conceito desenvolvido pelo filsofo economista Amartya Sen, que de= signa 2 apido para see e fazer aquilo ques valorza. 5 Subestimagio de certas dimensbes, omissSo de valor agregado produzido (econo- ‘mia informal, trabalho doméstic), resultados em grande medida dependentes do ano de eferéncia do cileulo, qualidade de vida, a qualidade do meio ambiente — e que acabam sempre esbarrando na apreensio das dimens6es imateriaise dif- ‘ilmente quantiicaveis do bem-estar* No entanto, de modo ainda mais decisivo, é com a falsa ava- Jiagio da vida individual e social que convém romper. A vida nio se mede nos pratos da balanga. Ela é uma experiéncia, nao uma performance. : Caminhar por uma cidade afticana, Lagos, Abidjan, Cairo ‘ou Dacar, é uma experiéncia sensivel ¢ cognitiva primordial. ‘Somos imediatamente capturados por seu ritmo. Vitalidade, ceriatividade e energia invadem as ruas, caos ¢ ordem disputam o ‘mesmo espaco; passado, presente e delineamentos do futuro con- vivem no mesmo lugar, Instintivamente, percebe-se aquilo que ‘05 indicadores fundados no valor agregado adicional anual (0 PIB), assim como as classificagées € 0s escalonamentos dos niveis telativos de riqueza por pais, t&m de inoperante, de abstrato e de Jimitado. A vida, 0 pulso da sociedade, a intensidade das intera- {goes sociais, o vinculo mantido com o préprio meio, o fato de nile se sentir bem ou néo ea sensagio de plenitude nao se deixam capturar por aquelas estatisticas. Ao viver nesses espagos, ao se fazer presente neles, perde-se toda nogio de valoragao relativa: pouco importa que Nova York disponha de um niimero maior dle pontes ou de vias expressas do que Abidjan. O camponés do Sine’ ao voltar para casa de um dia de trabalho, nao se questiona 4 Na fala de uma avaligio exara da flicdade ou da plenitude, buscasearé mesmo tua forma de mensurar o bem-estatpsiquico, por meio da medigio da atividade neu Tonal de produgio de ondas afi e gama, o nlvel de estrese ere. No mesmo sentido, ‘existem tentativas srs de construir um indicador de Felicidade Incerna Buta (FIB) para assumiro lugar do PIB. 5 Regito no centro-oeste do Senegal abitada majortaiamente pelos sererés. ry se é desenvolvido, emergente ou se pertence a um pais mais ou ‘menos avangado, As chuvas foram abundantes este ano, a fina disria foi devidamente cumprida e é promissora a safra que se anuncia. Tomado por um sentimento de realizago, ele aguarda a chegada da colheita. Seu trabalho é mais que um labor, é uma obra que, a0 construir o mundo, estabelece as condigdes de uma vida mais duradoura que asta.” Logo que cai a noite numa cidade africana e se percebe, 20 voltar para casa, que o fornecimento de energia foi interrompido € preciso ziguezaguear por um calgamento esburacado, vive-se de perto aquilo que a organizagao social tem de deficiente ou inacabado. Aspira-se legitimamente a uma forma mais acabada, ‘na qual o fornecimento de bens e servigos seja adequado, Porém, a vivencia dessas caréncias se integra e assume seu lugar dentro da gama e da soma das coisas vividas. A vida forma esse todo indistinto co sentimento do vivido agrega experiéncias oriundas das diversas dimensGes da existéncia. Aquelas ligadas ao conforto ou A otimalidade da organizaglo social se misturam Aquelas rela- cionadas qualidade e & intensidade do vivido (podendo chegar mesmo. ser dominadas por estas). Oenvolvimento © desenvolvimento ¢ uma das expresses do empreendimento ‘ocidental de expansio de sua episteme no mundo, por meio da disseminagéo de scus mitos ¢ teleologias sociais. Tornou-se um dos mitemas mais poderosos da nossa era. Todas as sociedades tém necessidade de mitos para justficar sua evolugio e sua apro- ptiagio do fucuro. Uma vez.que o colonialismo desacreditou defi- nitivamence a ideia de missio civilizadora, o desenvolvimento © oi ctigido em norma indiscutivel do progresso das sociedades humanas, inscrevendo o avango destas numa perspectiva evolu- tionista, negando a diversidade das trajetérias, bem como das modalidades de resposta aos desafios que a elas se apresentam.s O desenvolvimento é, pois, uma tentativa de universalizar um empreendimento que teve no Ocidente sua origem e seu grau dle realizagio mais clevado.” E antes de mais nada a expresséo de um pensamento que racionalizou o mundo antes de possuir (0s meios de transformé-lo, Essa visio evolucionista e raciona- lizante da dinimica social obteve um sucesso tal que foi ado- tada pela quase toralidade das nagdes recém-descolonizadas. A faganha foi estipular as sociedades ocidentais como referentes ¢ desquaificar todas as outras trajetras e formas de organi- zagao social. Assim, por uma espécie de teleologia rettoativa, toda sociedade diversa das sociedades euramericanas se tornava subdesenvolvida. A conversio da maioria das nagoes & paixdo do desenvolvimento na vertente ocidental foi um trabalho bem- -sucedido de negacao da diferenga. A aparente objetividade de seus eritérios de avaliagio (PNB, ronda per capita, nivel de industrializagio etc.) ajudou na pro pagagio desse esforgo de racionalizagio e uniformizagio das sociedades fundado na utopia de um modo determinista’ € previsivel. Foi no século xvit que nasceu no Ocidente a ideia 6.0 presidente noree-americano Harry Truman foi wm de seus promotores no final da Segunda Gueeea Mandi 30 propor um ausllio a todas as regidesconomicamente atrasadas, quer diner, atrasadas em rlagio 20s Estados Unidos. 