You are on page 1of 11

Relato de experiência/caso

Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a ori-


entação à queixa escolar

Yara de Paula Picchetti1


1 Graduada em Psicologia (Formação de Psicóloga, Bacharelado e Licenciatura) pela Universidade de São Paulo em 2009,
cursou Aperfeiçoamento em Orientação à Queixa Escolar pela mesma Universidade em 2011. Atualmente trabalha como
psicóloga social no Núcleo de Proteção Jurídico Psicossocial do CREAS (Centro de Referência Especializado em Assistência
Social) Tremembé - São Paulo/SP

RESUMO: Este trabalho discute compreensões e práticas sobre


sexualidade e relações de gênero vigentes na escola, e seus impactos
nas subjetividades e na aprendizagem. Adotou-se a concepção
construcionista social da sexualidade. São apresentados três casos com
demanda escolar atendidos pela autora. Considerar as dimensões
institucionais, sociais e políticas da sexualidade e relações de gênero
no atendimento psicológico é pertinente aos pressupostos da
orientação à queixa escolar, contribui na compreensão da queixa, e
fomenta a discussão do tema no campo da educação.
Palavras-chave: queixas escolares; construcionismo social; pedagogia;
psicologia

ABSTRACT. This paper discusses comprehensions and practices on


sexuality and gender relations in the school, and its impacts on the
subjectivity and learning. The social constructionist concept of
sexuality is adopted. Three cases with school demand are addressed.
To consider institutional, social and political dimensions of sexuality
and gender relations in the psychological attendance are pertinent to
the assumptions of guidance of school complaints, contribute in the
understanding, and encourages the discussion of the theme in the field
of education.
Key words: school complaints; social constructionist; pedagogy; psychology

O tema da sexualidade atualmente iniciativas e outras conquistas da


está presente dentre os saberes atuação do movimento civil, surge o
escolares sistematizados, por meio das discurso de tolerância e respeito às
propostas curriculares. A educação diversidades sexuais, que ganham cada
sexual está inclusa nos Parâmetros vez mais visibilidade, em contraponto
Curriculares Nacionais como tema ao obscurantismo a que estavam
transversal. Em termos de políticas submetidas outrora.
públicas, a partir da primeira década do Assuntos relacionados à sexualidade
século XXI, se intensificaram, em sempre foram vistos com muita cautela
diversas áreas, iniciativas que na escola. Desde formalizada sua inser-
contemplam o olhar dos direitos ção nesta instituição por meio do currí-
humanos e sexuais. Diante de tais culo, se deu o questionamento sobre os

Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012


70 Picchetti

limites do público e do privado no que práticas discursivas, com dimensões


se refere ao sexo, o que tornou necessá- pessoais, sociais e políticas, compreen-
ria uma série de ajustamentos para que didas em determinado contexto especí-
este pudesse ser discutido no ambiente fico. Nessa perspectiva, o sexo biológi-
escolar. “As diferentes maneiras de não co (ou o corpo concreto) é apenas a de-
dizer, como são distribuídos os que po- finição das características corporais
dem e os que não podem falar, que tipo primárias e secundárias. Não são nega-
de discurso é autorizado ou que formas das as diferenças biológicas entre mu-
de discrição é exigida a uns e outros” lheres e homens, apenas consideram-
(FOUCAULT 1976/1999, p. 30) são nas uma condição, e não uma limitação
questões que estão em jogo quando se aos papéis sociais a serem desempe-
trata da sexualidade. nhados.
Não é somente por meio dos conteú- Logo, gênero é uma categoria rela-
dos curriculares formais que a sexuali- cional, fruto de identificações subjeti-
dade permanece na escola, mas está vas com determinado conjunto de pa-
presente em diversas práticas pedagógi- péis sociais, internalizados durante a
cas, assim como em vivências de socia- vida, com significados de caráter histó-
lização que ocorrem neste espaço. Con- rico e social. Nessa perspectiva, a sexu-
textos historicamente construídos e alidade pode ser compreendida como a
conjunturas sócio-políticas estão imbri- expressão de sentimentos, desejos e
cadas nas relações, práticas e discursos prazeres, interpelados aos significados
institucionais em que se tecem relações intersubjetivos que os sujeitos estabele-
de poder, configurando um espaço sin- cem a estes.
gular no qual estão inseridos alunas e Já as abordagens essencialistas con-
alunos. As maneiras como a escola, a sideram o sexo biológico como deter-
família e a sociedade lidam com deter- minante do sujeito, ou seja, acreditam
minadas questões influenciam na cons- que as características relacionadas ao
trução de queixas escolares que desa- comportamento feminino/masculino e a
brocham como se fossem unicamente sexualidade são definidas pelo sexo
do sujeito que a veicula, mas no entanto anatômico e combinam-se com este de
são reveladoras de determinado contex- maneira imutável. Uma compreensão
to social e escolar. Assim, a sexualidade essencialista do sexo “procura explicar
e, indissociadamente a esta, as relações os indivíduos como produtos automáti-
de gênero, estão presentes nas diversas cos de impulsos internos” (WEEKS,
dimensões do cotidiano, e têm interfa- 1999, p. 40). Nessa perspectiva, o sujei-
ces pedagógicas e psíquicas relaciona- to que não cumpre o que é suposto de-
das à produção de queixas escolares. terminado biologicamente, é, então,
compreendido como desviante ao que
1 Abordagem construcionista e abor- seria natural.
dagem essencialista da sexualidade Levando isso em conta, ideais essen-
As abordagens construcionistas da cialistas podem ser considerados base
sexualidade consideram tanto o gênero de manutenção do conservadorismo e
quanto a sexualidade como produtos de exclusão no campo da sexualidade. A
construções e identificações sociais e crença nas características biológicas
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 71

