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8 SOB 0 SIGNO DE CAM ‘Quando o Segundo Reinado ia a0 meio, o velho mas ainda ro- bbusto coaserdorismo das oligarquias se vé desafiado por uma cor- rente progressta, impaciente com a estagnacio politica, defensora da indGstria e do trabalho live, confiante na democrcia yankee, en fim desejosa de pateat 0 Brasil com o nivel dos cenros capitalists. Para ese movimento de idéias, que Joaquim Nabuco chamou de no- +0 liberaismo, 0 mito do bom selrgem no tinha muito 0 que di- zet. Fra um simbolo de outtos tempos, forjado pela culeura da Inde- pendéncia, que s6 poderia sobreviver como assunto de retGrica es Coat. Aor olhos da nova geracio,ofururo era a nia dimensto a ser contemplada; ¢ 05 poemas de Castro Alves diriam eloqdentemente das esperangas postas no século grande e forte, segundo os epltetos, do seu modelo, Viewr Hugo. "Mas nos pores bafientos dessa casa que se queria modema e s- cancarava a janelas para oso! do porwr, exondia-se um moro, ou ‘melhor, um agonizante, que incomodava 2 uns e mova aindignasio, de outtos: 0 cativeiro do negro. ‘Alencar ainda pudera fundirindio e portugues a golpes de fo- Thetim ox no embalo da sva pros rca. Mas negro ebranco rscavar ‘em um xadrez de oporgoes sem matizes. E para uma ideologia ci a, qual imaginario? “Aquele vago sentimento de disonfncia ence as figurages da América eda Liberdade, que jf se advertia nos Timbiras de Gongal- ‘es Dias, assume em Casto Alves € nos seus imitadores um espago amplo de sentido e 2 dignidade de tema 246 ¥ Um primer sintoma de madanga perce eno ttameto que 4 nova poesia da desergpes da natuera americana esta pede 4 onliso de morada ica do selagem para tornatse pan de fue do de cenas que a mancham. Uma pociaem que ohine &pasagem ‘tropical serve de preliidio 4 execragdo de uma sociedade indigna da tmoldure que acta, eis um indie fore de que o oat cambiou de fume penpecie, “Ao romper al, "Amita" co quadio da florea pujante que abre “A eather de Palo Afonso pocmas teabalhados no resto da contadiso, pos disocam francamente © mundo natural vio como edéaico, eo inferno social que ac der don ervises nel inauro. como se a Spica do paso ame tiano se howvee mantido com toda cuberinia de vonse cores om que a tatarm Gonsalves Dias, Alencar Val, mat 10 0: ‘mente pas produit no lito inds romance a edna do con- as palma 1 torem toned, (Quando ecutam dos moro nas quebrads O aro ao aizsn (Ao tomper d'alva’") Cicio que pela primeira ver em nos literatura roméntico aconal segiam lnkas conflate de valor osemimento da nati ‘fexa ¢ a visio da pattia, No final do poema “‘América’’ figura uma Célula ena que sei esr com bri na compodao do Ne to negere «das Ves Afi 6 piri, derpets [Nao mancher fala de tua epoplia No songue do exrivo, mo smu bale! ‘A nagdo brasileira € — enquanto terra de escrvos — uma ‘nédoa no censrio feito de ondas de luz, verdes mats, cfu de anil Eo retinir dos feros do catvo desta da imensa orguesta, €um som dscorde e vl ‘A pant desta segunda maté liberal (¢ cada vex mais ntensamente «com as atitudesertcas da Escola do Recife, dos relists e dos natura- lista), a fisionomia do Brasil itiaperdendo aquelecariter de eterno vigo tropical para deixar ver os sules de um powo catente, dividido 27 em raat clases. Basta ha a aera dos noses inconformistas. De ‘Gares Baxor a Joaquim Nabuco, de Raul Pompéia a Eucides da Gant, de Licio de Mendonga a Cru e Sous, de als Gama a Lima Barreto, de Andeé Rebousas a Manuel Bonfim, 2 imagem da nacio raise ensombrando de tl modo que ochamado ufanismo da belle Zpoque bem pesadas as coisas, ela anes reso da cultura oficial ddo que uma corteatefecanda de pensamento. No imiar da Segunda evolu Industrial eda xpanso impetalisa, a:-Colfnia xe olhata so espelho da cizagoe, x0 votase paras mesma, dotalhe a ev Anca do coteae Em 1868, ano