You are on page 1of 27
[one e HELCIO MARTINS A RIMA NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE & outros ensaios APRESENTACAO Ivan Junqueira TOPBIOOKS Copyright © 2005 Maria Helena Whatley Direitos de edicao da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela Topgooxs EpiTora. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrénico, de fotocépia, gravagio etc., sem a permissdo do detentor do copyright. Editor José Mario Pereira Editora assistente Christine Ajuz Revisdo Adriano Espinola Clara Diament Capa Julio Moreira Diagramagao Arte das Letras TODOS OS DIREITOS RESERVADOS POR Topbooks Editora e Distribuidora de livros Ltda. Rua Visconde de Inhatima, 58 / gr. 203 —- centro Rio de Janeiro — 20091-000 Telefax: (21) 2233-8718 e 2283-1039 E-mail: topbooks@topbooks.com.br Visite o site da editora para mais informacées www.topbooks.com.br ALITOTES EM MACHADO DE ASSIS I Denunciando ou deslindando contradigdes entre a apa- réncia e a realidade, e produzindo efeitos de humor ou de per- plexidade, a antitese machadiana expressa literalmente a pe- culiar visdo que Machado de Assis tem do mundo: “eu nao sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor” (7), antitese que imediatamente se amplia ou desdobra em outra, dela conseqiiente: “para quem a campa foi outro bergo”. A anti- tese denuncia desde logo que o autor percebe e padece os con- trastes, os choques, os conflitos, os paradoxos, as incertezas e os efeitos de compensacao que se operam na realidade exterior eno mesmo homem: O que parecia espesso era muita vez didfano. (58) Se nao era bonita, também nao era feia. (118) Nao se distinguia bem se era uma crianga com fumos de homem, se um homem com ares de menino, (134) Essa hora [do parto, feita de minutos de vida e minutos de morte. (795) ‘Salvo indicagdo em contrario, os textos citados neste artigo sio das Memsé- rias péstumas de Brés Cubas; 0 mimero entre parénteses corresponde ao paragrafo; a edigdo utilizada é a da Comissio Machado de Assis (Rio de Ja- neiro, Ministério da Educagao e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1960). 309 Hélcio Martins O momento de terror foi curto, mas completo. (831) Eram seis damas de Constantinopla... cara tapada, nado com um espesso pano que as cobrisse deveras, mas com um véu tenuissimo, que simulava descobrir somente os olhos, e na re- alidade descobria a cara inteira. E eu achei graca a essa es- perteza da faceirice mugulmana, que assim esconde o rosto e cumpre 0 uso — mas nao o esconde - e divulga a beleza. (939) A estima que passa de chapéu na cabega ndo diz nada a alma; mas a indiferenca que corteja deixa-lhe uma deleito- sa impressdo. (940) A antitese machadiana assume 4s vezes a forma da antifrase, o que nao se ha de estranhar em face do prazer que o escritor experimenta na indagacAo etimoldgica, a qual mui- to freqiientemente o orienta e dirige na escolha dos nomes de seus personagens; assim, diz ele em Fessurreic¢do, no derra- deiro paragrafo: “Félix era essencialmente infeliz” (Obra com- pleta, Rio de Janeiro, Editora José Aguilar Ltda., 1959, volu- me I, p. 107). Machado de Assis explora ainda os efeitos da antitese em formulacdes compensadas; aos exemplos ja fornecidos acrescen- tam-se estes: “amores ilegitimos, meio secretos, meio divulga- dos” (45), “um pouco amargurado, outro pouco satisfeito” (338); As vezes combina pares de antiteses: “caseira, apesar de bonita, e modesta, apesar de abastada” (103), que por sua vez podem estabelecer entre si nova antitese, como nos titulos dos capitu- los XXIII e XXIV: “Zhiste, mas curto’ e“Curto, mas alegre’, ouna desapiedada indagagao de Bras Cubas sobre Eugénia: “Porque bonita, se coxa? Porque coxa, se bonita?” (327). Também a adjetivacao esta muitas vezes motivada por esse empenho compensatorio: “Estava furioso, mas de um furor tem- perado e curto” (165), “fazendo romantismo pratico e liberalis- mo teérico” (221), “Positivamente era um diabrete, Virgilia, um diabrete angélico, se querem, mas era-o” (385); e nao outra a 310 Ensaios Reunidos motivagao de certas associagées: “cheia daquele feitigo preca- rio e eterno” (278). E muito freqiientemente a antitese conceitual se transmuda no contraste criado pela associagao de termos con- cretos e abstratos, em enumeracées e em outras estruturas sin- taticas: “um rosto cortado de saudades e bexigas” (372), “mos- trava no calcanhar da meia um buraquinho de saudade” (Zsa e Jacé, in Obra completa, edigao e volume citados, p. 893). O conhecimento do carater antitético do homem e da na- tureza é muito cedo incorporado ao conjunto das verdades pes- soais a que Machado de Assis da generalizagao filoséfica e categoria de principio vital; dai sua convicgao de que é sem- pre arriscada a fracasso toda tentativa de identificagao ime- diata das manifestacdes aparentes da realidade, que escon- dem muitas vezes ou sempre, aderidas ou subjacentes, ou- tras tantas manifestacdes contrarias. Numerosos personagens seus e 0 proprio narrador expressam constantemente a hesi- tacéio que os trava quando postos diante desse jogo de apa- réncia e realidade. E essa hesitacao que conduz a toda sorte de meias afir- magoes e ressalvas que se notam em seu estilo e que se mani- festam expressivamente pelo imoderado uso do advérbio ¢a/- vez e de frases comegadas por creio que, penso gue, suponho gue, é possivel que, é provdvel que, ou de outras ainda mais tortuosas e torturadamente ressalvadas por um 7do é impos- sivel gue ou ndo é improvdvel que, e formas tais. Quando de- correu