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E MUSEOLOGIA
COMPARTILHADA
Manuel Lima Filho
Nuno Porto
Universidade Federal de Goiás Comissão Editorial da Coleção Diferenças
Luis Felipe Kojima Hirano
Reitor
Camila Azevedo de Moraes Wichers
Edward Madureira Brasil
Alexandre Ferraz Herbetta
Vice-Reitora Carlos Eduardo Henning
Sandramara Matias Chaves Janine Helfst Leicht Collaço
Revisão
Ana Godoy
»» Prefácio......................................................................... 11
Nuno Porto
Manuel Lima Filho
O Alto Xingu foi visitado e descrito pelo alemão Karl von den
Steinen nos anos de 1884 e 1887, sendo esses os primeiros estudos
sobre a região (Coelho, 1993). Contudo, as primeiras observações
acerca de vestígios arqueológicos foram reportadas por Eduardo
Galvão (1953) e Kalervo Oberg (1953) e se restringiram a coletas de
superfície e pequenas escavações, tendo sido observadas semelhan-
ças com a cerâmica Wauja37 contemporânea. Na década de 1950, o
Museu Nacional organizou uma expedição na região, envolvendo al-
guns cortes experimentais e a identificação de um “enterratório” nas
37 O etnônimo Wauja é autoatribuído por esse povo, por isso foi aqui ado-
tado. Na literatura é recorrente o termo Waurá, difundido desde von den
Steinen (Barcellos Neto, 2008).
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Percursos do colecionamento
Buscando construir uma biografia da Coleção da Lagoa
Miararré, traçamos os percursos de colecionamento revelados por
meio do exame da bibliografia sobre a coleção (Simonsen; Oliveira,
1976, 1977,1980) e, sobretudo, do fundo documental do MA/
UFG. Não obstante, é importante contextualizar primeiramente
esse colecionamento em um cenário mais amplo da Antropologia e
da Arqueologia brasileiras, bem como da própria criação e inserção
do Museu Antropológico nesse quadro.
Em primeiro lugar, ainda que essa coleção tenha sido analisada
a partir de uma abordagem arqueológica, conforme publicações de
Acary e Iluska (Simonsen; Oliveira, 1976, 1977, 1980), as práticas
de colecionamento acionadas carregam traços próprios da formação
de coleções etnográficas, marcadas pela negociação com as popula-
ções indígenas na obtenção dessas coleções. O acesso ao sítio arqueo-
lógico – negociado durante cinco anos com a liderança Kamaiurá – e
a própria condução das coletas, conforme relato abaixo, dependia da
interação com os indígenas:
trama,43 como a coleção que teria sido formada por Orlando Villas
Bôas, a coleção denominada como do Sr. Sidney – conforme publi-
cações (Simonsen; Oliveira, 1976, 1977, 1980) – e objetos coletados
por Pierre Becquelin (1993, 2000). Entretanto, enfatizaremos a co-
leção sob a guarda do MA/UFG.
Esse percurso tem início em 1970, quando Acary recebe do ca-
pitão e pajé Tacumã dois fragmentos de cerâmica da Lagoa Miararré.
Os objetos chamaram atenção do então diretor do MA/UFG que,
em 1972, retorna à aldeia Kamaiurá e tenta persuadir Tacumã a le-
vá-lo até a Lagoa. Contudo,
43 Segue dois relatos de Acary acerca do fato de que objetos da Lagoa tam-
bém tinham sido entregues para outras pessoas: “Muitas peças completas
ou quase já haviam sido retiradas e dados pelo Pagé e também Capitão
Tacumãn, a mim, a Orlando Villas Boas, ex-diretor do Parque Indígena
do Xingu, e a várias outras pessoas” (FD MA/UFG, Relatório de Viagem
a Lagoa Miararré (26/07/1976 - 29/07/1976?). Correspondências 1974
– 76, p. 1); “Existem no interior desta lagoa uma quantidade infinita de
cacos de cerâmica, madeira petrificada, sementes de coco inexistente na
região. Várias peças completas já foram encontradas. Algumas pertencem
à coleção do sertanista Orlando Vilas Boas, outras fazem parte acervo do
Museu Antropológico da UFG e algumas mais foram parar em mãos de
terceiros, por troca realizada com o Cacique Tacumãn” (FD MA/UFG,
Relatório de Viagem a Lagoa Miararré (26/07/1976 - 29/07/1976?).
Correspondências 1974 – 76, p. 2).
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Hora e meia depois a calma voltou de forma tão rápida que se tinha
a impressão de nada haver acontecido de anormal [...]
Objetos rituais (isto é, que não tem uso óbvio do ponto de vista
doméstico) foram descobertos na lagoa Miararré pelos Kamaiurá.
Nós conseguimos estudar vários deles. Cópias desses objetos foram
executadas por ameríndios da região e vendidas como autênticas. A
presença de uma alteração superficial significativa causada pela
imersão prolongada nas águas do lago permite, em geral, considerar
os objetos antigos, sem certeza absoluta. (Becquelin, 2000, p. 28-
29, tradução minha, grifo meu).
Figura 5 - Figura híbrida (Peça 83.14.04; Altura: 32 cm). Esse é um dos objetos
compreendidos por nossos interlocutores Kamaiurá como espíritos maus
Considerações finais
Este texto sintetizou os percursos realizados no estudo dos
objetos advindos da Lagoa Miararré, enfatizando as práticas de cole-
cionamento e a colonialidade inerente a elas.
O cruzamento entre a bibliografia acerca dos estudos na
região e as narrativas presentes no Fundo Documental do Museu
Antropológico da Universidade Federal de Goiás colocou-se como
um caminho potente de estudo, sendo possível observar como esses
pesquisadores encaminhavam suas pesquisas, bem como as formas de
negociação dos indígenas com os não indígenas e como construíam
narrativas sobre eles. Desta feita, ainda que as práticas de colecio-
namento aqui abordadas sejam marcadas pela colonialidade e por
relações assimétricas entre indígenas e não indígenas, os primeiros
não foram passivos às investidas dos caraíbas. Tacumã selecionou os
objetos a serem entregues, livrando-se daqueles que atrairiam coisas
ruins à aldeia, assim como negociou com diferentes pesquisadores
garantindo exclusividade ao acesso de Acary de Oliveira Passos ao
local, o que não ocorreu, segundo Pierre Becquelin (1993).
A cerâmica coletada na Lagoa Miararré tem características
semelhantes ao material de produção Wauja. Nas publicações, essa
semelhança é apontada, mas sem indicar uma continuidade entre
passado e presente, o que abriria novas rotas interpretativas. Dessa
forma, o estudo dessa coleção requer um aprofundamento acerca
da compreensão da produção cerâmica no Alto Xingu, bem como
o diálogo com os povos Kamaiurá e Wauja como interlocutores que
poderão trazer outras leituras acerca dos percursos desses objetos,
desde a sua produção até sua inserção na Lagoa, como prática pró-
pria às ontologias ameríndias. Da mesma forma, esse diálogo inter-
cultural trará pistas sobre os futuros possíveis da coleção. Outrossim,
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Referências
ABREU, Regina. Museus etnográficos e práticas de colecionamento: an-
tropofagia dos sentidos. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal, Rio de Janeiro, n. 31, p. 101-125, 2005.
COELHO, Vera Penteado (Ed.). Karl von den Steinen: um século de antro-
pologia no Xingu. São Paulo: Edusp, 1993.
Documentação Consultada