como determinantes de papéis sociais 1.1 Heteronormatividade na escolA


foi e ainda é muito utilizada como justi- Nesse contexto, em que falar for-
ficativa para expressões de sexismo. O malmente sobre sexualidade se restrin-
termo gênero foi empregado pela pri- ge à reprodução humana e a prevenção
meira vez por feministas, justamente de doenças sexualmente transmissíveis
como contraponto a visões essencialis- nas práticas entre mulheres e homens,
tas, ou seja, como modo de demarcar o naturaliza-se a heterossexualidade co-
caráter social dos papéis atribuídos a mo norma, e silencia-se sobre outras
mulheres e homens, e portanto, da pos- possibilidades de orientação do desejo.
sibilidade de flexibilidade destes. Tais saberes sobre a sexualidade na es-
Das práticas pedagógicas curricula- cola não se restringem à formalidade,
res, observa-se que normalmente a dis- mas perpassam por todas as práticas
cussão acerca da sexualidade na escola institucionais, fazendo com que a esco-
se restringe a aulas específicas, de bio- la reproduza, em suas relações, a cultu-
logia ou educação sexual, e é abordada ra de uma sociedade heteronormativa.
de maneira essencialista, focalizando a A heteronormatividade é o pressu-
anatomia dos corpos de mulheres e ho- posto de que a sexualidade “verdadeira”
mens. A prevenção de doenças sexual- ou “normal” seja a heterossexualidade,
mente transmissíveis nas práticas hete- considerando outras orientações sexuais
rossexuais e a reprodução humana são apenas como “as outras” ou “desvian-
os principais temas, frequentemente tes”. A heteronormatividade implica a
ignorando outras dimensões da sexuali- marginalização das sexualidades não-
dade, como o desejo e o prazer. Geral- heterossexuais, produzindo assim, uma
mente cinde-se a sexualidade dos as- violência não-declarada. A pressuposta
pectos práticos da vida e adequa-se a heterossexualidade de uma pessoa que
linguagem, conferindo à abordagem um acabamos de conhecer e a interrogação
formato cientificista. sobre quais são as causas da homosse-
Lionço e Diniz (2009) analisaram xualidade (e não o fazer em relação à
conteúdos de 65 livros didáticos do En- heterossexualidade) são exemplos que
sino Fundamental e Médio. Segundo as fazem parte dessa dinâmica.
autoras, a sexualidade é abordada pelo Em uma dinâmica heteronormativa,
viés da reprodução, fomentando a hete- há aparente naturalidade com que a he-
rossexualidade compulsória, com pre- terossexualidade se mantém referência.
dominância nos livros de biologia. Ain- No entanto, a sexualidade hegemônica
da, há o silêncio sobre a diversidade “é alvo da mais meticulosa, continuada
sexual e a padronização nas representa- e intensa vigilância, bem como do mais
ções de gênero e familiares. Apesar dis- diligente investimento” (LOURO,
so, apontam que observaram a tentativa 1999, p. 17). Investimentos estes de-
de combate ao sexismo por meio de sempenhados através do que a autora
afirmações de igualdade de direito entre chamou de “pedagogias da sexualida-
os gêneros, o que avaliam como respos- de”, exercidas por diversas instituições,
ta às políticas públicas voltadas ao te- inclusive pela escola, por meio de dis-
ma. cursos explícitos e/ou implícitos. “Tal
pedagogia é muitas vezes sutil, discreta,
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
72 Picchetti