muito tempo entre a agéo narrada e sua narragao, os procedimentos aqui mencionados acentuam essa relacao tem- poral e contribuem de maneira eficaz a manté-la viva na cons- ciéncia do leitor; é que Machado de Assis nao esta preso em sua ficcéo a qualquer compromisso de retratar os fatos com fidelidade a sua realizagao, mas 4 maneira pessoal por que ele os percebe ou recorda: Creio que nessa ocasido houve grandes aplausos, mas néo juro; eu pensava em outra cousa. (810) 311 Hélcio Martins Pela mesma razdo se explica a estilacao da linguagem rea/ de seus personagens, varias vezes confessada pelo narrador: Afiangou que me daria finas jéias por precos baratos. Nao disse precos baratos, mas usou uma metdfora delicada e transparente. (358) E também a estilizacao de outros fenémenos, por irrelevantes para os fins da narracao. A linguagem que atri- bui a seus personagens 6, pois, a sua propria linguagem, res- salvados naturalmente os casos que o proprio narrador de- nuncia, tal o de José Dias, que amava os superlativos, e pou- cos mais. Eventualmente, a alternativa que decorre da hesi- tacao desfaz uma frase feita e aponta certeira na pretendida verdade da narracao, as vezes criando efeito levemente hu- moristico: Nao tinha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciéncia. (1015) Também um efeito humoristico é o que pode resultar da suposta deficiéncia de memoria do narrador, quando muito re- moto é o tempo da ac&o narrada: Néo afirmo se os nossos labios chegaram a distancia de um fio de cambraia ou ainda menos; é matéria controver- sa. Lembra-me, sim, que na agitagdo caiu um brinco de Virgilia. (828) Esse efeito humoristico é realcado pela precisao com que o narrador recorda e refere minisculos acontecimentos da mes- ma hora remota; a ultima passagem citada continua assim: caiu um brinco de Virgilia, que eu inclinei-me a apanhda-lo, e que a mosca de hd pouco trepou ao brinco, leuando sempre a formiga no pé. 312 Ensaios Reunidos Aimperfeita reconstituigo de um fato, motivada pela gran- de extensAo de tempo que o separa de sua narragdo, pode tam- bém ensejar exercicio de especulagao psicolégica finamente en- gendrados: Suponho que Virgilia ficou um pouco admirada, quando the pedi desculpa das lagrimas que derramara naquela tris- te ocasido. Nem me lembra se interiormente as atribui a Dona Placida. Com efeito, podia acontecer que Dona Placi- da chorasse, ao vé-la desapontada, e, por um fenémeno da visdo, as lagrimas que tinha nos préprios olhos Ihe pareces- sem cair dos olhos de Virgilia. (824) Ainda a propésito do estilo de frases ressalvadas, observem- se casos muitos especiais, como este, em que segunda ressalva assegura a probabilidade que a primeira quer deixar entrever: Segundo parece, e ndo é improvavel, existe entre os fatos da vida piiblica e os da vida particular wma certa agao rect- proca, regular, e talvez periddica. (812) Nesta passagem, merece atencao 0 modo aproximativo de dizer wma certa a que responde aquele talvez periddica. Sobre essas frases de ressalva pode apoiar-se por inteiro a especula- Go, que por isso mesmo se apresenta como ressalva pura, de que nao surge qualquer afirmacao positiva, sequer parcial: Nao € impossivel que eu desenvolva este pensamento, antes de acabar 0 livro; mas também nao é impossivel que o deixe como esta. (871) Enriquecendo esse jogo de ressalvas e hesitagGes, Machado de Assis é as vezes levado a admitir “que se nao entende”, como no capitulo CVIII, assim intitulado com referéncia ao leitor, é claro, cujo pensamento de légica armagio faz surgir a maldosa e fina ironia da ultima frase: 313 Hélcio Martins Quanto a mim, se vos dizer que li o bilhete trés ou quatro vezes, naquele dia, acreditai-o, que é verdade; se vos disser mais que o reli no dia seguinte, antes e depois do almogo, podeis cré-lo, é a realidade pura. Mas se vos disser a como- ¢Go que tive, duvidai um pouco da asser¢ao, e ndo a aceiteis sem provas. Nem entdo, nem ainda agora cheguei a discernir o que experimentei. Era medo, e ndo era medo; era dé e ndo era dé; era vaidade e nao era vaidade; enfim, era amor sem amor, isto é, sem delirio; e tudo isso dava uma combinagdo assaz complexa e vaga, uma coisa que ndo podereis entender, como eu nao entendi. Suponhamos que ndo disse nada. (851) Uma licao, entretanto, se entende ai muito claramente: o leitor pode aceitar, sem receio do qualquer prejuizo da verda- de, o que lhe conta um narrador sobre fatos concretos e exteri- ores, mas nao deve crer sem provas no que esse mesmo narrador lhe refira de comocées e outros fenémenos de intimidade psico- légica. Vai desse modo Machado de Assis a todo passo denunci- ando a precariedade das afirmacdes categéricas e implicita- mente proclamando a ignorancia em que se esta da verdade do mundo e dos homens. E da ignorancia dos fatos, passa natu- ralmente a das causas que os determinam: Nao sei por que lei de transtorno cerebral, fui eu que me pus arir. (75) Talvez por apressar a natureza, obrigavam-me cedo a agar- rar as cadeiras. (98) Nao sei se por espirito de classe e simpatia de oficio, perdo- ava no déspota o que admirava no general. (109) Adivinhe quem quiser a causa da diferenga; eu fujo ao Damasceno. (809) Nao sei que fendmeno se deu que fui deixando aqui dous anos, ali quatro, logo adiante cinco. (913) 314 Ensaios Reunidos Nao sei por que fenémeno de ventriloquismo cerebral (per- doem-me os filésofos essa frase barbara) murmurei comigo esta palavra. (943) Seja ou no verdadeira a minha explicagdo, basta-me dei- xar escrita