do Navi negro das Voxes Afric, a mazela mais deprmente, 0 ewo expesto faa ead. Os porta-vores das olgnquis prefriam trata como se fa assuno exclusiva ordem privada, materia elativa 20 insttwo inamovivel da props dade. Assim aematiara Alencatna sua coméia O demi fami lia onde a alfortia€ concedida pelos seahores cm a dupla fondo de puniso moleque inuigunt, expulsindoo do aconchego pata Cale lvarafuntia de um meosivo permanente de confuses e des foros. Na ses legislatia de 1871, o conselheito José Matniano de Alencar combateria 0 Projeto da Lei do Vente Livre com argu- ‘mentos de liber onodoxo, cow da autonomia do paterfanfispe- rane o Exado imperial que etara intervindo no cteul familiar 2 Aue, pr dteo de compra, penencia o exrao. A cana filha de ais ctios dover, segundo os apelos ue oSenadotdsge aos seus ates, pemanecer junto 4 mle pata set melhor ruelada 3 sombra da Senza ‘Os nows liberi, o conta, insstem em dar causa asa le- ‘ima dimensio pdbica. Os seus temas sero o trabalho, iberdade Ea edadania 'No meio dos embates sobre a questio dos nacturos, que jé se ropde por volta de 1866, aio gabiaet iberl de Zacatas pot Ue) 20 legal, mas autosittio, de Ped 1. As oposgesrdiaizam o seu Aicuro tangencando ideas emocrtcos. Fundam cubes ejornas, promovem atos de presto em todo o pals. Os extudantes de Ditto da Academia de Sto Paulo convdam 0 jrer Casto Ales para de- ‘lamar wos bers. Porm fez acs, ele di com enorme ito ‘0s poemas mais bels de sua pena aboicionst, O mavio negro ¢ Vases a’ fica, exttos em Sto Palo, 0 primeito aos 18 de abt, 0 segundo 208 Il de juno. 248 — Esa crcunstinca pablica que vin nascer um eoutzo texto, € sera puismo negara sua preseng ativa a qualidade ora de am: bor, que sem dGvida ganbam em fore quando lidos em vor alta ¢ pontuados de gestos legos e expesivos: Se posvel, diate de um fuditério empatic. Por tudo so, toca com a mio a cortente da Histra pazece uma cxperignca acesivel a qualquet leitor dos poemassocias de Castro ‘Alves. Os politicos eiedlogosreformistas logo reconheceram a0 vate "um pioneito dos seus ideas os estemuahos de Rui Barbosa ede Jou gquirm Nabucoafinaram, desde a déada de 70, 0 dapasio de uma forwuna citi cotusdnica que itia em crescendo até Elides da Ganka ¢ Manuel Bonfim. No século x miltanes dos movimentor negres, como Edison Carnit, e comunistas ortadoros, como Jorge ‘Amado, tomaram-no como precusot Voxer d'AfrceeO nario negrere fram compreendidose ama- dos como falas de eebediac, com cetera, uma abordagem da recep So de ambos confirma est leitura. No enanto, 0 uso que geagoes Sucesitas de admiradoresfazem de um porma est longe de exit ‘seus signficador. Em alguns caros uma 36 descodifcato, sempre ‘eiterada, deb na sombra a verdade de outasconotagiesigualmen- tevildasecapazes de dialetizro sentido uniforme que 0 consenso esabeecea ‘0 protest « a deninciaexpresss nos dois poemas sto reais € vividos,c «sua clogléncia mana da mais pura indignacso. Mas qual 4 mien viseda por aquels estes de sangue, azcia e fog? ‘Se espondermas que trata do sistema eeravista, a0 seu aqui ‘agora, exaremes Sendo pouco fits o seu sentido imanente. Urn ‘objeto dese teor convitia, antes, a poem brechtiano aan lettre ‘de Heinrich Heine, Das Sélavenschif, que Augusto Meyer verteu oma ido desta sob 0 titlo de “0 navio negteito™. Comesa ass: 0 sobrecgs Mynber an Kock Caleala notes comarote [A rondas pronives da cag “ner «pends om cada le. Bonscbs iments, marin ouo om pis. Resumind, dia ‘Mendors ao me fl, ‘Maro negro #0 melbor aia 249 Seicantspocasbagonbe wee pecincbal no Senegal A came € nj, or mines de 0 Toa fig do metor mea. 2m toca de sb agurdente, Conta, 30 — em peso mori! Ex pono otoceto por cent Sed metadechegr 0 porto, Se chearem rezetosnegros, ‘o porto Rio de Jone (i) agar com sacs por Peps ‘A ata Goals Pereira. (0) ‘Terao sto poeta conhecido a