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SOBRE A TUTELA PENAL DAS RELACOES DE CONSUMO: DA EXEGESE DA Le! N. 8.078/90 A Let N. 8.137/90 E As CONSEQUENCIAS DOS ‘TROPECOS DO LEGISLADOR’ ALEXANDRE WUNDERLICH™ Sumério: 1. Justificativa prefacial: a origem do texto; 2. Reconstruindo: crimes de consumo e 0 processo legislativo no Brasil; 3. A relagio de consumo e o seu significado juridico no sistema brasileiro a partir da Lei n. 8.078/90 - nogdes sobre consumidor, fornecedor, produto e servico; 4. A relacao de consumo € o seu significado juridico no sistema brasileiro a partir da Lei n. 8.078/90 — nogées so- bre o bem juridico penal de natureza supra-indi- vidual; 5. Sucessao de leis penais: a revogacao do art, 7° da Lei n. 8.137/90 a partir da vigéncia do sistema imposto pela Lei n. 8.078/90 — adesio 4 proposta de Miguel Reale Jr.; 6. Proposigdes ob- jetivas: o exegeta diante do sistema e a necessaria ‘reserva de codigo’; 7. Referéncias Bibliograficas. 1. Justificativa prefacial: a origem do texto Este texto foi redigido para integrar o livro em homenagem aos 70 anos do Escrit6rio Reale Advogados e teve origem em traba- * Advogado. Conselheiro da OAB/RS e Diretor da Escola Superior de Advocacia. Mestre em Ciéncias Criminais (PUCRS). Prof. do PPG em Ciéncias Criminais e Coord. do Curso de Especializagao em Direito Penal Empresarial da PUCRS. 382 Exrerténcias po Dimerro ~ ALEXANDRE WUNDERLICH tho desenvolvido pelo Professor Miguel Reale Jr. que, com a pre- cisdo que lhe é peculiar, diagnosticou 0 conflito de legislagdes pertinentes aos crimes contra as relac6es de consumo e solucio- nou-o a luz do processo de hermenéutica em sua obra Institui- ¢6es de direito penal’. O leitor perceber4 que o artigo versa sobre uma questio pontual do sistema consumerista — os crimes contra as relagdes de consumo. Duas legislagGes, uma se sobrepondo a outra, sen- do que a primeira (Lei n. 8.078/90), em que pese ter sido publicada anteriormente, face longa vacatio legis, s6 entrouem vigéncia apés a segunda (Lei n. 8.137/90). Os tropegos do ‘legis- lador” ocasionaram uma sucessio de leis que, mesmo apds mais de uma década, ainda pende de superacio. Trata-se, entao, de uma pequena contribuicao que, somada 4 solucdo proposta pelo Professor Miguel Reale Jr., poder auxiliar na discussio do tema e na pacificacao da jurisprudéncia dos tribunais. Um texto que provém do pensar critico de um Professor pelo qual tenho pro- funda admirac4o. Um texto que nasce da experiéncia de um dos Advogados mais reconhecidos do pais, que me impressiona por conseguir, com humildade, levar a academia ao Foro e o Foro a academia, unindo saber e realidade e concretizando a arte da ciéncia a arte de fazer Justiga. Cumpre destacar, ainda em justificativa sobre as razdes do texto, que é um privilégio enorme participar da obra e dialogar com 0 Escrit6rio Reale Advogados. Quero, por isso, agradecer pro- fundamente aos Advogados e Professores Miguel Reale, Miguel Reale Jr. e Eduardo Reale Ferrari pelo convite formulado. 1 Instituigées de direito penal, p. 100 et seq. 2 Refiro-me a figura do ‘legislador' propositadamente entre aspas a fim de destacar © sentido figurativo empregado no texto. Estou ciente da critica a0 ‘mito do legislador racional’ que, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr. ndo se confunde com 0 ‘legislador normativo’ (0 ato juridicamente competente conforme 0 ordenamento) nem com o ‘legislador real’ (a vontade que de fato positiva normas). Segundo Ferraz Jr. € “uma figura intermédia, que funciona como um terceiro metalingiiistico em face da lingua normativa (LN) e da lingua-realidade (LR). A ele a hermenéutica se reporta quando fala que ‘o legislador pretende que...', a intengio do legislador € que...’ ou mesmo ‘a mens legis nos diz que...”.” (Untroducao ao estudo do Direito, p. 254-255) Sopre A TUTELA PENAL DAS RELAGOES DE CoNSUMO: Da EXEGESE DA EL... 383, 2. Reconstruindo: crimes de consumo e 0 processo legislativo no Brasil Poucos sao os assuntos, no 4mbito das ciéncias criminais, tao pertinentes 4 vida dos cidadaos quanto o impedimento, por uma faceta da criminalidade contempordnea na sociedade de consumo, do exercicio da cidadania pelo consumidor. Basta um exame sobre o processo histérico do pais para que se perceba que 0 consumi- dor, embora maioria e, nao obstante, vivendo numa sociedade consumista por exceléncia, vem sendo irremediavelmente preteri- do nas relagGes em que participa. O pais foi e é prodigo em revelar rumorosas fraudes no mercado de consumo. A longeva histéria demonstra (e a midia mostra) que o consumidor sempre esteve 4 mercé dos grandes grupos econémicos. Nesse cenario, o Estado sempre tentou controlar os exces- sos praticados no mercado de consumo, sobretudo a partir de ages normativas. Ocorre que, ao longo da histéria, houve uma Ppropositada repetigéo de tipos penais que ndo ocorreu por oblivio ou pela incompeténcia técnica do Poder Legiferante. Tra- ta-se da politica normativa sensacionalista que ha anos vem sen- do difundida no pais: editar novas leis, com novos tipos penais, muitas vezes republicando o que existia a fim de endurecer pe- nas para que, artificialmente, a nacéo acredite que providéncias estéo sendo tomadas - € o processo politico-criminal que Hassemer denominou de reagdo simbolica.* 3 Trés temas de direito penal, p. 86: “Uma tiltima questao a respeito da adequacio da resposta do direito Penal moderno: hé uma tendéncia do legislador em termos de politica criminal moderna em utilizar uma reagio simbélica, em adotar um Dircito Penal simbélico. Quero dizer com isso, que os peritos nessas questées sabem que os instrumentos utilizados pelo Direito Penal nao sao aptos para lutar efetiva ¢ eficientemente contra a criminalidade real. Isso quer dizer que os instrumentos utilizados pelo Direito Penal sio ineptos para combater a realidade criminal. Por exemplo: aumentar as penas, no tem nenhum sentido empiricamente. O legislador - que sabe que politica adotada é ineficaz, - faz. de conta que est inquieto, preocupado € que reage imediatamente ao grande problema da criminalidade. Ea isso que cu chamo de ‘reagio simbélica’ que, em razdo de sua ineficacia, com o tempo a populacio percebe que se trata de uma politica desonesta, de uma reacao puramente simbélica, que acaba se refletindo na pr6prio Direito Penal como meio de controle social.” 384 ExperiéNcias Do Direrro — ALEXANDRE WUNDERLICH Passo, ento, a verificar o fenédmeno a partir da evolugio legislativa. E, nesse ponto, sublinho que a acao normativa esta- tal surge com o governo provisério j4 na década de trinta*, quan- do apareceram as primeiras disposicdes sobre 0 bem juridico economia popular. Nos anos trinta o Estado foi despertado pela proliferac4o das relagdes de consumo, ocasionada pela produ- cdo em massa e distribuigéo em série que afloraram com a Revo- lugdo Industrial.’ Surge, entao, a necessidade de interveng4o no mercado de consumo, o que efetivamente ocorreu quando da promulgagao da Constituig4o Federal de 1934. Vale referir que mesmo que ainda nAo utilizasse a expres- sao abuso do poder econdémico, o ‘legislador’ ja violava o jus libertatis daqueles que lesassem 0 mercado de consumo, quan- do da vigéncia das Ordenagées Filipinas (Livro V). Nas Ordena- ges estava previsto o crime de usura, punido com a pena de dois anos de degredo na Africa. Roberto Lyra escreveu que 0 Codigo Penal de 1890, em seu artigo 223, disciplinava constituir crime: “... comerciarem os governadores e comandantes de ar- mas dos estados, os magistrados, os oficiais da fazenda dentro dos distritos em que exercessem as suas funcées, os oficiais mi- litares do mar e terra, salvo se forem reformados, e os dos cor- pos policiais. Mas a segunda parte daquele dispositivo determi- 4 René Ariel Dotti recorda que a Constituigio do Império de 1824 nao continha formas incriminadoras do abuso de poder econémico ou que tutelassem 0 consumidor. Com 0 Decreto n. 2.682, de 1875, é que aparece inicialmente a tutela penal da concorréncia desleal pela adulteragio de marca de manufatura ¢ do comércio de produtos. Dotti lembra, ainda, que o Cédigo Penal da Primeira Reptiblica, de 1890, tampouco nao criminalizou as condutas que caracterizassem 0 abuso do poder econémico, em homenagem ao triunfo da formula do laissez-faire, laissex-passer. (Algumas reflexdes sobre o direito penal dos negécios, p. 18) 5 Arevolucio industrial no deu origem somente a “produgio em massa”. Konder Comparato salienta que na mesma época surgia também, pela exploracio dos meios de comunicagio, uma “cultura de massas” que imortalizava icones ideais: “A ‘revolugio industrial’, com efeito, nio deu origem apenas a produgéo em massa mas também a uma cultura de massas, notadamente pela exploragao dos meios de comunicacao. As grandes concentracées urbanas constituiram o caldo de cultura ideal para tanto. {dolos esportivos, ou artistas do radio, cinema ou televisio passaram a galvanizar as multidées. Seus nomes ou apelidos, ou as expressGes ligadas & sua personalidade, tornaram-se simbolos do sucesso popular.” (Protecdo a0 consumidor: importante capitulo do direito econémico, p. 188) Sopre A TuTets PeNat DAs RELAGOES DE Consumo: Da EXEGESE DA Ler. 385 nava: Na proibic4o deste artigo nao se compreende a faculdade de dar dinheiro a juro ou a prémio, contando que as pessoas nele referidas nado fagam do exercicio desta facilidade profissio habitual de comércio...”° Vé-se da Ultima parte do dispositivo que naquela época 0 nucleo elitista detentor do poder econdémico ja controlava a ac4o normativa estatal. O Estado permitia, de certa forma, a agiotagem, desde que os privilegiados (governadores, comandantes, magistrados, oficiais e outros) nao fizessem deste exercicio uma ‘pratica habitual’ de comércio. Em 1931 0 Decreto n. 19.604 previa sangées contra ‘falsi- ficag6es e fraudes de géneros alimenticios’. A politica normativa - que vejo ser isolacionista — foi implantada sem quaisquer ou- tros elementos politicos, econdémicos ou sociais. Em 07 de abril de 1933, o Decreto n. 22.626 definiu em seu artigo 13, o delito de usura, numa tentativa de remediar com sang6es penais a ine- ficacia das sancGes civis, administrativas e fiscais. Porém, como bem ressaltou Roberto Lyra, verificando uma acio simbolica, “as normas nao passavam de intiteis adverténcias morais esvazia- das até da antiga religiosidade.”” A Constituigéo Federal de 1937 oficializou o regime autori- tario e deixou estabelecido, de forma mais explicita, que o Estado promulgaria leis mais severas em defesa da ‘economia do povo’. Os crimes contra a economia popular foram equiparados aos cri- mes praticados contra a seguranga do Estado, sendo julgados pelo Tribunal de Seguranga Nacional. Parece-me evidente, como lem- brou Manoel Pedro Pimentel®, que os crimes contra a economia 6 Criminalidade econ6mico-financeira, p.7. 7 Criminalidade econémico-financeira, p. 8. 8 Estudos e pareceres de direito penal, p. 149. Neste mesmo periodo hist6rico 0 Decreto n. 431, de 1938, que reproduz, segundo René Ariel Dotti, o art. 21, da Lei de Seguranga n. 38, de abril de 1935, que previu como crime contra a ordem social 0 fato de “tentar por meio de artificios, promover a alta ou baixa de precos dos géneros de primeira necessidade com o fito de lucro ou proveito.” Eram julgados pelo Tribunal de Seguranca Nacional alguns delitos (inafiangiveis € com penas de prisao de até dez anos) contra a economia popular, sua guarda € © seu emprego, previstos no Decreto n. 869, de 1938. Em 1939, o Decreto n. 1.716 veio estabelecer normas procedimentais para o julgamento destes crimes. (Algumas reflexées..., p. 18) 386 ExperifNcias DO Diretro — ALEXANDRE WUNDERLICH popular foram equiparados aos crimes praticados contra o Esta- do, colocando-se ‘Estado e Povo em pé de igualdade’. Inegavel que nesse histérico legislativo o bem juridico eco- nomia popular teve seu 4pice no governo Gettilio Vargas. A Lei n. 1.521/51, revolucionou a legislacéo em vigor 4 época. Fo- ram criados mais de vinte tipos penais e o Juri da Economia Popular. O mito e o ritual do Juri utilizados para outorgar aos cidadaos o julgamento daqueles que se locupletavam ilicita- mente, espoliando-os.° Posteriormente, nos anos sessenta, surge nova protegao in- direta, agora na seara administrativa, com a Lei Delegada n. 4/62, do governo Joao Goulart, no intuito de assegurar a livre distribui- cao de produtos necessarios ao consumo do povo. Em 1986 0 Estado prossegue a politica de interveng4o na ordem econémica promulgando a Lei n. 7.492 — Lei dos Crimes do Colarinho Branco. Desta vez, o bem juridico tutelado foi o sis- tema financeiro nacional, quando ganha maior espacgo no campo doutrindrio brasileiro o interesse pelos delitos praticados por co- larinbo branco, na expressio cunhada por Sutherland." 9 Roberto Lyra, Criminalidade econ6mico-financeira, p. 40-41. Ressalta a mensagem presidencial na promulgacio da Lei n. 1.521/51: “Da mensagem presidencial: A outorga do jtiri do julgamento de infragdes contra a economia popular, cuja punicao o governo quer tornar mais efetiva, encontra ampla justificativa na propria esséncia do instituto. Praticadas com o objetivo de enriquecimento ilicito dos que fornecem & populacio as utilidades indispensaveis a sua alimentagao, vestuario ¢ habitacio, é que os julgadores de tais infragoes scjam recrutados nas varias camadas do povo. Todos aqueles que sentem de perto os efeitos da cupidez ¢ da espoliagao de scus parcos meios de subsisténcia terao oportunidade de participar direta e pessoalmente no grande esforco que as autoridades empregam para conter a alta dos precos. Concentrada, atualmente, nas maos de alguns juizes togados, a atribuigao de julgar esses crimes passard a um grande corpo de jurados, através dos consethos de sentenca, organizados cm numero aprecidvel. Havera assim possibilidade de convocar 0 povo a participar de um julgamento em matéria que tanto ihe interessa, podendo condenar ou absolver, decidindo de fato ou de direito e realizando, portanto, a justiga pelas proprias mios.” 10 Odone Sanguiné, introducdo aos crimes contra 0 consumidor: perspectiva criminolégica e penal, p. 18: “Antes da original contribuigao de Sutherland, a sociologia industrial ja utilizava a expressio white collar (colarinho branco), para designar aos trabalhadores n4o-manuais em contraste com as vestimentas blue collar (colarinho azul) dos operarios manuais (Bergalli, p. 44) (...)