contínua mas, quase sempre, eficiente e cas, para a manutenção da estereotipi-


duradoura” (LOURO, 1999, p .17). Re- zação e inflexibilidade nas relações so-
fere-se ao que vimos discutindo sobre ciais de gênero.
as maneiras como a escola lida com a Já desde a Educação Infantil, há pos-
sexualidade, nas diversas instâncias turas dos profissionais escolares que
institucionais. constroem e reforçam padrões e segre-
As relações de gênero também po- gações: a demarcação de brinquedos e
dem ter sua interface heteronormativa, espaços (filas, banheiros, quadra de
na medida em que identidades sexuais e esportes), a divisão de tarefas por gêne-
de gênero são entrelaçadas nas constitu- ro, a verbalização de expectativas e
ições das subjetividades e nas represen- frustrações diferenciadas em relação a
tações acerca das vivências dos indiví- meninas e meninos. Tais posturas par-
duos. Os comportamentos que envol- tem de perspectivas essencialistas que
vem virilidade são considerados típicos consideram que há um dualismo natural
(e necessários) das masculinidades, as- entre os sexos. Claro que há tentativas
sim como a delicadeza/recato no caso de delimitações e movimentos de se-
das feminilidades. Essas compreensões gregação vindos das próprias crianças,
estendem-se ao estabelecimento de uma mesmo porquê estas reproduzem diver-
relação direta entre o cumprimento dos sos ambientes a que têm contato e onde
papéis determinados e a heterossexuali- esses fenômenos acontecem. Esse mo-
dade, pois dentre as expectativas sociais vimento em direção à segregação é o
para o feminino e o masculino, está o que Auad (2006) denominou “aprendi-
relacionar-se com o sexo oposto. As- zado de separação”. Com a expressão,
sim, para o reconhecimento social da a autora não se reporta somente à sepa-
identidade heterossexual de um indiví- ração física, mas sim às relações de gê-
duo, esta deve estar ajustada à represen- nero, e alerta, referindo-se à escola mis-
tação hegemônica de seu gênero; e o ta, para o fato de que “meninos e meni-
indivíduo que não apresenta os padrões nas apenas juntos, sem maiores refle-
de gênero considerados apropriados, é xões pedagógicas sobre as relações de
automaticamente associado à identidade gênero, pode redundar em aprofunda-
sexual homossexual, na lógica hetero- mento das desigualdades.” (AUAD,
normativa. 2006, p. 55), pois os comportamentos
que acentuam as supostas diferenças se
1.2 Estereotipização das relações de mantêm.
gênero na escola Não podemos deixar de mencionar
Apesar de a discussão sobre as rela- que a concepção dualista e rígida das
ções de gênero estar mais contemplada relações de gênero provoca a exclusão
e complexificada que a da diversidade principalmente da população de trans-
sexual, e de algumas das desigualdades gêneros, cuja evasão escolar é alta e
de gênero já terem sido superadas, ain- precoce. A marcante rejeição social às
da observamos com frequência a pa- identidades de gênero que fogem aos
dronização dos modelos do feminino e padrões hegemônicos associada ao fato
do masculino. Nesse sentido, a escola de que sua condição está mais explícita,
tem contribuído por meio de suas práti- por exemplo, que a homossexualidade,
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 73