versio ances em prosa do tex to de Heine que sina Rerwe des Dews Mondes, bastante lida pelos incleewais raseiros do tempo? Augusto Meyer cé que sim. Mas acentua as difrengas de tom e de pespectva que os estemam. Hei- te fala do comécio negreito de modo objet, so, ecamiha, Casto ‘Alves o faz com uma diceo orators patétic. “A pergunta mais eral que ee ens tena responder incde sobre o modo de pear a exravidao que enforma a poesia de Casto Ales. ‘A divesidade apontada em relagio a Heine sere de esimulo para colhero sentido Taino de um tex sem conceder que a sua inter pretacio se ponba como jf dada, de uma ver pot todas, a part das Gireunsncas paras quaiso porma foi escrito edeclamade no cao, 4 partir de um momento da campanha abelcons Em outras palavas: suponho legtimo distingui, para feito de anise ecompreensio do poema, a funcdo histriea que este desem- Penhou a sua fortuna pla, eo seu dinamismo semantic interna Pars tanto fag sleitura de "Vous Africa”, poemairmao de “0 navio egret, que leva ctimasconseqotncas ur certo estilo egico © mitico de tar 0 fenbmeno twal do cave. vows p:Aca Deas! 6 Deus! onde etd: que mio respondes? Em que mundo, om qu'esrle tu scones "Embuzado nor eu? Hi doit mal anos te mandel meu prio, Que embulde desde enao corre 0 infinite. Onde ests, Senor Deu? 230 Qual Prometen tu me amarte um dis Do dterto na rubra penedia aint gale! Por abuire — me dete o sl srdente, Ea tera de Suez — fo a comente Que me ligase 20 pe. 0 cavalo extafdo do Bedutno Sob a vegsss tombs resupino "E more no areal. Minka garapa tanga, a dor pore, Quando 0 eicote do simon dards (0 teu brag eteral. Minbasirmas so bels, 30 dios. orme a Aria mae sombrasroluprucas ‘Dos haténs do Sulit, Ow 90 dorso dos brancoselefontes Enmbala ve coberta de brlbonter, ‘Nas plages do Hindustio. Por tenda tem os cmos do Himalaa 0 Ganges amoroso bei 2 praia CCobera de corte, A brite de Misra 0 cfu inflams; 2 ela dorme wos tomplos do Deas Brama, —Pagodes colors. A Baropa é sempre Europa, 1 porous ‘A mulher detumbrante ¢capricoss, Rainhe e contest Arita corte 0 mirmor de Caras: Poetse — tang os binos de Fema, ‘No glorioo af Sempre a linres tbe cabe mo lito (Ons uma com, ons 0 baretfigio Enflorsthe a ceri. 0 Univeno apis ela — doudo amante Segue cave o paso deliranse De grande meres ‘Mis ex, Senborl. Bu tite sbondonads BI i mio de ei deg Thre mncbo em rol 5 chr bob 0 pronto ai arene ‘Talvex.. p'ra que meu pranto, 6 Deus clemente! Tab desta no ch. nom tenbo wma sombre defor. Daw cbr nom ue tmp ie No tl sbreade ‘Qeonds tbo 4 Prmies do Eto Ember gaat cer horns grit: ‘Adige me, Senbor" Como o pois em cna a frome env Tito eabes mo are gue ave © sic fox. (uond en pao Sar amottads ‘i dem "Ls nt hfe ombapade No teu bos atboroe Nem siom que 0 dee mex sii, Que o siléncio campeia solitirio Porsob o pate men 13 wo slo onde 9 cade sper meds ‘Boa a Ege clade Pedla ‘inde 8 more ci De Teas ma clan deca 1s cegnbas pom debra C honsone som fim Onde banque eanvon eet, Eo comelo'moncrns aguante Que desce de Efraim. Nao basa ind de dr 6 Deas trie! pots, eu peto eterno, inessurivel De vinganga e rancor’ Eo que d que fiz, Senbor que toro crime Ex cometi jamais que asim me oprime E eu dive ao peregrina fulminado: im. ser meu esporo bem-amada ‘Sees tu Bos. aide este dia 0 vento ds desgrga Por meus cabelo ullondo pata (0 anitems crue. As eibor erm do areal mas aga, Bo Nomad faminto cords as lagat 'No nipido corel. Via etme deertar do Egia. Vi men povo seguir ~ Judew maldito — Talbo de perdicso Depois vi minha prole degrade ‘Pols paras d'Europa — arebatads — Amestrado flo rit! embalde morreste sobre um mont. ‘en sangue nao lavou de minbs fronte ‘A manchs origina. Ainda hoje sto, por fado adver, Meus flbos — alimiria do univero, ‘Bu — paso universal. Hoje em mep sangue » América se naire Condor gue tamsformarese em abate, ‘Are