7 Jea-Marie Domenach, “Crise du développement, cise de la rationale, in ‘Candido Mendes (org), Le mythe du développement Pats: Seuil, 1977, 8 Oriundo do pensamento iuminiseae do posiivismo centfico dos culos xvmt ¢ xix na Europa. e come ta a da possibilidade de um progresso infinito no campo social eno campo do conhecimento.’ Seu corolrio é que existe uma histd- ria natural da humanidade e que o desenvolvimento das socieda- des humanas, do conhecimento e da tiqueza cortesponde a um principio natural, autodinamico, que funda a possibilidade de uma narrativa.!” Esse evolucionismo social opera por analogia com o domi- nio biolégico. A possibilidade de um progresso ilimitado das sociedades, refletida pelo crescimento continuo do PIB, é uma tradugio profana ¢ terrestre do infinito do reino dos céus na escatologia crista. Progresso, Razdo, Crescimento ¢ Ordem se tornaiam, assim, as palavras-chave da episteme dos Tempos Modernos no Ocidente. No plano etimoldgico, desenvolver se opée a enrolar, envol- ver. Trata-se de fazer crescer, de desenrolar, de desfraldar. Na realidade, nao se desenvolve aquilo que jé nao esteja li, latente, «em potencialidade. Foi proposto aos africanos um pré-d-porter social. Para organizar o politico, o econémico ¢ 0 social, foi-lhes exigido que se cobrissem com as formas institucionais produzi- das a partir de uma histéria milenar gerada em outro lugar, cujos contornos reais nem sequer seus fundadores eram capazes de {maginar que forma viriam a assumir. No lugar de um refotgo das originalidades e dos caracteres singulares dos povos, a imposigio de um modelo tinico, traduzindo-se na injungio a um ser como, em vez de conduzir a um ser mais, resultou num ser menos" para 9 lea sustentada por Descartes, Leibniz Pascal no decorcer da Quercla dos Antigos «Moderns. 10 Gilbert Rist, Le Développement, bitte d une croyance oidentae. Pass: Presses de Sciences Po, 2013 11 Jean-Marie Domenach, op cit, la uma das culturas em particular. Foi literalmente um traba- tho de envolvimento das sociedades nao ocidentais em formas ‘sociais que nao thes convinham. Fissa proclamagio do desenvolvimento se converteu numa dleologia: um entrelagado de ideias que, em vez de esclarecer a Jealidade, encobre-a, justificando uma praxis ¢ uma ordem dife- fentes do real do qual se presumia que ela desse conta. Em meio a duzencos paises em desenvolvimento, desde 0s anos 1960, apenas dois passaram de paises de baixa renda a paises de alta renda, ¢ somente treze conseguiram deixar a categoria de pais de renda intermedidria para se juntarem 4 dos paises de renda elevada. Fisses poucos milagres existem para atigar a chama da crenga, mas, ‘arcalidade pura e simples a ser admitida ¢ o fracasso vexatério da promessa de prosperidade feita as nagdes que se langaram nesse ‘caminho. Naturalmente, objetardo dizendo que é porque elas no souberam aplicar corretamente o modelo, ¢ esté ai o cerne do problema. Considera-se que o desenvolvimento contempla ‘uma passagem da potentia a0 actus. Consiste, pot analogia com abiologia,"’ no processo pelo qual o embriso se desenvolve €0 ser vivo alcanga seu estagio de maturidade. Nesse sentido, implica das coisas: a definigao de um estagio final rumo ao qual os seres se desenvolvem, mas sobretudo uma potentia que neles jd esteja presente, elementos latentes cuja realizagio seja visada. E possivel realizar-se plenamente sob a égide da imitagao, do enxerto e da extroversio? Sob a exigéncia de adotar estru- turas sociais, mentalidades, significados e valores que nao sio 12 Comelins Castoriadis, Développement et rationalic "Crise du développement, crise de la rationale in Le mythe da développement, op. cit. 13As impropriedades da analogia com a biologia consstem em querer transfer processos que tém se curo no dominio da vida a realidadessbco-hisSrcus. e ‘ora at 2 4 © resultado da consumagio de suas préprias potencialidades? A resposta é obviamente nao. Na origem de toda comunidadc, hi o estabelecimento de um <édigo simbélico comum que permite a seus membros pensaf, dizer e experimentar o real de forma relativamente univoca. A antropologia mostrou que as sociedades se assentam numa narra- ‘iva fundadora, um mito, que molda uma determinada concepgio do mundo e de sua organizagao e que instieui uma hierarquia de valores particulars, amitide concebida por um cédigo sociale li Buistico