faz com que preconceito direcionado à colar tende a naturalizar os comporta-


essa população seja bastante intenso. mentos indisciplinados e o baixo ren-
Além disso, a realidade do cotidiano dimento escolar como típicos de meni-
escolar, que reproduz a segmentação nos, o que acaba por valorizar tal como
por gênero, faz com que se configure de expressão de masculinidade reconheci-
maneira muito incisiva o não-lugar de da. Auad (2006) concorda que a recusa
pessoas que não se enquadram no bina- da autoridade da professora é vista co-
rismo feminino/masculino. mo manifestação de masculinidade no
Souza e Sobral (2007, p. 120) co- espaço escolar. O produto disso seria
mentam dados do Serviço de Psicologia uma estereotipização de padrões de
Escolar do Instituto de Psicologia da comportamentos dos meninos, que aca-
Universidade de São Paulo (SePE- ba por levá-los ao fracasso escolar.
IPUSP), em que há a predominância do Assim, a estereotipização e a conse-
sexo masculino na demanda por aten- quente inflexibilidade nos papéis de
dimento clínico psicológico. Pensando gênero, provoca uma série de efeitos
nos comportamentos que meninos e nas relações sociais e educacionais. Tal
meninas aprendem a internalizar desde dinâmica confere valoração a identida-
o início de sua vida, temos que os me- des e práticas, fazendo com que todos
ninos são considerados mais aventurei- sofram independentemente de sua ori-
ros, bagunceiros, gostam de atividades entação sexual. Há cerceamento de
corporais. As meninas são consideradas comportamentos e estabelecimento de
mais comportadas, obedientes, conti- padrões em função de representações
das. Do ambiente escolar disciplinador hegemônicas, que dificilmente são al-
que conhecemos, é claro que é mais cançadas integralmente pelos sujeitos
difícil para os meninos se adaptarem a nas vivências concretas de suas femini-
este, gerando maior demanda de enca- lidades e masculinidades.
minhamento desta população. É impor- Como vimos, discursos e práticas le-
tante ressaltar que o fato de que a de- gitimam e submetem formas de ser e
manda concretiza a hipótese de que os estar, evidenciando o caráter político da
comportamentos masculinos e femini- sexualidade e das relações de gênero.
nos seguem um determinado padrão, Todavia, apesar de imersas em opera-
não quer dizer que esses comportamen- ções normativas contínuas de regula-
tos não sejam construções sociais. ção, as identidades, práticas, linguagem
Carvalho (2004) também encontrou e relações são dinâmicas, com variabi-
mais meninos que meninas entre os lidade em suas expressões. Manifestam-
considerados indisciplinados pelos pro- se, além variabilidades, também como
fessores e entre os indicados para aulas lacunas no discurso hegemônico e
de reforço. A autora cita Connell (2000) transgressões a padronizações, configu-
para explicar que o ato de quebrar re- rando espaços de possibilidade de resis-
gras é uma maneira de construção de tência.
masculinidade almejada dentre os me-
ninos e rapazes, pois marca coragem, 2 Orientação à queixa escolar
enfrentamento e virilidade entre os pa- Orientação à queixa escolar é uma
res. Carvalho apontou que a equipe es- prática em Psicologia Clínica que con-
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
74 Picchetti

