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Geraldo Coelho Dias

ATAS das 1as


CONFERÊNCIAS MUSEU DE LAMEGO / CITCEM - 2013
HISTÓRIA E PATRIMÓNIO NO/DO DOURO: INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO

Available online at www.museudelamego.pt

ABREVIATURAS COMISSÃO ORGANIZADORA

ML Museu de Lamego Alexandra Braga (ML -DRCN)


CITCEM Centro de Investigação Transdisciplinar Cul- Álvaro Bonito (ESTGL - IPV)
tura, Espaço e Memória Gaspar Martins Pereira (FLUC / CITCEM)
DRCN Direção Regional de Cultura do Norte Luís Sebastian (ML - DRCN)
FLUC Faculdade de Letras da Universidade do Porto Nuno Resende (FLUC / CITCEM)
ESTGL - IPV Escola Superior de Tecnologia e Gestão Paula Montes Leal (FLUC / CITCEM)
de Lamego - Instituto Politécnico de Viseu
DL Diocese de Lamego
PNDI Parque Natural do Douro Internacional
MFM Museu do Ferro de Moncorvo
CNRS Centre national de la recherche scientiique,
Lyon
CONFERENCISTAS APOIOS

Alexandra Braga (ML - DRCN) Direção Regional de Cultura do Norte


Alexandra Cerveira Lima (PNDI)
Amândio Barros (ESEP / CITCEM) Liga dos Amigos do Museu de Lamego
Ana Sampaio e Castro (FLUP)
António Sá Coixão (Freixo de Numão / CITCEM) Diocese de Lamego
Carla Sequeira (FLUC - CITCEM)
Gaspar Martins Pereira (FLUC - CITCEM) Município de Lamego
Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB (FLUC - CITCEM)
Luís Sebastian (ML - DRCN) Hotel de Lamego
Manuel Real (FLUC - CITCEM)
Manuela Vaquero (ML - DRCN) Soltagiga, Lda.
Nelson Campos (MFM / CITCEM)
Nuno Resende (FLUC - CITCEM) Casa de Santo António de Britiande
Otília Lage (FLUC - CITCEM)
Paulo Dórdio (CITCEM) Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Lamego
Pedro Pereira (CNRS / CITCEM)
Ricardo Teixeira (CITCEM) Escola de Hotelaria e Turismo de Lamego
Susana Cosme (FLUC - CITCEM)
Teresa Soeiro (FLUC - CITCEM)

GRAFISMO
Luís Sebastian (ML - DRCN)
Patrícia Brás (ML - DRCN)

COMUNICAÇÃO
Patrícia Brás (ML - DRCN)

PAGINAÇÃO
Padre Hermínio Lopes (DL)

REVISÃO DE TEXTOS
Alexandra Braga (ML - DRCN)

SERVIÇOS ADMINISTRATIVOS
Paula Duarte (ML - DRCN)
Índice

O LEGADO DE CISTER NO DOURO

Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB


Cister no Douro: Cultura, Espiritualidade e Desenvolvimento ....................................................... 13

Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca: da investigação à musealização .................................................... 21

HISTÓRIA E PATRIMÓNIO

Manuel Real
O signiicado da basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa), na alta Idade Média duriense ......................... 65

Ana Sampaio e Castro


Vias medievais nos coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta. Maria de Salzedas ......................... 105

Nuno Resende
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente»: a implantação dos edifícios religiosos e a expansão urba-
nística de Lamego entre os séculos XVI e XVIII ...................................................................... 125
ARQUEOLOGIA NO/DO DOURO

Susana Cosme
O contributo das pequenas 'villae' rústicas na economia e povoamento dos séculos IV-VII no Douro ......... 141

Paulo Dórdio
Investigação e desenvolvimento no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do
Baixo Sabor............................................................................................................... 151

Pedro Pereira
'De vino ac vineas' vinicultura romana no Vale do Douro .......................................................... 173

António Sá Coixão
1980-2013 / 33 Anos de investigação arqueológica nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Mêda.......... 183

HISTÓRIA NO/DO DOURO

Carla Sequeira
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense (1926-1949) ................................. 193

Manuela Vaquero
O Tribunal da Inquisição de Lamego ................................................................................... 201

Gaspar Martins Pereira


Entre a Etnograia e a História: os romances durienses de Alves Redol .......................................... 211

Otília Lage
Revoltas populares no Douro Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego), no início da I República: Signiicados
e representações sociais a partir da imprensa da época ............................................................ 221

HISTÓRIA, PATRIMÓNIO E ACÇÃO LOCAL/REGIONAL

Teresa Soeiro
‘Requiem’ pelo património luvial do Douro .......................................................................... 233

Nelson Campos
PARM (Projecto Arqueológico da Região de Moncorvo) breve balanço de 30 anos de actividade em prol do pa-
trimónio cultural algures no Douro Superior ......................................................................... 247

Alexandra Cerveira Lima


«Arquivo de Memória». Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional ......................................... 261
Introdução
Luís Sebastian
9

Mas não basta produzir conhecimento. Este é inútil

A
primeira edição das Conferências do se não divulgado e disponibilizado atempadamente.
Museu de Lamego é a concretização de Não se tratando de uma área cientíica exata, todo o
uma aspiração: criar um espaço anual conhecimento produzido está à nascença destinado a
de debate, partilha e divulgação da ati- desatualizar-se, pelo que a imediata e gratuita divulga-
vidade cientíica desenvolvida em torno do território ção on-line das atas das conferências é uma preocupa-
duriense, com especial enfoque na área das ciências ção indissociável desta iniciativa.
sociais e humanas. Atendendo por sua vez ao papel histórico e cul-
A opção estratégica adotada para a região do Dou- tural central que Lamego sempre desempenhou na
ro, assumindo o Turismo Cultural como uma das prin- região Duriense, e nesta, a posição que o Museu de La-
cipais áreas de desenvolvimento económico, acarreta mego assume, entende-se igualmente que este museu
consequentemente a obrigatoriedade de a região pos- se proponha a ser o palco anual de um encontro de
suir uma intensa atividade de investigação cientíica. O referência para a região do Douro.
Turismo Cultural, sobretudo dependente do patrimó- Neste ponto, e nesta primeira edição, salienta-se
nio histórico, seja ele material ou imaterial, é apenas o carácter verdadeiramente regional da iniciativa, e a
possível se sustentado no profundo conhecimento do forma como a cidade a soube fazer sua. Contando na-
território, dos seus imóveis e sítios históricos, das suas turalmente com o apoio da Direção Regional de Cul-
tradições, e enim, de toda a complexa multiplicidade tura do Norte, instituição a que o Museu de Lamego se
de fenómenos que constituem qualquer herança histó- encontra afeto, deve-se sobretudo ao apoio, antes de
rica, tanto mais rica quanto mais multifacetada e mile- mais, dos próprios cidadãos, organizados na Liga dos
nar, como é o caso da região dominada pelo rio Douro. Amigos do Museu de Lamego. A estes juntam-se as
Como alicerce que é, da qualidade deste conheci- instituições basilares na região - Diocese de Lamego e
mento base depende toda a qualidade da construção o Município de Lamego –, as instituições de formação
da “história” que é narrada em cada ação ou suporte de superior da cidade – Escola Superior de Tecnologia
comunicação, do desdobrável ao livro, das exposições e Gestão e Escola de Hotelaria e Turismo do Douro
às opções tomadas na conservação e musealização de - Lamego –, mas também, e de forma especialmente
imóveis e sítios históricos. gratiicante, empresas da região, diretamente ligadas
A produção deste conhecimento assenta por sua vez ao turismo, como o Hotel Lamego ou a Casa de Santo
na capacidade de se conseguir desenvolver na, e para, António de Britiande, à indústria dos vinhos, como a
a região uma intensa e qualiicada atividade cientíica Quinta de Mosteirô, ou à área da comunicação, como a
em áreas basilares, como sendo a História, História da Soltagiga. Para eles vai o nosso agradecimento.
Arte, Arqueologia ou Etnologia. Bem mais diretas na Por im, atendendo à preocupação inicialmente
sua ação, áreas como as da Conservação e Restauro, ou formulada da qualidade da produção cientíica produ-
Arquitetura na sua vertente patrimonial, vivem de um zida, procuramos nesta primeira edição a colaboração
permanente aperfeiçoamento de soluções, técnicas e do Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura,
materiais, apenas possível com investigação, para além Espaço e Memória (CITCEM), da Faculdade de Letras
da óbvia e preciosa acumulação de experiências. da Universidade do Porto. Centro de investigação que
Assim, a criação de um espaço anual de debate, reúne o maior número de investigadores académicos
partilha e divulgação cientíica, que aspira a tornar- que na atualidade desenvolvem o seu trabalho sobre a
-se a longo prazo um espaço de referência a este nível, região duriense, impôs-se desde logo como o parceiro
impõe-se naturalmente como uma necessidade e uma óbvio. À sua direção e colaboradores agradecemos a
vantagem, pelo contributo que pretende dar ao incen- forma imediata como souberam fazer da mera ideia
tivo e fomento dessa mesma atividade cientíica. um projeto seu.
10
11

Mesa Redonda

O legado de
Cister no Douro
Geraldo Amadeu Coelho Dias, OSB
Luís Sebastian
Nuno Resende
Amândio Barros
12
Cister no Douro:
Um suplemento de alma
e um novo dinamismo operacional
texto: Geraldo Coelho Dias, OSB/CITCEM

Resumo

S
A dimensão vital de espiritualidade que a obser- audando-vos a todos vós, que tivestes a ge-
vância conventual de Cister acarreta, veio dar um nerosa ousadia de vir ouvir-nos, queremos,
suplemento de alma ao trabalho que a mesma obser- desde já, airmar-vos: a dimensão vital de
vância exerce e exige, na medida em que, ele também, espiritualidade que a observância conven-
ajudará à santiicação da alma e não apenas ao susten- tual de Cister acarreta, veio dar um suplemento de
to do corpo. alma ao trabalho que a mesma observância exerce e
Assim, a Ordem de Cister veio trazer um suple- exige, na medida em que, ele também, ajudará à san-
mento de alma e de espiritualidade à região do Douro, tiicação da alma e não apenas ao sustento do corpo.
mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo Por sua vez, a Ordem de Cister veio trazer um suple-
do trabalho e do enriquecimento agrícola. mento de alma e de espiritualidade à região do Douro,
mormente à zona de Tarouca, bem como o estímulo
Palavras-chave do trabalho e do enriquecimento agrícola. De facto, os
Cister; Trabalho; Estilo gótico; Douro. monges estimularam as populações no aproveitamen-
to da terra e seus bens.
Abstract
he vital dimension of spirituality observed by the
Cistercian Order, brought a supplement of soul to ma-
nual labour – the kind of labour that is emphasised
and required by the Order –, to the extent that it will
also help the sanctiication of the soul and not only the
sustenance of the body.
hus the Cistercian Order has brought a supple-
ment of soul and spirituality to the Douro region – es-
pecially to the area of Tarouca –, as well as the stimula-
tion of labour and agricultural enrichment.

Keywords
Cister; Labour; Gothic; Douro.
14 Geraldo Coelho Dias

os hereges, prega a Cruzada, escreve imensas cartas e


I - INTRODUÇÃO: ORIGEM DE CISTER dá conselhos. Bernardo é um dinâmico cidadão da Eu-
ropa Medieval, o «Doutor melíluo», embora, às vezes,

N
o século X, os monges de Cluny deram à mais pareça destilar fel que mel. A sua acção promo-
Regra de S. Bento um notável grau de ins- veu, de forma determinante, o monaquismo cister-
titucionalização; a sua Ordem ganhara in- ciense; é ela que explica o êxito de Cister.
luência política e religiosa; em termos de mentalida- Os seus mosteiros aproveitaram a evolução da arte
de dominava mesmo a Cristandade. Alguns monges, românica e construíram-se ao gosto do estilo gótico
porém, sentiam a necessidade do regresso aos ideais incipiente; alguns deles icaram como exemplares pa-
primeiros do monaquismo e mesmo à «literalidade» radigmáticos daquele estilo arquitectónico que, alguns,
da Regra de S. Bento. Nasceu, desse modo, a reforma exageradamente, chamam «estilo cisterciense» ou «es-
beneditina de Cister, sob a conduta de «três monges tilo Bernardino»3: Claraval, Fontenay, Sénanque, ho-
rebeldes!» – Roberto, Alberico e Estêvão Harding1 –, ronet, Casamari, Fossanova, Poblet, Alcobaça, para só
que, partindo do mosteiro beneditino de Molesmes, enumerar estes que, ainda hoje, causam admiração e
arrancaram para a loresta pantanosa e erma de Cis- atraem turistas, são Património da Humanidade.
ter. Foi assim que apareceu na Igreja de Cristo um De maneira geral, os historiadores entusiasmam-
movimento carismático envolvente, guiado por ideais -se, sublinhando e estudando os aspectos mais salien-
de austeridade, interioridade, solidão, disciplina e tra- tes do sucesso de Cister, pondo o assento particular-
balho, que iria restituir à velha cepa do monaquismo mente na arquitectura, acentuando o trabalho manual
novo alor e redobrado dinamismo. com autêntico desenvolvimento agrícola, sobretudo
Na verdade, foi a 21 de Março de 1089 que se fun- com as granjas trabalhadas pelos monges conversos,
dou Cister, na Borgonha. Mas esse movimento talvez e relevando a espantosa, senão mesmo taumatúrgica,
não passasse duma bravata espiritual dos ditos três difusão dos mosteiros e acréscimo de monges. Qual,
monges rebeldes, se o espírito de Deus não tivesse con- então, a chave ou o segredo de tal sucesso? O arrojo, a
duzido para ali, corria o ano de 1112, o jovem fogoso capacidade, a disciplina dos cistercienses? Sem dúvida,
e idealista, Bernardo de Fontaines (1090-1153), com mas, por trás de tudo isso, estava uma espiritualida-
29 familiares. Esta foi a irrigação fertilizante, o adubo de dinâmica, assente na idelidade à Regra de S. Bento
misterioso para o êxito da fundação nascente. Na ver- dentro do rigor da literalidade e que, sobretudo, se tra-
dade, quando Bernardo, abade de Claraval, morreu, duzia por uma mística apaixonada e dinâmica, basea-
em 1153, os mosteiros cistercienses já eram 343 e es- da no perfeito seguimento de Cristo.
tavam espalhados por toda a Europa. Com a sua mís- É toda essa epopeia de espiritualidade e de arte,
tica entusiasmada para a construção na terra, através de religião e de cultura, que o belo livro da jovem e
dos mosteiros, duma «feliz visão de paz» («beata pacis entusiasmada arquitecta portuguesa Ana Maria Mar-
visio»), o dinâmico e lutador Bernardo, sempre que tins procura trazer à colação e dar a conhecer ao nosso
«Deus estava em causa» na sociedade cristã, lá apare- povo, que, hoje, parece totalmente esquecido do que
cia a ajudar o Papa, a estimular os reis, a dinamizar os foi Cister e do que deve aos monges cistercienses. Nes-
bispos, a entusiasmar os monges. Para ele, «fugir do se sentido, o livro faz uma artística viagem pelos mos-
mundo» não era deixar a Igreja. Caso curioso e sin- teiros cistercienses portugueses. A cultura e a arte pre-
gular o deste monge, amante do silêncio e do retiro, cisam, não há dúvida, de espíritos assim, abertos, sem
que, todavia, airmava ousadamente «nós os monges preconceitos, mas apaixonados pelo estudo da arte, da
não devemos icar mergulhados nos nossos pântanos, cultura, da religião, aquilo, enim, que emblematiza,
como sapos que somos, e limitar-nos a coaxar»2. Por digniica e enobrece uma sociedade.
isso intervém nos grandes problemas teológicos da
3 KINFRT, Terryl N. – L’Europe cistercienne. Zodiaque, 1997 (Tradução
Igreja e nas questões políticas entre reis, faz apologia do Inglês); LERROUX- DHURS, Jean-François – Las Abadias Cistercienses.
contra os outros monges que criticam a visão de Cister, História y Arquitectura. Colonia: Koesemann, 1999 (Tradução do francês);
TOBIN, Stephen – Les Cisterciens. Moînes et monastêres. Paris: Cerf, 1995;
combate a riqueza dos homens da Igreja, excomunga MARTINS, Ana Maria – Arquitecturas de Cister em Portugal. A actualidade
1 RAYMOND, M. – Tres monjes rebeldes. Madrid: Ediciones Studium, 1956. das suas reabilitações e a sua inserção no território. Universidad de Sevilla.
Departamiento de História, Teoria y Composición Arquitectónicas, 2011, 3
2 BERNARDUS Claravallensis – Epístola 48, 3. Cfr. «Obras completas de vols. (Tesis doctoral); OSSWALD, Walter – Mosteiros Cistercienses em Por-
S. Bernardo», VII, «Cartas». Madrid, 1990, 220. tugal. Pequeno roteiro. Porto: Edições Afrontamento, 2012.
Cister do Douro 15

II - A NOVIDADE DE CISTER III - IMPORTÂNCIA DOS IRMÃOS LEIGOS

O P
Mosteiro Novo, Cister, tinha sido fun- onto marcante e fundamental foi aquele em
dado em 21/III/1098. Fazendo, agora, o que a ordem recusou ter servos a trabalhar
seu estudo, os historiadores são levados a pelos monges, e isso foi tão decisivo que le-
concluir que, na Europa, pelos anos de 1153, aquela vou à aceitação e criação dos irmãos conversos ou lei-
ordem religiosa marcava uma novidade e um sucesso gos, reconhecidos como verdadeiros monges. Eles cul-
assinaláveis na Igreja Católica e no mundo cristão eu- tivariam terras, amanhariam granjas, apascentariam
ropeu. Nesse ano de 1153, os mosteiros cistercienses rebanhos, plantariam vinhas, fabricariam ferramentas,
eram, como referimos, 343 e, ao indar do século XII, construiriam mosteiros.
contavam-se 525 abadias. Estes índices de crescimento Com eles, a Ordem de Cister seria auto-suicien-
pareceram tão exagerados, já ao tempo, que o Capítulo te. Uma espécie de fundamentalismo, todavia, no que
Geral da Ordem, em 1152, até proibiu novas funda- toca ao trabalho manual, prescrito pela Regra, aca-
ções, sem dúvida levado pelo princípio de que «quem baria por levar os cistercienses à auto-suiciência e à
muito abarca pouco aperta». abastança no sustento dos seus mosteiros. Mantendo
Administrativamente, os mosteiros eram autóno- o voto de estabilidade, típico da Regra beneditina, e
mos, mas os Capítulos Gerais da Ordem, realizados procurando fugir à tentação de viver à custa de dádi-
todos os anos em Cister, impuseram uma visita anual e vas, Cister conservaria o princípio da propriedade co-
determinaram uma tal qual uniformidade, que propi- munitária de bens, podendo o terreno da fundação ser
ciava uma verdadeira unidade de disciplina e de acção. cedido por um rei ou um nobre, mas, depois, pelo seu
S. Bernardo, o dinâmico e contemplativo abade de trabalho, os monges deveriam ser garantes do seu pró-
Claraval, tornara-se um cidadão da Europa Medieval, prio sustento. Não poderiam, por isso, aceitar dádivas
como já referimos anteriormente, aconselhando Pa- de dinheiro, não teriam servos a trabalhar em sua vez,
pas, assistindo bispos, dirigindo reis, pregando a Cru- nem administrariam paróquias ou outros benefícios
zada, combatendo hereges. Ele foi, indiscutivelmente, eclesiásticos donde colhessem bens de estola ou pé de
a mais-valia de Cister a ponto de o seu discípulo de altar. Vestir-se-iam de burel rude, mesmo por tingir
Claraval, Bernardo Paganelli, se ter tornado Papa com e, portanto, esbranquiçado (daí o nome de «monges
o nome de Eugénio III (1145-1153). brancos», para os distinguir dos cluniacenses «mon-
Por último, depois de alguma resistência e hesita- ges negros»), não comeriam carnes nem beberiam
ção, permitira-se a fundação de mosteiros femininos, vinho, mas eles próprios, «com o suor do seu rosto»
que abriam às mulheres o ideal de perfeição proposto (Gn. 3,19) cultivariam as suas terras, amanhariam os
para os monges. O mosteiro de Tat, na Bretanha, Fran- campos e granjas semeando os cereais, plantariam as
ça, em1123, foi o primeiro mosteiro feminino a abra- hortas e vinhas, apascentariam os rebanhos, fabrica-
çar a disciplina e observância cistercienses. riam as ferramentas, construiriam os seus mosteiros e
A data de 20 de Agosto de 1153 assinala a morte casas. Para melhor poder fazer a harmonia da oração
de S. Bernardo de Fontaine ou Claraval, abade duma e do trabalho, Cister iria abrir-se ao grupo dos labo-
das últimas abadias mães cistercienses (1115), depois ratores, criando, como dissemos, a classe dos irmãos
de Cister, La Ferté, Pontigny e Morimond. Aquele ano conversos ou leigos, barbati, não dedicados ao culto
de 1153 é, portanto, uma espécie de termómetro de divino propriamente dito e, por essa razão, mais livres
aferimento para avaliarmos o que distingue Cister de e disponíveis para trabalhos manuais. Esta seria uma
Cluny, donde se separara, e para ajuizarmos do resul- das grandes descobertas de Cister e isso explicará o
tado da obra dos três «monges rebeldes», que funda- êxito económico desta empresa que recusa, à partida,
ram Cister e lhe deram alma. as dádivas e esmolas dos senhores feudais.
Duma maneira geral, os historiadores entusias- O serviço nas famosas granjas ou quintas culti-
mam-se, sublinhando e estudando os aspectos mais vadas directamente pelos conversos, mesmo à dis-
salientes deste sucesso, a partir do ainco ao trabalho e tância dos mosteiros, permitiriam a independência
do sucesso na construção artística. Façamos a análise dos monges face ao poder económico dos senhores e
do sucedido. possibilitariam o sustento dos mosteiros. Além disso,
16 Geraldo Coelho Dias