(...)Edwin Sonre A TuTHLA PENAL pas RetacOrs pe Consumo: Da EXEGeSE DA LEL... 387 No ano de 1988, o Estado inicia uma nova politica intervencionista sob a égide da Constituigao Federal. Ao adven- to da Constituic4o, dois dispositivos (artigos 5°, XXXII e 170, V) possibilitaram dar efetividade 4 defesa do consumidor. Diante do texto constitucional, em 1990 o Estado implanta nova politi- ca intervencionista. A tutela da economia popular é abandona- da, sendo criado, com a Lei n. 8.078, 0 bem juridico relagaéo de consumo. O CDC € aplaudido pela sociedade e pela doutrina como um instrumento moderno ¢ funcional. Contudo, o diplo- ma € criticado por alguns penalistas brasileiros por trazer consi- go a eiva da criminalizacgao desnecessaria (arts. 63, usque 74) que, como € cedigo, rompe com a proposta de um direito penal minimalista e de carater subsidiario —ligdes de Ferrajoli, Zaffaroni, Larrauri, Baratta, Hassemer.'' Mas 0 ‘legislador’ nao tropegou apenas ao eleger os tipos previstos no CDC. Num olhar sobre o sistema que fora projetado, percebe-se quanto A legislacio em matéria penal consumerista, uma incomensurével falta de téc- nica legislativa e uma imprecisao conceitual que se notabiliza, por sua aparicdo freqtiente, na década de noventa. Apenas dois meses apos a publicagao do CDC, ainda no governo Collor de Melo, foi promulgada a Lei n. 8.137/90, definindo delitos contra a ordem tributdria, econémica e, também, contra as relagdes de consumo — em seu art. 7°, incisos I, usque IX. Como se nao bas- tasse a op¢do criminoldgica marcada por uma equivocada politi- ca criminal implementada no CDC - recurso 4 criminalizagao de condutas sem qualquer dignidade penal -, 0 ‘legislador tro- pegou’, vez mais, publicando, quase que simultaneamente, duas legislag6es que tutelam o mesmo bem juridico. H. Sutherland teve 0 mérito de introduzir e aplicar 0 conceito sociolégico de white collar na ciéncia criminolégica. Utilizou 0 conceito white collar crime pela primeira vez em 1939, por ocasiio de uma conferéncia perante a Sociedade Americana de Criminologia, como presidente da ‘Amercian Sociological Soctety’, publicada mais tarde, em 1940.” 11 Entre nds, é fundamental conferir as propostas de Salo de Carvalho (Pena e Sarantias) ¢ Paulo de Souza Queiroz (Do cardter subsididrio do direito penal: lineamentos para um direito penal minimo). 388 ExreriéNcias Do Direrro ~ ALEXANDRE WUNDERLICH A publicagio do CDC ocorreu em setembro de 1990, mas, face vacatio legis, o diploma s6 entrou em vigéncia trés meses apos a publicacio da Lei n. 8.137/90, publicada com vigéncia imediata em dezembro de 1990. Ou seja: em 1990 o poder legislativo pro- duziu dois diplomas que publicam tipos que tutelam o mesmo bem juridico. Porém, sem qualquer critério légico, usou express6es conceituais dispares como consumidor (CDC) e cliente ou fregués (Lei n. 8.137/90, art. 7°, 1D). Além disso, consignou penas absurda- mente desiguais para as mesmas violagGes, penas nao superiores aos dois anos no CDC e, penas de dois a cinco anos e multa na Lei n. 8.137/90. Face as discrepancias em relac4o 4 pena, lembro que hoje, diante das Leis n. 9.099/95 e 10.259/01, tem-se, inclusive, pro- cedimentos diversos. Todos os tipos previstos no CDC possuem procedimento sumarissimo, eis que tramitam no 4mbito dos Juizados Especiais Criminais. Os tipos dispostos no art. 7° da Lei n. 8.137/90 seguem o procedimento ordindrio. ° 12 OCDCcriow uma verdadeira Politica Nacional para as Relagdes de Consumo. A Lei estabeleceu os conceitos basilares, devidamente descritos nos arts. 2° € 3° (conceito de consumidor e fornecedor). Todos os tipos penais encontrados na Lei n. 8.078/ 90 se referem a estas figuras que foram conceituadas no proprio diploma. Disso conclui-se que s6 sera sujeito ativo do delito 0 fornecedor nos termos da lei, sendo vitima ou sujeito passivo 0 consumidor delimitado pela legislagao, ou a propria relacdo de consumo que, por sua vez, engloba os dois sujeitos do delito. Em sentido oposto, sem qualquer técnica de sistematizagio o legislador da Lei n. 8.137/90, j no inciso I, do art. 7°, no que tange ao delito de favorecimento ou preferimento sem justa causa, utiliza a expresso comprador ou fregués, ao invés de consumidor. Existe clara incongruéncia entre 0 caput do dispositivo, que refere crimes contra as relages de consumo € 0 inciso I. Se 0 delito ¢ praticado contra um comprador, que nao seja consumidor nos termos da Lei n. 8.078/90, no pode ser tratado como crime contra a relacao de consumo. 13 Ha posigio doutrinéria que defende que também o tipo penal descrito no art. 7° da Lei n. 8.137/90, que prevé pena de detencio de 2 (dois) a5 (cinco) anos, ow multa, restaria abarcado pelo procedimento sumarissimo. Isto porque, como se sabe, o art. 2°, § tinico, da Lei n. 10.259/01 trouxe novo conceito de infracao de menor potencialidade ofensiva, derrogando o art. 61 da Lei n. 9.09/95: Consideram-se infracbes de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena maxima ndo superior a dois anos, ou multa.’ Destarte, 0 delito contra a ‘relagao de consumo’ previsto no art. 7°, da Lei n. 8.137/90, que é apenado com detengio de dois a cinco anos, ou multa, também poderd ser considerado de menor potencial ofensivo. Até, porque, € ‘Sopre A TUTELA PENAL DAS RELAGOES DE Consumo: Da EXEGESE DA Ll... 389 Talvez este seja o exemplo mais claro da incompeténcia do Poder Legislativo a partir da auséncia de seriedade com que, as vezes, produz a legislacao penal no pais." E inadmissivel o que se produziu em relagao a tutela penal das relacdes de consumo. Da mesma fonte provém uma lei que se sobrepée a outra, sem qualquer técnica legislativa, sem uma clara determinacdo de politica criminal, formando, com isso, um cipoal de tipos incom- pativeis entre si, uma vez que disciplinam a mesma matéria, porém, utilizam conceitos juridicamente diversos — consumidor, cliente e fregués. Em sintese, este € 0 retrato do pais em sede de tutela penal da relagao de consumo, que nao é diferente do resto da legisla- Gao penal. Desde sua origem, a politica intervencionista no mer- cado de consumo foi meramente legislativa - 0 direito penal como instrumento simbélico de legitimagao do poder estatal: leis formalmente validas que vém desacompanhadas de técnica e de logicidade ou compromisso com a visao de sistema. Houve, na verdade, uma sucessdo de bens juridicos 4 partir de altera- G6es legislativas. A ‘economia popular’ cedeu lugar a ‘relagio de consumo’, sendo que esta transferéncia de ‘bens’ ocorreu sem qualquer critério cientifico, ausente de referencial politico-cri- minal e, pior, em afronta ao principio da intervengio minima e ao postulado da proporcionalidade'’, a partir das publicagdes simultaneas das Leis n. 8.078/90 e 8.137/90. evidente que se a violaco ao bem juridico pode ser punida com multa, néo poderia merecer pena de detencio de até cinco anos. 14 O fenémeno que marcou parte da década de noventa foi diagnosticado por Miguel Reale Jr. como “o vicio que caracteriza a produgio da legislacdo penal nos tltimos tempos, mormente nos governos Fernando Color e Fernando Henrique, de inicio, se restringindo legislacdo extravagante ¢ a Parte Especial do Codigo, atinge agora, a parte Geral do Cédigo Penal. 