sidera a queixa escolar uma produção politicamente, e dessa forma, tende a


de determinado contexto institucional, olhar para a queixa escolar como
social e político, marcada pela história deflagrante de determinada situação, e
do sujeito. Compreende a queixa como possivelmente considera-a potência
uma questão de escolarização que, co- subversiva ao contexto adoecedor, ao
mo tal, envolve dimensões institucio- invés do olhar pessimista de
nais e sociais que interceptam os sujei- distúrbio/transtorno.
tos em situações singulares, contrapon- A seguir, serão apresentados casos
do-se à clínica psicológica patologizan- que passaram por atendimento psicoló-
te que culpabiliza o indivíduo e sua fa- gico, cuja demanda inicial era de cunho
mília. escolar. Nos 3 casos, para a compreen-
Sabemos que as dificuldades são da produção da queixa a partir de
enfrentadas pelas crianças na escola sua historicização e contextualização,
são fenômenos produzidos por uma foram levadas em conta dimensões ins-
rede de relações que inclui a escola, titucionais, sociais e políticas da sexua-
a família e a própria criança, em um lidade e do gênero e seus impactos na
contexto socioeconômico que subjetividade. Esses casos exemplifi-
engendra uma política educacional cam como questões de gênero e sexua-
específica. Desta forma, todos os lidade produzem efeitos em trajetórias
segmentos devem ser incluídos no escolares, influenciando aspectos do
processo de atendimento, desenvolvimento e aprendizado e, con-
apresentando sua versão sobre o tribuindo, muitas vezes, na construção
problema, refletindo, contextuando e de queixas.
buscando soluções diversas para
cada caso. (FRELLER et al. 2.1 Exemplo 1: B., 16 anos, menina
Orientação à Queixa Escolar, 2001, Como queixa inicial, B. refere que
p. 130) não consegue frequentar regularmente
O atendimento parte de uma queixa as aulas escolares. Nos dois primeiros
inicial, que inclui a demanda de cada anos do Ensino Médio, apresentou au-
um dos agentes (que em geral, são os mento da quantidade de faltas durante o
pais, a escola e a criança/adolescente), e ano letivo até culminar com o abandono
então se traça a compreensão da das aulas.
produção da queixa, considerando seus B. cursou cada ano do Ensino Médio
aspectos históricos e contextuais. 1 A em uma escola diferente. Atualmente
intervenção do psicólogo objetiva cursa o 3º ano e tem se ausentando das
proporcionar acolhimento do aulas cerca de 2 dias por semana. Ela
sofrimento psíquico, e fomentar atribui suas ausências às aulas à difi-
possibilidades de mudanças, com culdade de socialização. Apesar de
enfoque nas potencialidades do sujeito também sentir essa dificuldade em ou-
e de sua rede de relações. É uma tros ambientes, é na escola que aparece
abordagem que se implica de maneira mais intensificada, prejudi-
cando a frequência. A queixa começou
1 a se manifestar a partir do último ano
Para maiores informações sobre a
abordagem, vide Souza (2007).
do Ensino Fundamental II, no entanto,
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 75

B. diz que acredita que sua dificuldade res, são alguns exemplos da constante
iniciou-se por volta dos 12 anos de ida- reiteração da heterossexualidade como
de. padrão a ser seguido, com o consequen-
B. relata que nessa época, se perce- te caráter de anormalidade que fica para
beu homossexual e teve que se retrair. a orientação homossexual. Diante disso,
Tinha vergonha de falar com pessoas de é possível compreender o abandono, o
orientação sexual heterossexual. Não medo de preconceito e a retração social
sabia com quem conversar sobre suas que observamos no relato de B. Em seu
questões. Tinha medo de que percebes- trabalho, Madureira e Branco (2007)
sem sua orientação sexual diferente perceberam que indivíduos com identi-
(sic). Ela se achava inferior e aprendeu dades sexuais não-hegemônicas desen-
a não se socializar. volvem certas estratégias para lidar com
A jovem conta que, em determinado o preconceito e com exigências vindas
momento, começou a se vestir de ma- do meio em que vivem, ocasionando
neira masculinizada, como forma de marcas em suas subjetividades. Sob
conseguir se expressar. Segundo ela, alguns aspectos, há um clima de ambi-
nunca sofreu discriminação explícita, guidade nas relações sociais estabeleci-
mas recebia olhares de desaprovação, o das por esses indivíduos, pois a cada
que eram suficientes para reforçar seu situação, está posta a questão sobre ex-
retraimento. plicitar a orientação sexual, gerando
Na fala de B., percebemos o resulta- uma rede de “ditos e não-ditos”, que
do de uma sociedade heterocentrista, pode causar ansiedade e sofrimento
em que o diferente dessa norma é con- psíquico.
siderado desviante, seja pelos outros, Interessante mencionar que quando
seja por ela própria. B. sente a necessidade urgente de se
Ainda, há que se considerar a invisi- expressar e o faz por meio das vesti-
bilidade da homossexualidade feminina mentas, há novamente a reiteração do
em nossa cultura. Borrilho (2009) pon- padrão heteronormativo, na tentativa de
tua que nossa sociedade despreza a se- alinhamento da sexualidade (práticas
xualidade feminina, considerando-a sexuais com mulheres) e gênero (roupas
principalmente objeto de desejo mascu- utilizadas pelo masculino). Fica eviden-
lino ao invés de prioritariamente uma te a estreita relação entre sexualidade e
manifestação feminina. Em consequên- gênero na constituição identitária e no
cia disso, a homossexualidade feminina imaginário social.
tampouco tem visibilidade, relegada à Considerando estas questões, aten-
indiferença pelo pressuposto de que não tamos para o fato de que a queixa de
existiria. dificuldade de socialização de B. se
Assim, a ausência de referências que refere principalmente ao ambiente esco-
ajudassem na legitimação de seu desejo lar, o que nos aponta para o quão as
pelo mesmo sexo, de orientações inclu- instituições escolares têm tido um papel
sive sobre como se proteger de doenças normatizador e vigilante em relação à
sexualmente transmissíveis durante su- sexualidade.
as práticas sexuais e ainda possíveis
violências simbólicas advindas dos pa- 2.2 Exemplo 2: C., 16 anos, menino
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
76 Picchetti