Cister recusou as dádivas de terras e heranças de bens, de estilo gótico que, posteriormente, os cistercienses,
evitando, assim, uma espécie de hipotecagem do seu por causa daqueles arcos em ogiva, como mãos ergui-
monaquismo aos interesses e políticas dos grandes das, cultivaram com esmero e até religiosidade nos
senhores feudais. Por outro lado, não administravam seus mosteiros, a ponto de lhe chamarem a arte ber-
paróquias, nem recebiam benefícios eclesiásticos. Por nardina.
isso, a recusa de benesses temporais ajudava e força- Estabelecendo o estilo inicial de vida cisterciense, a
va a necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes, «Carta Caritatis» seria como que a Constituição da Or-
contudo, a liberdade da independência económica. dem e os «Instituta» determinados pelo Capítulo Geral
Nos primeiros cem anos de idelidade e fervor, foi de 1134 seriam a determinação concreta do ideal e da
com estes elementos de defesa, que se airmou a Or- disciplina. Por essa altura, já S. Bernardo emprestava
dem de Cister. Uma espécie de ânimo guerreiro, de à Ordem Cisterciense a mais-valia do seu dinamismo
cavaleiresca nobreza, como queria S. Bernardo, de- apostólico e a doutrina da sua mística e espiritualidade
via animar aqueles monges, autênticos milites Christi. incomparáveis. Tenham-se presentes a «Apologia», os
Valeria a pena aqui recordar aquele animoso texto da entusiasmantes 86 sermões sobre o Cântico dos Cân-
1ª carta, dirigida ao sobrinho, que tinha querido es- ticos, as excitantes e empolgantes 426 cartas, etc. Se
quivar-se ao rigor de Cister trocando-o pela suave ob- a sua propaganda inlamou a Europa para a segunda
servância de Cluny. Como seria importante recordar Cruzada em Vézelai, em 1145, como é que este santo
o texto em que fala do exemplo activo de seu irmão monge não havia de atrair e empolgar os seus irmãos
carnal, Gerardo, falecido em 1143: «Não era somente de hábito e de fervor no Reino de Deus e de Jesus Cris-
o maior nas coisas grandes, mas também nas peque- to? Claro que os monges de Cister deram o contributo
nas. Por exemplo, quem superou a perícia de Gerar- do seu trabalho e da sua consagração; eles foram o ins-
do nos edifícios, nos campos, nas hortas, nas águas e, trumentum conjunctum da acção divina; mas, no plano
inalmente, nos ofícios e trabalhos dos camponeses? humano do ideal, a mística que os animava e a espiri-
Digo, em coisas desse género, escapava alguma coisa tualidade que os movia foram o carburante dessa gesta
à sagacidade de Gerardo? Com facilidade era mestre que se propagou incandescente na Europa do século
de pedreiros, ferreiros, agricultores, hortelãos, sapatei- XII «como centelha num canavial» (Sab. 3,6).
ros, tecelões. Embora na opinião de todos fosse o mais Vejam o rasto do trabalho na agricultura e na vi-
experimentado, só nos seus olhos não era experimen- nha que os cistercienses nos deixaram. Por isso é que
tado»4. o turismo moderno, mesmo em Portugal, procura res-
Aqui poderíamos recordar o testemunho do his- taurar os roteiros cistercienses, levar-nos a admirar o
toriador beneditino do século XIII, Odalrico Vital, e trabalho artístico-arquitectural das suas abadias, o in-
o estudo profundo de Terryl Kinder e outros contem- centivo das suas granjas de cultura e de vinha!
porâneos, que bem provam a dimensão laboral dos Por último, analisemos um pouco a obra das cons-
primitivos cistercienses. Depois, bem depois, com a truções monásticas, a que os estudiosos modernos,
mística inicial já mortiça, Cister caiu na normalidade historiadores e arquitectos, são mais sensíveis para
de qualquer instituição. realçar o êxito de Cister. Inicialmente, eram os pró-
prios monges que construíam os seus mosteiros e igre-
jas, geralmente em madeira. É óbvio que, entre eles,
IV - A ARTE DA CONSTRUÇÃO E A ESPIRI- houve gente capaz: arquitectos, artistas, operários.
TUALIDADE DO GÓTICO Disso temos vários testemunhos desde S. Bernardo,
que aponta até o próprio irmão carnal, Gerardo, fa-

A
arte gótica não é uma novidade introduzi- lecido em 1143, a quem fez um grande elogio, como
da por Cister, mas um aproveitamento de vimos.
contemporaneidade e espiritualidade. De No princípio, tudo era pequeno e pobre. S. Bernar-
facto, dentro do trabalho manual dos cistercienses, do, só em 1135, depois de estabelecidos os «Instituta»,
não podemos deixar de exaltar a arquitectura e a arte é que se rendeu às insistências do seu prior para cons-
truir nova igreja, onde se pudesse desenrolar conve-
4 BERNARDUS Claravallensis – Sermones in Cantica Canticorum. Ser-
mo XXVII: Obitum fratris Gerardi luget. In «PL», 183, 903-911; Cfr. «Obras
nientemente a vida litúrgica da comunidade.
Completas de S. Bernardo», V, 364-386, nº 7, 376-377. De facto, inicialmente, Cister, na ânsia de simplici-
Cister do Douro 17

dade e rigor, suprimira todas as orações comunitárias


supra-rogatórias de Cluny, que tinham tornado dema- V - CISTER EM PORTUGAL E NO VALE DO
siado pesada a celebração do Ofício Divino (Ofício RIO DOURO
dos Defuntos, Salmos familiares ou pelos familiares,

A
e até as missas privadas). Por isso é que o abade Hugo, perda dos documentos dos princípios de
cluniacense de Reading, respondendo à «Apologia» de Cister no nosso país, no incêndio do Se-
S. Bernardo, ironizava, dizendo que os cistercienses minário de Viseu, em 1848, fez com que a
queriam aproveitar o tempo para dormir: «Para uma origem histórica dos cistercienses em Portugal ande
noite mais profunda, o dormir pode, com certeza, ser bastante nebulosa e envolta em lenda, como prova
tranquilo, porque, a matinas, apenas se devem rumi- Miguel de Oliveira7. Mas é toda uma epopeia de espi-
nar os pouquinhos salmos, que a Regra prescreve, e ritualidade e de arte, de religião e de cultura, como su-
nada mais. Os salmos pelos familiares, os ofícios pelos blinha o monge precursor dos estudos históricos sobre
defuntos e, inalmente, as gloriosas cantilenas, que a os cistercienses em Portugal, D. Maur Cocheril, nos
Igreja conserva, não são cantados, e, uma vez recitados seus vários escritos, que um recente guia do Doutor
os poucos e raríssimos salmos, consumis quase toda Walter Osswald muito bem aproveitou.
a noite a dormir»5. Na realidade, só aos Domingos e Cister chegou relativamente tarde a Portugal, no
Dias Santos é que alguns deles vinham ao seu mosteiro ocidente europeu, que S. Bernardo considerava uma
e só comungariam 12 vezes por ano. Nos tempos de «terra longínqua», mas também aqui foi inluente, bar-
aperto de trabalhos agrícolas, todos partiam a ajudar roquizando-se embora com os ouropéis da arte. Hoje,
e, na Eucaristia, só tomavam parte os que estavam no os seus mosteiros estão quase todos em ruínas, e até já
mosteiro ou os doentes, prática que S. Bernardo justi- nem têm monges. Em resumo, também, aqui, o suces-
icava distinguindo a «caridade da verdade» (caridade so de Cister conheceu o triste ciclo da morte, embora
afectiva: amar a Deus) e a «verdade da caridade» (cari- permaneça irme e estável essa maravilha de arte que é
dade efectiva: servir o próximo). o Mosteiro de Alcobaça!
Dentro deste espírito de trabalho, impõe-se voltar Para além da estéril discussão, histórico-lendária,
a sublinhar que, ao contrário de Cluny, vigorava entre acerca da prioridade Lafões-Tarouca e da igura em-
eles a recusa das dádivas de terras e heranças, evitan- blemática de Fr. João Cirita, melhor diria «eremita»,
do, assim, a referida hipotecagem do seu monaquismo não há dúvida que é à volta da região de Tarouca, cer-
aos interesses e políticas dos grandes senhores feudais. cana de Lamego, que a Ordem de Cister emerge entre
A recusa de benesses temporais ajudava e forçava a nós8. E, hoje ainda, por lá estão as ruínas dos mosteiros
necessidade do trabalho dos monges, dando-lhes a li- de Tarouca, Salzedas, com todo o problema da igreja
berdade da independência. Era desta maneira que eles velha, e ainda os de S. Pedro das Águias e de Santa Ma-
queriam entender a Regra de S. Bento à letra («Lite- ria de Aguiar.
ralitas/Puritas/Rectitudo Regulae»). S. Pedro Damião6 Pode-se, com relativa ousadia, airmar que o mos-
dizia que quase andavam esquecidos do «pondus diei teiro de Tarouca é o primeiro da Ordem de Cister a
et aestus», isto é, do peso do dia e do calor (Mt. 20,12) estabelecer-se em Portugal, tendo recebido carta de
com que tinham de ganhar o pão de cada dia. couto do rei D. Afonso Henriques, em 1140. Teria
Este ainco ao trabalho é, pois, o ponto de partida havido ali antes monges beneditinos? Não me parece
para outros motivos que nos ajudam a compreender o provável, quando muito, talvez uma pequena Tebaida
sucesso deste novo modo de viver o monaquismo. de eremitas.
As origens do mosteiro cisterciense de Tarouca
perdem-se em pequenas historietas encontradas no
cartório, quando ainda existia e foi manuseado por
7 OLIVEIRA, Pe. Miguel de – Origens da Ordem de Cister em Portugal.
«Revista de História». Coimbra, tomo V (1951), 317-353; MARQUES, Ma-
ria Alegria – Estudos sobre a Ordem de Cister em Portugal. Lisboa: Edições
Colibri/Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1988.
5 Apud WILMART, A. – Une risposte de l´ancien monachisme au mani-
feste de S. Bernard. «Revue Bénédictine», 50 (1984), 335s. 8 Cister no Vale do Douro. Porto: Ed. Afrontamento/GEHVID, 1999;
COCHERIL, D. Maur – Routier des Abbayes Cisterciennes du Portugal. Pa-
6 PETRUS DAMIANI – Epístola V. In «PL» cxlv, 380. ris: Fundação Calouste Gulbenkian/Centro Cultural Português, 1978.
18 Geraldo Coelho Dias

monges e estudiosos. Infelizmente toda a documenta- que teria sido a primitiva implantação da abadia, etc.
ção se perdeu no incêndio do Seminário de Viseu, em Poder-se-ia ir mais longe, mas este trabalho teve, so-
1848, pelo que não a podemos controlar. A lenda de bretudo, a preocupação de apresentar uma perspectiva
João Cirita e dos oito monges enviados por S. Bernar- geral da implantação cisterciense nesta zona.
do, que nos foi transmitida por Fr. António Brandão Poderíamos ainda referir granjas esquecidas do
(Livro das Doações - 1º, 2º, 3º, 4º docs.) e que está re- mosteiro de Santa Maria de Aguiar, como a do Cibrão,
produzida nos azulejos da actual capela-mor, não pas- a de Tourões ou La Sacristia.
sa disso mesmo. E numa visão mais alargada não deixaríamos de fa-
Provável é que o mosteiro tivesse origem num ere- lar da exploração feita pelo mosteiro novo de S. Pedro
mitério anterior, e disso parece prova o padroado de S. das Águias, que, hoje, é um bom exemplo de explora-
João, e por volta de 1140 assumisse a Regra Beneditina ção vinícola.
segundo a observância de Cister; pelo menos é isso que Quanto ao estudo da vinha e do vinho, há um tra-
podemos deduzir do confronto entre os documentos balho de síntese devido a Maria Amélia Albuquer-
de 1140 e 1145, quando, expressamente, se refere a ob- que11. Segundo esta investigadora, os monges prepara-
servância de Cister. Um documento de 1147 já fala de ram terrenos, ergueram quintas, introduziram novas
dois monges de Claraval: «Fratres claravalenses. Prior técnicas de tratamento, trouxeram novas castas, numa
eorum in Taurauca comorantes». A partir daí, o mos- palavra, activaram no Douro o cultivo da vinha, aquilo
teiro cresceu e alargou-se, inclusive, com a dádiva por que, hoje, honrosamente, constitui o Douro como Pa-
D. Afonso Henriques do couto de Santa Eulália (Abril trimónio Mundial da Humanidade.
de 1144), junto à foz do Douro, importante por causa Em relação ao mosteiro de S. João de Tarouca, a
do peixe e do sal, que os monges precisavam. Entre- grande quinta produtora de vinho era a Quinta do
tanto, na região, os monges iam trabalhando campos e Mosteiro, na foz do rio Varosa, que, à altura da extin-
granjas. E foi essa a mais-valia que eles vieram trazer à ção das ordens religiosas, tinha 118 pipas de vinho no
região. Disso, aliás, no tempo do abade Geraldo (1163- valor de 300.000 réis. Junto a esta, o mosteiro possuía
1170), provieram os bens e as várias granjas, onde, ao ainda a vinha da Formiga e a vinha do Bacelo.
longo dos tempos, fabricavam o vinho, tão abundante Ao mosteiro de Salzedas pertenciam as grandes
e precioso na região. A bula «Quoties illud», do Papa quintas da Folgosa, chamada, hoje, Quinta dos Fra-
Alexandre III, emitida em 4/VI/1163, tomou os mon- des, e a de Monsul, ambas situadas pouco acima do
ges de Tarouca sob a sua protecção, inseridos na aba- rio Douro na margem esquerda. Em Monsul, que, de
dia-mãe de Claraval, e conirmou os bens recebidos. há muito, está na posse da família Archer de Carvalho,
Almeida Fernandes9 foi o primeiro investigador vimos nós grande quantidade de documentação, já de
que tentou inventariar as granjas e propriedades rurais tempos antigos, que, do ponto de vista cultural, bem
dos primórdios da Ordem naquela zona de Tarouca, valeria a pena ser estudada.
os seus edifícios e as suas culturas, sobretudo de trigo É evidente que muito do vinho era para venda, pois
e vinho e que foram conseguidas por doações ou aqui- o universo dos monges, conforme os índices dos mos-
sições. Recentemente, outros estudiosos têm desenvol- teiros ao tempo da expulsão de 1834, sendo numeroso,
vido o tema. Assim, podemos referir os trabalhos de não conseguiria bebê-lo todo.
Maria do Céu Simões Tereno10, que, para Tarouca, fala Termino, pois. Aqui têm, os caros amigos, como os
de granjas em Mondim da Beira, Almofala, Granjinha, humildes e laboriosos monges de Cister, procurando
Arcas, Sever, Souto Redondo, Alvite, Leomil e Quinta uma vida espiritualmente empenhada, não deixaram
do Granjão, dando importância ao Celeiro de Mon- de cultivar e desenvolver estas terras agrestes mas fe-
dim de Baixo. A mesma autora indica para Salzedas as cundas do Douro. E venham lá, agora, os próceres da
granjas da Quinta do Pinhô, antiga granja de Cimbres, democracia republicana, ufanos e vingativos, dizer que
Granja da Ucanha, perto do achado arqueológico do os «frades eram preguiçosos, calaceiros e parasitários»!

9 FERNANDES, A. Almeida – Acção dos monges cistercienses de Tarou-


cas. «Revista de Guimarães», 83 (1973), 37-51.
10 TERENO, Maria do Céu Simões – Granjas dos Coutos dos Mosteiros de 11 ALBUQUERQUE, Maria Amélia – A vinha e o vinho nos Mosteiros
Tarouca e Salzedas. In «Tarouca e Cister. Homenagem a Leite de Vasconce- Cistercienses do Douro. In «IV Congreso Internacional sobre El Cister en
los». Tarouca, 2004, 261-285. Portugal y en Galícia. Actas». Ourense, 2009, tomo I, 215-223.
Mosteiro de S. João de Tarouca:
Da investigaçção à musealização
texto: Luís Sebastian - Museu de Lamego / DCRN
(mlamego.diretor@culturanorte.pt)

Palavras-chave
Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister;
Investigation; musealization

Resumo Abstract
O mosteiro masculino cisterciense de S. João de Ta- (812 de 750 caracteres)
rouca foi fundado em 1140. Extinto em 1834, as suas he male Cistercian monastery of S. John Tarouca
dependências monásticas foram vendidas em hasta was founded in 1140. Closed in 1834, its monastic de-
pública, sendo estas reaproveitadas como pedreira e pendencies were sold at auction, which are reused as
quase totalmente desmanteladas. Monumento Nacio- a quarry and almost completely dismantled. National
nal desde 1956, foi sujeito a uma intensiva escavação Monument since 1956, was subjected to intensive ar-
arqueológica entre 1998 e 2007, da responsabilidade chaeological excavation between 1998 and 2007, the
do agora extinto Instituto Português do Património responsibility of the now defunct Instituto Português
Arquitetónico (IPPAR). Já em 2008, pela mão da Di- do Património Arquitetónico (IPPAR). In 2008, by the
reção Regional de Cultura do Norte, é integrado num hand of the Direção Regional de Cultura do Norte, is
projeto de abrangência regional centrado no Vale do part of a region-wide project centered in Vale do Rio
Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Pa- Varosa, subsidiary to the Douro River Valley, a Wor-
trimónio da Humanidade, numa rede de monumentos ld Heritage Site, a network of monuments seamlessly
abertos de forma integrada à fruição pública, tendo open to public enjoyment, with an extra main core of
ainda por núcleo principal o Mosteiro de Santa Maria the Monastery of Santa Maria Salzedas and Convent
de Salzedas e o Convento de Santo António de Ferrei- of Santo António Ferreirim. Ongoing since 2009, this
rim. Em curso desde 2009, este projeto encontra-se em project is in an advanced state of completion, with the
avançado estado de realização, com a recuperação do recovery of the church building and musealization the
edifício da igreja e a musealização da área arqueoló- archaeological area of the Monastery of S. John Tarou-
gica do Mosteiro de S. João de Tarouca já concluídas. ca already completed.