0 Dircito Penal ‘fernandino’ faz da década de 90 um dos momentos mais dramaticos para o Direito Brasileiro, pois era imprevisivel que se produzissem em matéria repressiva tantas solugdes normativas a0 sabor dos fatos, sob 0 encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa. (...)" (Mens Legis Insana, corpo estranbo, p. 23-43.) 15 Adoto 0 postulado da proporcionalidade nao como principio, nos termos da Proposta de Humberto Avila, Teoria dos principios: da definigdo a aplicagao dos principios jurtdicos, p. 104. 390 Expertincias po Drrerro — ALEXANDRE WUNDERLICH 3. Arelacéo de consumo e 0 seu significado juridico no sistema brasileiro a partir da Lei n. 8.078/90 — nogées sobre consumidor, fornecedor, produto e servico A Politica Nacional das Relagdes de Consumo foi incorpo- rada ao sistema juridico brasileiro a partir da Lei n. 8.078/90 que, como disse, veio por atender preceitos constitucionais - artigos 5°, XXXII e 170, V. Esta Politica Nacional, constante no art. 4° do CDC, exsurgiu como proposta politica para a década de noven- ta, tendo como objetivo a busca do bem-estar social das relagdes de consumo a partir da criagdo de um sistema proprio a ser exe- cutado nos termos do art. 5° do mesmo diploma. Parto, aqui, do pressuposto (Iégico) cuja execugio de uma Politica Nacional prevista em lei deve estar fundada num pro- grama de emancipacio social que inicia pela criagao legislativa que, por sua vez, deve estar assentada em conceitos juridicos Precisos e/ou express6es lingiiisticas determinadas. Por isso, para implantar um sistema juridico (novo) para a tutela das relacées de consumo, foi necessdrio que o ‘legislador’ estabelecesse no CDC, os conceitos dos agentes que fazem parte da relacdo tute- lada, a fim de que ela possa ser passivel de significacao juridica. Acredito, assim, que a opgdo do ‘legislador’ consumerista foi jus- tamente esta, a que foi demonstrada por sua eleigdo ao recurso da técnica conceitual, no que tange aos significados de consu- midor, fornecedor e produto/servigo. Foi delimitada, especifica- mente, a relacao juridica de consumo a partir dos significados Juridicos previstos nos artigos 2° e 3° do CDC."* 16 Art. 2°: “Consumidor é toda pessoa fisica ou juridica que adquire ou utiliza produto ou servico como destinatario final.” Parigrafo nico: “Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indeterminaveis, que haja intervindo nas relagdes de consumo.” Art. 3°: “Fornecedor € toda pessoa fisica ou juridica, pablica ou privada, nacional ou estrangeira bem como entes despersonalizados, que desenvolvam atividades de produgio, montagem, c1 construcao, transformacao, importacao, exportagio, distribui comercializagéo de produtos ou prestagio de servico.” ‘Sopne A TuTELA PENAL DAS RELAGOES DE Consumo: Da EXEGESE Da LEI... 391 No levantamento histérico legislativo percebi que no ordenamento brasileiro 0 significado juridico do bem relacgéo de consumo s6 esta previsto na Lei n. 8.078/90 e em nenhuma ou- tra legislagao. Se assim é, penso que somente a partir da Lei n. 8.078/90 (e de seu conceito juridico sobre relagio de consumo), € que é possivel dar inicio ao processo de criminalizagao de um bem juridico até entao desprovido de significado, pois inexistente na legislagao brasileira. A Constituigao Federal de 1988 estabeleceu um principio fun- damental. No plano das garantias individuais, em seu art. 5°, XXXII, prevé que o Estado promovera, na forma da lei, a defesa do consu- midor. No plano dos principios gerais da atividade econdmica, a fim de tratar dos bens juridicos ordem econémica e financeira, esta- belece em seu art. 170, que a ordem econdmica, fundada na valori- zagao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem. por fim assegu- rar a todos existéncia digna, conforme os ditames da justiga social, observados os seguintes principios: (...) V-defesa do consumidor. A Constituigao Federal deu, de fato, o norte politico paraa tutela do consumidor. Contudo, nao ha qualquer referéncia 4 relagdo de consumo enquanto bem juridico a ser tutelado. Cum- pre destacar, vez mais, que a relagio de consumo somente apa- rece no cenario legislativo enquanto bem juridico determinado € provido de significado juridico a partir do CDC. O Estado veio a tutelar penalmente a relag4o juridica estabelecida no CDC que, por sua vez, conforme se denota do diploma, contém os signifi- cados juridicos de consumidor, fornecedor, produto/servico. Vale dizer que a relagao possui o consumidor (destinatario final, fatico e econémico) em seu pélo ativo e o Sfornecedor (profissional atuante com habitualidade) no pdlo passivo. Além disso, a rela- ¢4o juridica exige, ainda, a presenga de um objeto, produto ou servigo"’. Portanto, a relacdo juridica de consumo que foi tutela- 17 Art. 3°, § 1°: “Produto é qualquer bem, mével ou imével material ou imaterial § 2°: Servico € qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneracio, inclusive as de natureza bancéria, financeira, de crédito ¢ securitéria, salvo as decorrentes das relacdes de carater trabalhista.” 392 ExpERIENCIAS DO DiREITO ~ ALEXANDRE WUNDERLICH da penalmente é a prevista no CDC: uma relacio interpessoal e composta de trés elementos, 0 elemento subjetivo, o elemento teleologico e 0 elemento objetivo. Consumidor, fornecedor e produto/servico possuem signi- ficados juridicamente precisos, sendo delimitado, sem vagueza, 0 bem tutelado. Penso que estes significados funcionam como pre- missas — previamente fixadas — que fundamentam juridicamente a existéncia do bem relagao de consumo e que possibilitam uma Politica Nacional das Relagées de Consumo. Ao criar estes signifi- cados, 0 ‘legislador’ estabeleceu o ambito de abrangéncia social €, por suposto, de protegao penal." Ao meu ver, a relagao juridica 18 E verdade que 0 conceito legal ndo é isento de critica. Um eventual vicio pode produzir caréncia conceitual, déficit de significado e, por suposto, a vagueza do dispositivo. A acepcio de consumidor podera adquirir diversos sentidos, causando divergéncias na doutrina, sobretudo se 0 conceito for estudado a partir de uma visdo transdisciplinar. O conceito de consumidor € pioneiramente socioeconémico, nao sendo originariamente juridico e, por isso, nao € s6 jurid Apenas a guisa de ilustragao, registro a divergéncia dogmitica, vez que duas correntes podem ser determinadas quanto definicao do alcance das normas que tratam da matéria. José B. Acosta Estévez disserta sobre a nocio de consumidor e a pluralidade definidora da acepgao, ensinando que diante dos diversos textos existentes na comunidade européia, cabe diferenciar duas posturas: restrita e ampla. A nogio consumidor-cliente (aquele que intervém nas relag6es juridicas situado na posicio de demanda hipotética e convencional vinculo com 0 titular da oferta), ¢ a nogéo consumidor-final (aqucle que adquire produtos ou servicos para o seu uso particular).