A queixa inicial de C. consiste em sido uma característica rejeitada pelo


não conseguir ler em voz alta quando mundo da produção, e, além disso, con-
solicitado, trocando letras e cortando siderada inadequada para o gênero
palavras, sem apresentar prejuízo de masculino (característica vivenciada
compreensão dos textos lidos. A queixa com muito mais tranqüilidade - e às
pôde ser compreendida a partir de dois vezes até esperada - pelo papel femini-
principais pontos: a investigação sobre no).
a história de sua alfabetização, e a con- Dessa forma, temos que não apenas
textualização da timidez que relatou os homens homossexuais/bissexuais
apresentar. Devido aos fins desse texto, sofrem por não se enquadrarem nas
focalizaremos a análise nas questões masculinidades hegemônicas ao não
relacionadas à timidez. cumprirem as práticas sexuais espera-
C. refere sentir muita vergonha para das para seu gênero, mas também so-
ler em voz alta e apresentar trabalhos na frem todos aqueles que, mesmo hete-
escola. No seu dia-a-dia, relata contatos rossexuais, não apresentam o compor-
interpessoais mais contidos, sem deixar tamento típico da virilidade ideal.
de serem intensos quando concretiza- Assim, esclarecer as dimensões con-
dos. Acredita ter certa dificuldade em textuais que envolvem a compreensão
aproximar-se de meninas para relacio- da timidez manifestada se torna funda-
namentos afetivos. Ele se auto-refere mental para o manejo do atendimento.
tímido e demonstra grande insatisfação
com a característica. 2.3 Exemplo 3: D., 6 anos, menino
Na escola, a avaliação realizada pelo D. entrara aquele ano na escola para
professor da disciplina de História se cursar o pré. Aproximadamente após 1
dava prioritariamente por meio da leitu- mês de iniciado o ano letivo, D. apre-
ra de textos para os colegas da sala. Era sentava comportamentos agitados e a-
nesse momento que C. sentia o maior gressivos na nova escola, prejudicando
desconforto, apontando-o como o ápice o relacionamento com os colegas e as
de sua timidez e nervosismo, em que ações pedagógicas. Por meio da escuta
chegava até mesmo a sentir suas mãos dos agentes (pais, criança, profissionais
trêmulas. da escola), foram identificados fatores
A defasagem na leitura, associada ao que contribuíram para a situação de
constrangimento gerado pela situação desadaptação de D, chegando a gerar
de exposição e o caráter avaliativo das sua agressividade:
aulas, contribuíam para acentuar o ner- Nos primeiros dias de aula, alguns
vosismo de C. na hora da leitura, cul- colegas começaram a chamar D. de “bi-
minando em um pior desempenho e chinha”, por ele ter o cabelo comprido,
auto-percepção mais negativa, o que na altura dos ombros. Ao longo dos di-
pode ser levantado como tema de dis- as, D. começou a apresentar comporta-
cussão no que se refere à dimensão pe- mentos agressivos, e a cada “mal com-
dagógica do caso. portamento” de D., ele era retirado da
Em relação aos âmbitos sociais e po- sala de aula e levado para diretoria. Aos
líticos atrelados à timidez apresentada acontecimentos, a diretora reagiu cha-
por C., é possível argumentar que tem mando os pais e comunicando sobre a
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 77

