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o século IV a.C.

, quando

N
Aristóteles ensinava a arte
de ler a palma das mãos a
Alexandre o Grande, um
dos maiores estrategos mi-
litares de sempre, a valida-
de da quiromancia não era
posta em causa. Hoje, que
já não se adivinha futuro nas vísceras dos ani-
mais nem se sacrificam virgens aos deuses, ler
a sina é um método em vias de extinção. Mas
ainda há quem procure saber o que dizem as
linhas das palmas das mãos. Propusemo-nos
fazer a prova dos nove, submetendo-nos a três
experiências. Procurámos no “novo Olimpo”:
a internet, claro — afinal, não há nada que não
esteja escrito na web, o equivalente moderno
MÃOS
LER A SINA das estrelas. Foi lá que encontrámos o primei-
ro quirólogo (e não quiromante — que ‘man-
cia’ remete para adivinhação e ‘logia’ para es-

As
tudo, explicou-nos), José Prudêncio. E tam-
bém a segunda, Olga Rodrigues — cujo nome
só saberíamos depois de telefonar. Para a ciga-
na teríamos que recorrer à rua.
José Prudêncio tem site, escritórios em

linhas Lisboa, Porto e Braga, pode ler-se, e currícu-


lo que baste para impressionar — professor
de Filosofia e Psicologia na Escola Secundá-
ria do Estoril, com mestrado em Astronomia

do
Cultural e Astrologia da Universidade de
Bath, em Londres, a concluir um doutora-
mento em Astrologia Filosófica, e a lançar es-
te mês um livro que é o estudo comparativo

destino
entre os mapas astrais de José Saramago e
José Augusto França.
Um telefonema marca a consulta. São 80
euros (com recibo) e uma hora, que dá direito
a análise das mãos feita em conjunção com a
do mapa astral e, no final, CD com a gravação
Ler as mãos e aí ver da conversa. José Prudêncio recebe-nos no seu
a sua vida ainda faz escritório, ao lado do Colégio Moderno, no
sentido? E é verdade Campo Grande, impecavelmente vestido de fa-
o que dizem? Fomos to e gravata, botões de punho elegantes e bar-
a três “consultas”, da ba aparada. A casa é soalheira, o escritório or-
mais credível à clássica ganizado, forrado a estantes brancas cheias de
cigana. Bem-vindo a um livros e revistas. Na secretária repousa o com-
putador portátil, no qual José introduz os da-
universo de linhas de dos do cliente, o gravador digital e, num canti-
Urano, anéis de Salomão nho da mesa, um pequeno Buda e uma ametis-
e cinturas de Vénus ta. Nada de velas, panos com estrelas nem “am-
TEXTO DE KATYA DELIMBEUF bientes à Harry Potter”, como poderia sugerir
a imagética do preconceito.
Desde logo, desfazem-se alguns mitos: a
leitura não é apenas de uma das mãos, mas
das duas. As linhas não dão respostas taxati-
vas como “quantos filhos se vai ter” nem
ILUSTRAÇÃO DE PEDRO FIGUEIRAL

“quantos anos se vai viver” — até porque mu-


dam ao longo da vida. Logo, não é tanto uma
previsão do futuro o que se pode obter numa
leitura, mas antes uma compreensão global
das nossas características.
Não dei o meu nome verdadeiro nem a pro-
fissão, para não revelar informação que queria