(Tutela procesal de los consumidores, p. 58.) No mesmo sentido, Mario Ferreira Monte analisa as diversas acepcdes do termo consumidor, referindo a dicotomia entre as nocées abstrata e concreta de consumidor, entre 0 consumidor-cliente e 0 consumidor- final ¢ 0 consumidor scricto sensu ¢ 0 consumidor lato sensu. (Da protecdo penal do consumidor: o problema da (des)criminalizacao no incitamento ao consumo, p. 188). O autor cita Bercovitz Rodriguéz-Cano para afirmar que, em sentido concreto, consumidor seria “aquele que adquire bens ou servigos para © uso privado”, enquanto que na acepgio abstrata seria incluido o consumidor como homem/cidadao, além da aquisicao de bens ¢ servicos, remonta tal acepg4o a0 ar que respira, a educacio, a informacio que recebe, os servicos piiblicos de que se serve, etc. Quanto a nogao de consumidor final, nos termos doutrindrios tradicionais, o autor, citando Gemma A. Botana Garcia ¢ novamente A. Bercovitz, refere aquele que adquire bens ou servicos para uso pessoal ou privado. Na nogio consumidor-cliente € incluida a figura do vendedor ou do prestador de servigos, uma vez que para estes € indiferente o elemento teleol6gico destinacio Sopre 4 TuTeLa Pena DAs RELAGOES DE Consumo: Da Execese pa Let... 393 de consumo, da forma em que foi posta e nos termos em que as condutas foram criminalizadas, s6 pode ser incorporada no siste- ma juridico brasileiro a partir da vigéncia dos artigos 2°, 3°, 4° e 5°, que instituem a politica nacional consumerista e prevéem a sua execucao. E, como existem duas leis que disciplinam os deli- tos contra as relagGes de consumo, Leis n. 8.078/90 € Lein. 8. 137/ 90, sendo que a tiltima nao faz qualquer referéncia ao significado do bem relagio de consumo, deve o exegeta nortear-se a partir dos significados da Lei n. 8.078/90. Verifico, aqui, um tropeco do ‘legislador’ que sera abordado no transcorrer deste ensaio. Publi- cado 0 art. 7° da Lei n. 8.137/90, 0 seu caput estatuiu constituir ‘crime contra as relagGes de consumo’, uma série de condutas que a seguir sao descritas nos incisos I, usque IX, o ‘legislador’ descreveu condutas em tese ameacadoras/violadoras ao bem juri- dico relag4o de consumo, sem, contudo, existir no ordenamento juridico um conceito de relagio de consumo. Quando da publica- ao da Lei n. 8.137/90, o CDC ainda nao estava em vigéncia e, por isso, estabelecer crimes contra as relagées de consumo foi o mes- mo que estabelecer condutas que atentem contra um bem juridi- co inexistente na ordem juridica brasileira. 4. A relacao de consumo e 0 seu significado juridico no sistema brasileiro a partir da Lei n. 8.078/90 - nogées sobre o bem Juridico penal de natureza supra-individual Sempre € oportuno relembrar que a missao do direito pe- nal consiste na protegio de bens juridicos relevantes, nos ter- mos da licao de Hans Welzel. Para Welzel “Bien Juridico es un bien vital de la comunidad o del individuo, que por su final que € essencial na acepcio consumidor final. Quanto a nocdo consumidor stricto sensu ¢ consumidor Jato sensu salienta que a primeira forma (hoje quase abandonada) consiste em definir 0 consumidor como aquele que adquire bens Para seu uso privado ou pessoal, enquanto a segunda institui também a aquisicao de servigos para o mesmo uso pessoal ou privado.) 394 Exrertincias DO Diretro ~ ALEXANDRE WUNDERLICH significacion es protegido juridicamente.”’ No mesmo diapasao, Wilfried Hassemer observa que como fundamento do mereci- mento do castigo penal de uma conduta, o ‘legislador’ ndo pode basear-se na referéncia de uma vulnerabilidade de norma ética ou divina, bem antes, tem que demonstrar a lesio de um bem juridico e, apresentar uma vitima individualizada, mostrando que da mesma foram violados bens ou interesses. Hassemer asseve- ra que a conduta humana somente pode ser considerada um injusto punivel, quando causa lesio ao bem juridico.” Miguel Reale Jr. afirma que “Hassemer caracteriza 0 direito penal classi- co por sua ligacéo 4 nogao de bem juridico ao qual se vincula o legislador, funcionando o bem como critério negativo, pois sem bem juridico a ser protegido a incriminagao nao se justifica.” Miguel Reale Jr. constata, assim, que “a incrimina¢ao atendia aos principios da subsidiariedade e da proporcionalidade”, identifi- cando que, no entanto, o novo direito penal “amplia-se para Ppassar a ser nao mais a ultima, mas a prima ratio,em protegao das instituigdes, de interesses da administracao e de interesses coletivos, supra-individuais, difusos.” A conclusio do Professor Miguel Reale Jr. caminha no sentido de que “recorre o legisla- dor, na formulagio dos tipos penais em defesa dos interesses difusos, a formulas vagas e amplas, sem preciso e a conciséo com que descrevia as normas de tutela de bens individuais.”2" Na doutrina brasileira ha unanimidade no sentido de que 0 “delito constitui lesao ou perigo de lesdo a um bem juridico, sendo quase um verdadeiro axioma — principio da exclusividade da protecio de bens juridicos”, nas palavras do Professor Luiz Regis Prado.” Regis Prado nota que “o pensamento moderno 19 Derecho penal alemdn: parte general, p. 15. Na mesma linha é 0 pensamento de Jescheck: “E] Derecho Penal tiene encomendada la misin de proteger bienes juridicos.” Tratado de derecho penal: parte general, p.9. 20 Fundamentos del derecho penal, p. 37-38. 21 Razéo e subjetividade no direito penal, p. 228-229. 22 Bem juridico-penal e Constituigdo, p. 31. Luiz Regis Prado continua, com a clareza que the ¢ peculiar: “A doutrina do bem juridico, erigida no século XIX, Sopxe a TuTeLa Prenat pas REtAGOES De Consumo; DA EXEGESE Da Let... 395 reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na protecio de bens juridicos — essenciais a0 individuo e 4 comunidade ~ norteada pelos principios fundamentais da per- sonalidade e individualizacao da pena; da humanidade; da in- significancia; da culpabilidade; da intervengao penal legalizada; da intervengdo minima e da fragmentariedade.”% Ocorre que, como refere Bustos Ramirez, “em geral, os bens juridicos proprios 4 dogmatica tradicional, eram de facil deter- minacao, tanto porque apareciam diretamente ligados a pessoa como pelo fato que sua ofensa surgia de modo particularizado e preciso.”