indisciplina da criança e, além disso, lar, é confortável a utilização de abor-


pediu que cortassem o cabelo de D., sob dagens essencialistas, pois tendo o sexo
o argumento de que atrapalhava na lei- biológico uma marca concreta, as análi-
tura e escrita e outras atividades diárias. ses que partem desse referencial ga-
A discriminação de gênero foi prati- nham aparente caráter científico, e ain-
cada pelos colegas de D. e também pela da alcançam o evitamento de embates
escola, que com a postura interventiva com pais de alunos e segmentos sociais
que adotou, culpabilizou D. pela situa- contrários à discussão sobre diversidade
ção, contribuiu para a cristalização dos sexual na escola. Encontrou-se no cien-
processos de exclusão, e reforçou o es- tificismo biologizante uma maneira que
tereótipo de gênero. se acredita ser educativa sem incentivar
Nesse exemplo, podemos, mais uma práticas sexuais, com claro cunho mo-
vez, verificar o entrelaçamento entre as ralista. No entanto, as abordagens feitas
identidades sexuais e de gênero, quando nessa perspectiva são incompletas, pois
as crianças associam “bichinha” (ex- não consideram a fluidez do gênero e
pressão relativa à orientação sexual) ao do desejo, e não contemplam a diversi-
aluno que possui cabelo comprido (atri- dade. Talvez não atinjam nem mesmo o
buto considerado próprio do gênero objetivo de saúde a que explicitamente
feminino). Ainda, temos a modo pejora- se propõem, já que um enfoque da se-
tivo com que é tratado o suposto ho- xualidade assim segmentado dificil-
mossexual, fazendo com que, para to- mente dialogará com o cotidiano de
dos, desde a mais tenra infância, a ho- alunas e alunos.
mossexualidade seja associada a mar- Hoje, as políticas educacionais alme-
cadores sociais aversivos. jam a concretização da universalidade
Assim, observamos o desconforto do acesso às escolas, e traçam propostas
que provoca a manifestação de uma de inclusão. Com políticas que incenti-
masculinidade não-hegemônica, e o vam a visibilidade e respeito à popula-
esforço para normatizá-la. A vigília à ção LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,
sexualidade é intensa na Educação In- Transgêneros), o quadro de silencia-
fantil, e acaba configurando rigidez nas mento das diversidades sexuais no am-
fronteiras de gênero. Interessante que a biente escolar vem se alterando, e o
discriminação de gênero é disfarçada combate das violências físicas e verbais
pela escola, que sabe que seria “politi- direcionadas a essa população fica mais
camente incorreto” proferir de maneira focado, sendo uma grande conquista na
direta que meninos não devem utilizar área. No entanto, a partir do exposto,
cabelos compridos. A escola não verba- conclui-se que o combate à violência
lizou explicitamente seu incômodo, mas concreta, apesar de importante, não é
conseguiu outra maneira de saná-lo, o suficiente para sanar os prejuízos peda-
que nos atenta para as variadas manei- gógicos e os sofrimentos causados pela
ras de “dizer” sobre sexualidade na es- maneira viesada e normativa de olhar
cola. para a sexualidade e para as relações de
gênero, que se denuncia no desponta-
3 Discussão mento de queixas escolares.
Muitas vezes, para a instituição esco- Assim, entende-se que não há uma
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
78 Picchetti

