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B. diz que acredita que sua dificuldade res, são alguns exemplos da constante
iniciou-se por volta dos 12 anos de ida- reiteração da heterossexualidade como
de. padrão a ser seguido, com o consequen-
B. relata que nessa época, se perce- te caráter de anormalidade que fica para
beu homossexual e teve que se retrair. a orientação homossexual. Diante disso,
Tinha vergonha de falar com pessoas de é possível compreender o abandono, o
orientação sexual heterossexual. Não medo de preconceito e a retração social
sabia com quem conversar sobre suas que observamos no relato de B. Em seu
questões. Tinha medo de que percebes- trabalho, Madureira e Branco (2007)
sem sua orientação sexual diferente perceberam que indivíduos com identi-
(sic). Ela se achava inferior e aprendeu dades sexuais não-hegemônicas desen-
a não se socializar. volvem certas estratégias para lidar com
A jovem conta que, em determinado o preconceito e com exigências vindas
momento, começou a se vestir de ma- do meio em que vivem, ocasionando
neira masculinizada, como forma de marcas em suas subjetividades. Sob
conseguir se expressar. Segundo ela, alguns aspectos, há um clima de ambi-
nunca sofreu discriminação explícita, guidade nas relações sociais estabeleci-
mas recebia olhares de desaprovação, o das por esses indivíduos, pois a cada
que eram suficientes para reforçar seu situação, está posta a questão sobre ex-
retraimento. plicitar a orientação sexual, gerando
Na fala de B., percebemos o resulta- uma rede de “ditos e não-ditos”, que
do de uma sociedade heterocentrista, pode causar ansiedade e sofrimento
em que o diferente dessa norma é con- psíquico.
siderado desviante, seja pelos outros, Interessante mencionar que quando
seja por ela própria. B. sente a necessidade urgente de se
Ainda, há que se considerar a invisi- expressar e o faz por meio das vesti-
bilidade da homossexualidade feminina mentas, há novamente a reiteração do
em nossa cultura. Borrilho (2009) pon- padrão heteronormativo, na tentativa de
tua que nossa sociedade despreza a se- alinhamento da sexualidade (práticas
xualidade feminina, considerando-a sexuais com mulheres) e gênero (roupas
principalmente objeto de desejo mascu- utilizadas pelo masculino). Fica eviden-
lino ao invés de prioritariamente uma te a estreita relação entre sexualidade e
manifestação feminina. Em consequên- gênero na constituição identitária e no
cia disso, a homossexualidade feminina imaginário social.
tampouco tem visibilidade, relegada à Considerando estas questões, aten-
indiferença pelo pressuposto de que não tamos para o fato de que a queixa de
existiria. dificuldade de socialização de B. se
Assim, a ausência de referências que refere principalmente ao ambiente esco-
ajudassem na legitimação de seu desejo lar, o que nos aponta para o quão as
pelo mesmo sexo, de orientações inclu- instituições escolares têm tido um papel
sive sobre como se proteger de doenças normatizador e vigilante em relação à
sexualmente transmissíveis durante su- sexualidade.
as práticas sexuais e ainda possíveis
violências simbólicas advindas dos pa- 2.2 Exemplo 2: C., 16 anos, menino
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
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verdadeira política para a diversidade uma situação que acaba operando como
enquanto uma das orientações sexuais coerção/ajustamento de gênero.
se mantiver como referencial. A hete- As representações das relações de
rossexualidade precisa estar incluída gênero e da sexualidade em nossa cul-
dentre as chamadas diversidades, como tura interceptam a escola enquanto ins-
mais uma das orientações sexuais pos- tituição, constituindo uma significação
síveis; e todas as orientações sexuais característica sobre gênero e sexualida-
precisam ocupar legitimamente as aulas de no contexto institucional escolar.
de educação sexual e outros espaços Assim, a escola tem uma história com o
escolares, para que seja instigado o controle dos corpos e a sexualidade que
rompimento da lógica heteronormativa. precisa ser levada em conta em suas
É preciso questionar todas as práticas interfaces sociais e políticas, para a aná-
que mantêm a heterossexualidade como lise no que tange as queixas escolares.
hegemônica e provocam a exclusão e A aluna e o aluno também têm uma his-
sofrimento de muitas alunas e alunos, tória escolar, produzida na intercepção
com consequências em seu desenvol- com os diversos funcionamentos insti-
vimento psíquico e pedagógico. tucionais. Ainda, ocupam lugares espe-
Do mesmo modo, as diversas formas cíficos e tecem relações singulares que
de expressar feminilidades e masculini- se estabelecem no contexto da queixa
dades precisam ser reconhecidas. A es- em questão, produzindo situações úni-
cola pode ser um dos lugares de alterna- cas. A queixa escolar emerge, então, em
tiva ao modelo tradicional das relações determinado contexto, e é possível que
de gênero, construindo e legitimando haja uma dimensão no âmbito da sexua-
diversas possibilidades de vivência de lidade e do gênero a ser compreendida.
gênero já desde a Educação Infantil, e Assim, ao compreender as dimen-
assim contribuir para a promoção da sões individuais, sociais e políticas da
liberdade e da diversidade nos âmbitos queixa, o psicólogo pode atuar no sen-
sexuais e de gênero, tanto no que se tido de fortalecer as potencialidades do
refere ao desenvolvimento individual indivíduo e de sua rede de relações
quanto à formação para criticidade e frente às situações adversas. Além dis-
transformação social. so, a clínica pode ser um lugar de aco-
Demarcações de gênero não ocorrem lhimento para a dor do preconceito e
somente na escola, mas também em expressividade de identidades margina-
outros espaços, como exemplo, na clí- lizadas em outros espaços. Na institui-
nica, em que o psicólogo normalmente ção escolar, é possível que o psicólogo
é tendencioso nas escolhas de brinque- contribua na discussão sobre homofobia
dos e materiais levados às sessões. Em e sexismo, preconceitos que, mesmo em
tais circunstâncias, o profissional preci- suas manifestações mais sutis, têm sido
sa estar atento aos limites do que está relevantes nas histórias escolares de
produzindo: um espaço de acolhimento, diversas crianças e jovens.
na tentativa de produzir um ambiente
confortável à criança atendida que pro- Referências bibliográficas
vavelmente já internalizou determina- AUAD, D. Educar meninas e meni-
das exigências de gênero do meio; e/ou nos: relações de gênero na escola. São
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Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 79