nesta pagina, para uso dos séculos, que a indis- cri¢éo das mulheres é uma burla inventada pelo homens. (952) Precisamente a ignorancia das verdadeiras causas dos fenémenos que refere conduz o narrador a sugerir mais de uma, quase sempre duas, alternadas ou opostas, do que re- sulta o freqiiente recurso as oragGes causais coordenadas en- tre si, muitas vezes seguidas da observagao de que se exclu- em todas, por insatisfatérias, ou de que todas se conjugam numa causa nica e complexa. Nao é este um procedimento peculiar a determinada época da produgéo machadiana e ocorre indistintamente nos contos e nos romances. Assim, por exemplo, em Fessurreig¢do (Obra completa, edig&o e vo- lume citados, p. 64), Dona Matilde Morais vé a filha Raquel agonizante e suspeita haver nela, por tras do mal fisico, “uma inexplicavel melancolia, anterior 4 doenga, uma espécie de tédio precoce da vida, se nfo era antes alguma esperanca malograda — ou mais claramente, alguma afeig&éo sem espe- ranca”. Com docura e tato, intenta extrair a filha o mistério que julga entrever; mas, “ou porque nada houvesse realmen- te, ou porque quisesse levar consigo o segredo da sua melan- colia, Raquel nenhuma confissao lhe fez.” (p. 65) Neste pas- so, em que a alternativa que estabelecem as duas causais parece corresponder intencionalmente a que se desenha na frase anterior (“se nao era antes alguma esperanca malo- grada”) jd se delineia com nitidez o procedimento, tao do gosto de Machado de Assis, que consiste em referir a possivel plu- ralidade das causas para um mesmo ft exemplos: némeno, como nestes 315 Hélcio Martins Vejo-a assomar 4 porta da alcova, pdlida, comovida, traja- da de preto, e ali ficar durante um minuto, sem Gnimo de entrar, ou detida pela presenga de um homem que estava comigo. (28) Deixei-me ir, calado, nao sei se por medo ou confianga. (50) Caiu do ar? Destacou-se da terra? Nao sei; sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu entdo. (58) Um grande sol, que 0 Quincas Borba, ndo sei se por chalacga ou poesia, chamou um dos ministros da natureza. (971) N&o poucas vezes, Machado de Assis arreda 0 problema criado com a referéncia a mais possivel causa de um mesmo fenédmeno, como se quisesse fazer crer que sd 0 resultado lhe interessa: Quem quer que fosse, porém, o pai, letrado ou horteldo, a verdade é que Marcela nao possuia a inocéncia rustica. (135) Fosse como fosse, tudo estava explicado. (824) Muito de uso, Machado de Assis parece comprazer-se em erguer uma duvida, deixa-la ao leitor e passar adiante, ao que declara ser o fio verdadeiro da narracao; assim, depois de fazer chocarem-se, com seus melhores fundamentos, as teses de dois tios sobre o pecado ou a virtude que ha no amor das glérias tem- porais, diz Bras Cubas: Decida o leitor entre o militar e 0 cénego; eu volto ao emplasto. (16) A verdade, entretanto, é que, ao ver referida a pluralidade de causas de um mesmo efeito, 0 leitor nao se encontra diante de um problema proposto 4 sua finura e lucidez, e sim diante 316 Ensaios Reunidos da ligéo de que muitas sao as motivagées de um sentimento ou de um gesto humano, sem que seja possivel a quem apenas observa 0 resultado delas discernir entre todas a que prepon- dera e prevalece; e sem que seja possivel tampouco ao proprio sujeito desprender, do feixe de suas intimas motivacées, a que determinou seu gesto ou sentimento, ou se um e outro nao re- sultarao de todas elas. Levado pela sutileza de sua especula- cao, Machado de Assis atribui causas menos ostensivas ao que parece muito ostensivamente determinado; sua fina percepgao psicolégica permite trazer a tona razées subconscientes ou ines- peradas para os atos humanos. Nesse processo, 0 sentido de humor de Machado de Assis encontrou um de seus mais segu- ros instrumentos de realizacdo, muitas vezes A custa do leitor supostamente inveterado em fazer ilagées de causa e efeito: Néo se conclua dat que eu levasse todo o resto da minha vida a quebrar a cabeca dos outros. (101) Nao tremas assim, leitora pélida; descansa, que no hei de rubricar esta lauda com um pingo de sangue. (548) Com isto iam-se passando os anos, ndo a beleza, porque no a tivera nunca. (644) Cansago da entrada e da subida, néo do caminho, porque ia sempre de sege. (757) Jé disse que 0 morro era entdo desabitado; disse-Ihe tam- bém que vinhamos da missa, ¢ nao lhes tendo dito que cho- via, era claro que fazia bom tempo, um sol delicioso. (917) Diante de uma realidade em que se operam tantos contras- tes e conflitos, e em que as aparéncias desmentem tao freqiiente- mente as realidades que cobrem ou sao por elas desmentidas, previne-se Machado de Assis com uma atitude de prudéncia, eqiiidistancia e até isengao ou aparente alheamento, ao mesmo 317 Hélcio Martins tempo que repudia e aborrece toda forma de afirmacao categéri- ca, quando desafiado pela interrogagaéo do mundo. Autor e perso- nagem se identificam nesta observacdo de Bras Cubas: Se esse mundo no fosse uma regido de espiritos desatentos, era escusado lembrar ao leitor que eu sé afirmo certas leis, quando as possuo deveras; em relagdao a outras restrinjo-me & admissdo da probabilidade. (812) Desse reptidio as afirmacoes categéricas nasce 0 que o pré- prio Machado de Assis chamou seu estilo de ébrio, que vai gui- nando a direita e a esquerda, andando e parando, ao passo que o leitor supostamente deseja a “narracao direita e nutrida, o estilo regular e fluente”. (634) O comportamento espiritual de Machado de Assis em face da realidade se traduz de fato, em termos