Palavras-chave Key-words
Mosteiro de S. João de Tarouca (Portugal); Cister; Monastery of S. João de Tarouca (Portugal); Cister;
Investigação; musealização Investigation; musealization
22 Luís Sebastian

do ainda por núcleo principal o mosteiro masculino


“Mosteiro de S. João de Tarouca: cisterciense de Santa Maria de Salzedas (Tarouca) e o
da investigação à musealização12” convento masculino franciscano de Santo António de
Ferreirim (Lamego). Realizado o estudo preparató-
1. INTRODUÇÃO rio nesse mesmo ano, em abril de 2009 é apresentada
candidatura à linha de inanciamento europeia ON2

O
Mosteiro de S. João de Tarouca, perten- – Douro Infraestrutural. Tendo esta sido contemplada
cente à Ordem de Cister, foi fundado em com o solicitado inanciamento, em novembro de 2009
1140, tendo a sua construção sido inicia- iniciam-se as primeiras obras no âmbito deste projeto,
da em 1154. Com a extinção das ordens religiosas em incidindo exatamente sobre a igreja do Mosteiro de S.
Portugal em 1834, o recheio do mosteiro é vendido em João de Tarouca, para em agosto de 2012 voltar a ser
hasta pública, tal como os edifícios das dependências alvo de intervenção, desta feita com a musealização da
monásticas, sendo a sua biblioteca e cartório deposita- área escavada arqueologicamente.
dos no Seminário de Viseu, onde viriam a desaparecer
durante um incêndio em 1841. 2. PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DO MOS-
Após a sua venda, os edifícios correspondentes TEIRO DE S. JOÃO DE TAROUCA: 1998-2013
às dependências monásticas foram reaproveitados

O
como pedreira, tendo sido totalmente desmantelados acentuado estado de degradação do con-
os edifícios medievais e boa parte dos edifícios de sé- junto e a reduzida informação documental
culo XVII e XVIII. O edifício correspondente à igreja levou a que o projeto de requaliicação de-
conservou-se graças ao facto de ter sido convertido em senvolvido desde então se baseasse em grande medida
igreja paroquial. na componente arqueológica, passando pela escavação
Tendo esta sido classiicada Monumento Nacional exaustiva da totalidade da área correspondente ao nú-
em 1956, apenas em 1978 esta proteção foi estendida cleo central das dependências monásticas, compostas
a toda a área monástica. Sucessivamente afeto à Di- pelos edifícios medievais.
reção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais Para além do natural papel desenvolvido pela Ar-
(DGEMN), Instituto Português do Património Cul- queologia no acompanhamento das ações de restauro
tural (IPPC), Instituto Português do Património Ar- do ediicado, a investigação arqueológica estendeu-se
quitetónico e, desde 2007, à Direção Regional de Cul- ainda à paisagem e território, tendo a produção de
tura do Norte, o Mosteiro de S. João de Tarouca foi informação histórica tido em especial atenção o seu
inicialmente inserido em 1996 num abrangente plano aproveitamento como conteúdo de divulgação local –
de recuperação e valorização de complexos monás- centro interpretativo; musealização da área arqueoló-
ticos cistercienses, por altura da comemoração dos gica - e remota – publicações; divulgação on-line.
900 anos da Ordem de Cister. É neste âmbito que a Assim, se o projeto de recuperação do Mosteiro de
sua escavação arqueológica se inicia em abril de 1998, S. João de Tarouca teve sempre por principais vetores
estendendo-se até novembro de 2007, tendo durante a conservação, recuperação, valorização e divulgação,
este período contado com uma equipa de investigação a componente arqueológica teve como principais ob-
permanente constituída por uma dezena de técnicos da jetivos o diagnóstico prévio e acompanhamento das
área da arqueologia e conservação e restauro. ações de conservação e recuperação, a valorização do
Já em 2008, a Direção Regional de Cultura do Nor- conjunto pela produção de informação histórica e, por
te propõe-se integrar o Mosteiro de S. João de Tarouca im, a potenciação e desenvolvimento de atividades
num projeto de abrangência regional centrado no Vale tendo por suporte a informação histórica produzida.
do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do Rio Douro, Pa-
trimónio da Humanidade, numa rede de monumen- 2.1. Zona Especial de Proteção: 1999
tos abertos de forma integrada à fruição pública, ten- De forma a proteger a forte interligação entre o
12 Este texto é uma versão atualizada da comunicação intitulada “Mos- mosteiro e a paisagem rural envolvente, não só pri-
teiro de S. João de Tarouca, Projecto de Requaliicação: 1998-2010”, apre-
sentada no ”Congresso Património 2010”, realizado na Faculdade de Enge- 1 - Zona Especial de Proteção do Mosteiro de S. João de Tarouca,
nharia do Porto nos dias 14-16 Abril de 2010, organizado por esta e pela estabelecida em 1999 (Luís Sebastian sobre Carta Militar Portu-
Direção Regional de Cultura do Norte. guesa).
23
24 Luís Sebastian

mordial do ponto de vista visual, mas igualmente pelo


seu signiicado histórico, dado o importante papel des-
tes cenóbios cistercienses no desenvolvimento agrícola
e populacional da região durante o período medieval,
foi estabelecida em 1999 uma vasta Zona Especial de
Proteção, demarcada segundo os limites de visibilida-
de (Figura 1).

2.2. Resgate do espaço monástico – aquisição


progressiva: 1996-2007
Tendo as dependências monásticas sido vendidas
em hasta pública a um só adquirente, a sua partilha
por herança durante várias gerações levou a que toda
a área interior da cerca de clausura se encontrasse di-
vidida por dezenas de diferentes proprietários à altura
do início do projeto em 1996. Este facto impôs a ne-
cessidade de adquirir progressivamente todas as dife-
rentes parcelas até, uma vez mais, se recuperar a inte-
gridade de toda a área de clausura. Este longo processo
de aquisições, iniciado ainda em 1996, prolongou-se
até 2007, faltando apenas a aquisição de duas parcelas

3 - Aspeto geral da torre sineira antes e depois da sua recuper-


ação entre 1998 e 1999 (Humberto Vieira; Luís Sebastian).

riedade e riqueza dos materiais exumados. A recolo-


cação do campanário original resultou por sua vez não
só na recuperação total da estrutura, mas igualmente
na libertação da fachada da igreja, até então e desde
princípios de século XX parcialmente encoberta por
uma pequena torre sineira, improvisada a partir do
reaproveitamento do campanário da torre sineira de
2 - Área da cerca monástica progressivamente adquirida pelo século XVIII, agora recuperada (Figura 3).
Estado Português entre 1996 e 2007 (Luís Sebastian).

para que todo o complexo monástico se encontre sob 2.4 Recuperação do interior da igreja: 1998-2004
a tutela do Estado Português (Figura 2). Entre 1998 e 2004 decorreram diversas ações de
conservação e restauro do interior da igreja, incidin-
2.3. Escavação e recuperação da torre sineira: do sobre a pintura inserida nos diversos retábulos,
1998-1999 espaldares ou emolduradas individualmente; sobre o
Dentro da componente de acompanhamento das mobiliário, com destaque para o arcaz da sacristia; a
ações de conservação e recuperação do ediicado, en- cobertura azulejar e a pintura dos tetos da sacristia e
tre 1998 e 1999 procedeu-se ao registo prévio e acom- capela-mor (MONAR, 2002).
panhamento do desmantelamento da torre sineira de Ainda em 1998 foi iniciada a instalação do sistema
século XVIII, passando pela escavação do seu interior, de drenagem de humidades sob o lajeado da igreja, in-
utilizado como zona de despejos de lixos domésticos, cluindo calhas técnicas com o objetivo da total elimi-
destacando-se ao nível arqueológico a quantidade, va- nação visual de cablagens elétricas. Iniciada na sacris-
Mosteiro de S. João de Tarouca 25

4 - Aspeto geral dos trabalhos de restauro da pintura do teto da capela-mor da igreja em 2004 (Luís Sebastian).
26

5 - Aspeto geral das ruínas monásticas antes da desmatação e limpeza em 1998 (José Eduardo Mendes).

tia, esta operação estender-se-ia em 2003 ao cruzeiro e área de clausura, procedeu-se à sua desmatação e lim-
braços do transepto (Figura 4). peza entre 1998 e 2006, incluindo pontuais ações de
2.5 Desmatação e limpeza do interior da cerca de consolidação das ruínas, com destaque para as capelas
clausura: 1998-2006 de século XVIII de Santo António e Santa Umbelina
De acordo com o prosseguimento da aquisição das (Figura 5 e 6).
diversas parcelas pelas quais se encontrava dividida a

6 - Aspeto geral das ruínas monásticas após a desmatação e limpeza entre 1998 e 2006 (Ana Castro).
27

2.6 Limpeza e consolidação do “Aljube”: 2004 /


2006
Ligeiramente apartado do conjunto de edifícios
monásticos, o edifício popularmente designado de
“Aljube”, correspondente a uma monumental cons-
trução medieval de função ainda incerta, foi alvo de
desmatação e limpeza no ano de 2004. Em 2006 pro-
cedeu-se por sua vez ao desentulhamento do seu inte-
rior, seguido do reequilíbrio e consolidação das suas
paredes (Figura 7 e 8).

8 - Aspeto geral dos trabalhos de 2006 de desentulhamento do


7 - Aspeto geral das ruínas do “Aljube” antes e após a sua des- interior do “Aljube”, reequilíbrio e consolidação de paredes
matação e limpeza em 2004 (Luís Sebastian). (Ana Castro; Luís Sebastian).
28 Luís Sebastian

2.7 Recuperação funcional do “Moinho do Con-


vento”: 2006
Anexo ao “Aljube”, o localmente designado “Moi-
nho do Convento”, com atividade documentada pelo
menos desde século XVII, foi alvo de restauro funcio-
nal em 2006, tendo-se reparado os dois mecanismos
de rodízio segundo a técnicas tradicionais da região
(Figura 9).

9 - Alguns aspetos gerais dos trabalhos de recuperação do


“Moinho do Convento” em 2006 (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 29

2.8 Escavação arqueológica: 1998-2007


Contudo, e naturalmente, a escavação da área
correspondente às dependências monásticas origi-
nais absorveu a grande parte dos meios arqueológi-
cos instalados no local. Constituindo-se uma equipa
permanente de 2 Arqueólogos, 1 Técnico Superior de
Conservação e Restauro, 2 Desenhadores Técnicos de
Arqueologia, 1 Assistente de Conservação, 3 Assisten-
tes de Arqueólogo e 2 Operários de Arqueologia, esta
procedeu entre 1998 e 2007 à escavação de uma área
contínua superior a 3500m2, à qual se juntam 20 sonda-
gens de avaliação prévia, acompanhamento e salvaguar-
da (Figura 10, 11 e 12).

10 - Alguns aspetos gerais da área de escavação arqueológica antes e depois da sua realização entre 1998 e 2007
(José Eduardo Mendes; Luís Sebastian).
Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca 31

12 - Planta geral da área de escavação arqueológica (Hugo Pereira & Luís Sebastian & Sílvia Pereira).

11 - Planta geral da área de escavação arqueológica – organ-


ização e desenvolvimento dos trabalhos (Luís Sebastian & Ana
Castro).
32 Luís Sebastian

13 - Sistema informático de armazenamento e gestão de informação “Arqueo”


– exemplo do armazenamento e gestão de informação cerâmica (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 33

2.8.1 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Indi- 2.9 Reconstituição arquitetónica


cadores de progresso Um dos principais objetivos da investigação his-
O enorme volume de espólio recuperado obrigou tórico-arqueológica passou pela reconstituição arqui-
ao correspondente esforço ao nível da sua limpeza, tetónica do complexo monástico, incluindo as suas
consolidação, reintegração, inventariação, registo, diversas alterações e ampliações posteriores à constru-
acondicionamento e estudo. Como indicadores, apon- ção original de século XII-XIII.
ta-se a recolha de 395 moedas, 1.389 objetos metálicos,
1.434 elementos arquitetónicos e, em claro destaque, 2.9.1 Reconstituição arquitetónica – Recolha de
um conjunto estimado de 300.000 fragmentos cerâ- registos fotográicos: 2001-2006
micos, com 140.473 fragmentos lavados, marcados Este processo de reconstituição integrou várias
e inventariados, resultando em 4.714 peças reconsti- abordagens metodológicas convergentes, tendo como
tuídas, incluindo 389 ações de conservação e 106 de principal linha condutora os vestígios estruturais exu-
restauro, com registo gráico de 1.803 peças e fotográ- mados pelas escavações arqueológicas. A primeira
ico de 377. Este esforço de registo traduziu-se ainda abordagem complementar passou pela identiicação e
no desenho de 163 elementos arquitetónicos e 2.355 reprodução de todos os registos fotográicos do imó-
registos fotográicos. Ao espólio exumado devemos vel, com especial atenção aos registos atribuídos aos
ainda juntar a recolha de 293 amostras, abrangendo primórdios da fotograia em Portugal. Contando-se
materiais como cerâmica, argamassas ou vestígios or- felizmente a este nível com diversos registos pela mão
gânicos, tendo sido analisadas 92 amostras. No total, e de alguns dos principais fotógrafos oitocentistas da
com base na informação reunida, foi possível desen- região Norte, esta recolha estendeu-se pelos anos de
volver uma contínua atividade de divulgação dos tra- 2001-2006, tendo-se revelado uma importante fonte
balhos, com 21 participações em encontros cientíicos de informação (Figura 14).
e a publicação de 42 textos versando as mais variadas
temáticas dentro do universo em estudo.

2.8.2 Escavação arqueológica: 1998-2007 – Ges-


tão de informação
De forma a armazenar e gerir o enorme volume
de informação produzido, foi desenvolvido desde
1998 um sistema informático composto por 14 bases
de dados inter-relacionadas, aperfeiçoadas em con-
tínuo ao longo do desenrolar do projeto. Designado
por “Arqueo”, este sistema procurou assim organizar o
trabalho segundo um método célere, prático e versátil,
tanto quanto possível independente de suportes ixos e
materiais, que ao apoio à execução juntasse mais tarde
o apoio à gestão museológica13 (Figura 13).
14 - Exemplo de registo fotográfico das ruínas monásticas nos
finais do século XIX (Casa de Fotografia Kymagem, Lamego).

13 CASTRO et al., 2004b.


34 Luís Sebastian

15 - Aspeto do levantamento gráfico de pormenor da igreja realiza-


do entre 2001 e 2003 – fachada da igreja (Hugo Pereira).

2.9.2 Reconstituição arquitetónica – Levanta- 2.9.3 Reconstituição arquitetónica – Estudo glip-


mento gráico de pormenor da igreja: 2001-2003 tográico: 2004-2005
Vital no estudo do edifício da igreja do mosteiro, Ao levantamento de pormenor do edifício da igreja
único totalmente conservado da construção original, seguiu-se entre 2004 e 2005 o estudo das suas marcas
procedeu-se ao seu levantamento gráico de pormenor de canteiro, em contínuo alargado a toda a área das
entre os anos de 2001 e 2003. Para o efeito desenvol- dependências monásticas medievais, uma vez o adian-
veu-se um método híbrido entre o desenho técnico de tado estado das escavações já então o permitir. Na
arqueologia clássico, manual, mas com recurso a me- realização deste estudo teve-se em conta não apenas
dições laser de estação total, e o desenho informático o levantamento das diferentes marcas de canteiro vi-
vetorial, resultando em margens de erro reduzidas e síveis, mas a sua inventariação, numeração, registo e
um formato inal versátil e reeditável e constantemen- inscrição em base de dados informática desenvolvida
te atualizado de acordo com o desenvolvimento dos para o efeito, permitindo a organização das diferen-
trabalhos. Assim, o ano de término do levantamento tes marcas segundo a sua morfologia, técnica de talhe,
corresponde apenas ao registo total do edifício à data, posição no edifício, tipo de elemento arquitetónico
não deixando nunca de ser complementado com nova marcado e tipologia, como marca de identidade ou de
informação produzida por sondagens arqueológicas, posição. Deste estudo resultaram dados inéditos para
acompanhamento de obras ou restauros, incluindo o cálculo do número de canteiros envolvidos no pro-
mesmo o registo de todas as adições e subtrações reali- cesso construtivo, relação familiar/proissional entre
zadas nas diversas intervenções de recuperação e con- canteiros, sua mobilidade – por comparação com ou-
servação do edifício desde 199814 (Figura 15). tros monumentos na região –, ritmo e ordem de cons-
trução. De forma mais especíica, as marcas de posição
14 SEBASTIAN et al., 2010; SEBASTIAN, 2012. revelaram-se especialmente importantes na reconsti-
Mosteiro de S. João de Tarouca 35

tuição do complexo medieval, sendo por vezes apenas 2.9.4 Reconstituição arquitetónica – Estudo pe-
percetível a presença de vãos ou das alturas originais trográico: 2005-2007
dos alçados através destas, quando ainda conserva- Entre 2005 e 2007 foi realizado o estudo petrográi-
das15 (Figura 16 e 17). co do mosteiro, tendo como principal ponto de partida
a análise exaustiva do alçado sul da igreja, tido como o
15 CASTRO & SEBASTIAN, 2005a; CASTRO & SEBASTIAN, 2010b. mais representativo da construção medieval. Este estu-
do foi realizado em colaboração com o Departamento
de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra, no
âmbito da tese de mestrado “Alçado sul da igreja do
Mosteiro Medieval de São João de Tarouca: caracteri-
zação e proveniência dos materiais pétreos”, da respon-
sabilidade da geóloga Catarina Alexandra Marques.
Foi assim possível identiicar as diversas pedreiras
que forneceram o material pétreo à construção origi-
nal e posteriores ampliações no século XVII e XVIII,
bem como as diferentes técnicas de extração, trans-
porte, talhe, elevação e assentamento, desvendando
diferentes interrupções e ritmos de construção. Este
trabalho teve ainda como objetivo a identiicação de
patologias ligadas à degradação dos diferentes tipos
de pedra e, consequentemente, o melhoramento das
ações conservativas16 (Figura 18, 19 e 20).

16 - Aspeto do registo de marcas de canteiro de identidade 16 MARQUES, 2007; MARQUES et al., 2010a; MARQUES et al., 2010b.
(Ana Castro).

17 - Exemplo de marca de canteiro de posição (realçada a vermelho) indicando a localização e dimensão do vão de ligação da cozinha ao refeitório (Luís Sebastian).
36 Luís Sebastian

18 - Localização das pedreiras identificadas (Catarina Alexandra Marques & Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 37

19 - Aspeto de silhar inacabado e abandonado no local de extração (Luís Sebastian).

20 - Aspeto do mapeamento petrográfico realizado ao alçado Sul da igreja


(Catarina Alexandra Marques sobre Hugo Pereira).
38 Luís Sebastian

21 - Aspeto do mapeamento das várias fases construtivas da igreja (Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

2.9.5 Reconstituição arquitetónica – Arqueolo- 2.9.6 Reconstituição arquitetónica – Estudo arit-


gia da Arquitetura (igreja): 2003-2007 mológico e metrológico: 2007
A abordagem convencionalmente designada de Sobre as três abordagens anteriores juntou-se ainda
“Arqueologia da Arquitetura” foi então aplicada ao a análise aritmológica e metrológica do traçado me-
edifício da igreja entre 2003 e 2007, atendendo aos as- dieval, atendendo àquele que deveria ter sido o plano
petos estilísticos, materiais e técnicos, não só da pedra, original e intencionado de acordo com as proporções
mas inclusivamente das diferentes argamassas empre- então tidas como corretas e sagradas, contraposto ao
gues (Figura 21). produto inal, no qual se registam desvios por motivos
de adaptação ao terreno ou mesmo por erro.
Toda a informação assim reunida foi por sua vez
cruzada com a documentação existente e comparada
com os paralelos históricos considerados mais próxi-
mos17 (Figura 22, 23, 24, 25 e 26).

17 SEBASTIAN & CASTRO, 2007; SEBASTIAN & CASTRO, 2009.


Mosteiro de S. João de Tarouca 39

22 - Análise aritmológica da planta medieval (Luís Sebastian).


40 Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca 41

24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

23 - Aspeto do registo de elementos arquitetónicos exumados na escavação arqueológica


ou reaproveitados na construção das casas do burgo de S. João (Hugo Pereira).
24 - Aspeto da reconstituição da fachada original da igreja com sobreposição da aritmologia e metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian sobre Hugo Pereira).

26 - Planta geral do complexo monástico assinalando-se as


diversas fases construtivas (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 43
44 Luís Sebastian

25 - Aspeto da reconstituição da arcada do claustro com sobreposição da metrologia que lhe serviu de base
(Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 45

2.9.7 Reconstituição arquitetónica - Cerâmica de


revestimento: 2003
Já em 2003, os diferentes revestimentos cerâmicos
foram alvo de estudo preliminar, com natural desta-
que para o azulejo. O desenvolvimento dos trabalhos
desde então não deixará de implicar futuramente uma
revisão das conclusões então retiradas, com a adição
de pelo menos mais dois grupos tipológicos de azule-
jos entretanto identiicados18 (Figura 27).

2.9.8 Reconstituição arquitetónica - Campaná-


rio: 2002-2008
Com relexo ainda na reconstituição do ediicado,
em 2002 foram identiicados e escavados vestígios de
século XIV da fundição local de um sino. Dado a rari-
dade da ocorrência e o excecional bom estado de con-
servação dos mesmos, optou-se por um estudo apro-
fundado do tema, levando ao seu alargamento à região
e, em consequência, à identiicação, estudo e classii-
cação da extinta fundição de sinos da Granja Nova.
Deste esforço resultou ainda em 2005 a organização
da exposição “Sinos, a partir da fundição”, em colabo-
ração com a Faculdade de Engenharia da Universida-
de do Porto, em articulação com o “3º Simpósio sobre
Mineração e Metalurgia Históricas no Sudoeste Euro-
peu”, e a publicação em 2008 da obra “Subsídios para
a História da Fundição sineira em Portugal”19 (Figura
28 e 29).