** Agora, diante da velocidade do desenvolvimento da sociedade contemporanea e da revolug4o das relacées sociais a partir dos novos conceitos de tempo, velocidade e espaco”, ou- tros bens/valores foram identificados €, muitos deles, ou infeliz- mente quase todos, acabaram por receber a tutela penal. Sobre esse assunto, interessante notar a posicao de Juan Bustos Ramirez”, quando leciona tratar-se de bens juridicos macrossociais que estao ao servigo dos bens juridicos micros- sociats. Estes bens macrossociais esto subordinados aos micros- soctais, sio de uma ordem hier4rquica inferior, de menor quali- dade, ainda que possam ter uma maior danosidade social, Em que pese atualmente existir uma espécie de consagracao e/ou idolatria de bens juridicos macrossociais tutelados penalmente, PAMSRAEESHESEEESELEEESSEEESRESSEAEEY dentro de um prisma liberal e com nitido objetivo de limitar o legistador penal, vai, Passo a passo, se impondo como um dos pilares da teoria do delito. Surge cla, pois, ‘como evolucao ¢ ampliagio da tese original garantista do delito como lesdo de um direito subjetivo e com propésito de continuar a fungao limitativa do legislador, circunscrevendo a busca dos fatos merecedores de sangio penal Aqueles efetivamente danosos & coexisténcia social, mas lesivos de entidades reais — empirico - naturais — do mundo exterior’. ..” 23 Bem jurtdico-penal e Constituigdo, p. 65-66. 24 Perspectivas atuais do direito penal econdmico, p.3 25 Sobre o tema, v. Wunderlich, Sociedade de consumo e globalizacao: abordando a teoria garantista na barbdrte, (Re)afirmacao dos direltos bumanos, p. 04 et seq. 26 Perspectivas atuais do direito penal econémico, p. 5. 396 ExpentéNcias Do Dinerro — ALEXANDRE WUNDERLICH houve, em principio, muita dificuldade em determiné-los. E fato que o direito penal classico sofreu avarias com o fendmeno da bipercriminalizagdo de bens juridicos de natureza supra-indivi- dual. Odone Sanguiné recorda que a doutrina se dividiu em duas correntes teéricas. Segundo Sanguiné, os dualistas admitem as duas classes de bens juridicos, enquanto os monistas, dizem que embora haja duas possibilidades de conceber o bem juridico, ambas se excluem. Alguns doutrinadores chegaram a escrever sobre o tema, cunhando a quest4o como a “problematica dos bens juridicos”, designando tais bens como “metdforas conceituais” como fez Tullio Padovani,?” querendo, como disse Bustos Ramirez, “de algum modo, objetar sua qualidade de bens juridicos, tanto no sentido de sua indeterminacio e falta de concretizac4o como pelo fato da dificuldade de precisar sua ofen- sa.” Bustos Ramirez ainda refere que “definitivamente, se pre- tende propor que so artificiais, isto é, uma criagao artificiosa do ‘legislador’, isto é, carentes de realidade social.” A verdade é bem outra como explica o préprio Bustos Ramirez: “O Estado Moderno, ao preocupar-se em proteger a pessoa hd de fazé-lo nao somente mediante a assuncdo de deve- res negativos (nao matar, n4o lesionar, nao danificar e outros) sen4o também, ¢ especialmente, através de deveres positivos, isto é, por uma parte procurando remover obstaculos que im- pecam, e, por outra parte, promovendo condigées que possibili- tem, lograr o maximo desenvolvimento da pessoa. E isto o que tem permitido no Direito moderno, reconhecer uma série de di- reitos que tenham relagao com todos e cada uma das pessoas do sistema social.””* Para Manuel da Costa Andrade, “Numa perspectiva gené- tica, os bens juridicos do Direito Penal Econémico sao em grande medida um produto historico do intervencionismo do Estado 27 Introdugdo aos crimes contra o consumidor, p. 31 et seq. 28 Perspectivas atuats do direito penal econémico, p. 4 Sopre A Tureta Peat pas RetacOes pe Consumo: Da EXEGESE DA LEI... 397 moderno na vida econ6mica. Eles resultam da projecdao de um sistema mais ou menos ideologicamente condicionado sobre o sistema ‘espontaneo’ do fluir ‘natural’ da economia.” Hodier- namente, parece-me que o mercado e a economia ocupam o lugar do bomem e passam a dar 0 colorido nos processos de eleicao e selegao de bens juridicos. Nesse sentido, em que pese sua fungao libertaria e de garantia, a Constituigao Federal de 1988 foi palco para criagdo de diversos (novos) bens juridicos. Estas criagGes consubstanciaram-se, a0 meu sentir, numa série de normas programaticas que, por infelicidade da dogmatica penal, acabaram por efetivar um processo de criminalizagao exagerado a partir da atuagdo imoderada do ‘legislador’ infra- constitucional. Lembro que nao ha obrigacio, pois, de que seja criminalizado tudo o que estd albergado no texto constitucio- nal, como ocorreu com o meio ambiente ou as relagdes de con- sumo. No que tange ao bem juridico relag4o de consumo, penso que o mesmo esta inserido num bem maior, a ordem econémica que, por sua vez, inclui o mercado de consumo. Somente apds a violagao desses bens, de forma reflexa, é que ha violag4o ao con- sumidor. Adotando a posi¢ao de Bustos Ramirez, vejo que com a regulamentacao do bem juridico relacao de consumo, 0 ‘legisla- dor’ tutelou um bem juridico macrossocial que esta intima e in- finitamente ligado ao bem juridico microssocial, 0 consumidor. O Estado nio protege (como o direito penal tradicional protegia 0 cidad4o) somente 0 consumidor, ao contrario. protege a pro- pria relagao de consumo, que é um bem juridico auténomo, supra-individual (depassa a pessoa do consumidor individual) .3° Na tutela de bens juridicos difusos ou coletivos, o Estado esta, automaticamente, de forma reflexa, tutelando bens particula- res. A relacao de consumo como bem juridico tutelado apresen- 29 Anova lei dos crimes contra a economia a luz do conceito de bem furtdico, p. 93. 30 No mesmo sentido, Eladio Lecey, Autoria singular e coletiva nas infracoes contra o ambiente e as relagées de consumo, p. 36. 398 EXPERIENCIAS DO Dimerro — ALEXANDRE WUNDERLICH ta uma duplicidade de interesses, pois pertence (ao mesmo tem- po) a coletividade (ou interesses de toda uma coletividade de consumidores) primeiramente e, em segundo, ao consumidor de forma particular (individual). Destarte, é aceitavel a fictio juris relagao de consumo, como moderno bem juridico de natureza supra-individual (ou social) a ser tutelado, para que se dé protecao a cada um dos consumidores (individualmente) e, ao mesmo tempo, a um circulo indeterminado de consumidores (coletivamente ou difusamente). De certa manei- ra, como se vé, a doutrina, diante do discurso das ‘inimeras trans- formagées sociais’, vem legitimando a criagdo desses bens juridi- cos. Contudo, nao ha unanimidade no que se circunscreve a legiti- midade para criminalizaga4o. Ao contrario, um forte movimento de resisténcia critica o recurso 4 criminalizacgdo desnecessaria. Foi o que aconteceu, salvo melhor juizo, com o bem juridico relagao de consumo ao sofrer 0 processo de criminalizacao. Passados mais de dez anos da publicacao das leis, alguns penalistas perceberam a gravidade das incongruéncias do ‘legislador’. 