lingitisticos, numa expressao riquissima em compensacoes, contraposicées e paralelismos (frases adversativas, concessivas, etc.): Foi essa a fase mais brilhante da minha vida. Nao obstan- te, calo-me, ndo digo nada, ndo conto os meus servi¢os, 0 que fiz aos pobres e aos enfermos, nem as recompensas que recebi, nada, ndo digo absolutamente nada. Talvez a economia social pudesse ganhar alguma coisa, se eu mostrasse... mas seria romper o siléncio que jurei guar- dar neste ponto... Afirmo somente que foi a fase mais bri- lhante da minha vida. (1038-1039) Sabina fez-me sentar ao pé da filha do Damasceno, uma dona Euldlia, ou mais familiarmente NhG-lolé, moga gra- ciosa, um tanto acanhada a principio, mas s6 a princi- pio. Faltava-lhe elegancia, mas compensava-a com os olhos, que eram soberbos e sé tinham o defeito de se ndo arrancarem de mim, exceto quando desciam ao prato; mas Nhda-lolé comia tdo pouco, que quase nao olhava para o prato. (787) 318 Ensaios Reunidos Essas compensacoes e guinadas do estilo, essa marchas e contramarchas do dizer, assumem por vezes formas muito su- tis, em que o ritmo ziguezagueante do pensamento e da ex- pressio se constrdéi sobre unidades de extensfio muito reduzi- da, palavras, jé nao frases, que se vao contrabalancando alter- nadamente na sua sucessao: Nao era a frescura da primeira idade; ao contrério; mas ainda estava formosa, de uma formosura outoniga, realca- da pela noite. (943) Dizia Bras Cubas ter “a paixdo do arruido, do cartaz, do foguete de lagrimas”, e observava: “Talvez os modestos me argtiam esse defeito; fio, porém, que esse talento me hao de reconhecer os mais habeis. Assim, a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas” (14). Assim é também 0 estilo de Ma- chado de Assis a expressio de um espirito voltado sobre uma realidade que, ao dar uma face, esconde a reversa, obrigando sempre o seu observador a movimentos de contorno se a quiser apreender na verdadeira significacao e totalidade. A condugao, em ritmo lentissimo, desse processo de contorno de uma face a outra da medalha produz extraordindrios efeitos na expressaio das contradigdes do homem, seu cinismo, sua hipocrisia, sua mascarada mesquinhez. A nenhuma generosidade de Bras Cubas se pe a nu gracas a esse processo no episédio do almo- creve (capitulo XXI) e no achado da meia dobra e dos cinco contos de réis (capitulos LI e LID). Mostrando-se a realidade em faces que nfo se dio juntas quase nunca e que so pelo menos diverses umas das outras, quan- do nao estabelecem completo desacordo entre si, impde-se a Ma- chado de Assis a convicgao da relatividade de todo conhecimento unifacial, que é quase sempre o que se permite ao homem: [um gal] ... trazia a crista tao comida e ensangiientada, que vi logo nele o vencido; mas era engano ~ o vencido era 0 outro, que nao trazia crista nenhuma. (918) 319 Hélcio Martins Outra vez perguntei, a mim mesmo, como no capitulo LXXV, se era para isto que o sacristdo da Sé e a doceira trouxeram Dona Plécida a luz, num momento de simpatia especifica. Mas adverti logo que, se ndo fosse Dona Placi- da, talvez os meus amores com Virgilia tivessem sido in- terrompido, ow imediatamente quebrados, em plena efer- vescéncia; tal foi, portanto, a utilidade da vida de Dona Placida. Utilidade relativa, convenho; mas que diacho ha absoluto neste mundo? (995) A conviccao dessa relatividade estende-se também 4 du- racao de tudo que povoa a existéncia do homem; a mesma licao da brevidade da vida vale para o mundo que o homem constroi e eventualmente vale também para a criacdo anterior. Assim, depois de votar ao leitor que Deus o livre de uma idéia fixa, torna Bras Cubas a dizer da sua que era fixa: fixa como... Nao me ocorre nada que seja assaz fixo nesse mundo: talvez a lua, talvez as piramides do Egito, talvez a finada dieta germdnica. Veja o leitor a comparagdo que melhor lhe quadrar. (23) Aconsciéncia da relatividade (e, portanto, da precariedade) de todo conhecimento unifacial cria em Machado de Assis, em- penhado no conhecimento integral da verdade, a irreprimivel inclinagdo a associar e até a fundir os aspectos parciais e diver- sos de uma mesma realidade ou, quando menos, a denuncié-los: A minha idéia trazia duas faces, como as medalhas. (14) O hipopétamo ndo me entendeu ou no me ouviu, se é que ndo fingiu uma dessas causas; e, perguntando-lhe, visto que ele falava, se era descendente do cavalo de Aquiles ou da asna de Balado, retorquiu-me com um gesto peculiar a es- tes dois quadrupedes: abanou as orelhas. (52) 320 Ensaios Reunidos Um riso misto, como devia ter a criatura que nascesse, por exemplo, de uma bruxa de Shakespeare com um serafim de Klopstock. (145) Uma expressdo candida - candida e outra cousa que eu nesse tempo nao entendia bem. (145) Foi-se 0 embrido, naquele ponto em que se néo distingue Laplace de uma tartaruga. (796) Ao pé da graciosa donzela, parecia-me tomado de uma sensa- ¢Go duplae indefinivel. Ela exprimia inteiramente a dualidade de Pascal, Yange et la béte, com a diferenga que o jansenista ndo admitia a simultaneidade das duas naturezas ~ Vange, que dizia algumas cousas do céu ~e la béte, que... (808) Nao a vi partir; mas & hora marcada senti alguma coisa que no era dor nem prazer, uma cousa mista, alivio e saudade, tudo misturado, em iguais doses. (887) A lembranga de Virgilia aparecia de quando em quando, & porta, e com ela um diabo negro, que me metia & cara um espetho, no qual eu via ao longe Virgitia desfeita em lagri- mas; mas outro diabo vinha, cor de