verdadeira política para a diversidade uma situação que acaba operando como
enquanto uma das orientações sexuais coerção/ajustamento de gênero.
se mantiver como referencial. A hete- As representações das relações de
rossexualidade precisa estar incluída gênero e da sexualidade em nossa cul-
dentre as chamadas diversidades, como tura interceptam a escola enquanto ins-
mais uma das orientações sexuais pos- tituição, constituindo uma significação
síveis; e todas as orientações sexuais característica sobre gênero e sexualida-
precisam ocupar legitimamente as aulas de no contexto institucional escolar.
de educação sexual e outros espaços Assim, a escola tem uma história com o
escolares, para que seja instigado o controle dos corpos e a sexualidade que
rompimento da lógica heteronormativa. precisa ser levada em conta em suas
É preciso questionar todas as práticas interfaces sociais e políticas, para a aná-
que mantêm a heterossexualidade como lise no que tange as queixas escolares.
hegemônica e provocam a exclusão e A aluna e o aluno também têm uma his-
sofrimento de muitas alunas e alunos, tória escolar, produzida na intercepção
com consequências em seu desenvol- com os diversos funcionamentos insti-
vimento psíquico e pedagógico. tucionais. Ainda, ocupam lugares espe-
Do mesmo modo, as diversas formas cíficos e tecem relações singulares que
de expressar feminilidades e masculini- se estabelecem no contexto da queixa
dades precisam ser reconhecidas. A es- em questão, produzindo situações úni-
cola pode ser um dos lugares de alterna- cas. A queixa escolar emerge, então, em
tiva ao modelo tradicional das relações determinado contexto, e é possível que
de gênero, construindo e legitimando haja uma dimensão no âmbito da sexua-
diversas possibilidades de vivência de lidade e do gênero a ser compreendida.
gênero já desde a Educação Infantil, e Assim, ao compreender as dimen-
assim contribuir para a promoção da sões individuais, sociais e políticas da
liberdade e da diversidade nos âmbitos queixa, o psicólogo pode atuar no sen-
sexuais e de gênero, tanto no que se tido de fortalecer as potencialidades do
refere ao desenvolvimento individual indivíduo e de sua rede de relações
quanto à formação para criticidade e frente às situações adversas. Além dis-
transformação social. so, a clínica pode ser um lugar de aco-
Demarcações de gênero não ocorrem lhimento para a dor do preconceito e
somente na escola, mas também em expressividade de identidades margina-
outros espaços, como exemplo, na clí- lizadas em outros espaços. Na institui-
nica, em que o psicólogo normalmente ção escolar, é possível que o psicólogo
é tendencioso nas escolhas de brinque- contribua na discussão sobre homofobia
dos e materiais levados às sessões. Em e sexismo, preconceitos que, mesmo em
tais circunstâncias, o profissional preci- suas manifestações mais sutis, têm sido
sa estar atento aos limites do que está relevantes nas histórias escolares de
produzindo: um espaço de acolhimento, diversas crianças e jovens.
na tentativa de produzir um ambiente
confortável à criança atendida que pro- Referências bibliográficas
vavelmente já internalizou determina- AUAD, D. Educar meninas e meni-
das exigências de gênero do meio; e/ou nos: relações de gênero na escola. São
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012
Sexualidade e relações de gênero na escola: um diálogo com a orientação à queixa escolar 79

Paulo, SP: Contexto, 2006. Orientação à queixa escolar. São Pau-


BORRILHO, D. A homofobia. In: LI- lo, SP: Casa do Psicólogo, 2007. p.119-
ONÇO, T.; DINIZ, D. (Orgs.), Homo- 134.
fobia e educação: um desafio ao si- WEEKS, J. O corpo e a sexualidade. In:
lêncio. Brasília, DF: Letras Livres: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educa-
Ed.UnB, 2009. p.15-46. do: pedagogias da sexualidade. Belo
CARVALHO, M. P. (2004). Quem são Horizonte, MG: Autêntica, 1999. p.35-
os meninos que fracassam na escola? 83.
Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, p.
11-40, jan./abr., 2004. Artigo recebido em 06 de fevereiro de 2012.
FOUCAULT, M. História da sexuali- Aceito em 11 de maio de 2012.
dade 1: a vontade de saber. (M. T. C.
Albuquerque & J.A.G. Albuquerque
Trads.). Rio de Janeiro: Graal, 1999
(Trabalho original publicado em 1976).
FRELLER, C. C. et al. Orientação à
queixa escolar. Psicologia em Estudo,
Maringá, v.6, n.2, p. 129-134, jul./dez.,
2001.
LIONÇO, T.; DINIZ, D. Homofobia,
silêncio e naturalização: por uma narra-
tiva da diversidade sexual. In: Homo-
fobia e educação: um desafio ao si-
lêncio. Brasília, DF: Letras Livres:
Ed.UnB, 2009. p. 47-72.
LOURO, G.. Pedagogias da sexualida-
de. In: O corpo educado: pedagogias
da sexualidade. Belo Horizonte, MG:
Autêntica, 1999. p.9-34.
MADUREIRA, A. F. A.; BRANCO, A.
M. C. U. A. Identidades sexuais não-
hegemônicas: processos identitários e
estratégias para lidar com o preconcei-
to. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Bra-
sília, v. 23, n. 1, p. 81-90, jan./mar.,
2007.
SOUZA, B. P. Apresentando a orienta-
ção à queixa escolar. In: Orientação à
queixa escolar. São Paulo, SP: Casa do
Psicólogo, 2007. p.97-117.
SOUZA, B. P.; SOBRAL, K. R. Carac-
terísticas da clientela da orientação à
queixa escolar: revelações, indicações e
perguntas. In: SOUZA, B. P. (Org.).
Estação Científica (UNIFAP) ISSN 2179-1902 Macapá, v. 2, n. 1, p. 69-79, jan./jun., 2012

You might also like