18 CASTRO & SEBASTIAN, 2003b. 28 - Aspeto geral do fosso de fundição sineira escavado e frag-
mento de molde de sino com pentagrama
19 SEBASTIAN, 2006; SEBASTIAN, 2008; SEBASTIAN et al., 2008. (Sérgio Pinheiro; Luís Sebastian).
46 Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca 47

29 - Fotografia da fundição de sinos da Granja Nova ainda em


laboração na primeira década de século XX e registo fotográfi-
co do forno de fundição ainda conservado
(MOREIRA, 1924: 29; Luís Sebastian).

27 - Planta de distribuição dos diferentes grupos tipológicos de


azulejos (Luís Sebastian).
48 Luís Sebastian

2.10 Paleobiologia: 2005


Em 2005, tendo-se considerado que a escavação
arqueológica não iria permitir melhores recolhas de
enterramentos que os até então obtidos, procedeu-se
ainda ao estudo paleobológico dos vestígios osteológi-
cos recuperados na sala do capítulo, correspondendo
na totalidade ao enterramento de abades. Este estudo
foi feito em colaboração com o Departamento de An-
tropologia da Universidade de Coimbra, fornecendo
informação ao nível etário, estatura, alimentação e pa-
tologias congénitas e derivadas da vivência monásti-
ca20 (Figura 30).

2.11 Arqueologia espacial: 1998-2007


Entre 1998 e 2007, paralelamente ao estudo do edi-
icado, desenvolveu-se em contínuo o estudo da paisa-
gem histórica – natural e antrópica –, procurando-se
deinir estratégias de implantação, apropriação e es-
truturação do espaço por parte do Mosteiro de S. João
de Tarouca.

2.11.1 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Ar-


queobotânica
Esta abordagem, inscrita no que podemos desig-
30 - Registo fotográfico de enterramento na sala do capítulo
nar por Arqueologia Espacial ou da Paisagem, passou (Ivo Rocha).
pela recolha de amostras pedológicas sempre que as
condições ideais para a sua recolha se veriicaram em
escavação, tendo-se mesmo realizado sondagens ar-
queológicas estrategicamente posicionadas de modo
a procurar a ocorrência de condições propícias a essa
recolha. A análise destas amostras, com especial in-
cidência na polinologia e antracologia, permitiu reu-
nir importantes dados arquebotânicos para a recons-
trução da paisagem natural – cobertura vegetal – no
momento do início da construção do mosteiro e sua
evolução ao longo dos diferentes séculos, determinan-
do-se igualmente a introdução de novas espécies vege-
tais, com naturais consequências ao nível da alimenta-
ção, sendo que para esta se realizaram ainda análises
arqueozoológicas de modo a determinar espécies ani-
mais consumidas21 (Figura 31).

31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema


de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian).
20 SEBASTIAN et al., 2008/2009.
21 SEBASTIAN et al., 2008; QUEIROZ, 2012.
Mosteiro de S. João de Tarouca 49

Salzedas, uma perspectiva sobre a rede viária do couto


monástico” da responsabilidade do arqueólogo Antó-
nio Ginja, esta abordagem começou a ser estendida ao
couto monástico do Mosteiro de Santa Maria de Sal-
zedas, sobranceiro ao couto do Mosteiro de S. João de
Tarouca, procurando-se assim alargar o estudo à tota-
lidade do Vale do Varosa24 (Figura 32).

31 - Registo de recolha de amostras pedológicas e esquema


de resultados polínicos (Ana Castro; Luís Sebastian).

2.11.2 Arqueologia espacial: 1998-2007 – Análise


documental
A análise documental, auxiliada por prospeção di-
rigida no terreno, permitiu por sua vez determinar em
pormenor os limites do couto monástico e identiicar
propriedades e granjas agrícolas pertencentes ao mos-
teiro22.

2.11.3 Arqueologia espacial: 1998-2007 - Inven-


tário de património associado
A prospeção intensiva de toda a área do couto mo-
nástico permitiu consequentemente a identiicação de
centenas de elementos históricos, como marcos, cal-
çadas, pontes e pontões, levadas, capelas, cercas, almi-
nhas, entre outros. De forma a armazenar e gerir todos
os dados reunidos, foi ainda desenvolvida uma base de
dados informática apelidada de “InventaPatrimónio”,
onde toda a informação foi concentrada de forma or-
ganizada e facilmente consultável23.
Já em 2008, em colaboração com o Instituto de
Arqueologia da Universidade de Coimbra, no âmbito
da tese de licenciatura “O Mosteiro de Santa Maria de
22 CASTRO & SEBASTIAN, 2005b; CASTRO & SEBASTIAN,
2008/2009; CASTRO & SEBASTIAN, 2010a.
23 SEBASTIAN, 2007. 24 GINJA, 2008.
50 Luís Sebastian

32 - Base de dados informática “InventaPatrimónio” (Luís Sebastian).


Mosteiro de S. João de Tarouca 51

desenvolvimento turístico de conjunto em articulação


3. INTEGRAÇÃO NO PROJETO “VALE DO com o Douro Património da Humanidade, tendo na
VAROSA” sua fase inicial como núcleo monumental de destaque
o Mosteiro de S. João de Tarouca, Mosteiro de Santa
3.1 Integração no Projeto “Vale do Varosa” – Maria de Salzedas e Convento de Santo António de
Diagnóstico e plano preliminar de ação: 2008 Ferreirim, procurando desenvolver e alargar o investi-
Com a conclusão em 2007 do projeto iniciado em mento já realizado nos três imóveis desde 1996.
1998 pelo antigo Instituto Português do Património Este conjunto de imóveis, constituindo há muito
Arquitetónico, a Direção Regional de Cultura do Nor- e de forma espontânea o que podemos designar de
te propôs-se em 2008 integrar o Mosteiro de S. João rede informal de monumentos da região do Varo-
de Tarouca num projeto de abrangência regional cen- sa, abrangendo os concelhos de Tarouca e Lamego, e
trado no Vale do Rio Varosa, subsidiário ao Vale do aos quais se associa diretamente em termos regionais
Rio Douro, Património da Humanidade, numa rede de o conjunto monumental da cidade de Lamego e seu
monumentos abertos de forma integrada à fruição pú- Museu, constitui um dos mais recorrentes percursos
blica, tendo ainda por principais núcleos o Mosteiro de de visita da Região Duriense interior, por eleição quer
Santa Maria de Salzedas e o Convento de Santo António de particulares quer mesmo por operadores turísticos
de Ferreirim. em atividade na região. Ao valor patrimonial intrín-
Nesse sentido, foi realizado em 2008 um “Diag- seco de cada um destes imóveis soma-se ainda a sua
nóstico e plano preliminar de ação”, passando pelo le- íntima relação histórica, coerência enquanto conjunto
vantamento dos imóveis classiicados e elementos de de fruição patrimonial e forte proximidade geográica.
valor histórico na região, tendo em atenção questões Ao valor patrimonial de conjunto sobrepõe-se ainda
como proteção legal, propriedade, estado de conser- uma forte componente paisagística, que aliada à pro-
vação, acesso, estacionamento e condições de abertura ximidade geográica contribui para uma consistente
ao público. A estes juntou-se a deinição de percursos imagem de coesão.
pedestres a potenciar, intimamente ligados à paisa- Os anteriores investimentos realizados ao abrigo de
gem natural e histórica, identiicação de estruturas de candidaturas apresentadas ao IIIQCA, numa aborda-
fruição operacionais, como museus, teatros, cinemas gem individualizada aos imóveis Mosteiro de São João
e auditórios, estruturas de acolhimento, como postos de Tarouca (POCultura), Mosteiro de Santa Maria de
de turismo, unidades hoteleiras, turismos de habitação Salzedas (PONorte) e Convento de Santo António
ou rural, e restaurantes. A pré-existência de projetos e de Ferreirim (PONorte – medida 3.9), tiveram então
roteiros em alguns pontos da região não deixou, natu- como prioridade preocupações de salvaguarda e va-
ralmente, de ser igualmente levada em consideração lorização como meios para o incentivo à fruição pú-
(Figura 33). blica. Contudo, em consequência, a rede informal de
monumentos da região do Varosa veio assim ser refor-
3.2 Projeto “Vale do Varosa” – Candidatura ao çada com as notórias melhorias do estado de conser-
ON.2, Turismo Douro-Infraestrutural: 2009 vação dos imóveis intervencionados. Por outro lado, a
Já em 2009, e no âmbito da apresentação de can- partilha de visitantes entre os diversos monumentos
didaturas à linha de inanciamento ON.2 - o Novo prova a sua coerência e atrativo enquanto conjunto,
Norte, Programa Operacional Regional do Norte - Tu- realçando-se de imediato os anomalamente elevados
rismo Douro-Infraestrutural, a Direção Regional de números de visitas para imóveis situados na região
Cultura do Norte apresentou a candidatura “Vale do Norte interior, indicador do seu potencial turístico se
Varosa”, com o intuito de instalar na região, subsidiária desenvolvido em rede, em bom estado de conservação,
ao Vale do Douro, nas áreas pertencentes aos conce- com instalação das necessárias infraestruturas locais e
lhos de Tarouca e Lamego, uma rede de estruturas e eicaz estratégia de divulgação.
soluções segundo o conceito de “Território Histórico”, Neste sentido, as principais linhas estratégicas da
numa estratégia integrada a nível regional beneician- candidatura apresentada foram a recuperação de edi-
do de uma elevada concentração de imóveis e elemen- icado, musealização de património móvel e imóvel,
tos históricos de elevado interesse turístico-cultural, instalação de centros de acolhimento, interpretação e
permitindo otimizar investimentos e potenciar um postos de vendas, criação de imagem personalizada,
52 Luís Sebastian
Mosteiro de S. João de Tarouca 53

abertura ao público com funcionamento em rede e de- graicamente concentrado potencie de forma facilitada
senvolvimento de ações de divulgação conjunta. a sua exploração direta e intensiva por parte dos ope-
Como principais linhas orientadoras temos então radores turísticos ativos na região.
que: - Que a distribuição dos imóveis por uma área de
- Em detrimento de um número variável de sítios coerente valor paisagístico potencie a sua exploração
de interesse histórico informal e intermitentemente ao nível da fruição pública, livre e comercial, no âm-
abertos ao público, dever-se-á procurar criar a ima- bito das atividades Out-door, promotoras da saúde e
gem de um só item de elevado valor patrimonial. Ao bem-estar assim como do desenvolvimento duma
valor isolado e relativo, variável de cada um destes maior consciência ecológica, com consequente preser-
imóveis, substitui-se a ideia de conjunto, universo in- vação da fauna e lora regional.
ter-relacionável, aproximando-se do conceito de terri-
tório histórico. 3.3 Projeto “Vale do Varosa” – Musealização do
- Ao conceito de unidade deve corresponder uma Mosteiro de S. João de Tarouca: 2009-2013
só designação, facilmente assimilável através da uni- Em novembro de 2009 iniciou-se a primeira inter-
dade geográica existente, por realçar, traduzida na venção no Mosteiro de S. João de Tarouca no âmbito
uniformização gráica da sua apresentação, com forte do projeto Vale do Varosa. Esta incidiu primeiramen-
relação ao imaginário duriense. te no edifício da igreja, passando pela substituição da
- Próximo ao conceito de imagem de marca, a esta cobertura (Figura 34); instalação de novo sistema elé-
unidade deve corresponder uma só designação, um só trico e de iluminação (Figura 35), incluindo enterra-
logótipo, um só graismo, vertido em todos os supor-
tes de apresentação, de sinalização viária, de publica-
ção, de serviços e etiquetagem de bens, respeitando a
sua natural relação com a região duriense e o imaginá-
rio já existente.
- A constituição de uma rede de designação única
deverá ter por núcleo inicial um conjunto criteriosa-
mente selecionado de imóveis de elevado valor patri-
monial, selecionados pela sua distribuição no territó-
rio e mais imediata viabilidade de abertura condigna
ao público, desejando-se que a este núcleo inicial de
imóveis-ícone sejam progressivamente acrescentados
um número crescente de imóveis de menor valor pa-
trimonial isolado.
- A um núcleo inicial propenso a visitas organi-
zadas mais ou menos curtas, segundo o modelo de
roteiro, pretende-se a gradual sobreposição de uma
rede alargada capaz de reter o visitante por um dia ou,
preferencialmente, por mais de um dia, beneiciando o
consumo de bens e serviços locais e regionais.
- Espera-se que à oferta de fruição de um número
crescente de imóveis de valor patrimonial se junte, por
parte da iniciativa privada, a oferta de bens e serviços
relacionados, levando a uma maior diversiicação e ao
fomento da economia local e regional.
- Que a constituição de um “produto” coeso e geo-

34 - Aspeto da instalação do novo sistema de iluminação na


igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca
33 - Imóveis classificados (Luís Sebastian). (Luís Sebastian).
54 Luís Sebastian

35 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da igreja do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).

36 - Aspeto dos trabalhos de enterramento de cabelagens e alar-


gamento do sistema de drenagem interior de humidades na igreja
do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).
Mosteiro de S. João de Tarouca 55

37 - Aspeto dos trabalhos de substituição da cobertura da capela de Santa Umbelina,


no interior da cerca de clausura do Mosteiro de S. João de Tarouca (Luís Sebastian).

mento de cablagens; alargamento do sistema de drena- arqueológicas.


gem interior de humidades (Figura 36); instalação de Dado o profundo desmantelamento a que estes
sistemas de alarme de intrusão e incêndio; revisão de edifícios foram sujeitos para reaproveitamento da sua
caixilharias e melhoramento do sistema de drenagem pedra, entre 1834 e os inícios do século XX, a sua leitu-
de águas pluviais. A preocupante torção que o canto ra para o visitante revelava-se difícil, obrigando a uma
sudoeste da fachada da igreja vinha a registar desde solução que conferisse maior leitura geral. Por outro
a colocação da última cobertura na década de seten- lado, a preocupação de conservação das construções
ta do século XX foi alvo de especial atenção, levando exumadas impunha igualmente a sua urgente proteção
ao seu amarramento através da colocação interior de e consolidação. A estas duas necessidades juntou-se a
cabos de aço. A isto juntou-se ainda a revisão da co- de dar destino ao colossal número de silhares utili-
bertura da torre sineira com instalação de pára-raios e zados originalmente na constituição das paredes dos
a substituição da cobertura da capela de Santa Umbe- edifícios das dependências monásticas, e recuperados
lina, situada no interior da cerca de clausura, e então durante as escavações arqueológicas, num total de 704.
em risco iminente de ruína (Figura 37). Aproveitando Como outra boa parte da pedra constituinte destes
esta oportunidade, não se deixou ainda de iniciar já a edifícios foi nos inícios do século XX lançada para a
recuperação do adro-miradouro desta capela. ribeira sobranceira ao mosteiro, de forma a alargar a
Já em agosto de 2012, iniciou-se a segunda inter- área de cultivo em que todo o espaço se transformou
venção prevista no projeto para o Mosteiro de S. João após o desmantelamento quase completo dos edifícios,
de Tarouca, desta feita incidindo na área escavada ar- sabíamos que a este número inicial de 704 silhares se
queologicamente entre 1998 e 2007, e tendo por ob- juntariam muitos mais, aquando da sua desobstrução
jetivo a musealização dos vestígios dos edifícios das (Figura 38).
dependências monásticas expostos pelas escavações
56 Luís Sebastian

38 - Aspeto dos trabalhos de desobstrução da ribeira sobrancei-


ra ao Mosteiro de S. João de Tarouca (Sofia Catalão).

Assim, a opção seguida foi a da elevação das pa-


redes através da recolocação dos silhares recuperados.
Estes foram simplesmente pousados sobre as paredes
existentes, sem qualquer ligação com argamassas. O
enchimento das paredes, colocado entre as duas faces
exteriores constituídas por silharia, e que nas paredes
originais foi feita com pedra miúda e argamassa, foi
feita nas iadas agora acrescentadas apenas com pedra
miúda solta. No global, esta solução veio permitir uma
maior leitura das paredes, logo dos diversos espaços
que compunham as dependências monásticas; a pro-
teção dos vestígios das paredes originais; uma baixa
manutenção em virtude do reduzido crescimento de
vegetação; a total reversibilidade da solução encontra-
da; o armazenamento inteligente e útil de milhares de
silhares (Figura 39).
Neste procedimento deu-se todavia, e de forma
assumida, destaque à leitura dos edifícios medievais
originais. As paredes acrescentadas mais tarde, nas re-
modelações que o mosteiro sofreu nos séculos XVII
e XVIII, sendo na maioria paredes interiores consti-
tuídas por pedra disforme e argamassa, foram apenas
Mosteiro de S. João de Tarouca 57

39 - Aspeto dos trabalhos de elevação das paredes medievais, ex-


umadas arqueologicamente, no Mosteiro de S. João de Tarouca
(Sofia Catalão).

consolidadas, sem elevação. ao mosteiro, que tinha ruído no rigoroso inverno de


As cotas de circulação dos diversos pisos foram re- 2001. Apesar de uma operação secundária em termos
postas recorrendo a gravilha, separada dos vestígios da musealização, esta operação foi das mais complica-
originais por manta geotêxtil. As áreas exteriores sem das tecnicamente e das mais dispendiosas, dada a es-
piso estruturado foram simplesmente repostas com cala da estrutura, com cerca de 10 metros de altura, e a
uma cobertura vegetal de hidrosementeira. necessidade de reforçar interiormente a construção de
No caso da torre sineira de século XVIII, cuja porta século XVIII com um maciço de betão ciclópico que
de acesso situada ao nível superior tinha icado irre- garantisse a máxima segurança em termos de futuras
mediavelmente sem acesso desde o desmantelamento derrocadas, ainda para mais considerando a circulação
da ala sul da noviciaria de século XVII, teve-se que e estacionamento automóvel, para o qual a construção
desenvolver uma solução assumidamente nova e con- original não foi projetada (Figura 40 e 41).
temporânea, com instalação de uma escada em aço Após esta intervenção, ica a faltar a instalação da
corten, com a função dúplice de miradouro. receção, bilhética, posto de vendas e centro interpreta-
Para a resolução do problema de estacionamento tivo, a instalar no antigo celeiro de século XVIII, sendo
automóvel e isolamento em relação a exterior da área que neste centro interpretativo caberá a realização de
musealizada, foi instalada uma vedação metálica, ao uma exposição com base no riquíssimo espólio pro-
longo da qual se desenvolve um espaço de parquea- duzido pelas escavações arqueológicas, que a par da
mento para automóveis ligeiros e autocarros. visualização de reconstituições dos edifícios e perce-
Paralelamente a todos os trabalhos de musealiza- ção da funcionalidade dos diversos espaços, permitirá
ção, foi ainda necessário reconstruir parte do muro de ao visitante um mais completo entendimento da área
século XVIII, de encanamento da ribeira sobranceira agora musealizada.
58

40 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca – vista de Nordeste
para Sudoeste (Sofia Catalão).
59

41 - Aspeto geral dos trabalhos em curso de musealização da área arqueológica do Mosteiro de S. João de Tarouca
– vista de Noroeste para Sudeste (Sofia Catalão).
60 Luís Sebastian

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SEBASTIAN, Luís; CASTRO, Ana Sampaio e


(2012) - A componente de desenho cerâmico na inter-
venção arqueológica no Mosteiro de S. João de Tarou-
ca: desenvolvimento da aplicação especíica ao caso da
63

Painel 1

História
e Património
Manuel Real
Ana Sampaio e castro
Nuno Resende
64
O Signiicado da
basílica do Prazo (Vila Nova de Foz Côa),
na alta Idade Média duriense
texto: Manuel Luís Real - Investigador do CITCEM