da ercravidso Bla jantonse 3s mais. fom taidors (Qual de Joné 08 vs ido, ontrors Venderam teu ira, Basta, Senbor! De teu potentebrapo ole siranés dos aro e do espazo Perdio ns 05 ermes mess! 1s dots mil anor. ex tolajo xm grit. Eicata 0 bnado men limo ‘nfo, ‘Mew Deus! Senbor, mew Deus! Tam glidio vingador. Para maior clareza de exposigao convém desdobrar a anilise do : teem ots plone qur oo fneoo ptt everest ete Rion dee, ie inde efor o plang da sujeuridue (ona eea cous). © ‘bo her do empo odo opare 232 23 ‘Quem sio estas vores que filam e a quem falam? Quando fi Jam? De onde falam? ‘AS VOZES Fazer o continente negro dizer-se, dar-lhe o registro de primeita pessoa, foi um paso adiante no tratamento de um tema que, pela fea pss em nome daa socal tenia aserebordo como aor ‘A prosopopéia (do gr prosopon = lat. ersoma), pel qual a gente africana alcanga o estatuto de um ser individual, de um ew narrante « imprecante, € figura-chave que sustém as estofes todas ¢ 25 man- ‘ém imersas no mesmo clima tonal do comeco 20 fim do texto. No cutso da histéra cultural do Ocidente, ese procedimento se formou um vezo na literature politica p651789, e sobretudo pos apoleSnica, que paswou a ver of povos © as ages conto ents vivo, otgdnicos, pesoascoletvas em nome das quaieo bardo romintico de- ‘eta falar. Leiase, por exemplo, "O século” de Castro Alves, onde omam corpo e alma a nagbes oprimidas, a Polénia ea Suécia, a Hun- [tia 0 Mexico, O nosso século, dizia Mazzni,& 0 século das nacio- nalidades, : ‘A combinasio de uma Aftica arcana (dois mil anos..”)com_ uma Afrca-sujito (“ce mandei meu grit") € a novidade primeica ‘do poema,e a sua fora, pois di ao pretéito mais obseuro€ a0 mito cetcado de enigmas o poder magnético da preseng imediata em que se resolve todo ato de interlocucdo. A Africa €, desde sempre, um set animado e, pela atualizasto do ew poco, um ser que tem conscién- cia da sua identidade e da sua historia, ‘Um letor nada romdntco, José Verssimo, mesmo quando louva ‘poema, trio seu distanciamento ao referroprocesso mesmo da pet- sonalizaco. logia eloqiéncia da melhor especie” de Casto Alves, ‘mas nela acusa uma “idelizaclo antstica da situaglo do continente ‘maldito e das reivindicagBes que o nosso ideal human Ihe atibai"2 ‘A nota do ertico tende a desconstruir 0 que est constrido li ricamente, isto €, a separar a Talando de “continente mali 10”, de outro, José Verisimo tentava desfzeranalticamente o gran- Be de impacto da enunciaglo do poema, que € aquele feito de comu- hao entre sujeito e objeto produzido pelos acordes da abertura. Da primeira Gltima palavra, a personificario € inscind!vel da subjetva- ‘fo. O recore feito afro por um leitor prostico nlo atinge o cerne cdo procedimento, ea humanizasto da Africa resste na sua qualidade cde conquisea romantica: povo ¢ pocta softem e imprecam em unis- ‘Tatando-se de uma operacto de linguagem eminentemente pro- jetiva, o enlace do eu com a rag estigmatizada se df no coragio mes- ‘mo do sujcita. 0 poeta que faz seus of brados de urn povo aml ‘oado pelos deuses ¢ pelos homens € também um set maldito, Em “Ahasverus € 0 Génio”, Casto Alves js identificara com a figura do precito, 0 mitero Judew Sabes quem foi Abasnerasi.. — o Precto, © mivero Jude, que tnha exrito ‘na fronte 0 slo atox! Erero sor de eters senda. Espasiado a fir de tends em tends Fupindo embalde 3 vingadora vox! 0 Ginia & como Abacvert. slit A marchay 2 marchar, 90 itmeriio ‘Sem termo do etc Fagundes Varela, em paifiase 20 Childe Harold de Byron, tam- bém jf se reconheceta na figura do Judeu Erante que se tingia de tons melodeamétios no romance de folhetim de Eugene Sue. in: ttojegio de uma recusnexistencial destca vai fundo no poeta inglés ese verreu com brio na voz brasileira do nosso Varela: E ete enojo perendl, consiowo, (Que em sods a parte me acompanbs os