5. Sucessao de leis penais: a revogacao do art. 7° da Lei n. 8.137/ 90 a partir da vigéncia do sistema imposto pela Lei n. 8.078/90 — adesao a proposta de Miguel Reale Jr Durante a evolugéo do texto, demonstrei que no ordena- mento brasileiro a relagao de consumo aparece em dois diplo- mas: Leis n. 8.078/90 e Lei n. 8.137/90. Est claro que os tipos de crime contra a relagdo, enquanto bem juridico, est4o estabeleci- dos nas duas legislagGes. Todavia, salientei que somente na Lei n. 8.078/90 se encontram os conceitos que dao significado juridico ao bem relacdo de consumo. Registrei, assim, que foi a Lei n. 8.078/ 90 que trouxe a Politica Nacional de Relacées de Consumo e que estabeleceu o seu significado juridico. O bem juridico passa, en- tao, a existir, como uma relacdo que tem o consumidor destinata- rio final, fatico e econdmico em seu pélo ativo e o fornecedor de Sopre A TuTHLA PENAL Das RELAGOES DE Consumo: Da EXEGESE DA Lél... 399 produtos ou servigos, desenvolvendo uma atividade profissional, no polo passivo a partir da vigéncia da Lei n. 8.078/90. Ocorre que apenas dois meses apés 0 advento da Lein. 8.078/ 90 foi promulgada a Lei n. 8.137/90, definindo delitos contra a ordem tributaria, econémica e, ainda, em seu art. 7°, incisos I, usque IX, contra as relagdes de consumo. Em minha opiniao, a Lei n. 8.137/90 criou um unico e esdrixulo tipo, pois estabelece mais de vinte condutas e impde uma s6 sangao, descrevendo cri- mes contra a relagéo de consumo, sem, contudo, determinar um significado juridico para o que seja relacdo de consumo, eis que no momento de sua vigéncia ainda n4o vigia a Lei n. 8.078/90. Vé-se do histérico legislativo que no ordenamento brasilei- ro o significado juridico do bem relagéo de consumo s6 esta pre- visto na Lei n. 8.078/90 ~ e em nenhuma outra legislagio! Como referido anteriormente, somente a partir da Lei n. 8.078/90 (e do conceito juridico sobre relagao de consumo), é que é possi- vel dar inicio ao processo de criminalizagio de um bem juridico até entao desprovido de significado. A Lei n. 8.137/90 estabele- ceu condutas tipicas, sem, contudo, criar juridicamente o signifi- cado do bem tutelado. A producio legislativa ocorreu, entio, em manifesta deso- bediéncia 4 necess4ria limitagéo das fontes pluralistas de cria- ¢4o de proibigGes penais ou a qualquer regra de “reserva de codificagéo” — proposta de Luigi Ferrajoli.3+ 31. Registro 0 pioneirismo do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais ({vec! RS) que identificou a necessidade de uma “reserva de codigo penal e processual penal”. O Inc, assumindo postura critica minimalista advoga contra a atual tendéncia de descodificaco penal € processual penal, defendendo urgente Proceso de recodificacao das leis que regulam o sistema repressivo. Divulgando 4 proposta langada por Luigi Ferrajoli (in La pena in una societa democratica), © Instituto prega a necessidade de introducao imediata de um dispositivo constitucional que regulamente a ‘reserva de e6digo’, uma meta-garantia destinada a imunizar as garantias penais € processuais penais das chamadas legislagdes emergenciais, colocando fim a hemorragia legislativa em matéria criminal. (Reserva de Cédigo Penal e Processual Penal. informativo do Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais, p. 1) V, também, a mesma proposta em Salo de Carvalho, Pena e garantias, p. 94 et seq. 400 EXxPerIENCIAS DO DimeiTo — ALEXANDRE WUNDERLICH Como examinei anteriormente, a Constituigéo Federal de 1988 estabeleceu uma proposta a ser cumprida, uma norma programatica em defesa do bem juridico consumidor, tanto no plano das garantias individuais (art. 5°, XXXII), como no palco dos principios gerais da atividade econ6mica (art. 170, V). Da meta ao fendmeno de criminalizacao do bem relagao de consu- mo um longo caminho deveria ter sido percorrido a luz do direi- to penal de ultima ratio. Vejo que a Constituicao nao refere o que seja relagao de consumo. E, mais, nao acena para qualquer possibilidade de criminalizagao. Foi a Lei n. 8.078/90 que criou e delimitou o bem juridico relagéo de consumo no pais, isto por- que, como asseverei, implantou a Politica Nacional para as Re- lagdes de Consumo. Assim, o Estado sé pode tutelar penalmen- te a relagao juridica estabelecida na Lei n. 8.078/90 a partir dela, pois é no CDC que, conforme se denota do diploma, estéo ex- pressos 0s significados juridicos de consumidor, fornecedor, pro- duto e servico que fundam, por sua vez, o significado de relagao de consumo. Parece-me claro que no Brasil a relagdo juridica de consumo s6 poderia ser criminalizada a partir da vigéncia dos artigos 2°, 3°, 4° e 5° do CDC, que instituiram a politica nacional consumerista. Afinal, esses dispositivos trazem os conceitos que dao significado ao bem e, assim, surge uma mera expectativa de possibilidade de tutela penal do consumo — fendmeno da criminalizacao. Vislumbro que do conjunto de medidas que fundaram a Politica Nacional consumerista, o ‘legislador’ optou, ao me ver equivocadamente, por criar no Titulo Il do CDC, um espago destinado aos crimes contra a relagdo que estava sendo tutela- da. Em que pese a equivocada op¢io politico-criminal (criminalizagao de condutas ao meu sentir sem dignidade pe- nal), o artigo 61, que antecede os artigos relativos aos crimes (arts. 62, usque 74) dispds taxativamente: “Constituem crimes contra as relag6es de consumo previstas neste cédigo, sem pre- juizo do disposto no Codigo Penal e leis especiais, as condutas tipificadas nos artigos seguintes.” O ‘legislador’, ao disciplinar Sopre A TUTELA PENAL DAS RELACOES DE Consumo: Da EXEGESE DA LEI... 401 os “crimes contra as relagées de consumo previstas neste codi- go”, estabeleceu, a meu juizo, o universo de abrangéncia dos dispositivos a partir de uma prévia determinagao do que seja 0 bem juridico que estava sendo criminalizado. Primeiro, deu sig- nificado juridico ao bem relagéo de consumo. Depois, lancou- the a tutela penal. Entretanto, o mesmo n4o ocorreu em relac4o aos crimes previstos no artigo 7°, da Lei n. 8.137/90, verbis: “Constitui cri- me contra as relagdes de consumo”, seguindo-se as condutas narradas nos incisos I, usque EX. A Lei n. 8.137/90 nao faz qual- quer referéncia ao significado do bem juridico relagao de consu- mo, apenas descreve as condutas delitivas. Logo, se por oportu- nidade da publicagao e vigor da Lei n. 8.137/90, a Lei n. 8.078/90 ainda no tinha vigéncia, e a Lei n. 8.137/90 nao faz qualquer mengio ao significado do bem relagéo de consumo, seria im- possivel, penso, criminaliz4-lo. Isto porque, o recurso 4 tutela penal s6 pode ser utilizado subsidiariamente, quando todos os outros instrumentos de controle social ja foram utilizados ~ di- reito penal de ultima ratio. Nao poderia o ‘legislador’ simples- mente criminalizar certas violag6es — “crimes contra as relagées de consumo” -, porque nenhum outro recurso estatal havia sido anteriormente utilizado na preservagdo deste bem. Em sintese, a Lei n, 8.137/90 foi a primeira legislagao que conteve a expres- sao relagao de consumo € 0 Estado legislador, ao optar por um direito penal de prima ratio, simplesmente iniciou estabelecen- do crimes. Existe, aqui, um abismo entre a proposta da dogmatica® penal e a politica legislativa efetivada. Partindo da constatacdo de que a Lei n. 8.078/90 ainda nao estava em vigén- cia, cabe formular a pergunta que é imperativa: como 0 ‘legisla- 32 Quando utilizo a palavra ‘dogmitica’, pretendo referir os representantes da dogmética juridica: “O agrupamento de doutrinas em corpos mais ou menos homogéneos que transforma, por fim, a Ciéncia do Direito em Dogmitica Juridica, Dogmitica é, neste sentido, um corpo de doutrinas, de teorias que tm sua funcao basica em um ‘docere’ (ensinar)”, segundo Tércio Sampaio Ferraz Jr (A ciéncia do Direito, p. 50) 402 EXPERIENCIAS DO DIREITO ~ ALEXANDRE WUNDERLICH dor’ estabeleceu crimes contra as relagGes de consumo, sem antes ter utilizado qualquer outro recurso para dar protecao a este bem? De fato, o Estado optou pela forma mais cémoda, iniciou pelo fim. Além disso, verifico, aqui, outro ‘tropego do legislador’. Quando da publicac4o do art. 7° da Lei n. 8. 