rosa, com outro espelho, em que se refletia a figura de Nhd-lold, terna, luminosa, angélica. (912) Virgilia traira o marido, com sinceridade, e agora chorava- ocom sinceridade. Eis uma combinagdo dificil que nao pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do car- ro, suspeitei que a combinagao era possivel, e até facil. (1017) Eu gostava, as vezes, de imaginar esses contrastes de re- gido, estado e credo. Alguns dias antes tinha pensado na hipétese de uma revolugao social, religiosa e politica, que transferisse o arcebispo de Cantudria a simples coletor de 321 Hélcio Martins Petrépolis, e fiz longos cdlculos para saber se o coletor eli- minaria o arcebispo, ou se arcebispo rejeitaria o coletor, ou que por¢do de arcebispo pode jazer num coletor, ou que soma de coletor pode combinar com um arcebispo, etc. Questées insoltiveis, aparentemente, mas na realidade per- feitamente soltiveis, desde que se atenda que pode haver num arcebispo dois arcebispos - 0 da bula e o outro. (1018) Esses estilo de guinadas a direita e 4 esquerda, de longos contornos a volta de um ponto, serve-se necessariamente de pro- cedimentos lingiiisticos especiais, adequados 4 sua expresso mais cabal. Se a composicao do romance é tortuosa, entremeada sem- pre a narracdo de extensos parénteses especulativos ou de narra- cao secundaria, também a frase machadiana é perifrastica, ja- mais direta e continua, nao cabendo dizer-se dela, como é vezo constante, que é uma frase clara e precisa, sdbria e coisas tais; muito ao contrario, a frase de Machado de Assis é de seu uso obs- cura e ampulosa na sua constituicao estrutural, rebuscada e até afetada na medida em que se poe a servico da expressao de um espirito igualmente rebuscado e imoderado na ansia de captar a significacéo multifacial das coisas. Alguns notaram-lhe com desprazer o gosto das formas redundantes, obstinados em enten- der que o bom escritor deve fidelidade a clareza e economia direta da frase; esquecem que ha virtude também na obscuridade e que uma forma redundante pode representar investimento rendoso, e portanto economicamente positivo, para a expressao artistica. Um desses procedimentos lingiiisticos especiais a que nos queremos referir, dentre as diversas formas de perifrase, é a litotes, espécie muito particular de formulacao negativa de um significado positivo. Il A formulac&o, em termos lingitisticamente negativos, de uma asserco de significado positivo assume na prosa de Machado de Assis variadissimas fisionomias sintaticas, todas facilmente re- 322 Ensaios Reunidos conheciveis e fartamente documentadas na lingua literdria e até na linguagem oral da gente culta. 0 que torna esse fenémeno merecedor da atengao especial e faz dele, sem qualquer divida, um trago distintivo da linguagem de Machado de Assis é justa- mente 0 extenso leque de estruturas de frase em que se manisfesta ea intensa freqiiéncia de sua utilizagao por esse prosador. Nao é ele em si mesmo um desvio lingiiistico a considerar; a insistente reiteracao de seu uso, esta sim, é que desde a primeira leitura faz acordar a suspeita de que se esta em face de uma pista para a caracterizacao do estilo de Machado de Assis. O uso imoderado desse procedimento confirma o que disse- mos ha pouco do estilo da frase machadiana, isto é, que é peri- frdstica e tortuosa, ampulosa e por vezes obscura na sua consti- tuicdo estrutural, pela necessidade de atender expressivamente Aquele estilo de ébrio, de sucessivos contornos e alternadas que- das a direita e a esquerda, semelhante na sua linha a da prépria composicao do romance e do conto machadiano. Asinuosidade da dicg&o esta determinada nesse escritor pe- las abundantes formas de compensagao ja referidas (frases adversativas, concessivas, etc.) e também por um discurso que poderiamos chamar envolvente em atengdo a sua circularidade, marcado por numerosas formas de perifrase, uma das quais va- mos estudar em seguida. Em sua estrutura mais elementar, es- sas formas lingiiisticamente negativas para a expressao de signi- ficados positivos estao identificadas com a figura retérica da litotes, que se pode representar pela formula Vado A, que expressa um significado Z, contrario ou pelo menos diverso do significado cor- respondente ao termo A (isto 6, Wao A=B). Litotes (do grego Aité6™{, ‘pequenez’, por extensao ‘atenu- acao, modéstia’) é uma figura de retérica que consiste formal- mente na negagdo de um conceito para o fim de afirmar-se o conceito contrario. Os sistematizadores e divulgadores da re- t6rica classica definem esse termo, por via de regra, de duas maneiras distintas e quase opostas. Dizem uns que a litotes atenua a afirmacao de um conceito ao negar 0 seu contrario; segundo estes, a sempre citada frase de Jimen» ao Cid — “Va, 323 Hélcio Martins jane te hais point” (3,4,963) — corresponde a uma forma atenu- ada de dizer “je t’aime”. Afirmam outros que a litotes é um modo de dizer menos, para significar mais, pelo que a frase de Corneille vale, mais precisamente, “je t'aime beaucoup”. Ora a litotes oferece largas a reflexdo lingitistica e psicol6- gica, que poucos tém querido ou sabido explorar;” de uma pers- pectiva estilistica, em qualquer das acepgdes modernas desta palavra, pouco mais tem merecido que escassas e breves refe- réncias, sendo este entretanto 0 campo mais propicio a elucidagao do seu complexo funcionamento. A disconformidade de tais definicdes parece resultar de ambicionarem todas abar- car de maneira simplista um fendmeno riquissimo em cambi- antes no seu variado