pasos, ao di incende me at artes quentes, Me aperta 3 noite nos mirados bajo! Sao estas lavas de marti ¢ dares —Séeasconstantes do den malo! — Em caja testa, dos tfescrestada, Libiu de jogo cinslans eset! (Quem de si mesmo desterat-se pode? 235 -Aquele com pasionalexacetbado, que os parece peculiar obra da segunda gerasio tomdnvia, diferencias, mas ndo se esi de - do na poesia tpica das “Vozes A danagio de uma raga pelos sécu- lox dos clos ei tratada nos vetos de Casto Ales com certs ace. tos de tanismo que lembram Vigay ou Lord Byron: "Caml. seis ‘meu esposo bemamada/ Sere tua Elo. ‘A serelhanga no cancels dilerenga, ptém. Se nos pusermos 4 excura do som mais fundo que sai desta vozes da Aca edo ex reprobos, ouiremos ante a sipica ou 0 clamor imporcate do que 6 desafo promettico. A imprestio nos vem do silencio do interlocu tor. Os ogos da Africa edo poeta formam um todo, ma oseu dest- atiio€ um deus abiconditu. "Deus! 6 Devs! onde exis que 10 responded! Em que mundo, em qu'esca cut econdes! Embugado os cus?” A expresso de desesperodiante de um Ti que se fecha sudo e mudoreitersse no centa do pocma (“Embalde 40 quatto és chorando gato]! Exuta o brado met Ié na infinite) Meu Deus! Seahor, meu Deus!) ‘Nese context soa como uma palavra de srcasmo a imv«asio 0 "Deus clemente” que, aa ota eto, no descobre as ligrimas da Aca que a arcia ardent bebeu pars sempre, (0 TEMPO DA ORIGEM: A DANAGAO DE CAM 0 destino do povo afticano, cumptido através dos milénios, de- ppende de um evento Gnico, remoto, mas itreversvel: a maldicio de ‘Cam, de seu filho Canad ¢ de todos os seus descendentes. O povo alticano serd negro e seré escravo: eis tudo. ‘© poema incorpora a versio mitica da otigem do cativero que 6 relatada no Livro do Génesis.Tanscrevo, em seguida, 0 pass bibl co fundamental onde 2 lenda encontrou sua formulasto canbnica: (0s fihos de Nog, qu stam da area, foram Sem, Cam ¢ Jaf; Cam 0 pai de Canad, Eses tes foram os fhos de No€ ea patie dels se fer 0 povoamento de toda a tera [Noé,oculvador,comegou a plantar aviaha. Bebendovinho em: briagousee ficou ou dento de ua tenda Cam, pai de Canad, via ‘nudes de seu pai e advertiu, fra, 2 seus dois imios. Mas Sem e 236 inane tein nvm Jnfétomaram 0 mano, puseram-no sobre os seus ptépros ombros landundo de condo cobrizam a nudes dese pa veut rostos eta ‘woladoe para case eles nto vzam a nader de seu pa. Quando Noe {eordou de sa embriagues, ube o que Ihe fiers seu lho mais jo- vem, E dive: — Malo sea Conaa Que ele ej, para sens iro, 2 sltimo do ecrvon E dise também: — Bento sea labweh, 0 Deus de Sem, (que Canad ei ex excrvol Que Dews dilate a Jf, (que cle babite as Yendas de Sem, (Pte Conaa ea tea eervo! (Genesis, 9, 18-27) A narragio da Exrtura prossegue dando o elenco das gerasdes de Car, Sem e Jafé."Camitas”seriam os pows escuros da Etispa, da Artbia do Sul, da Nabia, da ‘Tipoltinia, da Soma (na verdade, (0% afrcanos do Velho Testamento) e algumastribos que habitavam. 1 Palestina antes que os hebreus as conguistassem, Alguns camentadores dsinguem dois estatos na redasio de Ge ness, 9, elem a mengio a Canai (“Malditoseja Canal") como uma substtwigdo tarda de Cam, operada no texto quando a5 rbos de Is rael conseguiram dominar os cananeus no tempo do rei Dav. As ter- 13s de Cana, “filho de Can, vsiama serenfim a pitria do powo jeu; €s ananeus seriam exluidos da slvacto mesinca paracas- tigo de seus pecados (de uxitia, sobretudo), 20 paso que os hebreus receberiam de labweh o diteto de esravizi-ls (0 Livto dos juizes diz que os cananeus foram submetdos a cor tia pela bos de Israel Jz 1.29) Josue (1710) reports a0 mesmo fao: "Os eananeus que habitavam Gazer nio foram expulsos per _maneceram no meio de Efraim ato dia de hoe, setios a tabalbos forgadot". Logo, 1 otigem do tite destino dos cananeus fi «guetta (© natrador de Genes, 9, teria