137/90, o seu caput estatuiu constituir crime contra as relagdes de consumo, uma série de condutas que a seguir so descritas nos incisos I, usque IX. O ‘legislador’ da Lei n. 8.137/90, jano inciso I, do citado art. 7°, no que tange ao delito de favorecimento ou preferimento sem justa causa, utiliza a expressio comprador ou Sregués, a0 invés de consumidor, que seria 0 adequado por se tratar de rela- do de consumo. E correto afirmar que o termo consumidor en- globa as express6es comprador e -fregués. No entanto, nem todo comprador ou fregués é consumidor. Outro equivoco do ‘legis- lador’, que optou por republicar um tipo ja previsto na Lei n. 1.521/51, confundindo conceitos e gerando controvérsias. Mas ndo é sé. Além de optar primeiramente pela crimina- lizacao e, ainda, de fazer isto sem qualquer critério técnico, 0 ‘Iegislador’, ao meu ver inconseqiientemente, impés as diversas condutas descritas no art. 7°, uma unica sangao. Estabeleceu pena de detengao de dois a cinco anos, ou multa. Tenho que este referencial penaldgico é extremamente incompativel com o bem juridico tutelado. Detengao de até cinco anos é uma pena por demais elevada para 0 tipo de preferimento de cliente, por exemplo. Basta um exame da legislacao em vigéncia para que se perceba que houve mais uma violagdo a escala axtologica de bens juridicos tutelados pelo direito penal. O exegeta deve, aqui, constatar que a lei estabeleceu pena de deteng4o ou multa. Ora, se a pena de multa é proporcional a ameaga/violagdo eventual, nao poderia o ‘legislador’ impor detengao de até cinco anos. A reprimenda é totalmente desproporcional. Desta forma, por: (1) usar o direito penal como prima ratio ~tinico recurso estatal; (IH) Por incriminar a simples ameaca e a Sopre a TuTeta PENAL pas RELAGOES DE Consumo: Da ExeGese pa Lei... 403 violagdo ao bem relagio de consumo, sem, contudo, conceituar juridicamente este bem; (IID) por conter incompatibilidades juri- dicas entre o caput do art. 7° e os incisos e, ainda, com a Lei n. 1.521/51, e (IV) por conter uma reprimenda penal desproporcio- nal em relagdo aos demais bens juridicos e respostas penais; ja teriamos raz6es suficientes para declarar a inconstitucionalidade do tipo como conseqiiéncia direta dos tropecos do ‘legislador’. Mas nao é sé. O ‘legislador’ seguiu tropicando. Publicou duas leis que versaram sobre a tutela penal das relagdes de consu- mo. Em que pese a Lei n. 8.078/90 ser publicada em setembro de 1990, face vacatio legis, a mesma s6 entrou em vigéncia trés meses apos a publicagao da Lei n. 8.137/90, publicada com vi- géncia imediata em dezembro de 1990. Ou seja: a Lei n. 8.078/ 90 entrou em vigéncia no més de marco de 1991, revogando as disposig6es que tratavam da mesma matéria— conforme art. 119 do CDC: “Revogam-se as disposigées em contrdrio”. Isto porque, como se disse, 0 CDC trouxe nova politica consumerista, estabelecendo conceitos precisos que conduzem a significados juridicos a serem aplicados aos tipos legais de cri- me nele constantes. E nao € por acaso que o ‘legislador’ insti- tuiu longa vacatio. A preocupacdo com o tempo de vacatio ocor- reu a partir da repercussdo social que o diploma traria, como de fato trouxe. Foi instituida no pais uma Politica Nacional que rom- peu com as categorias juridicas tradicionais. Este conflito de normas penais foi diagnosticado pelo olhar atento de Miguel Reale Jr, in verbis: “Questio relevante surgiu referentemente ao Codigo de Defesa do Consumidor, que estatuiu normas incriminadoras relativas 4 relagao de consumo, teve vacatio legis de seis meses, de setembro de 1990 a margo de 1991. Neste interregno, foi publicada, com vigéncia imediata, a Lei n. 8.137, em dezembro de 1990, trazendo no seu bojo normas incrimina- doras relativas, também, as relagdes de consumo. A lei posterior, ou seja, o Codigo de Defesa do Consumidor, pois sua vigéncia se deu depois, em margo de 1991, revogou os dispositivos da Lei n. 404 EXPERIENCIAS DO DirE1TO — ALEXANDRE WUNDERLICH 8.137, por tratar inteiramente da mesma matéria, aplicando-se na espécie o disposto no art. 2° da Lei de Introdugao ao Cédigo Civil. Parcela da Jurisprudéncia entende que houve apenas revo- gacao parcial relativamente aos dispositivos da Lei n. 8.137/90 in- compativeis com 0 Cédigo de Defesa do Consumidor, 0 que nao me parece cabivel, pois o tratamento sistemético da matéria no Codigo de Defesa do Consumidor tem 0 significado de absorver por inteiro, revogando-se inteiramente o capitulo acerca dos cri- mes contra as relagées de consumo da Lei 8.137/90."3 Cumpre, destacadamente, asseverar que néo ha como se examinar separadamente os dois diplomas, aplicando-os, indis- tintamente, como se um existisse sem 0 outro. Impossivel, pois, como escreveu Eros Roberto Grau, “interpretar o Direito em ti- ras”.** Seguindo a licdo de Humberto Avila, tento “ultrapassar a crendice de que a fungao do intérprete é meramente descrever significados, em favor da compreens4o de que o intérprete re- constrdi sentidos, quer o cientista, pela construgao de conexées sintaticas e semanticas, quer o aplicador, que soma Aquelas co- nex6es as circunstancias do caso a julgar; importa deixar de lado a opiniao de que 0 Poder Judicidrio sé exerce a fungio de ‘legis- lador’ negativo, para compreender que ele concretiza o ordenamento juridico diante do caso concreto.”* Na verdade, se a Lei n. 8.137/90 tivesse vigéncia posterior ao CDC, deveria 0 exegeta ter uma visdo do sistema e interpreta- laa partir dele. Deveria analisar 0 artigo 7° a partir dos significa- dos trazidos pelo CDC. Mas, como bem demonstrou Miguel Reale Jr, o CDC nao é anterior 4 Lei n. 8.137/90 e nao houve apenas revogac¢ao parcial relativamente aos dispositivos da Lei n. 8.137/90 incompattveis com o CDC. Face sua vacatio legis, 0 CDC acabou por entrar em vigéncia apés a Lei n. 8.137/90. Nao 33 Instituicées de direito penal, p. 100. 34 In preficio 4 obra de Humberto Avila, Teoria dos principios: da definigao & aplicagao dos principios juridicos, p. 10. 35. Teorla dos princtpios: da definicdo @ aplicacao dos principios juridicos, p. 25-26.

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