condicionamento lingiiistico e psicoldgi- co; em outras palavras, nao parecem estarem essas definigdes sustentadas em prévia discriminacdo e andlise desses mati- zes, operacdo que é entretanto indispensavel para a correta conceituacao da litotes. Examinem-se as frases “nao é facil”, “nao é dificil”, e “nao é bom”, “nao é mau”. Facil e dificil, como bom e mau, expres- sam significados opostos e extremos; as frases respectivas se opdem no mesmo sentido mas nao sao correspondentemente extremas do ponto de vista do significado que expressam, por isso que entre facile dificil, e entre 60m e mau, se estende larga cadeia de significados intermediarios, em cujo centro se localiza um juizo indiferente, donde poder a negacao de um valor impli- car a afirmacdo de mais de um diverso do negado. Ja uma frase como “nao é possivel” tem a mesma e tnica significacao de “é impossivel”: sao ambas formas litéticas (sintaticas a primeira e morfolégica a segunda) e tem ambas a mesma tensAo expressi- va; irredutivel que é a oposicao entre posstve/ e impossivel, sem cabiveis significados intermedidrios, a litotes é de fato, no caso presente, uma forma de negacao do conceito oposto ao que se pretende afirmar. 2 S&o apreciaveis as observacées de Jules Marouzeau em seu 7taité de stylistique latine, Paris, Librairie Klinsieck, 1946, pp. 255 e ss. 324 Ensaios Reunidos - Entre as frases do primeiro grupo e estas tltimas ha a essencial diferenga de aludirem aquelas a conceitos subjetivos e essas a conceitos objetivos; ou seja, a referida gradagao do significados entre facile dificil, e entre bom e mau, decorre de serem estas palavras instrumentos de referéncias axiolégicas, 0 que nao se da com possivel e impossivel, conceitos que se afirmam com absoluta independéncia dos juizos humanos. A litotes do primeiro grupo no nega portanto 0 conceito oposto ao que se propée afirmar, antes restringe consideravelmente a afirmacao deste ultimo. Por tudo isto, parece-nos muito bom o que diz Lausberg: a litotes é uma combinagao perifrastica da énfase e da ironia; e a sobriedade desse meio de expressao é um intermedidrio no confronto de significados extremos, que protesta contra a exagerada epidéixis do extremo contrario. Segundo Lausberg, seria inconveniente que Jimena dis- sesse ao Cid “je t’aime” na citada passagem: esta frase nao estaria adequada 4 situacao, e a ironia “je te hais”, por outro lado, ofereceria 0 risco de ser entendida como expressao de um sentimento real, porque admissivel naquela situagao; a litotes é ai entendida na significagao mentada (intengao de dizer “je t’aime” ) com fundamento na preestabelecida simpatia entre o sujeito falante e o que ele diz.‘ Os que dao 4 frase de Jimena um sentido atenuado de “je t'aime”, e os que ao contrario a entendem como “je t'aime beaucoup”, cometem uns e outros 0 erro essencial de nao considerar esses elementos contextuais: a relacio das pessoas entre si e relaciio das pessoas com a situacfo e o momento em que a frase é proferida. Numa frase como “nao é assim” ou “nao é isso”, a negagao incide sobre um significado que nao é extremo de série nem alternativa conceitual, como o sdo facil em relagao a dificil, bom em relagao a mau e possivel em relagaio a impossivel, e vice-versa; os conceitos negados no constituem série ou alter- nativa, e sua negacao implica sé a afirmagao de outro, cuja * Heinrich Lausberg, Handbuch der literarischen Rhetorik, § 586. * Ibidem, § 588. 325 Hélcio Martins relacdo com eles é desconhecida ou nao existe objetivamente. Em frases assim, a litotes é logicamente obscura, nao aponta sequer indiretamente a qualquer conceito positivo; correspon- de apenas A operacao inicial de um processo expressivo que sé se completa com 0 enunciado explicito do conceito que verda- deiramente se quer afirmar. Esta distingao é indispensdvel a uma justa compreensao da litotes e sua perfeita avaliacio como fator de expressividade em Machado de Assis. E que no prosador brasileiro tem largo uso essa espécie de litotes obscura ou meia litotes, que por si sé nao deixa entrever 0 conceito que vai ser afirmado, o que lhe da em relacgao a este conceito o cardter de termo anunciante, mas nao denunciante. Ao ver assomar Virgilia 4 porta de sua alcova, “palida, co- movida, trajada de preto”, Bras Cubas contempla-a com sau- dade, “esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto”. E conta em suas Memdrias. Havia ja dois anos que nos nado viamos, e eu via-a agora, ndo qual era, mas qual fora, quais féramos ambos, por- que um Exequias misterioso fizera recuar o sol até os dias jJuvenis. (28) O leitor, que sabe ser verdadeira a aparicao de Virgilia, podera entender com a frase “eu via-a agora” que Brads Cubas a via como ela era entao (“Tinha entao 54 anos, era uma ruina, uma imponente ruina’, dissera ele no paragrafo anterior); mas Bras Cubas contemplava-a com olhos de saudade, e “nenhuma Agua de Juventa igualaria ali a simples saudade”; por isso, antes mesmo de dizer que a via “qual fora”, corrige com a litotes “nao qual era” a provavel interpretacao de seu leitor: “Nao qual era, mas qual fora, quais f6éramos ambos.” O mecanismo desse procedimento, que se repete milhares de vezes na obra de Machado de Assis, sem distincAo de época e de género, é de importancia capital para a andlise e entendi- mento final de seu estilo, considerada esta palavra como 0 con- 326 Ensaios Reunidos junto dos meios de expressao criados e organizados para o fim de traduzir literariamente o conjunto das essenciais atitudes de espirito