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LER A SINA

saber se Prudêncio me iria dar. Para começo ter. Pode ter um, dois, três, quatro — mas é sem recibo, a duração menos de uma hora.
de conversa, fico a saber que tenho uma “cin- difícil de ver, porque a contracepção interfe- Olga ronda os quarenta, veste um pólo
tura de Vénus invulgarmente forte”. “Acho re com a natureza em relação a isso”. O casa- cor-de-rosa e tem um aspecto informal, ape-
mesmo que nunca vi ninguém com este tra- mento é que deve ser levado com cautela, até sar do cabelo esticado. Recebe-nos em casa,
ço tão marcado”, sentencia José. O que signi- porque “não tem nada que ver com o amor, que é também o seu ‘escritório’ há mais de
fica isso? “É uma dupla linha do coração. É tem que ver com segurança”, considera. “O três anos. Ao contrário do soalheiro aparta-
sinal de capacidades artísticas, ligação à co- casamento é a coisa mais anti-romântica que mento de José Prudêncio, aqui está tudo às
municação e... excesso de amor. Excesso de eu conheço. Se é uma romântica, nunca se escuras. Sou encaminhada para um quarto pe-
afectos, romance, envolvimentos amorosos. case. Diria mesmo que é um erro uma pessoa queno, onde o espaço é disputado por uma ca-
Esta cintura de Vénus vai dar-lhe algum tra- casar com quem ama. Deve casar com al- ma de ferro encostada à parede, uma mesinha
balho... Há tendência para várias relações guém que oferece garantias”. É a estocada coberta com um pano azul escuro com estre-
afectivas. O seu lado ideal tem dificuldade final para esta romântica... las (lá está o ambiente Harry Potter) e uma
em lidar com o real. Quando descobre que pequena secretária com vários objectos, entre
os seus príncipes são sapos — e não há ne- Parte II: O anel de Salomão. No outro espec- os quais uma bola de cristal — é verdade — e
nhum que não seja —, desilude-se.” Até aqui, tro desta experiência está a nossa segunda um necéssaire cor-de-rosa, de onde sairão as
tudo certo. consulta, levada a cabo por Olga Rodrigues, cartas do tarô e a lupa para me ler as mãos.
O facto de eu ter “mãos compridas é um em Massamá. Ao telefone, ela avisa que a leitu- A amiga com quem Olga partilha a casa-es-
pouco como se estivessem viradas para o céu, ra das mãos é apenas parte do tempo, sendo critório liga uma suave música ambiente e dá
mais ligadas ao etéreo”, continua. Isto tra- as cartas de tarô o complemento para pergun- corda ao cronómetro, a lembrar os de cozi-
duz-se numa “grande sensibilidade e emotivi- tas mais específicas. O preço é de 25 euros, nha, para marcar o tempo. Meia hora mais
dade, melancolia. Passa por muitos estados de
humor ao longo do dia e canaliza a sua sensibi-
lidade para o trabalho”. Cada tiro, cada mel-
ro. Aliás, há, diz ele, uma ligação forte entre a
identidade e a profissão, muito “associada à
aprendizagem e à expansão de novos horizon-
O que eles lêem
tes”. (Acerta de novo). Nas mãos, vê ainda “re-
lações com o estrangeiro e fortes possibilida-
nas mãos?
des de parcerias com outros países” (o que
também confere) e “grande seriedade e senti-
do de responsabilidade no trabalho”. Outra
coisa “rara” nas minhas palmas é “uma linha
de Urano, sinal de grande capacidade intelec-
tual. É rápida a pensar, inventiva, original, in-
tuitiva.” (De ego reconfortado, pergunto-me
se é agora que devo pedir um aumento...)

Descubro também que tenho “uma linha de


Saturno forte, com hipótese de ter vários traba-
lhos ao mesmo tempo — até três. Nunca pense
na sua vida em reformar-se”, diz-me. “Não é
para si. O trabalho é a sua terra, canaliza os
seus pensamentos, a sua agressividade...” Fala,
ainda, do meu “lado mais bélico, agressivo”.
“Está a ver aqui? Se se metem consigo, levam!
Há uma tendência um bocadinho explosiva em
si, radical, de extremos. Às vezes, a frontalida-
de excessiva não a beneficia. Tem que desenvol-
ver o seu lado diplomata, ser uma voluntarista
de segundo grau”. Confere tudo, de novo.
Da linha da cabeça, Prudêncio revela que
“é forte e bifurcada”, o que denota “capacida-
de para escrever. Muitos escritores têm este
traço. Esta linha, que vai por aqui abaixo,
quer dizer imaginação, fantasia, sonho... Em-
bora também haja um certo medo, porque
leva a escrita muito a sério. Há coisas que só
vai escrever a seguir aos 40”, diz. Aí vem o
meu romance, sorrio interiormente. Quanto
à linha da vida, explica que a minha é “du-
pla”, o que quer dizer que o meu poder men-
tal fortalece a minha saúde. “Força anímica
e grande capacidade de concretização”.
Filhos? “Não há razão nenhuma para não