criado um mito etiolégico, akado talver a tradigto do pecado original de Adio, para dar conta da ins- ‘iuigto do caieiro. O problema continua em péecabe aos exeetas ‘busca de sua solugfo, tanto mais que os cananeus eram... emit. 27 Resaria, por outro lado, investigar como 2 maldigio de Cam pas ¥ sou a ser attibufda a todos os afticanos quando 2 expansio ultamari- ‘a portuguesa fez ressurgir 2 figura do eseravo a pats do século x0. ‘Tatase de uma pesquisa em torno da arqueologa das idéias a que apenas se pode acenar em um ensaio sobre a poesia social do nosso Casto Alves. 0 fato € que se consumou em plena cultura moderna a explice ‘20 do escravismo como resultado de uma culpa exemplarmente pu rida pelo patriarca salvo do dilvio pata perpetuat a espécie huma na. A referencia 3 sina de Cam citculou teiteradamente nos séculos 21, XVI €XVIl, quando a teologia catSica ou protestate se viu con: frontada com 2 generaizasdo do trabalho forrado nas economiasco- Toniais. 0 velho mito servu entdo 20 novo pensumento mercantil, que alga pra justi fe nero dco avin, ‘que via na esraviddo um meio de catequizar populasdes antes entre: {ues 20 fetichismo ou 20 dominio do Isl, Mercadorese idedlogos religioos do sistema conceberam o pecado de Cam ¢ a sua punisio, como 0 evento fundador de uma situasio imutavel Pode parecer um caminho patadoxal, mas foi pela retomada do ‘mito da danagio que o vate lbersrio de 1868 deu forma poética suas “Vores d’Aftica”. O esquema construtivo que adotou di zs cos tas As tradighes Epicas das prosopoptias nacional. Agora nlo ha mu- ‘28a invocar, hi apenas um deus inacesivel que, interpelado, se em bugaccala. A divindade hebraica se comporta como o Zeus vingadot da relgio olimpica, masa vitima comparlha com Prometeu somente sore infliz, nto o orgulho do semideus consccnte da sua bela aven- ‘ura juno 205 homens. Iahweh pune como Zeus, masa Aca de Cam, ‘contrariamente a Prometeu, bai a caberae chora sem sequet mete ‘ero consolo que 20 ted aortentado trouxeram as piedosas nereidas na tragédia de Esquilo: Qual Prometew te me smarate um dis Do desert na rubra penedia — Infinit gli! Por sbuire — me dete 0 wl ardent Ba tera de Sues — fois comente ‘Que me ligate 20 b. Cerca de um més antes da composisdo das “Vozes Casto Al- ves escrevera 0 poema "Prometeu” em que o hesGi se ergue “nda 28 ais atrogante¢ fore, o olhat n0 sol cravada/ sublime no softer, vencido oo dma ses eros de esti, que fim de Prome- ‘eu a alegoria do pow, apagam-se em meio aos lamentos pet dos afrcanos. Aqui triunfa 0 absurdo de um castigo por uma culpa remota: dai a tagcidade da stuasio de um continenteinceiro 2 merce cde uma clea onipotente: Nao bait inde de dor, 6 Deas trie! pot, tu peo cera iexsurvel ‘De vingongs¢ a0cor. Eo que & que fiz, Senbor que foro crime Ex cometi jamais que atin me oprine “em plo ringador?! ‘Como aconteceu depos de consumada a mancha orginal de Adio ‘¢Bva, toda a descendéncia do pecadorviia marcada pela queda. Em ambas as stuacbesarquetipicas o pecado se identifica com o conheci- ‘mento do proibido. A nuder de Adio, A nudez de Noé. A nudez do pai. A nudes do patiatca. Com uma diferenge, que afinal € cud: ‘ose dé remissio alguma para aestiepe de Cam, O novo Adio, co- ‘moa teologia medieval chamou a Cristo, viriarestabelecer a primeira Alianga do Criador com a sua ciatura, mas a maldigio do filho de [Noé ndo se resgararia jamais: nartada em um tempo mitico, perma- neceu fora da Histria, Vigoram no dominio do arcaico os poderes egos do inconsciente sobre aqucla consciéncia dos préprios aos que totna homem o homem. A Africa ignora o motivo da sua pena: "E fo que € que fiz, Senhor? que tov crime! Eu comet jamais que as sim me oprime) Teu glédio vingador?” ( eleito do andtema se reproduz de gerario em gerasio, de tal ‘modo que a seqdéncia dos tempos, apesar de bem pontuada ao lon- ‘godo poema (Foi depois do dilivio; desde este dig va cdncia deter: tar do Egite, v1 men povo seguir. depots vi minba role desgrada), ‘em nada alters a intensdade da maldicao original. O tempo aberto fe vectorial da Hist6ria — quer na versio ctsth da salvgio, quer na ‘esso leiga do progresio — no tem como penetra ness outro rem ‘Po mitologico,fechado em si, para o qual o Filho de Deus te mori: do em vio. rita! emblde mores sobre um monte. Ten sangue nao Lavon de minha froste “A marche origina. 