Resumo Abstract
A basílica do Prazo integra-se num lugar he basilica of Prazo is in an archaeological place
arqueológico com uma continuidade de ocupação with an appreciable continuity since the Pre-history to
apreciável, desde a Pré-história à Idade Média. the Middle Age. We know that there was a Christian
Sabe-se que aí houve cristãos desde a Antiguidade occupation since the Late Antiquity, but the church
Tardia, mas o templo descoberto no Prazo deve discovered in Prazo must be founded only in the
remontar à primeira metade do século X. Pelas suas irst half of the tenth century. Its characteristics show
características, pertence a um grupo arquitectónico that it belongs to an architectural group that was
que se expandiu pela Beira interior e que, de diversos spreading in the interior of Beiras and, in several ways,
modos, revela uma inluência da arte asturiana da discloses an inluence of asturian art. It will have been
última centúria. Isto terá icado a dever-se a um clã implemented by the clan led by Bermudo Ordonhes,
liderado por Bermudo Ordonhes, irmão do rei Afonso brother of Afonso Magno, against which he was
Magno, contra o qual se rebelou. A sua presença no rebelled. Its presence in the land of Viseu-Lafões was
território de Viseu-Lafões foi apoiada pelo conde supported by count Diogo Fernandes and grandsons
Diogo Fernandes e seus genros, netos de Vímara of Vímara Peres and Afonso Betotes. his group starts
Peres e Afonso Betotes. Este clã inicia um processo a movement of landlordship in the interior of Beiras,
de senhorialização da Beira interior, expandindo-se spreading to the Alto-Douro. Probably, the basilica
até ao Alto-Douro. Provavelmente, a basílica do Prazo of Prazo must be attributed to descendants of Diogo
deve ter sido fundada por descendentes de Diogo Fernandes and Onega.
Fernandes e Onega.
Key Words:
Palavras-Chave: Prazo; Basilica; Pre-Romanesque; Landlordship
Prazo; Basílica; Pré-Românico; Senhorialização
66 Manuel Luís Real

de vestígios pré-históricos no Prazo despertou a


A estação arqueológica do Prazo localiza-se na curiosidade de Sérgio Monteiro-Rodrigues, da
freguesia de Freixo de Numão, do concelho de Vila Faculdade de Letras da Universidade do Porto. O
Nova de Foz Côa. Fica situada no sopé do cabeço elevado rigor cientíico das escavações que aí veio a
de Santa Eufémia, junto a um cruzamento viário realizar proporcionou importantes conclusões sobre o
designado por “Pedra Escrita”. Os vestígios de processo de antropização do lugar do Prazo desde o
ocupação humana distribuem-se por uma zona com Paleolítico, colocando esta estação arqueológica como
certo declive, ora entre batólitos graníticos, alguns um local de referência obrigatório, sobretudo para o
dos quais funcionaram de abrigo, ora numa breve período de transição entre o Mesolítico e o chamado
plataforma que sobressai entre o relevo circundante, Neolítico Antigo, no noroeste peninsular28. Embora
virada a norte para uma depressão que a gente da terra ainda subsistam muitas dúvidas sobre a basílica
denomina vale de São João25. Este lugar era também do Prazo, somos de opinião que existem também
conhecido por “Freixo Antigo”, havendo a justiicação dados suicientes para que se possa igualmente
lendária de que teria sido abandonado porque as considerar o carácter excepcional desta estação para
“formigas comiam as criancinhas”. A antiguidade do o conhecimento da alta Idade Média beirã, no período
sítio era assim sublinhada pela tradição popular, a da expansão asturo-leonesa. É isso que tentaremos
qual, ao que parece, também recordava a existência demonstrar neste estudo.
de uma desaparecida capela. A arqueologia veio a
comprovar que Freixo de Numão teve ocupação
humana igualmente muito antiga, pelo que a lenda a 1. A TEMPORALIDADE DA OCUPAÇÃO
respeito da sua origem, no Prazo, tem de ser matizada, HUMANA NO PRAZO
podendo referir-se a um momento singular da história

C
de ambas as localidades e não necessariamente à om base em dados fornecidos pelas
criação de qualquer dos povoados. publicações de António Sá Coixão e na
Em meados do século passado, durante trabalhos sequência das suas próprias pesquisas, o
agrícolas para o plantio de amendoeiras, foram pré-historiador Sérgio Monteiro-Rodrigues apresenta
descobertos vários elementos de construção e uma bem sistematizada síntese dos testemunhos sobre a
sepulturas em xisto. Este achado fortuito foi noticiado utilização daquele espaço pelo Homem, possivelmente
em 1954 por um erudito natural de Freixo, J. A. Pinto desde o Acheulense29. O Paleolítico Superior está
Ferreira, no estudo monográico que publicou sobre devidamente conirmado nas unidades estratigráicas
a freguesia26. Mas a verdadeira revelação da jazida mais antigas que foi possível identiicar, embora sem
arqueológica icou a dever-se a António Sá Coixão, ao possibilidade de recurso a datações absolutas. Estas
promover as primeiras sondagens arqueológicas em foram obtidas apenas a partir do Epipaleolítico e com
1980-81, as quais deram a conhecer um horizonte de resultados surpreendentes, alguns deles alcançados
ocupação romana e, ainda, estruturas relacionadas com até recentemente30. O mais antigo registo cronológico
um templo medieval. As escavações foram retomadas
em meados dos anos 90, tendo Sá Coixão detectado, nos foi prestando, a respeito das suas pesquisas e das nossas relexões
sobre a estação do Prazo. Gostaríamos de sublinhar a extrema abertura
entretanto, indícios de uma ocupação mais recuada, manifestada e o propósito de, no futuro, nos acompanhar numa análise
datável pelo menos do período neolítico27. A presença mais detalhada sobre as descobertas e a musealização das ruínas, tendo em
conta a sua experiência pessoal e os registos de campo.
25 É referido como “vale de Sã Joana”, uma corruptela da expressão “vale 28 MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – A estação neolítica do Prazo
de São João”, a partir de um designativo medieval relativamente comum (Freixo de Numão - Norte de Portugal) no contexto do Neolítico Antigo do
- “Sam Oane” ou “Sam Hoane” - em documentos referentes a localidades Noroeste Peninsular. Algumas considerações preliminares. In Actas do 3º
com idêntica invocação. Congesso de Arqueologia Peninsular (Vila Real, 22-26 Setembro 1999), v. III.
Porto: ADECAP, 2000, p. 149-168; Estação arqueológica do Prazo-Freixo
26 FERREIRA, J. A. Pinto – Freixo de Numão: Apontamentos. Porto, de Numão: Estado actual dos conhecimentos. Côavisão. 4 (2002) 113-126.
1954.
29 MONTEIRO-RODRIGUES, Sérgio – Pensar o Neolítico Antigo:
27 COIXÃO, António do Nascimento Sá – Carta arqueológica do Contributo para o Estudo do Norte de Portugal entre o VII e o V milénios a.
Concelho de Vila Nova de Foz Côa. V. N. de Foz Côa: Câmara Municipal, C.. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 2011, p. 81-84.
1996, p. 175-181; Um projecto: A investigação, a musealização e um circuito.
Freixo de Numão: ACDR, 1980-1996. p. 47-62; O circuito arqueológico 30 IDEM – Novas datações pelo Carbono 14 para as ocupações
de Freixo de Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, 2005, holocénicas do Prazo (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa, Norte de
p. 16-30. Agradecemos ao Dr. A. Sá Coixão todas as informações que Portugal). Estudos do Quaternário, 8, APEQ, Braga (2012) 22-37.
O Signiicado da basílica do Prazo 67

1 - Corte transversal com a implantação da jazida arqueológica do Prazo (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).
68 Manuel Luís Real

2 - Posicionamento da estação arqueológica do Prazo, face ao alto de Sª Eufémia e ao vale de S. João (seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).

remonta a este último período, conirmando uma medronho. Eles já fazem uso da cerâmica e de polidores
ocupação situada entre inais do X e meados do IX líticos, mas não apresentam quaisquer indícios sobre o
milénio a. C.. Vão-se sucedendo novas ocupações, em recurso à agricultura ou ao pastoreio. Esta é a grande
fases distintas do Mesolítico e do Neolítico, merecendo novidade dos estudos sobre a pré-história do Prazo,
particular destaque o horizonte que se convencionou desfazendo a ideia de uma real revolução neolítica,
denominar por Neolítico Antigo, que no Prazo se desencadeada de um fôlego, a partir de migrações
situará no intervalo temporal balizado entre os inais vindas do oriente. Na realidade, o processo evolutivo
do VI milénio a.C. e um momento algo posterior ao 3º terá sido mais complexo e experimentalista, icando
quartel do V milénio a. C.. Este período é caracterizado aqui demonstrada a necessidade de matizar a tese
por uma população de caçadores-recolectores, que tradicional sobre a denominada “neolitização” do
deixou marcas da respectiva actividade cinegética, noroeste peninsular.
mas também da prática de alguma moagem, talvez Embora o concelho de Vila Nova de Foz Côa
de gramíneas e frutos silvestres, concretamente o seja pobre em cultura dolménica, parece que os
Esta estação dispõe já de cerca de trinta datações de cronologia absoluta.
abrigos rochosos do Prazo foram utilizados durante
As primeiras análises foram publicadas em MONTEIRO-RODRIGUES, o Neolítico Final e Calcolítico. É provável que tenha
Sérgio; ANGELUCCI, Diego E. – New data on the stratigraphy and
chronology of the prehistoric site of Prazo (Freixo de Numão). Revista
havido algum distanciamento da comunidade
Portuguesa de Arqueologia. 7:1 (2004) 39-60. relativamente à apropriação do lugar, durante o
O Signiicado da basílica do Prazo 69

período subsequente, já que os habitantes da Idade do pars fructaria. O sector I, por sua vez, é adjacente ao
Bronze parecem ter preferido o morro sobranceiro, presumível edifício termal, do lado exterior. Trata-se
conhecido por alto de Santa Eufémia, como revelou esta de uma zona onde também surgiram vestígios
A. Sá Coixão. Assim também, a Idade do Ferro é de ocupação neolítica. Encontra igualmente na
desconhecida no Prazo, sendo este talvez o hiato mais vizinhança do edifício G, uma das áreas que revela
signiicativo na estação arqueológica. A revitalização ocupação tardo-imperial e que poderá ter algo a ver
do lugar dar-se-á com os romanos, no séc. I-II d. C.. com a continuidade de utilização do local durante
Ela tem inalmente um carácter sedentário, com a o domínio bárbaro da Península. Se existiu um
construção de uma villa na plataforma principal, que templo religioso atribuível a este período, é algo que
incluiria, segundo o autor, uma presumível zona de nos escapa, tendo em conta os dados disponíveis.
termas. São apontados os edifícios A e B31, mas a única No entanto, foi encontrado o fundo de um vaso de
datação de cronologia absoluta que se possuí deste cerâmica cinzenta, com a aposição de um crismon, e
período, provem da periferia, do chamado abrigo que poderá corresponder a este período33. Apareceu
I. É bem provável que esta nova fase corresponda à também o fragmento de uma colher em bronze, cuja
da pesquisa e apropriação dos recursos mineiros da cronologia ignoramos, não se sabendo também se,
região. Entre 250-275 d. C. assiste-se a um processo porventura, terá sido usada para funções litúrgicas.
de ruralização mais acentuado, com o aparecimento, Como adiante demonstraremos, a planimetria
no socalco superior, de estruturas relacionadas com o geral da basílica deve ser atribuída aos inais do séc.
armazenamento e moagem de cereais, bem como de IX-princ. X. Além disso, foram encontrados diversos
uma cozinha com a lareira e o respectivo forno. É o alinhamentos de buracos de poste que merecem
conjunto que Sá Coixão designa como pars fructuaria. ser melhor analisados. Eles surgiram no interior do
A partir do séc. III também poderão corresponder edifício B, em locais onde o opus signinum parece estar
o edifício G e dois fornos, um de cozedura de tégula corrompido. Sá Coixão dá nota da sua existência de
(forno C) e outro de fundição de metal (forno H). forma muito esquemática, na publicação da planta
Talvez nos inais do século possa ter ocorrido um de conjunto dos edifícios da plataforma central, por
saque, seguido de incêndio, mas o lugar voltará a ser exemplo, no referido guia do visitante. No entanto,
ocupado na centúria seguinte, como o demonstram uma fotograia apresentada pelo autor mostra que
diversos testemunhos relacionados sobretudo com tais alinhamentos não são paralelos entre si. Estando
os edifícios G e E, além de um novo forno (forno L) e tão próximos uns dos outros, eles são incompatíveis,
duas pequenas sepulturas que continham moedas do por manifestarem orientações divergentes (Figura
Imperador Constantino. Terá sido por esta altura que 12). Consequentemente, são de atribuir a cronologias
ocorreu a cristianização do local. distintas. Analisando este caso com maior detalhe34,
A grande incógnita reside na identiicação dos veriica-se que existem dois tipos principais de
vestígios da ocupação sueva e visigoda. Em nosso alinhamentos. Um deles é, sem dúvida, paralelo ao
entender, com os elementos até agora publicados sobre muro romano e Sá Coixão pensa tratar-se de um
a basílica, nada nos parece de segura atribuição ao possível alpendre exterior do edifício termal (edifício
período de ocupação bárbara. No entanto, ela existiu A). É uma explicação plausível. Mas poderia ser
sem dúvida, como o comprovam as datações por C14 também uma estrutura posterior a ambos os edifícios
de materiais colhidos no sector VII (430-570 AD / 590- romanos, eventualmente quando estes já estariam
600AD) e no sector I (604-612 AD / 616-653 AD)32. arrasados, ou seja, nunca antes do séc. V-VI35. Nesta
As estruturas da basílica parecem, no seu conjunto, ter circunstância, tratar-se-ia de um edifício cabanal
sido erguidas já em época posterior. de cronologia suevo-visigoda, o que é perfeitamente
O sector VII ica numa zona mais elevada, junto
33 COIXÃO, António do Nascimento Sá – Rituais e cultos da morte na
ao aloramento rochoso sobranceiro à plataforma região de Entre Douro e Côa. Freixo de Numão: ACDR, 1999, ig. 21.
principal e relativamente próximo da designada 34 O autor possibilitou-nos a consulta do plano inal da escavação, à
escala, amabilidade esta que gostaríamos de sublinhar e agradecer.
31 Para a identiicação alfabética dos edifícios, cfr. as publicações de
A. Sá Coixão, como por exemplo em Circuito Arqueológico de Freixo de 35 A conirmação dependerá de uma análise, mais detalhada ainda,
Numão: Guia do visitante. Freixo de Numão: ACDR, [2012], igs. 6-8. sobre a posição relativa dos buracos de poste face ao opus signinum
romano, podendo nesse caso ser posterior ao próprio edifício B e respectivo
32 MONTEIRO – ANGELUCCI (2004), p. 52. pavimento.
70 Manuel Luís Real

3 - Planta da zona nuclear do Prazo, com a basílica (a norte), os edifícios de origem romana (em redor de um logradouro comum) e os
locais de ocupação pré-histórica (sectores I, VII e VIII). A meio da planta, assinala-se uma nascente de água represada
(seg. Sérgio Monteiro-Rodrigues).
O Signiicado da basílica do Prazo 71
72 Manuel Luís Real

possível, à luz do que se conhece sobre a construção 2 “IN ALIA CARRARIA DE SANCTO
em materiais lenhosos que, nessa época, se tornou JOHANNE”
relativamente vulgar. Mais interessante, ainda, nos

A
parece ser um outro alinhamento oblíquo ao precedente estação arqueológica encontra-se a meia
e que, com aparente rigor, se articula com a orientação encosta, orientada para um vale cujo
dos muros da basílica alto medieval. A conirmar-se nome, de acordo com a memória popular,
esta observação, poderemos estar perante um possível sobreviveu para lembrar o antigo orago da basílica
anexo habitacional, construído em madeira, tal como do Prazo: vale de São João. Tem sido bastante difícil
o que foi identiicado em Santa Marinha da Costa, encontrar documentação escrita que auxilie as
antes da ediicação do palácio condal de meados do pesquisas sobre a história deste templo. Até ao momento,
séc. X36. não encontramos qualquer referência explícita nos
São de assinalar, ainda, dois outros elementos estudos sobre o Prazo. Este topónimo – “Prazo” – tem
relacionáveis com a época da Reconquista. A noroeste características que o fazem reportar a uma realidade
do templo, numa plataforma superior, aparece um que apenas deverá ter ocorrido, quando muito, a
sarcófago em pedra, aparentemente abandonado, e na partir da baixa Idade Média. Se é certo que o termo
sua proximidade foi escavado um edifício que revelou “plazum” ou “plazo” apareça já esporadicamente na
uma fase de ocupação associada a cerâmicas do séc. décima centúria37, só no séc. XIII é que ele se consolida
IX-X, as primeiras a ser identiicadas, enquanto tal, para designar o regime enitêutico a que passou a
por A. Sá Coixão. Por outro lado, ao questionarmos estar sujeita a propriedade imobiliária desde a Idade
sobre a eventual existência de uma atalaia no alto Média. E para se transformar em topónimo, algum
de Santa Eufémia, este arqueólogo conirmou-nos tempo mais poderá ter sido requerido. Atendendo a
o aparecimento também de cerâmica medieval e de que continuam a haver enterramentos com moedas do
alguns silhares, durante uma intervenção no cabeço, séc. XIII e, num caso periférico, até associado a um
para aí instalar umas antenas. ceitil de D. Afonso V – um sarcófago presumivelmente
Regressando ao edifício basilical, importa salientar reutilizado para outro im – seria legítimo supor
que ele aparenta ter possuído algumas reformas ao que a comunidade eclesial ainda subsistisse na baixa
longo do tempo e que, como veremos adiante, está Idade Média e que, como tal, estivesse presente nos
também a ele associada uma necrópole da baixa Idade róis de igrejas conhecidos para a época. Porém, no
Média. A quase totalidade da numária aí descoberta que respeita às listas dos benefícios eclesiásticos
não ultrapassa o reinado de D. Afonso III, se bem que pertencentes à monarquia, não aparece qualquer
num anexo exterior tenha aparecido uma moeda do alusão ao Prazo38. Isto signiica que o(s) patrono(s)
séc. XV (ceitil de D. Afonso V). Durante a escavação ou eram laicos, ainda, ou eram representados por
surgiu o derrube da cobertura, formado por telha qualquer instituição religiosa superior. E tudo indica
de reduzida curva. O abandono do local não está que seria este o caso. Na realidade, em 1277, o bispo
claramente determinado, embora se invoque o século de Lamego, D. Gonçalo, sente-se obrigado a devolver à
XIII, devido à circunstância de, no interior do templo, mesa capitular uma série de bens de que a mitra se tinha
não terem aparecido numismas posteriores a esta data. apossado injustamente. Entre eles é incluída a ermida
Após o desaparecimento do núcleo do Prazo, de São João, sita no termo de Numão39. É provável,
enquanto habitat permanente, o lugar continuou a ser por conseguinte, que na documentação do cabido
usado para a prática agrícola, como o demonstra o ou chantrado de Lamego existam outras referências
forno moderno de secar igos. ao Prazo. Mas não podemos deixar de aludir a uma
outra fonte, bem mais antiga e já muito utilizada, em
37 O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Lisboa: Círculo de
Leitores, 2007, t. 15, p. 6522, cita uma fonte de 938 e outra de 999.
36 REAL, Manuel Luís – Pousada de Santa Maria. Guimarães. Boletim 38 Cfr. BOISSELLIER, Stéphane – La construction administrative d´un
da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. 130. [Lisboa]: royaume: Registres de bénéices ecclésiastiques portugais (XIII-XIV Siécles).
Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações (1985) 16-17 e Lisboa: Universidade Católica, Centro de Estudos de História Religiosa,
igs. 3 e 9; IDEM – Materiais de construção utilizados na arquitectura cristã 2012.
de alta Idade Média em Portugal. In MELO, Arnaldo de Sousa; RIBEIRO,
Maria do Carmo (coord.) – História da construção: os materiais. Braga: 39 COSTA, M. Gonçalves da – História do bispado de Lamego, v. 1.
CITCEM-LEMOP, 2012, p. 104-105. Lamego: [s. n.], 1977, p. 137-138.
O Signiicado da basílica do Prazo 73

4 - Planta das ruínas do Prazo, após as escavações de 1996. Ainda estavam por escavar o edifício G e a maior parte do edifício E
(seg. António N. Sá Coixão)
74 Manuel Luís Real

que tem passado quase despercebida a passagem que assentavam as colunas, e o muro oriental da aula. Esta
alude ao lugar numantino de São João. Trata-se do parte foi sujeita a uma maior espoliação de pedra,
foral concedido, em 1130, aos moradores da “ciuitate tendo desaparecido (Figura 4). Tais muros-atlante são
Noman, cognomento Monforte”, pelo governador D. muito semelhantes aos de Lourosa e Balsemão, onde
Fernando Mendes de Bragança. Na parte em que trata há uma imposta no arraque do arco. No Prazo existem
das coimas por homicídio, dentro do povoado e numa impostas com toreados muito rudes, feitas ex-professo
área periférica, baliza esta última entre a “portellam de (Figura 8c), mas há também outros frisos – destinados
doiro” e os “palacios antiquos”, ou seja, “usque in alia a impostas ou a cornijas – que parecem ser fruto do
carraria de sancto Johanne”40. Trata-se, sem dúvida, reaproveitamento de materiais de origem romana
da linha demarcada pela ancestral via que ainda hoje (Figura 8b). Os elementos de suporte dos arcos,
liga Freixo de Numão ao Rio Douro, passando em na parte intermédia, seriam formados por simples
frente ao Prazo, pelo vale de S. João, e que se dirige a coluna, duas por cada eixo longitudinal e não muito
Murça e ao entroncamento de Mós do Douro. Junto altas, se tivermos em atenção os paralelos citados42.
a este ica o monte da Portela, próximo já do rio, ou Apareceram deslocados vários fustes de coluna,
seja, precisamente a referida “portellam de doiro”, bases ou capitéis de estilo dórico, que podem bem ter
onde a passagem era efectuada por barca. Do foral pertencido a esta parte do edifício. Surgiram também
de Numão pode-se ainda inferir que o limite sul da as sapatas para assentamento dessas colunas, uma
linha demarcada, para aquela área de imposição iscal, ainda no sítio e as restantes tombadas na proximidade.
coincidiria com a antiga villa do Prazo, identiicada A sua forma tronco-piramidal, de tendência para o
como illos palacios antiquos, no século XII. paralelepípedo, faz recordar as de Santianes de Pravia,
nas Astúrias. Mas nada, até ao momento, permite
supor que no Prazo houvesse pilares em vez de colunas,
a solução mais usual da arquitectura asturiana. No
3. A BASÍLICA MEDIEVAL DO PRAZO caso português, a tendência foi para privilegiar o
fuste de coluna, como o comprovam as basílicas quase