interiorizado por seus membros. As sociedades moder- nas, e mais especificamente a sociedade industrial ocidental, nao escapam a essa estrutura, que deve legitimar sua evolugao ¢ sua apropriagio do Fucuro por meio de uma mitologia que refita suas cosmologias e suas ideologias sociais. Nessa perspectiva, 0 discurso econdmico funciona como um ecomito garantidor da sustentagao da ordem social industrial. Ele alimenta representa- ses do universo e da sociedade, legitima insticuigdes, assegura ‘crengas ¢ molda formas de viver e de pensar que petmitem o esca- Jonamento eo agenciamento da realidade, em conformidade com mensagem inicialmente transmitida pela natrativa. Bemn-estay, Progresso, Crescimento, leualdade sio 0s conceitos-chave da cos- ‘mologia ocidental, que condicionam sua leitura do real e que ela imps a0s outros povos por meio do mitema do desenvolvimento, Além disso, a proposta feita aos africanos foi a de reprodu- zir um modelo pré-fabricado de sociedade, no qual sua cultura local nio tinha lugar previsto e/ou era com demasiada frequ- éncia avaliada negativamente. E isso omitindo o fato de que 0 14 Aaclle Kabou expic essa qustio no contnene african por uma inadequagio las cultura africans a progresso em Eri Afiguerefusait ledéecloppement (Pai LHarmattan, 1991) desenvolvimento ocidental é um projeto econémico, mas sobre- tudo cultural, oriundo de um universo particular. Essa transpo- sigio do mito ocidental do Progresso teve como consequéncia uma desestrururago da personalidade de base dos grupos sociais africanos, das redes de solidariedade existentes e de seus sistemas cde significagio, mas acima de tudo acarretou um confinamento das populagées num sistema de valores que nao era o seu. Esse ecomito se tornou hegemdnico, por um lado, projetando «visio ocidental das finalidades da aventura social sobre a socie~ dades africanas, e, por outro, sendo tentado a informar todas as, priticas sociais. Dai a necessidade para a maior parte dos paises afticanos da elaboragio de um projeto politico, econdmico e social, partindo de sua sociocultura ¢ emanando de seu proprio universo mitolégico e de sua visio de mundo. Coloca-se aqui a questo da dialética do particular e do universal no campo eco- nomico e social. Tentar responder is necessidades fundamentais cde um grupo social por meio de uma iniciativa, de um projeto, uma exigencia universal compartilhada por todas as socieda- des. As modalidades préticas para chegar a tanto, & definigio e ’ hicrarquizagio das necessidades e ao estabelecimento de uma escala de valor, io, por sua vez, miiltiplas, variadas etribucdtias do génio proprio a cada grupo humano. E uma critica filoséfica, morale politica da ideologia desenvol- -vimentista que é preciso realizar. O desenvolvimento na vertente ocidental foi uma forma que a historia gerou para responder is necessidades das sociedades ocidentais. O delirio do Ocidente moderno consiste em apresentar sua razio como soberana,”* sendo que representa tio somente um momento ¢ uma dimensio do pensamento e se torna delirante & medida que se autonomiza, 15 Comelius Cascoriadlis op ct. © owen 2s 6 De modo mais abrangente, é do jugo da razio mecinica que devemos nos eximir, deixando de responder is miiltiplas injun- es da ordem econémica dominante (desenvolvimento, emer- géncia, economismo, crescimento ininterrupto, consumo em massa). A crise econémica mundial que vivemos, assim como suas diversas manifestagGes, jé apontam os limites de tudo isso. O que convém ressalvar € que a crise é, antes de mais nada, ‘moral, filoséfica e espiritual: éa crise de uma civilizagao material € técnica que perdeu o sentido das suas prioridades. E ‘impera- tivo se descolar da influéncia do modelo racional e mecanicista que dominou o mundo. Modelo que se quis mestre e senhor da natureza, oferecendo uma perspectiva invertida do homem, consagrando assim o primado da quantidade sobre a qualidade, do ter sobre o ser. O continente africano é diverso. De Argel a0 Cabo da Boa Experanga, é 0 lugar de uma profusio de culturas, de povos, de historicidades, de geografias, de modos de organizagio social ¢ politica e de temporalidades diferentes. A despeito dessa diver- sidade, que é uma de suas riquezas, as nagdes africanas com- partilham o mesmo destino, fazem frente aos mesmos desafios histéricos, rém uma mesma histéria recente, mas, acima de tudo, compartilham o projeto de uma Africa que deve voltar a ser sua prépria poténcia e a emanar sua luz prépria.!® Trata-se muito obviamente de resolver a questio dos desequilibrios sociais « politicos c, para isso, redesenhar os contornos da esfera politica. Mas também de responder de maneira adequada & questio das necessidades basicas dos povos afticanos e, para isso, repensar a 16 Tomo essa expressio de empréstimo 4 Achille Mbembe. Ela fot proferida num

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