do escritor em face da vida e da prépria obra. Inicialmente, 0 exame desse procedimento revela que Ma- chado de Assis tem a vista 0 leitor, ao escrever seu livro. Note- se que nao estamos repetindo a sabida verdade da relagao cons- tante de Machado de Assis com seu leitor, que ele estabelece através de numerosas formas de contato e convocagao: ninguém desconhece que nunca 0 leitor foi tao chamado, puxado, ironizado, sacudido, escarnecido e xingado como na obra desse bruxo, que esta sempre se dirigindo a ele ao contar ou ao inter- romper suas histérias, que nao o deixa esmorecer um minuto na atengao, até o ponto final da narrativa; quando dizemos que Machado de Assis tem 4 vista 0 leitor ao escrever seu livro, queremos significar coisa menos ébvia, talvez ainda nao perce- bida: queremos dizer que ele cria 0 leitor, ainda sem o chamar ou referir-se a ele, ainda sem lhe falar, direta ou indiretamen- te. O leitor de Machado de Assis nasce de sua frase mais tipica, e essa frase jé vem A luz gravida da segunda pessoa, que pode- ria nao existir em carne e osso, de livro na mao, mas que surge e existe com o escritor mesmo, para o didlogo vital de que é feita sua obra toda. Na frase “nao qual era, mas qual fora”, Machado de Assis explicita com a litotes “nao qual era” a erré- nea (mas razodvel) interpretacado que esse obscuro e secreto leitor ia fazendo de suas palavras anteriores (“eu via-a ago- ra”), e logo a corrige, fazendo erguer sobre a negagao do mau entendimento a verdadeira intengdo de sua palavra. Toda a obra de Machado de Assis é um didlogo com esse leitor nem sempre convocado pelo nome, nem sempre explicitado, mas pre- sente sempre. Em Machado de Assis, autor e leitor sao gémeos e insepardveis, so uma sé pessoa desdobrada, e é nisso que reside a verdadeira razao de seu coloquialismo, que outros es- tudiosos tém buscado demonstrar por caminhos diversos. O coloquialismo é 0 trago expressivo que essencialmente define e individualiza Machado de Assis como escritor, e nao apenas um de muitos aspectos que se podem descobrir nele; 327 Hélcio Martins nao é, como as vezes se diz, fruto de um tom impresso a fala, ou da selecdo dos vocabulos, ou da articulacao da frase, ou de tudo isso: o coloquialismo de Machado de Assis é semente, nao é fruto, resi- de e confunde-se com a tensao criadora que faz brotar o leitor junto com a expressao, pela necessidade vital de dialogar com ele. E 0 didlogo de Machado de Assis com esse leitor nao, com esse interlocutor, nao é jamais um didlogo cordial e ameno, é sempre Aspera discérdia, sempre um duelo, de que nunca sai vencedor “o outro”, o qual no entanto reabre a luta sempre, insubmisso em cada linha da pagina. Estilo coloquial quer dizer aqui estilo dialético, de permanente contraposicao, estilo de contradic&o. A frase “nao qual era, mas qual fora”, sobre a qual apoia- mos as observacées precedentes, tem uma estrutura formal semelhante a de milhares de outras frases de Machado de As- sis; essa estrutura pode ser representada pela férmula ao A, mas B, cujo termo &, no caso presente, corrige 0 termo A. Di- zemos no caso presente porque, embora a mesma estrutura, e conseqiientemente a mesma férmula, se reproduza em nume- ro muito elevado, se ha de notar uma rica variedade de fungdes dos termos A e #na relacgdo que eles mantém. No exemplo até aqui considerado, o termo A corrige no termo A a perspectiva temporal expressa pelo verbo: “nao qual era, mas qual fora”, correcao que fez reerguer-se, sobre a “imponente ruina” que era Virgilia ao 54 anos, a exuberante mulher dos amores de Bras Cubas. Em outras frases da mesma estrutura, a correcao de B sobre A pode incidir noutra forma de tempo, no tempo histdérico e sucessivo da vida de um personagem: Eis uma combinagdo dificil que ndo pude fazer em todo o trajeto; em casa, porém, apeando-me do carro, suspei- tei que a combinagao era possivel, e até facil. (1017) A férmula VGoA, mas B freqiientemente se mascara, como nesta passagem, com a substituigéo do elemento negativo do por um prefixo (dificil) de igual funcao, e com a substituicdo do mas por outro elemento adversativo. Esse mascaramento pode 328 Ensaios Reunidos ainda assumir grande variedade de formas e mais de uma vez despistara 0 leitor desatento. Outros exemplos das Memérias péstumas de Bras Cubas: A minha ambigéo ndo era a paixéo verdadeira do poder, mas um capricho, um desejo de folgar. (969) Néo eraa letra fina e correta de Virgilia, mas grossa e desi- gual. (988) Nao segundo um padrao rigido, mas ao sabor das circuns- tancias e lugares. (102) [wm beijo] nao furtado ou arrebatado, mas candidamente entregue. (332) um certo vento morno, néo forte nem dspero, mas abafadi- so. (373) aquele fenémeno, ndo raro, mas curioso. (392) Foi-se-me a idéia entranhando no espirito, ndo a forga de martelo, mas de verruma, que é mais insinuativa. (454) sem os pulos do costume, mas discreto, meigo, sério. (757) Observe-se, nos que se dio a seguir, o mascaramento da formula Nao A, mas B, produzido pela supressao ou substitui- cao do mas, pela variagao do elemento negativo do termo inici- al, e ainda pelo acimulo do elementos perifrasticos: Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denun- ciar nada; uma igualdade de palavra e de espirito, uma dominagao sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. (45) 329 Hélcio Martins Nao me lembra o que lhe disse; lembra-me que ele me aper- tou a mdo com muita for¢a. (199) O homem vulgar que ouvisse a ultima palavra do Damasceno, nado se lembraria