N
a alta Idade Média, durante o reinado de gémeas – quanto à planimetria do corpo central –
Ordonho II – enquanto governador da de Lourosa e Balsemão (Figura 20). Esta similitude
Galiza ou, mais provavelmente, já como rei repete-se relativamente às arcaturas divisórias, se
de Leon – terá sido construída esta basílica no Prazo. bem que em S. Pedro de Balsemão estejamos perante
A planimetria da aula principal aparenta uma lógica uma reconstrução moderna, com a utilização apenas
unitária e possui determinadas características formais parcial dos elementos originais. Contudo, deve ser
que levam a concluir estarmos perante uma construção particularmente sublinhada a extrema parecença que
de raiz. Isto independentemente da possibilidade existia entre os desaparecidos arcos formeiros do Prazo
de ter existido um edifício anterior, de função e os que ainda hoje vemos em S. Pedro de Lourosa. As
desconhecida, romano ou suevo-visigodo, e do qual escavações forneceram uma série de aduelas, das quais
A. Sá Coixão encontrou indícios numa sobreposição se salientam vários saiméis de arco: uns relacionados
de muros junto ao limite ocidental da nave (Figura com as extremidades de cada iada (Figura 7a), isto
4)41. Em linhas gerais, trata-se de um templo de três é, por assentarem directamente sobre a imposta de
naves, separadas por tríplices arcaturas longitudinais. cada atlante no topo das naves; outros que se situavam
No extremo ocidental sobrevivem os dois muretes no prumo de cada coluna, donde divergiam dois
constitutivos dos atlantes (salientes), em que se arcos (Figura 7b e c). Embora um pouco mutilados,
apoiavam os arcos extremos. Estes muros encontram- 42 Numa primeira análise sobre os elementos de suporte dos arcos da
se mal travados à testeira ocidental, circunstância que nave, foi referida a existência de seis sapatas: cfr., por ex., Rituais…, p. 54.
Esta interpretação é errónea. Ao centro, haveria apenas quatro sapatas. A
se repetiria do lado oposto, dado existe uma simetria uma equidistância semelhante, dum e doutro lado da aula central, existiam
no espaço deixado vazio entre as últimas sapatas, onde apenas os assentamentos das pilastras ou estruturas de remate, de cada um
dos muros-atlante em que se apoiam os arcos longitudinais das naves. Por
40 Portugaliae Monumenta Histórica: Leges et Consuetudines, vol.1 ,fasc. esta razão, entendemos incorrecta a colocação da base e fuste de coluna no
3, 1863, p. 368-370. extremo dos muretes que se conservam do lado oeste da aula. Na origem,
a uma cota ligeiramente superior, haveria apenas uma imposta, a partir da
41 O muro mais antigo igura a negro, enquanto o da basílica alto- qual assentava o primeiro arco formeiro das arcaturas tríplices em que se
medieval aparece a tracejado. Vd. tb. COIXÃO, 1999, igs. 18 e 30. dividiam as naves.
O Signiicado da basílica do Prazo 75

5 - Vista geral do templo, realizada a partir de sudoeste.

os dois saiméis centrais aqui reproduzidos, pelo seu


aspecto esguio e pela elegante curvatura das linhas de
arco, apresentam uma notável semelhança com os de
Lourosa (Figura 14). Deve acrescentar-se que durante
as pesquisas arqueológicas apareceram mais arranques
de arco, nomeadamente do primeiro tipo, onde parece
haver vários géneros de abertura. Só um estudo
criterioso de todas as peças, com seu desenho à escala
e a reconstituição integral do respectivo arco, é que
irá permitir fazer uma ideia de que partes do edifício
elas poderão pertencer: muro divisório das naves, arco
triunfal da capela-mor ou portada.
No extremo oeste da nave central constatou-se que 6 - Enfiamento das quatro portas do nártex,
visto de norte para sul.
houve uma destruição do primitivo acesso ao nártex,
sendo o vão posteriormente entaipado (Figura 11).
Da anterior abertura, subsistiram a pedra inferior da como este dispositivo era muito caro à arquitectura
ombreira do lado esquerdo (de quem, da nave central, asturiana e conhecem-se em território português,
se dirigia ao nártex) e ainda as duas primeiras do pelo menos, dois exemplos de tribunas em edifícios de
lado oposto. Nesta mesma zona, para além de uma época pré-românica: S. Gião da Nazaré e S. Romão da
sepultura tardo medieval (sepultura 2), apareceram Ucha43.
dois buracos de poste abertos no próprio pavimento Relativamente às aberturas de circulação, na aula
da igreja – em argamassa de tipo opus signinum – e pricipal, A. Sá Coixão aponta quatro portas, além
encostados à parede oeste. Descartamos a possibilidade do arco triunfal. Uma dá acesso ao anexo sul e três
de se tratar de um estrutura pertencente ao pórtico, abrem para o nartex. Ao contrário deste último, onde
apesar de estarem a ladeá-lo, pois o seu avanço face à as quatro passagens aparentam manter as soleiras
primitiva parede não condiz com a prática da época, originais, julgamos que não foram encontradas
que nunca prevê arcos projectados para fora do muro. soleiras monolíticas na parte da aula eclesial. A
Assim sendo, e tendo em conta que se tratava de uma identiicação das portas parece ter icado a dever-se
estrutura presumivelmente em madeira, encostada à existência de pedras com encaixes desnivelados, os
à parede de alvenaria e em perfeita articulação com 43 Este último caso conhece-se através de uma epígrafe que comemora
os restantes muros – pela equidistância que tais a sua construção, por um tal “Sermundus”. A obra da tribuna, evocada
autonomamente, sem qualquer referência ao resto do templo, data do ano
colunas exentas mantinham em relação aos atlantes 920. Pode tratar-se de uma “melhoria” ligeiramente posterior à fundação
longitudinais, donde arrancam as arcaturas da aula – da basílica, tal como poderá ter acontecido na do Prazo, cuja tribuna seria
praticamente coeva desta. Sobre a inscrição vd. BARROCA, Mário Jorge
somos levados a pensar que se está perante vestígios – Epigraia medieval portuguesa (862-1422), Vol. 2, T. 1. Porto: FCG-FCT,
dos suportes de uma tribuna em madeira. Sabe-se 2000, p. 35-37
76 Manuel Luís Real

7 - Saiméis de arco: a) arranque lateral, do arco triunfal, arco porta ou arco formeiro das naves;
b) e c) saiméis de dupla face curvilínea, que se situavam sobre as colunas em que assentavam os arcos longitudinais da aula basilical.

quais, supostamente, serviram para ajustar os silhares Rituais, foto 39, à esquerda). A soleira avulsa que se vê
de ombreira, entretanto desaparecidos (cfr. Rituais, na mesma fotograia, um pouco acima do sarcófago,
foto 39, à direita)44. No entanto, não é líquido que tal foi colocada na passagem situada no muro leste da
critério seja isento de dúvidas. No caso vertente, a aula, na suposição de que aí se situaria a primitiva
existência da porta naquele local parece incompatível porta do templo. Contudo, não pode deixar de ter
com a presença do sarcófago S1, que se encontra estado aqui o local de entrada da capela-mor. Nas
actualmente mutilado, mas impediria a passagem primeiras reconstituições feitas da basílica, o autor
estando completo (cfr. Um projecto, foto 52). Uma coloca a cabeceira no lado oposto, assinalando aí três
situação inversa, em que uma pedra desnivelada não capelas45. Ora tal suposição, além de contrariar os
deu origem a qualquer ombreira, parece ter ocorrido cânones da época sobre a orientação do templo – e,
na designada passagem da nave sul para o nartex (cfr. pela posição das sepulturas, constata-se que o respeito
Rituais, foto 43, à esquerda; ou Figura 10 do presente canónico era escrupulosamente observado – torna-se
estudo, à direita). À primeira vista, até seria de supor impossível conceber que o santuário fosse devassado
que esta passagem não correspondesse à organização por uma sucessão de portas que transformam o
primitiva, encontrando-se o muro completamente local como uma espécie de corredor (Figura 6). A
encerrado nesse local. E é legítimo pensar o mesmo implantação do santuário exige recato. Há exemplos de
para o lado simétrico do templo, se bem que nesta eixos de circulação em frente à capela-mor (Sª Maria
parte se possa admitir a existência de uma soleira (cfr. de Melque, Sª Lucía del Trampal, S. Gião da Nazaré,
Rituais, foto 62). etc.), mas trata-se já na área do presbitério. O tipo de
Analisando de novo a primeira foto, parece claro solução em causa, na zona ocidental do templo, é mais
que entre os dois compartimentos do anexo sul existiu próprio de um nártex. Na arquitectura asturiana não
uma porta com soleira, do tipo das do nártex (cfr. existe um eixo tão pronunciado, pois até nos casos
mais desenvolvidos não há portas nos extremos norte
44 Esta é uma foto importante sobre o estado das estruturas, no
momento da escavação desta parte do edifício. Não confundir, como muro, e sul do nártex, mesmo que apareça um anexo lateral,
o alinhamento de pedras que se vê em último plano, as quais apareceram como em Valdedios, o que se explica porque o pórtico
originalmente dispersas e encontram-se aí meramente ordenadas, a
aguardar reposição para o momento de erguer os muros, de acordo com a
metodologia utilizada no terreno. 45 Cfr., por exemplo, Rituais…, p. 54 e igs. 14-17.
O Signiicado da basílica do Prazo 77

8 - Capitel coríntio que poderá ter sido invertido, para servir como base de coluna, na entrada da primitiva capela-mor;
b) e c) frisos de cornija e/ou de imposta, decorados com molduras simples.

de entrada se situa sistematicamente na fachada oeste. reconstituída em S. Pedro de Lourosa. É relativamente


Tal já não acontece em San Pedro de la Mata (2ª fase), frequente encontrar duas colunas de cada lado, sobre
pois não existia pórtico no eixo central da igreja. Em as quais assenta o arco triunfal. Talvez nos possa dar
planta, este caso é relativamente próximo ao do Prazo uma pista o capitel liso descoberto no Prazo, que
– se descontarmos a colocação da primitiva porta da outrora devia ter estado invertido, a servir de base
aula no centro – que, por sua vez, nos faz recordar (Figura 8a). De facto, ele apresenta um entalhe que
certos templos cronologicamente anteriores, como poderá ter funcionado como apoio de cancela e isso
Recópolis, Son Fradinet ou Portera. Aqui existe um seria admissível na entrada do santuário48. Tendo em
nártex quase independente46, que estabelece ligação conta que não há vestígios de qualquer outra abertura,
com os anexos eclesiais, destinados a funções litúrgicas no referido muro, parece que a cabeceira possuía
complementares ou a habitação. uma única capela, como em Balsemão, e não as três
Relativamente à capela-mor, ela situava-se usuais da arquitectura asturiana e que reaparecem em
seguramente em zona que ainda não foi devidamente Lourosa.
escavada, pela simples razão de que o terreno não Numa análise genérica dos anexos mais
estava adquirido, segundo nos coniou o responsável chegados à aula eclesial – e descontando alguma
pela estação arqueológica do Prazo47. A reconstituição dose de incerteza, resultante do facto de não termos
da actual passagem, no muro leste da aula, é moderna, acompanhado a escavação e de hoje ser já difícil ver
tanto no que concerne à soleira, como também como se articulavam os engates ou encostos dos muros
às ombreiras. Em nosso entender, na origem ela – parece-nos possível que tenha havido duas fases
poderia aproximar-se muito da solução existente em no desenvolvimento destas estruturas periféricas, se
S. Pedro de Balsemão (Figura 13, arco da direita) e bem que não muito distantes no tempo49. O anexo
46 E, como dissemos, temos também algumas razões para duvidar, no 48 Infelizmente, na última visita que izemos à basílica do Prazo, na
Prazo, da existência das passagens laterais entre a aula e o nártex. Mas não companhia de A. Sá Coixão, demos conta que esta peça teria sido roubada
estamos seguro disso, pois haveria a possibilidade de terem sido abertas há pouco tempo, assim com a parte superior do fuste. Para uma vista
mais tarde, quando foi entaipada a porta da nave central. completa do elemento de suporte resultante da reconstituição efectuada,
cfr. Um projecto, foto 47.
47 A gestão da estação arqueológica é feita pela A.C.D.R. - Associação
Cultural, Desportiva e Recreativa de Freixo de Numão, que tem vindo a 49 Diga-se, de passagem, que parte da construção original foi executada
adquirir os terrenos onde se implantam as ruínas do Prazo. com muros mal travados, sobretudo onde a ixação era menos exigente,
78 Manuel Luís Real

sul parece estar perfeitamente coordenado com o anterior à construção da palácio condal, com a igreja
comprimento das naves da igreja e será, em princípio, em alvenaria (templo II) e uns anexos em madeira, de
da 1ª fase da construção. Já o nártex casa-se mal com impressionante monumentalidade.
este anexo sul e nada tem a ver com o alinhamento do No Prazo, o mais provável é estarmos diante
muro meridional da aula. Em nosso entender, devem de um antigo mosteiro, cuja família patronal pode
ser coevos, este nártex e o anexo norte, que com ele eventualmente ser relacionada com a ascendência
se encontra devidamente coordenado. O primeiro de Flâmula Rodrigues, dado que os seus pais, pelo
espaço teve claramente a intenção de permitir, desde que se deduz do respectivo testamento, deviam ter-
cedo, enterramentos pios à sombra do templo, sem se transformado nos principais senhores da região.
violar a disposição canónica que impedia a sepultura Apesar de todas as dúvidas que possam pairar sobre
dos defuntos no interior da igreja. Quanto ao anexo este complexo basilical, não é de mais sublinhar a sua
norte, que também recebeu algumas das inumações transcendência no contexto da arqueologia da alta
mais antigas, parece constituir uma zona mais Idade Média, em território português.
recôndita, na distribuição de espaços da comunidade.
De facto, a respectiva soleira, mostra que a porta,
tal como as restantes do nártex, abria as suas folhas 4. AS TRANSFORMAÇÕES NA BAIXA IDADE
de madeira para o lado setentrional, demonstrando MÉDIA
tratar-se de espaços sucessivamente interiores, num

C
movimento progressivo de sul para norte. Talvez omo icou referido acima, a escavação
estejamos perante uma área de recolhimento, senão revelou a existência de uma série de
mesmo do tesouro50. A possível afectação deste espaço diacronias arquitectónicas e forneceu
para guarda do “tesouro” – representado por objectos dados inequívocos da utilização do templo ainda na
de carácter litúrgico, livros, etc. – pode estar indiciada baixa Idade Média. Um dos casos mais evidentes foi
pela descoberta in situ de uma pedra almofadada em o entaipamento da porta sul do nártex, com fustes de
forma de paralelipípedo, incada no chão, que pode ter coluna e argamassa (Figura 9). Há alguma lógica em
servido como pé de mesa, encostada à parede. Veja- considerar contemporâneos, tanto este bloqueamento,
se, em planta, a sua localização entre as sepulturas 14 como o da passagem que lhe icava próxima, entre
e 18 (Figura 4)51. A existência de mesas na sala do o mesmo nártex e a nave central do templo (Figura
“tesouro” faz recordar uma passagem do testamento 11). A desafectação desta última – ou de outra
de Mumadona que alude a “duas stolas litoneas de qualquer antiga porta – está também comprovada
seruicio mense in thesaurum” (DC 76)52. pela descoberta avulsa de um elemento de soleira, no
A presença destes anexos acontece compartimento mais ocidental do anexo sul, e que
independentemente da possibilidade de terem existido aparece sumariamente representado no meio deste
outros complementares, nas imediações, construídos espaço, na planta das ruínas após as escavações de
em estrutura de madeira, eventualmente relacionada 1996 (Figura 4).
com alguns dos buracos de poste que apareceram Mas a maior perturbação documentada na basílica
na escavação da edifício B. Como referimos mais alto-medieval é a que se relaciona com a apropriação
acima, em Sª Marinha da Costa deve igualmente das naves do templo, por parte da necrópole. As
ter ocorrido uma duplicidade de estruturas, com inumações mais antigas parecem respeitar a proibição
materiais distintos, pelo menos na fase imediatamente canónica de enterrar os defuntos no interior da
igreja. É que não estariam vedados os enterramentos
como na ligação entre os muros-atlante e as testeiras da aula, ainda visível
do lado ocidental.
no nártex e noutros anexos eclesiais. De facto, as
sepulturas alto-medievais parecem situar-se na
50 Não temos ideia formada a respeito da actual porta leste, nesse
mesmo espaço. periferia. Com referência ao estudo citado de António
51 Cfr. também Rituais, fotos 69 e 74. Nesta última fotograia vê-se bem o do N. Sá Coixão, Rituais e cultos da morte na região
pilarete em granito, junto ao antropólogo que está a escavar a sepultura 18. de Entre Douro e Côa, seleccionámos as seguintes, a
52 Doravante citaremos com a sigla DC, seguida do respectivo número, partir das respectivas descrições e de alguma relexão
os documentos publicados nos Portugaliae Monumenta Histórica:
Diplomata et Chartae. As “stolas litoneas” seriam faixas compridas, que
pessoal. A sua localização pode ver-se na igura 4, do
serviam de mantel atravessado sobre uma mesa. presente estudo, que reproduz o número de código
O Signiicado da basílica do Prazo 79

dado em escavação. São elas: parcialmente a destruiu (Figura 34 e foto 58)


- Sepultura s/nº: aberta na rocha e de criança,
- Sepultura 1: sarcófago, no anexo sul (Figura 22 e parcialmente destruída pela S14 (Figura 34)
foto 39); deve acrescentar-se o fragmento resultante da - Sepultura s/nº: sarcófago de criança, no exterior,
sua mutilação, na zona dos pés e aparecido junto a um situado numa plataforma de terreno mais elevada;
forno vizinho; foi-lhe atribuído o código S16 (foto 67) assente junto a uns batólitos de granito, tendo levado
- Sepultura 5: aberta na rocha, ovalada, no espaço Sá Coixão a pensar que icou inacabado (foto 36).
sul do nártex, talvez reutilizada (Figura 29 e foto 47)
- Sepultura 6: aberta na rocha, ovalada, no espaço Em linhas gerais, pode concluir-se existirem três
central do nártex, talvez refeita parcialmente com tipos de sepultura relacionados com a fase mais antiga
pedras (Figura 30 e foto 48) da comunidade: sarcófagos monolíticos, sepulturas
- Sepultura 7: sarcófago, no espaço central do abertas na rocha e caixas formadas por pedra pequena.
nártex; apareceu completo, mas muito fragmentado; No edifício C, a oeste do templo, foi descoberto um
possui típicos estrangulamentos na cabeceira e nos pés sarcófago de granito, claramente fora de contexto e
(Figura 30 e fotos 49-50) com indícios de ter sido reaproveitado para ins de
- Sepultura 11: aberta na rocha, antropomórica, uso doméstico (sepultura 8: Figura 31 e foto 51). Na
no exterior, onde veio a ser construído o anexo mais nave sul da igreja apareceu ainda um outro sarcófago,
ocidental; era coberto por uma laje de xisto, grosseira de planta rectangular e cantos arredondados, com
(Figura 28, est. III e fotos 56-57) tampa monolítica (sepultura 3: Figura 25 e fotos 43-
- Sepultura 17: caixa funerária com pedra miúda, 44). Trata-se de uma peça antiga, sem dúvida, mas que
no exterior, a sudoeste do edifício; apareceu com a orla se apresenta igualmente deslocada. Por fotograias da
de pedras já muito destruída (Figura 35 e foto 68) escavação, nomeadamente nas duas reproduzidas a cor,
- Sepultura 19: caixa funerária com pedra pequena, no desdobrável Sítio arqueológico romano/medieval
no exterior, a noroeste do edifício (Figura 36-37 e do Prazo, vê-se com clareza que a arca granítica foi
fotos 71-72) aí colocada em fase posterior, destruindo parte do
- Sepultura 21: caixa funerária com pedra pequena, pavimento de opus signinum53.
em muito bom estado de conservação, no anexo norte Esta situação repete-se na maioria das restantes
(Figura 38 e fotos 74-76) inumações do interior da igreja, que furam o
- Sepultura 22: caixa funerária com pedra pequena, pavimento original. Para além desta circunstância,
no anexo norte, sob a S18, que parcialmente a destruiu apresentam características diferentes das anteriores.
(Figura 34 e 39, fotos 69-70) São caixas rectangulares ou trapezoidais, formadas
- Sepultura s/nº: caixa funerária com pedra exclusivamente por belas lâminas de xisto, as mais
pequena, no espaço norte do nártex, sob a S12, que perfeitas (S12, S14, S18 e, talvez, S20), enquanto as
demais são de natureza mista, conjugando o xisto e o
granito. As peças em granito, porém, diferem das que
se usaram nas sepulturas mais antigas, pois formam
grandes blocos esquadriados (S2, S4, S6, S.13 e S.15).
De algum modo, fazem lembrar uma das fases do
cemitério de São Martinho de Lagares (Penaiel), um
edifício românico que sucede a outro templo mais
antigo54. A área de Freixo de Numão é constituída por
um maciço granítico com pouco mais de uma légua de
amplitude, o qual, excepto também na zona em que se
53 A fragmentação e anarquia em que apareceram as ossadas, no seu
interior, parecem demonstrar que o sarcófago foi aí instalado para servir
de ossário. Aliás, adjacente a ele apareceu outro ossário, que, na planta
publicada, aparece designado como Oss.1.
54 BARROCA, Mário Jorge; REAL, Manuel Luís – Trabalhos
9 - Transformação da porta sul do nártex, entaipada com fustes arqueológicos na igreja de Lagares (Penaiel). Relatório. (submetido ao
de coluna e argamassa (seg. António N. Sá Coixão). IPPAR em 1984, policopiado).
80 Manuel Luís Real