48 REVISTA ÚNICA · 01/05/2009


tarde, apitará, como que a avisar que o rosbi- ilhas”, o que significa “problemas de saúde, “Lê a sina?”, pergunto. “Leio. Há muitos
fe está pronto. Sob a lupa de Sherlock, Olga arritmias ou possíveis ataques cardíacos...”, anos. Anda comigo e não digas nada, senão
foca-se mais na minha mão esquerda, com a considera. Filhos, vê “dois, por enquanto”. corta o efeito”, avisa. “Tens sorte, não costu-
qual escrevo, e começa: “Uma infância atribu- Profissionalmente, tenho “muitos quadra- mo andar por esta rua. Foi Deus que me man-
lada. Muitos pretendentes — alguns que lhe dos”, o que quer dizer “sucesso garantido em dou para aqui”. Inquiro quanto é a leitura de
dão água pela barba. Aliás, vai continuar a ser projectos em nome individual”, e que nunca mão e quanto tempo demora. Não responde
pretendida a vida toda, mesmo depois de casa- me “faltará trabalho”. Oxalá! Segue-se a leitura a nenhuma das perguntas, mas inicia desde
da”, diz. “Forte intuição, como se pode ver na de tarô, e uma pequena conversa a que a mi- logo a sua interpretação. Pergunto que mão
sua mão direita, no anel de Salomão. Cha- nha curiosidade me impele: há quantos anos lê quer. “Não preciso de te ver a mão, já vi tudo
mam-lhe o ‘anel da bruxa’. Significa que tem mãos (“cerca de dez”), se a crise tem afectado o no teus olhos”, retorque.
grandes capacidades mediúnicas.” Fala-me número de consultas (“não, as pessoas conti- Começa o “diagnóstico”: “Tens uma gran-
também em “muitas viagens”. Confirmo. nuam a procurar-me quando a vida não lhes de inveja em cima de ti, que te puseram duas
Olga diz que a minha linha da vida vai até corre bem”) e quais as principais questões que amigas... Tens filhos? Não? Mas gostavas?
aos 75, 80 anos, mas que poderei ter “um as preocupam (“dinheiro. a falta dele”). Compra uma garrafa de álcool etílico, esva-
acidente ou problema grave por volta dos 55, zia-a pela metade, acrescenta-lhe duas borri-
57.” No entanto, como “as linhas da mão es- Parte III: O previsível mau olhado. Normal- fadelas de sal fino e durante 15 dias salpica o
querda mudam de seis em seis meses”, e “o mente, quando pensamos numa cigana a ler tapete da tua entrada com isso. É para afas-
livre arbítrio” entra em linha de conta, posso a sina, a frase que nos vem à cabeça é “mau tar os maus espíritos”, explica. “Depois, du-
ter esperança de alterar isto. Quanto às li- olhado”. Fomos confirmar ou desmentir esta rante o mesmo tempo, diz esta oração: “Tros-
nhas da cabeça e do coração, “têm muitas ideia. Na av. de Roma, cruzo-me com uma. ca marrosca, Mordaça na boca, Tira-me este
mal da inveja, Que eu tenho dentro de mim,
Onde elas rezem, medrem, e no inferno ber-
rem.” Ao fim de nem 10 minutos, a ‘conta’
é-me apresentada: 60 euros, mais óculos de
sol como “brinde”. Dou-lhe 30 e mesmo as-
sim sinto-me roubada.

Não satisfeita com aquela “leitura de olhos”,


rumo à rua das Murtas, ao pé do hospital Jú-
lio de Matos, à procura de uma cigana palmis-
ta, com algum dom para lá do da aldrabice.
Três homens do bairro indicam-me de ime-
diato “uma boa mulher para ler a sina, a Er-
melinda”. A Ermelinda é contactada, via tele-
móvel — mas não está nas redondezas. Não
há problema, recorre-se à mãe da Ermelin-
da, que também é “cinco estrelas”.
Cinco minutos passados, aparece a D. Ma-
ria, uma senhora de olhos azuis, nos seus cin-
quentas. Faz-me sinal para me aproximar e
para irmos para um sítio mais recatado. Esta-
mos agora numa zona completamente deser-
ta. Olha para a minha mão direita por breves
segundos (não pergunta com que mão escre-
vo) e diz: “Já vi tudo. Tens as linhas cortadas,
a do amor e do trabalho”. Agora, só por 100
euros pode “mergulhar” dentro de mim e fa-
zer a sua parte, explica. “Só tenho 20...” Re-
bate que tem que “mandar vir as velas do
Brasil e rezar muitas novenas durante 15 dias
em Braga, no Bom Jesus”.
Isto parece um filme. Será que tenho um
ar assim tão ingénuo? Pergunta se existe al-
guém na minha vida amorosa, e sugere que
se faça “um trabalho” sobre ele. “É preciso”,
diz. “Traga-me uma foto dele e outra sua”. É
com dificuldade que me consigo desembara-
çar de marcar outro encontro para dar “o
restante dinheiro”. Saio dali a pensar que,
como em todas as áreas, até na quiromancia
há profissionais credíveis, medianos, e sim-
ples aldrabões. As linhas cá estão, para o que
der e vier. É bom saber que tenho o destino
nas minhas mãos. n

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