dela, quando, tempos depois, houvesse de olhar para uma gravura representando seis damas turcas. Pois eu lembrei-me. (939) O que eu quero dizer ndo é que esteja agora mais velho do que quando comecei o livro. A morte ndo envelhece. Quero dizer, sim, que em cada fase da narragdo da minha vida ex- perimento a sensa¢dao correspondente. (967) Questées insoltiveis, aparentemente, mas na realidade per- feitamente soltiveis. (1018) - Em todos estes exemplos, como em muitos outros que 0 leitor acrescentara, a correcéo do termo @ sobre o termo A implica a retificacaéo de uma asser¢ao plausivel ou a resposta a uma velada indagacAo razodvel desse interlocutor em que se desdobra o narrador. No ultimo, a retificagao leva o tom iréni- co de quem adverte ao interlocutor que a realidade deve ser buscada além de suas aparéncias, que a escondem ou desvirtu- em: “Questées insoltiveis, aparentemente, mas na realidade perfeitamente soltiveis.” N4o nos parece pratico nem cémodo para o leitor (e tampouco isto aumentaria a eficacia de nossa demonstragao) transcrever em seguida todos os exemplos desse procedimento expressivo, que o leitor podera surpreender ele mesmo, com muito maior prazer, retomando qualquer dos livros de Macha- do de Assis. Mas a frase formula ao A, mas Be suas varian- tes oferecem matizes que convém especificar: 1) O termo #reitera Mao A: Nao rejeitou uma sé pagina da novela; aceitou-as todas. (632) 330 Ensaios Reunidos Nao era homem que visse a parte substancial da igreja; via 0 lado externo, (106) Nunca o desejo era razodvel, mas um capricho puro, uma criancice. (158) Nao podia ter sido feia; ao contrério, via-se que fora bonita, e ndo pouco bonita. (349) Em vao procurei no rosto dela algum vestigio da doenca; nenhum havia; era a pele fina e branca do costume. (379) O labio do homem ndo é como pata do cavalo de Atila, que esterilizava o solo em que batia; é justamente o con- trario. (391) 2) O termo Bé conseqiiente de Nao A ou o explica: Ela nao é uma planta aérea, precisa de chao. (101) Nao péde acabar; um solugo estrangulou-lhe a voz. (155) Nao linha muita vontade de falar; levava uma pedra na garganta ou na consciéncia. (1015) 3) A assercao do termo A é negada, nfo por falsa ou errénea, mas por insuficiente; e o termo Bamplia sua extensao: Nao era um jantar, mas um te-deum. (113) Nao fez uma glosa, mas trés. (113) Nao estava magra, estava transparente. (222) Quincas Borba rejeitou-a inteiramente, néo como improvd- vel, mas como absurda. (1009) 331 Hélcio Martins Efeito quase sempre idéntico é 0 que se obtém do uso da variante do sé A, mas B: Voés, que s6 amais os livros, sendo que padeceis a mania deles. (638) Nao s6 por serem deselegantes, mas também por serem anti- higiénicas. (963) Interpretagdo que nao era sé errénea, mas caluniosa. (964) Nao s6 estava louco, mas sabia que estava louco. (1045) O levantamento completo das formas negativas que ocor- rem nas Memdrias pdéstumas de Brds Cubas permitiu-nos o registro de dois exemplos da construcao 7do sd... como..., habi- tualmente condenada pelos gramaticos: Nédo sé pela morte havida, como porque, entre as donzelas esca- pas, ndo é impossivel que figurasse uma avé dos Cubas. (734) Um novo sistema de filosofia, que ndo sé explica e des- creve a origem e a consumagdo das cousas, como faz dar um grande passo adiante de Zenon e Séneca. (782) 4) O termo Acompensa a negacao do termo A, e mas =‘em compensacao’: ndo haveré estro... mas ninguém me negard sentimento. (215) Falta-lhe um pouco mais de corte. Mas que corag¢ao! (789) Como haviamos dito, essa espécie de litotes obscura ou meia litotes por si sé nao deixa entrever o conceito que vai ser afirmado; ela é termo anunciante, indicio, mas nao denunci- ante, signo, do significado que se vai afirmar. Em todas essas 332 Ensaios Reunidos frases, Vo A correspondente a operagio inicial de um pro- cesso expressivo que sé se completa com o enunciado explici- to do conceito que verdadeiramente se quer expressar: mas B. A forma interior desse proceso, cuja face expressiva ou forma exterior é a frase de férmula Mao A, mas B, é portanto a de uma operagao cognoscitiva que se realiza primeiro com a negagaio ou o arredamento das manifestages ostensivas que se impdem A primeira vista e ao primeiro assédio do esforgo de conhecimento da realidade; e se completa em segunda eta- pa, quando, desmascarada a falsidade ou insuficiéncia des- sas primeiras manisfestagées, surge a escondida face da rea- lidade, que se pode afirmar, sé entio, por via direta. Psicologicamente, esse procedimento estilistico-mental de Machado de Assis resulta da peculiar maneira desse escritor entender a realidade césmica e humana: a realidade, consi- derada sempre como um jogo de face e antiface, de aparéncia e verdade, um jogo de sim e nao; e sua expressao, correspon- dentemente equivoca, realizada num estilo de guinadas a di- reita e A esquerda, rico em compensagées de toda sorte e rit- micamente modulado pelos movimentos pendulares, pelo vai- vem da frase bimembre,® balanceada entre sim e nao, entre ser e nao-ser. * A usual constituigio bimestre da frase de Machado de Assis nao se docu- menta s6 no tipo que brevemente se estudou neste artigo, mas ainda nas. referidas estruturas preferenciais do periodo machadiano: oragées adversativas, concessivas, causais coordenadas entre si, ao pares; e também na marcada tendéncia & enumeracdo bimembre, cuja incidéncia nos roman- ces alcanca indices superiores a 70% e mais sobre o total das enumeragées. 333

You might also like