10 - Vista da parte meridional do edifício que encosta a ocidente do nártex, notando-se, à direita, um muro bastante tardio
(seg. António N. Sá Coixão).

implanta o castelo de Numão, é rodeado por formações à função assim desempenhada pelo sarcófago da
geológicas com predominância do xisto. Esta dupla sepultura 8 e pelo ossário que lhe icava adjacente,
oferta de matéria-prima explica, em grande medida, o na nave sul. E aos pés das sepulturas 13 e 15, do lado
carácter misto das alvenarias da estação arqueológica exterior, foram também descobertos ossos empilhados
do Prazo. Por sua vez, ela está bem patente neste novo e protegidos com algumas pedras (idem, ig 33).
período da vida da comunidade, em que as sepulturas Em nosso entender, esta nova fase, onde se adensa
passaram a demonstrar grandes progressos no domínio a função cemiterial do templo, deve corresponder à
do talhe da pedra, seja para a execução das grandes sua provável passagem para o desempenho de funções
placas de granito, seja para a virtuosa preparação das paroquiais. Um possível indício desta evolução parece
lâminas de ardósia. De acordo com A. Sá Coixão, veriicar-se também no conjunto arquitectónico que foi
“pelos numismas exumados no interior da igreja” o designado por edifício C. Hoje é difícil de reconstituir
templo foi usado ainda durante a 1ª dinastia e forneceu alguns detalhes da escavação, mas, da planta geral
moedas cunhadas, pelo menos, até ao reinado de D. publicada por A. Sá Coixão, pode constatar-se a
Afonso III55. Uma prova suplementar do intensivo uso construção de um novo anexo, a ocidente do nártex e
do templo para enterramentos, na sua derradeira fase encostado a este último (Figura 4). Para além dos muros
de vida, é-nos dada pela reutilização frequente das desenhados a negro, aparecem outros dois, no sentido
campas, como na sepultura 27, que foi parcialmente ortogonal ao templo, isto é, na direcção este-oeste,
refeita para albergar um novo enterramento, desta que apenas são sumariamente indicados no desenho.
vez de uma criança (cfr. Rituais…, Figura 27). Outra Um deles, situado mais a sul, quase no eniamento
evidência relaciona-se com os múltiplos ossários do limite meridional do nártex, está representado
descobertos no interior do templo. Já nos referimos em fotograia e revela ser um muro bastante tardio,
com fraco alicerce e a uma cota superior (Figura 10,
55 Rituais…, p. 55.
O Signiicado da basílica do Prazo 81

11 - Local da presumível passagem entre a nave central e o nártex, a qual terá sido destruída e entaipada, por um grosseiro muro
(seg. António N. Sá Coixão).

à direita). O outro alinhamento, que terá aparecido Esta última fase parece remontar ao século XV, pois
já muito arruinado, ica em frente ao sarcófago (S8), estará também a ela ligada a moeda de D. Afonso V
tendo sido provavelmente destruído por alturas da (ceitil)57.
trasladação da antiga caixa funerária para este local. Antes do reinado de D. Dinis “o direito de padroado
Ora tal resto de muro, pela sua posição, mostra era maioritariamente, quando não de forma exclusiva,
ter pertencido à primeira fase do presente anexo, exercido pelas próprias populações”58. Freixo de
originalmente de planta bastante regular, constituindo Numão constituía inicialmente paróquia anexa à igreja
uma sala em forma de rectângulo pouco alongado, de S. Pedro de Numão, situada no castelo. E, acaso seja
no centro da qual se situa uma estrutura sumária em verdadeira a tradição de que o Prazo era considerado
forma de quadrado. Além do citado desenho, este pelos naturais como o “Freixo Antigo”, podemos ver
quadrado central aparece reproduzido em fotograia aí um indício da evolução recente sofrida pelo lugar
(cfr. Rituais…, foto 57). Colocamos a hipótese de ser o e do próximo abandono das funções eclesiais. Na
local de assentamento da pia baptismal56. Este espaço realidade, a paróquia de Freixo é integrada na doação
veio mais tarde a ser destruído e, segundo o autor que o concelho de Numão faz a D. Dinis, na década
da escavação, adaptado a funções agrárias, às quais oitenta do séc. XIII. Será a altura do presumível
andará associado o sarcófago monolítico que encostou
ao muro exterior do nártex, para servir de pia, pois 57 Rituais…, loc. cit.. Nesta mesma zona apareceram duas fossas
quadrangulares, às quais A. Sá Coixão atribui cronologia muito antiga,
apresenta um orifício para escoamento de água (S8). vindo depois a ser reutilizadas como locais de sepultura (S 9 e 10). Uma
delas, pelo modo como foi descoberta, parecia mais um ossário. A outra
56 Trata-se de uma estrutura algo parecida com a que Luís Caballero revelou dois corpos inumados lado a lado, se bem que um deles com o
escavou em San Pedro de la Nave e para a qual coloca também a hipótese esqueleto em estado de decomposição mais avançado.
de se tratar dos restos de um baptistério, anexado ao edifício original:
CABALLERO ZOREDA, Luís (coord.) – La Iglesia de San Pedro de la Nave. 58 SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In
Zamora: Instituto de Estúdios Zamoranos “Florián de Ocampo”, 2004, p. SOAHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e memória. Porto: Câmara
106-110. Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p.47.
82 Manuel Luís Real

12 - Buracos de poste descobertos no interior do Edifício B. Aparentemente, o opus signinum já estava destruído no momento da escav-
ação, o que pode indiciar a posteridade das estruturas em madeira relativamente ao edifício romano, contribuindo para a sua danifi-
cação (seg. António N. Sá Coixão).

abandono da igreja de Prazo, no que João Soalheiro (cfr. Rituais…, foto 47). No entanto, o local continuará
vê possível explicação na sua transferência para a ser usado, nomeadamente para a prática agrícola e
Fraxino, cuja importância começaria então a revelar- pecuária, como parece revelar a reutilização de um dos
se59. A integração de Freixo no padroado régio tem a sarcófagos, como pia, e o aparecimento de um forno
ver, antes de mais, com a reforma geral empreendida moderno de secar igos.
pelo monarca, o qual, no entanto, irá abrir mão desse
direito em algumas igrejas da região, após o Tratado
de Alcanizes e a resolução dos problemas de fronteira. 5. JUSTIFICAÇÃO HISTÓRICO - CULTURAL
Foi o caso de algumas igrejas do termo de Numão, DA BASÍLICA DO PRAZO
que cede a favor do bispo de Lamego, igrejas essas que

D
reaparecem depois associadas ao chantrado, como a já o ponto de vista formal, a basílica do Prazo
referida ermida de São João que, como vimos acima, apresenta algumas características que
pode ser precisamente S. João do Prazo. Assim sendo, sugerem a sua pertença a um grupo mais
o abandono do Prazo pode ser ligeiramente mais alargado, com ainidades na planimetria da aula eclesial
tardio. (Figura 20) e nalgum apelo a memórias classicizantes,
A concluir, deve referir-se que, após a extinção como a reutilização de capitéis lisos e bases de peril
das suas funções religiosas, a igreja terá caído no dórico ou de frisos com molduras de tradição romana
abandono e as suas ruínas icaram seladas pela queda (Figura 8). Reportamo-nos essencialmente a três
do telhado, como o revelou a escavação. Tal derrube é edifícios basilicais, que, embora tendo passado por
descrito por A. Sá Coixão, que o regista em fotograia algumas vicissitudes, chegaram até nós com elementos
59 Idem, p. 46-51. suicientes para lhes podermos atribuir um ar de
O Signiicado da basílica do Prazo 83

família. São eles, como já atrás deixamos referido, os


templos de S. Pedro de Lourosa, S. Pedro de Balsemão
e S. João do Prazo. E o que os torna ainda mais
sugestivos é a sua integração numa corrente que atinge
toda chamada Beira Alta e que evidencia – mais do que
em qualquer outra zona do país – inluências visíveis
da arquitectura e da escultura que então se praticava
no reino das Astúrias. Entre outros aspectos, sobressai
em S. Pedro de Lourosa a sua planta, que se inspira em
larga medida na basílica ovetense de San Julian de los
Prados60. E se alguma dúvida houvesse, poder-se-iam
ainda invocar os elementos de ajimez ou os modilhões
de um só rolo, estriados no topo, de claro modelo
asturiano. Mais interessante ainda, é a cruz gravada
numa das pedras de altar de Lourosa, cujo desenho se
inspira directamente na Cruz de los Angeles, oferecida
por pelo rei Afonso II à basílica de San Salvador de
Oviedo, no ano de 808 d. C.61. A referida peça de altar
encontra-se hoje desaparecida, mas aparece na obra do
Cónego Aguiar Barreiros e chegou a ser fotografada,
em excelentes condições, pelo Instituto Arqueológico
Alemão de Madrid (Figura 21)62. Tratava-se de uma
ara romana, que foi reutilizada para servir de pilar
de sustentação, presumivelmente, ao altar-mor da
basílica de Lourosa. Na sua parte frontal foi esculpido
o signum crucis, com braços de formato evasê63, onde
nem sequer falta a evocação dos cinco camafeus
13 - Duas soluções para suporte das arcaturas, no interior da
igreja de S. Pedro de Balsemão.
existentes numa dos lados da célebre cruz do tesouro
da catedral de Oviedo.
Para além destes exemplos, podem ainda ser
referidas duas peças de escultura, de importância
excepcional. Uma delas é o capitel de acantos que
se salvou da antiga basílica de Sernancelhe, o qual
apresenta folhas bem características desta época, apenas
com um nervo central, muito desenvolvido (Figura
23). Pertence a uma tipologia relativamente rara e
quase exclusiva da escultura asturiana. Os exemplares

60 FERNANDES, Paulo Almeida – A igreja de São Pedro de Lourosa e a


sua relação com a arte asturiana. Arqueologia Medieval, 10, Mértola (2008)
21-40.
61 CASTRO VALDÉS, César Garcia de (ed. lit.) – Signum Salutis: Cruces
de orfebrería de los siglos V al XII. Oviedo: Consejería de Cultura y Turismo
del Principado de Astúrias; KRK Ediciones, 2008, p. 120-127.
62 BARREIROS, Manuel de Aguiar – A igreja de S. Pedro de Lourosa.
Porto: Marques Abreu, 1934, p. 29 e est.56; ARBEITER, Achim; NOACK-
HALEY, Sabine – Christliche denkmäler des frühen Mittelalters vom 8. bis
ins 11. Jahrhundert (Hispania Antiqua). Mainz: Verlag Philipp von Zabern,
1999, p. 237, abb. 164.
63 Parece-me ser a melhor forma de designar aquilo que se convencionou
14 - Arcaturas das naves, no interior da basílica de S. Pedro de chamar “cruz patada”; apesar de ser um francesismo, a palavra é adoptada
Lourosa (seg. Paulo A. de Almeida Fernandes). pelo dicionário Houaiss, na forma indicada.
84 Manuel Luís Real

15 - A implantação do clã senhorial de Lafões no médio vale do Vouga, que serviu de base estratégica para o movimento expansionista
protagonizado pelos descendentes de Diogo Fernandes e Onega (base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

mais conhecidos relacionam-se com as igrejas de San Valdedios é muito mais elaborada, mostrando na zona
Miguel de Lillo e San Salvador de Priesca. A outra peça central da moldura uma ina decoração em espinha.
diz respeito a um fragmento de ajimez, que se encontra A peça da capela de São Martinho é mais grosseira,
num trecho de muro da capela pré-românica de São mas mantém o mesmo tipo de ornato, com várias
Martinho, junto às termas de S. Pedro do Sul (Figura caneluras paralelas. Além disso, o friso percorre o arco
22). A respeito desta escultura e a sua estreita relação que apresenta uma curvatura perfeitamente mimética
com outra de San Salvador de Valdedios, que lhe terá em relação ao modelo de Valdedios – detalhe que é de
servido de modelo, explanei já o suiciente em trabalho sublinhar – e termina com uma inlexão na horizontal,
anterior sobre as respectivas características e as razões ao modo do ajimez asturiano65.
dessa ainidade64. No entanto, deve adiantar-se que,
tanto quanto nos é dado apurar, serão estes casos É altura de procurar uma explicação para esta
únicos, em que um ajimez é revestido de moldura tão quase sistemática – e de algum modo inesperada –
complexa. Na imagem aqui reproduzida, pondo em proximidade de igrejas da Beira interior a modelos
confronto as duas peças, torna-se evidente que a de asturianos produzidos ao longo do séc. IX. Não será a
64 REAL, Manuel Luís – O Castro de Baiões terá servido de atalaia
ou castelo, na Alta Idade Média? Sua provável relação com o refúgio de 65 Sobre as peças asturianas referenciadas cfr. CASTRO VALDÉS, César
Bermudo Ordonhes na Terra de Lafões. Revista da Faculdade de Letras: Garcia – Arqueología Cristiana de la Alta Edad Media en Astúrias. Oviedo:
Ciências e Técnicas do Património. 12. Porto (2013) 203-220. Real Instituto de Estúdios Asturianos, 1995, Figura 237, 263 e 285.
O Signiicado da basílica do Prazo 85

16 - Tenência ou comisso de Entre Côa e Távora, onde imperaram Rodrigo Tedones e Leodegúndia Dias, pais de Flâmula
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

Reconquista cristã, só por si, a justiicar tal presença, conde de Castela (zona do Orense) e Viseu, cujos
pois nada se passa com tão acentuadas características, bens vieram a ser coniscados por ordem do rei. Além
tanto no Entre Douro e Minho, como na fronteira de disso, a documentação indica-nos que a este núcleo
Coimbra. rebelde se associaram também alguns descendentes
Num estudo recente, demos algum relevo à dos presores de Tuy e Portucale. Pensamos que a razão
região de Lafões, onde se veio a instalar um grupo desta aliança terá sido provocada, porventura, por se
dissidente, hostil a Afonso Magno66. Este grupo seria sentirem espoliados do governo de tais territórios,
iel apoiante de um irmão rei, Bermudo Ordonhes, em favor do mordomo-mor do reino, Hermenegildo
que por duas vezes se teria já anteriormente rebelado Guterres, guindado a esta posição após o apoio
contra o monarca. O braço direito de Bermudo terá prestado ao monarca durante uma rebelião na Galiza
sido Diogo Fernandes, um nobre galego ou castelhano liderada, entre outros, por um irmão de Vímara Peres.
casado com Onega, que alguns pretendem ver como Há fortes probabilidades de Bermudo Ordonhes se
uma princesa de origem navarra. A região de Viseu ter instalado na vizinhança das caldas de Lafões, que se
pode ter constituído um foco de resistência mais mantinham activas desde a época romana, escolhendo
alargado, posto que há fortes suspeitas de que também uma zona relativamente discreta, na actual freguesia
a ela estivesse ligado um outro irmão, Odoário, antigo de Bordonhos. Ela reunia excepcionais condições, não
66 REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013.
86 Manuel Luís Real

17 - Zona estratégica do médio vale do Mondego, onde imperou Ximeno Dias e se estabeleceram Alvito Lucides e Munia Dias
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

apenas devido à proximidade das termas, mas também 910, altura em que o rei Afonso III é deposto pelos
pela fertilidade do solo e pela fácil vigilância que lhe ilhos, vindo pouco depois a falecer, este grupo rebelde
proporcionava uma tal posição. Na outra margem do deve ter-se mantido numa atitude essencialmente
rio Vouga e sobranceiro às próprias termas, icava o defensiva. Como quase único interlocutor com o reino
castelo de Lafões (Vouzela), a fortiicação militar que do Norte poderá ter contado com o príncipe Ordonho,
se tornaria cabeça de território. A pouca distância deste governador da Galiza e que em 914 se tornará rei em
lugar, igualmente na margem sul, icava na freguesia Leon, com o epíteto de Ordonho II. Posteriormente,
de Moçâmedes o palácio de Diogo Fernandes e Onega. a sua posição – e a de Diogo Fernandes – deve ter
Por este casal, aí terá sido criado até cerca dos doze evoluído para uma progressivo reforço de poderes
anos o terceiro ilho do príncipe Ordonho, que foi e de expansão senhorial. A presença deste clã de
rei de Leon, com o título de Ramiro II. A chegada de origem asturiana, com eventuais ligações à Galiza,
Bermudo Ordonhes a esta região, depois de derrotado a Castela e, até, a Navarra, adquiriu foros de poder
na batalha de Grajal, terá ocorrido por volta de 898 d. fronteiriço, semi-independente. A sua situação pode
C.. E aqui se veio a estabelecer durante quase trinta ser posta em paralelo com a de outros grupos que se
anos, já que terá falecido no ano de 928 ou ligeiramente desenvolveram noutras marcas ou estremaduras do
antes. A sua permanência em terras de Lafões deve reino asturo-leonês, como os Banu Qasi em Saragoça,
ter passado por dois momentos distintos. Até 909- os Iñiguez em Navarra ou as cortes de Nuno Núñez
O Signiicado da basílica do Prazo 87

18 - Expansão senhorial do mesmo clã, junto à cidade de Lamego, onde possuíram herdades Ximeno, Múnia e Leodegúndia Dias
(base cartográfica, seg. Fallingrain; composição de Paulo Cruz).