239 Ainds jes por fd adver, bien fb ~ alimdria do nie, fa pa ener Obserese a contaporiso:oapelo a0 redentor (Crit! «i no vatio que representa o seu scifi impotent; mas anomeagto do {estino (ado adver) € 0 reconbecimento de um poder que séulos de cstaniamo oo puderam contrast (Ainds boy.) ConFrmase 4 hiporese de que um areasmo de pespeciareye 0 poema toda ‘A admis final da exsenia de uma culpa perio pao: crimes, ‘meas! entra nesalgica do erot que sind procs algum sentido thon pra infor de miles miles de ees humane. Mais Clogiente do que as plavsflaamuder da Exige colon de pe da que ft o morn c€u na entrada do deer. A Esfinge no far penguna: ea €« pergunta. ‘O poct est poo dante do Mal como absurd, aaa de sen tid Aaa imaginato ttabalha com materials mio, histticosc liters, que, apeat da sun apattnca peri, acaba incidind todos, no excndalo milenar da exctavidioafcina 1s eaofes que peroniicam os outros continene tf muito de comencional, sem dvida, nas obedcem lia itera do to otgingrio que concedaprvilgos aos mis de Cam. A norida. de para nos, letores dos omdntos brates, no ex na fgur. ‘80 da Btopaglorioss nem na imagem da Asia mena em vl6pias. thas a acuado 3 América que, de tia da Liberdade que era, = Conereu em nnd ieidora ave de eseovidin O pat de opaos Am tice) Europa consirapo doindigenismo emda, pede a fangio trionalisa ingéna por fog da nova conséncaabliconsta,¢ € aubotuido pelo pat Aftia/América, no qual o primero € 0 ot mda o segundo oopresor. Peisameate como no aroubado finale db "Navi negro Em'"Vores dA a opsisi €ematzada no sentido de rx tualzara idea de jeg universal da gente negra, logo numa pes pectiva mica © tga; em outto poems, ecto um ano antes da {more de Castro Alves, "Saudacio a Palmas", o wom sed outo,de- Safantee rebelde, eo imaginiio do Bando nobre airs rma ‘iso revoluiondta ds histia cdo negro afo-bralei,viso que nem © poeta pe aprofundat, nem o noso intelectual negro ou mesgo ‘ita a asoumit as grates ques Ihe seuiram. 260 [Nessa regressio a um tempo que percorre sempre o circulo tra ‘ado pela origens entende-se a presenga no poema de uma figura ‘misteriosa da qual nfo hi mencHo na Biblia: Flo, invengio Iiriea de Aled de Vigay. “Elo ou la seu des anges” € um myutdre publica: ddo em 1824. Elod € um anjo que nasceu de uma ligrima detramada por Jesus quando chorou a morte de Lézaro, aquele a quem iti logo depois resuscitar. Uma ligrima de pura compaiedo subiu entdo 208, ‘&us ese transformou em mais uma encarnasio do Eterno Feminioo ‘que desde o Rausto habita a fantasia do homem contempotineo co to simbolo de piedade infinita. No pocma de Vigny a miseri6rdia da mulher se volta para 0 mais belo dos arcanjos, Lifer. Do seu reino de teva ele 2 chama e lhe mosta 2sua alma orgulhosa ¢ nob, ‘que chora sobre oescra- vy € 0 fura a0 senhor"’ Elod, araida por Licifer, desea salvilo € ‘empreende uma perigosa viagem at€ a sua morada. Mas, em vez de redimi-lo, € ela que ci sob o eu dominio ‘J'ai ru t'avoiesauvé, — [Non c'est moi qui entrain” lod, nascida embora de ums ligrima do Redentor, perde-se pa- sa sempte. Assim também a Africa, desposando 0 maldito, nfo en- contrat remissio, Mtoe poesia enttam, nas “Vozes d'Aftia”, como formas dele a histéra do cativeio negro. E, medida que o poema ‘= fez conhecido e amado, cle comegou a integra esa mesma hist ria, pois a imagem do real acaba sendo pare da relidade. A IMAGEM DO DESERTO £ FECUNDA "A palavea cdo no morde"” — € um dos postalados da logica ‘moderna. Os caacteres do signo nada teriam a ver com o objeto de- signado, 0 que em tina anise consteui uma fenovada afitmasio do teor contencional ou ado natural da linguagem. [No extremo oposto, uma cerada especulago eséica que se des- obrou de Vieo a Herder e dos roménticos 2s simboliss postu © ‘atiterfortemente motivado do signo verbal. Tata-se de uma antiga, ‘oxilago, jf pensada luminosamente no Cro platénico, entre uma ‘ora da linguagem como coavencdo e uma toria da inguagem por 261 Corre Soma Tad date Ca, ii, prob, at orem mecca niet hex) em ere peg ecole do cos Caine O leitor de “"Vozes dl’ Aftica” depara-e em mais de uma eseofe com uma imagem obsesiva, a do deserto, que € coerente com 2 re- ptesentagio do cengrio onde se desenrola a tragédia de Cam e da sua ‘estirpe. O repetir-se monétono dessa figura responde a uma neces dade esrucural do poema, centrado na experitncia de umn tempo mi tico no qual as orgens nio cessam de repropor-se. Uma composigio «que lembra pela sua insistnciatemtica, Bolero de Ravel Simbo- lo do desespero sem fim de todo um pow, a palavra deserfoe os seus sinbnimose variants esto saturados de motivagopsicolégicae moral. © que impressona, porém, quando nos acercamos do us0 que Casto Alves far do signo, nfo € tanto a sua corespondéncia intima com orefeente, nem o seu gra de expressvidade aleangado pelo tom ‘que rege 0 poema inter; 0 que causa admirast0 no leitor analitico € a riquera de conotagées que o poeta soube extrait de urn simbolo estrcitamenteatado 2 idéia de esterilidade. Sea palavra cdo nfo mor- de, tampouco a palavea deserto € infecunda, ‘A sua forca de iradiagio & to ativa na semntica do poema que ‘ultrapasa 0s confins aribufdos & morada dos filhos de Cam e pene- ‘tao espacoinfnito do Ta. Os céus da divindade transformam-se em lum cosmos etmo onde se perdem os gritos do continente: “Deus! ‘6 Deus! onde estis que ndo respondes!”. Os céus também estio de- ‘Mas € 56a segunda estofe que aparece a palavea. Vem associa- 4a, sob a forma de uma curiosa comtemnatio, com o mito de Prome- teu. Repare-se nos termos da homologia: Cam esti para Prometeu ‘como lahweh para Zeus; a penedia do desert para o tochedo do Céu- «aso, 0 sol ardente para 0 abuts; 0 istmo de Suez pata as algemas do tid, A grandiosidade das imagens caer fira 0 nosso gosto con- ‘emporineo, em geral mas inelecrualizado ‘Vieror Hugo esl pls rand pote frangais, héls!", queixava-ze André Gide, e outro tanto dizia Mario de Andrade de Casto Alves. Mas 0 que aqui se cootem- Bas pollicis do sgn. 0 deer como instrament do caigo Na tereira estrofe desenvolve-se um Gnico simile: 0 cavalo do Beduino cai morto no areal asim como + Aftica sangra vergatada pelo simum, Quem brande o litego € a prépriadivindade: a chico te do simum dardeja/ O teu brago eternal". O desert das "Vozes”™ € 0 Sahara biblic, ea percepsio hebraca da paisagem afticana do- 264 rina toda representagio espacial do pocma, Comanda os fos da Historia o Senhor do Velho Testament, cos da allanca com 2 gente de Inte ¢ 20 mesmo tempo vingador os seus inimigos. A telacio Iahweb Arca Cam) desert teitetase com nos maties mas et0- fes que se cpuem 2 dscigo da Asia e da Europa 'Naoitaa exrofe o deseo volta como o huge do desgartamen- to, significado a ques junta uma conotacio paricularmente sia: 2 aia em fogo bebe a ligrimas da vitima, “ealver.. p'ra que mew pranto, 6 Deus clemente, io descubras no chia... “J houve quem nota, em flac ao vers que abre a estofe seguinte,'"E nem tenho uma sombra de flores. que o poeta re- dari um continent inti a sua faixa ei, como s ignore que hh repides de imensis floestas no Centro eno Sul da Aftica, 200s

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