(Munio Múniz) e de Fernan Gonzalez em Castela. O Ordoñez na zona das caldas de Lafões é-nos atestada,
conde lafonense Diogo Fernandes67 pode ser, em justa no plano artístico, pela existência do já referido ajimez
medida, equiparado a estes magnates. Tal como aos da capela de São Martinho, templo que pode ter sido
irmãos Ismail e Fortún ibn Musa fora encomendado uma fundação sua, tal como, em nosso entender, é
o príncipe Ordonho, “ad nutriendum” nos conins do legítima a hipótese de lhe poder ser também atribuída
reino, também Diogo e Onega receberam deste último a responsabilidade pela primeira fase da construção de
– já adulto – a incumbência de criar o ilho Ramiro. San Salvador de Valdedios68.
E tal como o conde Nuno Nuñez, ele distancia-se da Diogo Fernandes e Onega tiveram quatro ilhos –
corte do rei Magno, aí reaparecendo ambos no ano Munia, Leodegúndia, Ximeno e Mumadona – sendo
909, quando está eminente a queda do monarca. talvez esta a respectiva ordem de nascimento, dado que
A presença do príncipe asturiano Bermudo é assim que os seus nomes aparecem alinhados num
67 É de anotar que nenhum documento lhe atribui o título de “conde”, documento em que todos eles iguram. A primeira
o que, por si só, não signiica que não tenha ascendido a tal dignidade. casou com Alvito Lucides, um neto de Vímara Peres.
A documentação é muito escassa e nem sempre era usado o respectivo
título (tal como os reis, muitas vezes, dispensavam a designação do cargo, Leodegúndia teve provavelmente como marido
icando-se pelo qualiicativo de “princeps”). Por outro lado, a sua condição Rodrigo Tedones, descendente do conde Afonso
de rebeldia não podia ser premiada pela monarquia. Dois dos seus ilhos,
Ximeno Dias e Mumadona Dias, receberam expressamente a menção do
estatuto condal. 68 REAL, Manuel Luís – Op. cit., 2013, p. 213-214.
88 Manuel Luís Real

“Betote”, o presor de Tuy. São eles os progenitores da última é aparentemente mais complexa. No entanto, o
celebrada D. Flâmula (ou Chamoa) Rodrigues que, topónimo – que hoje é irreconhecível na zona – parece
por testamento, deixa os castelos do Côa ao mosteiro relacionado com “manar ” e “manancial”, o que tem a
de Guimarães. O ilho varão de Diogo e Onega, ver com jorrar água, fonte, nascente, etc.. Por essa razão,
Ximeno Dias, casará com Ausenda Guterres, uma estamos inclinados a situar esta herdade para os lados
neta do presor de Coimbra – presumível adversário da Serra do Ladário, onde nasce uma série de ribeiros
do clã – mas já depois da morte deste e na tentativa, (da Gaia, de Io, do Esporão, da Alombada, de Cedrim,
porventura, de aproximação entre ambas as linhagens, da Ponte) e onde existem grandes concentrações
tornando-se assim cunhado de São Rosendo, o de água em Alagoa, na Vessada do Salgueiro e no
eminente abade de Celanova, bispo de Mondoñedo Lameiro Longo. Numa e noutra margem do Vouga, a
e, depois, bispo de Iria Flavia/Santiago. A condessa arqueologia identiicou pelo menos duas fortiicações
Mumadona, provavelmente a ilha mais nova, casa alto-medievais, respectivamente no castro da Coroa
com Hermenegildo Gonçalves, primo de Rodrigo (Arcozelo das Maias) e no Castelo da Pena, em Sever do
Tedones e igualmente neto de Afonso Betote69. Pelo Vouga 72. É incerta a existência de uma atalaia no castro
lado de sua avó paterna é, ainda, bisneto do conde da Várzea, perto de Reigoso73. Mas um pouco mais a
rebelde Hermenegildo (irmão de Vímara Peres). sul, o arqueólogo Jorge Adolfo Marques identiicou o
Jogando com esta rede familiar, o clã irá roqueiro castêlo de Alcofra74, que, com o de Guardão,
desenvolver um sistema de defesa periférico que, defendia um acesso alternativo ao centro político-
pela sua distribuição no território, poderemos militar da Terra de Lafões, através do Caramulo e pelo
considerar perfeito. O núcleo direccional encontra- importante vale de Besteiros, onde, não talvez por
se no médio vale do Vouga (Figura 15), centrado no acaso, encontramos o topónimo “Muna” no concelho
castelo de Lafões, com o apoio em algumas atalaias e de Tondela.
fortiicações secundárias. Junto à villa escolhida pelo É de referir, de passagem, que o vale do Vouga
líder do clã, que habitaria o paço de Bordonhos, havia foi partilhado com outros familiares desta estirpe,
provavelmente dois pontos importantes de postos de nomeadamente da casa de Gondesindo Eres, primo de
observação, no castro de Nª Sª da Guia e no castelo Mumadona, cuja descendência terá dado origem aos
de Nespereira70. Recorrendo à documentação relativa senhores de Marnel. Trata-se, pois, de um território
ao património da linhagem de Diogo Fernandes e onde os perigos, embora presentes, não incomodariam
Onega, veriica-se que à ilha mais nova e seu genro, tanto como em outras zonas mais expostas. Daí que
Hermenegildo Gonçalves, estaria coniada uma leve a pensar que possa ser esta a razão para que a sua
posição na zona de transição entre o médio Vouga tutela tenha icado a cargo da herdeira mais nova de
e a faixa costeira, donde poderia vir algum perigo. Diogo Fernandes e Onega75.
Na realidade, de acordo com a partilha de bens após
a morte do conde Hermenegildo, em 950, na parte
que coube a um dos seus ilhos, o diácono Ramiro,
contam-se quatro vilas na chamada região de Centum
Cortes (DC 61). São elas a villa Sanctus Martinus (GEPB), sv “Sever do Vouga”, v. 28, p. 607; e FERNANDES, A. de Almeida
(hoje o lugar de Ermida, junto a Sever do Vouga), a – Adosinda e Ximeno: Problemas históricos dos séculos IX e X. Guimarães:
Sociedade Martins Sarmento, 1982, p. 11-14.
villa de Spinitelo (ou “villa Idolo”, em Espindelo, freg.
72 EON, Indústrias Criativas (coord.) – Genius Loci: o Espírito do Lugar.
de Ribeiradio, conc. de Oliveira de Frades), a villa Sever do Vouga: Câmara Municipal, 2013, p. 130-131.
Quintanela (Quintela, na freg. de Arcozelo, em Oliveira 73 Agradecemos ao Dr. Filipe Soares, do Museu das Técnicas Rurais,
de Frades) e a villa de Manancos71. A localização desta todas as informações concedidas acerca do concelho de Oliveira de Frades.

69 Hermenegildo é ilho de Gonçalo Betotes, enquanto Rodrigo será 74 MARQUES, Jorge Adolfo de Meneses – Carta arqueológica do
descendente de Tedon Betotes. concelho de Vouzela. Vouzela: Câmara Municipal, 1999, p. 39.

70 Idem, 2013, p. 220-224. Para uma informação mais completa sobre o 75 Sobre estas várias famílias condais vejam-se, entre outros:
sistema defensivo em redor de Viseu-Lafões vd.: MARQUES, Jorge Adolfo FERNANDES, A. de Almeida – A nobreza na época vimarano-portugalense.
de Meneses – Castelos da Reconquista na região de Viseu. In Arqueologia Guimarães: Sociedade Martins Sarmento, 1981; MATTOSO, José – A
da Idade Média da Península Ibérica. Actas do 3º Congresso de Arqueologia nobreza medieval portuguesa. Lisboa: Editorial Estampa, 1981, p. 101-157;
Peninsular, v. 7. Porto: ADECAP, 2000, p. 113-129. e MATTOSO, José; KRUS, Luís; ANDRADE, Amélia – O Castelo e a Feira.
A Terra de Santa Maria nos séculos XI a XIII. Lisboa: Editorial Estampa,
71 Veja-se a propósito a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira 1989, p. 127-132.
O Signiicado da basílica do Prazo 89

19 - Vista isométrica da igreja de San Julian de los Prados, em Oviedo, que terá servido de modelo
para algumas basílicas da Beira interior (seg. Lorenzo Arias).

Chama a atenção a circunstância de, na distribuição de Córdova ou, pelo menos, teria o direito a não ser
das áreas de inluência deste grupo de “homens de hostilizado. As boas relações estabelecidas pelo clã com
fronteira”, não existirem traços de se terem interessado o al-Andalus estão mesmo comprovadas em S. Pedro de
pela zona da Serra da Estrêla e do distrito de Castelo Lourosa, onde existem peças avulsas que demonstram
Branco. Deve concluir-se, deste facto, que a fronteira ter existido uma possível torre, cuja cornija imitava as
com o Islão não seria causa de grande preocupação arcaturas usadas nos alminares cordoveses. Por im, é
para eles. Bermudo Ordonhes tinha anteriormente de ter em conta que um movimento de expansão para
dominado Astorga, num golpe de rebelião que terá sudoeste poderia ser encarado como um acto hostil,
durando uns sete anos, e fê-lo, segundo crónica de pelo que poderemos encontrar alguma lógica nesta
Sampiro, tendo árabes consigo76. Como inimigo ausência de dados relativamente às áreas em questão,
declarado de rei de Leon, seria um aliado natural apesar da grande mobilidade que, desde cedo, este
76 QUINTANA PRIETO, Augusto – La “Tirania” de Bermudo, el Ciego,
grupo evidenciará.
en Astorga. Leon, 1967, p. 113 (sep. de “Archivos Leoneses”, nº 41). O terreno mais crítico para o clã rebelde era, sem
90 Manuel Luís Real

20 - Análise comparativa das plantas das basílicas de S. Pedro de Lourosa, S. João do Prazo e S. Pedro de Balsemão
(arranjo gráfico de Cláudio Almeida).

sombra de dúvida, a zona atravessada pelas vias que desempenhava funções estratégicas mais relevantes era
ligavam a Leon à região de Viseu, seja através de naturalmente o de Trancoso, que servia de obstáculo
Zamora e cuja penetração se daria – na parte hoje à passagem de forças inimigas que descessem de
portuguesa – por Escarigo e Vermiosa77, seja sobretudo León, por qualquer das vias. O citado autor chamou
de Astorga, cujo trajecto seria eventualmente mais a atenção para a grande antiguidade da torre de
traiçoeiro. É esta, a nosso ver, a explicação para a menagem de Trancoso, avançando com a hipótese de
presença de tantos castelos e penelas na posse de se tratar de invulgar relíquia da lista de castelos que
Flâmula Rodrigues, quando, no ano de 960, faz deles pertenceram a Flâmula. Escavações arqueológicas
testamento ao mosteiro de Guimarães. A deovota recentes, realizadas dento da primeira cerca desta
Flâmula (ou Chamoa) era neta de Diogo Fernandes e fortiicação, aconselham a uma certa prudência a
Onega. Terá herdado esses bens de seu pai, Rodrigo esse respeito. Elas comprovaram que, até ao séc. VIII-
Tedones, que seria porventura o mais maduro dos IX, não existira qualquer ocupação anterior naquele
genros daquele prócere lafonense. Assim pode ser lugar, o que sugere ter sido ela logo efectuada para
entendida a circunstância de lhe estar atribuído todo ins militares. Além de cerâmicas de produção local,
o sistema defensivo da região entre Côa78 e Távora existem materiais do período emiral-califal, ou seja,
(Figura 16). O estudo da organização militar na Beira exactamente contemporâneos dos acontecimentos que
interior, no século X, já foi efectuado por outros autores, estamos a descrever. Todavia, apareceram estruturas
com destaque par Mário J. Barroca79. O castelo que mais antigas do que a referida torre, estruturas essas
que já seguiriam um amplo traçado, bem próximo do
77 É de supor que Almofala, Vilar Torpim e Pinhel desempenhassem
já um papel de relevo como atalaias ao longo do trajecto em território da cerca actual – pelo menos na parte oeste – e que
português. Para outros pontos de vigilância e sinalização estratégica vd. dispunha de contrafortes redondos. Foi encontrado
BARROCA, Mário Jorge – De Miranda do Douro ao Sabugal: Arquitectura
militar e testemunhos arqueológicos medievais num espaço de fronteira.
um deles, aliás, em posição incompatível com a porta
Portugalia, Nova série, v. 29-30. Porto (2008) p. 228. do recinto na baixa Idade Média80. O traçado da
78 Há a possibilidade de se estender até ao rio Águeda, como veremos
adiante. e povoamento no norte de Portugal. Portugalia, Nova série, v. 25. Porto
(2004) p. 189-191.
79 IDEM – Do castelo da Reconquista ao castelo românico (séc. IX-XIII).
Portugalia, Nova série, v. 11-12. Porto (1990-91) p. 94-98; Fortiicações 80 Poder-se-á ver nisto um indício de construção islâmica, do período
O Signiicado da basílica do Prazo 91

primitiva muralha apareceu em vários locais, sendo de


salientar que, durante as obras da DGEMN, surgiu um
fabuloso pano desta cerca, do qual restam fotograias.
Ao que parece, o recinto sofreu grandes reparações
em época posterior, porventura durante o reinado
de D. Afonso Henriques, pois apareceu uma mealha
mandada cunhar por este monarca, no fundo de uma
torre rectangular que substituiu o citado contraforte
redondo. O conjunto do espólio ainda se encontra em
estudo, pelo que é prematuro avançar com conclusões
deinitivas. À primeira vista, a construção da torre
de menagem poderá situar-se numa fase intermédia,
articulando-se com ela outras estruturas que lhe estão
adjacentes. Todavia, é ainda prematura a atribuição
de uma cronologia precisa, podendo esta ser mesmo
posterior à época de Flâmula, segundo hipótese
provisória avançada pelos arqueólogos responsáveis
pela escavação81. Não é de descartar também a
possibilidade de a primeira fase corresponder a uma
construção emiral, seguindo-se uma reforma à conta
dos repovoadores cristãos.
Outra importante fortaleza, a destacar-se no
conjunto, deverá ter sido o castelo de Numão. Na
documentação antiga aparece designado como
21 - Altar de S. Pedro de Lourosa, hoje desaparecido, onde estava
“Nauman” ou “Noman, cognomento Monforte”. Este esculpida uma representação da imperial Cruz de los Angeles, de
último apelativo, “Monforte”, aponta desde logo para Oviedo, inclusive com a precisa referência aos cinco camafeus
que lhe ornamentam os braços e a cruzeta
a singular importância estratégica da elevação onde (seg. Instituto Arqueológico Alemão de Madrid).
se implanta tal reduto. Por outro lado, o topónimo
“Nauman”, já referido em 960, deriva do antroponímico
árabe nu´mân, que signiica homem de “sangue Rei Nemão”, onde A. Sá Coixão encontrou vestígios de
[nobre]”82. A presença de um nome árabe dado tão uma “uilla” romana. A cerca do castelo primitivo, de
precocemente àquele castelo, não pode deixar de âmbito mais reduzido e traçado irregular, embora com
sugerir a sua origem anterior à primeira Reconquista do tendência para o rectângulo, pode seguir-se na parte
território. Ele derivará, quase seguramente, do próprio setentrional da fortiicação, no seu interior, através de
nome do líder que representava o poder emiral na pequenos trechos da muralha (Figura 26) e sucessivos
região. Aliás, o mesmo deixou a sua marca na toponímia entalhes na rocha. O levantamento está por fazer, mas
local, em Sabadelhe, no lugar conhecido por “Terra do viemos a constatar que a sua localização – aproximada,
embora não exacta – se encontra já sugerida numa das
emiral?
plantas gerais que acompanham a publicação sobre os
81 FERREIRA, Maria do Céu et al. – Castelo de Trancoso. Trancoso:
ARA-Associação de Desenvolvimento, Estudo e Defesa do Património
trabalhos arqueológicos na Vila Velha de Numão83.
da Beira Interior, 2011; FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos; Na cerca actual, existe também um pano de muralha
CATARINO, Helena – Cerâmicas altomedievais do castelo de Trancoso: relativamente antigo, do lado Norte, com aparelho não
uma primeira abordagem. Arqueologia Medieval, 12. Mértola (2012) 15-20;
FERREIRA, Maria do Céu; LOBÃO, João Carlos – Arqueologia no castelo isódomo, que poderá eventualmente corresponder ao
de Trancoso: novos dados para o estudo da fortiicação. In Fortiicações e início da remodelação do castelo após a conquista das
Território na Península Ibérica e Magreb (séculos VI a XVI). II Simpósio
Internacional sobre Castelos. Lisboa: Edições Colibri (no prelo). Beiras, por Fernando Magno.
Agradecemos à Drª Maria do Céu Ferreira todas as informações fornecidas
sobre esta importante descoberta. 83 LOPES, Isabel Alexandra; SANTOS, Heloísa Valente dos;
ABRANCHES, Paula Barreira – Vila Velha de Numão: Registo arqueológico
82 ALVES, Adalberto – Dicionário de arabismos da língua portuguesa. de um espaço duriense. Douro. Estudos & Documentos. 12:21 (2006) 229-
Lisboa: INCM, 2013, p. 608. 240.
92 Manuel Luís Real

22 - Fotografia do fragmento de ajimez de S. Martinho, nas Caldas de Lafões, colocado em confronto com a peça que lhe serviu de mod-
elo, existente na cabeceira de S. Salvador de Valdedios, nas Astúrias (arranjo gráfico de Cláudio Almeida).

As funções de Numão como cabeça de território acessos a Viseu e Lafões87. A este propósito, não deixa
continuarão na fase seguinte e, mesmo, durante a de ser também signiicativa a existência, a sudeste
primeira dinastia84. Somos, pois, de opinião que de Barca d´Alva, dos restos de uma presumível villa
Rodrigo Tedones85 terá sido mandante numa espécie romana no chamado “Vale Tedão”, onde Manuel Maia
de tenência defensiva entre o Douro e Trancoso, na encontrou muita tégula, uma tampa de sepultura e
primeira metade do século X, a qual estaria limitada mós manuais88. A verdade é que este território icou
a ocidente pelo rio Távora e a oriente pelo Côa, senão marcado por uma certa desconiança relativamente
mesmo o Águeda. Segundo João Soalheiro, com às respectivas aspirações autonómicas. Não deve ter
aparente fundamento, o termo de Numão chegaria até sido por acaso que, após a Reconquista deinitiva
ao rio Águeda, nos inícios da nacionalidade86. Embora no tempo de Fernando Magno, a “região a sul do
difícil de comprovar, é aliciante o estabelecimento de Douro, compreendida entre os rios Távora e Águeda,
uma ligação entre o topónimo “Castelo Rodrigo” e o não integrou o território portucalense, pelo que
nome do magnate que, por estas paragens, defendia os todo o repovoamento dessa área deverá ter sido da
responsabilidade de um presor leonês, existindo bons
argumentos que levam a admitir que os Bragançãos
84 No entanto, trata-se duma zona que na alta Idade Média vivia à tenham recebido o governo de todo o imenso
margem do poder central. Cfr. MARTIN VISO, Iñaki – En la periferia
del sistema: Riba Côa entre la antiguidad tardia e la alta edad media. In
território que “extremava” o lado oriental do Condado
JACINTO, R. ; BENTO, V., (coord.s) – I Conferência, Territórios e Culturas Portucalense, desde Chaves até Bragança, e daí para
Ibéricas. Porto: Campo das Letras - Guarda: Centro de Estudos Ibéricos,
2004, p. 168-208; IDEM – Espacios sin Estado: Los territórios occidentales
sul, ultrapassando o Douro entre aqueles dois rios, até
entre el Duero y el Sistema Central (siglos VIII-IX). In MARTIN VISO, ao Sabugal”89. É na qualidade de governador regional
Iñaki (ed. lit.) – Tiempos oscuros?. Territórios y sociedade n el centro de la que Fernão Mendes de Bragança concederá foral a
Península Ibérica (siglos – VII-X). Madrid: Sílex Ediciones, 2009, p. 107-
135. Numão, em 1130, numa altura em que enceta diálogo
85 É curioso registar, junto à ribeira de Teja e a par de Numão, a 87 Sobre as dúvidas que pairam acerca da origem deste topónimo
existência do topónimo “Conde”, onde apareceram duas inscrições vd: BORGES, Júlio António – Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo:
rupestres, condenadas a icarem submersas pela barragem do Catapareiro. Subsídios para a sua História. Figueira de Castelo Rodrigues: Câmara
86 Sobre as fronteiras do termo de Numão, vd: COIXÃO, António do Municipal, 2007, p. 83.
Nascimento Sá; TRABULO, António Adalberto Rodrigues – Evolução 88 BORGES, Op. cit., 2007, p. 49; COSME, Susana Maria Rodrigues -
político-administrativa na área do actual concelho de Vila Nova de Foz Entre o Côa e o Águeda: Povoamento nas épocas romana e alto-medieval.
Côa: séculos XII a XX. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal, 1995; Dissertação de Mestrado em Arqueologia apresentada à faculdade de
MARQUES, Maria Alegria Fernandes – As terras de Vila Nova de Foz Côa Letras da Universidade do Porto, 2002. (Texto Policopiado), p.54-55, 91,
na Idade Média. In SOALHEIRO, João (coord.) – Foz Côa: Inventário e 109.
memória. Porto: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, 2000, p. 19
; e SOALHEIRO, João – Arcipestrado de Vila Nova de Foz Côa. In Idem, 89 PIZARRO, José Augusto de Sotto Mayor – O regime senhorial na
p.32-36. Segundo este último autor, incluiriam mesmo terras na margem fronteira do nordeste português. Alto Douro e Riba Côa (séculos XI-XIII).
direita do rio Côa. Hispânia, 67:227 (sept.-dic. 2007) p. 867.
O Signiicado da basílica do Prazo 93

com D. Afonso Henriques, cuja irmã se consorciará


precisamente com este magnata.
O castelo de Numão, com auxílio de algumas esculcas
ribeirinhas – Nossa Senhora do Viso (Custóias), Alto
da Atalaia (Algodres), Atalaia (Almendra), etc. – teria
a função de controlar as passagens do Douro que
pudessem ser utilizadas por qualquer hoste inimiga
que, vinda do Norte, se dirigisse a Viseu. O testamento
de Flâmula deixa perceber que outras fortiicações
haveriam, para além das citadas. E nem todos os
castelos e penelas referidos no testamento (960) e
no inventário dos bens do mosteiro de Guimarães
(1059) se encontram devidamente identiicados.
Apresentamos a localização mais consensual90, sendo
de notar que existia um eixo principal de segurança,
que controlava a via que desde o Vale da Vilariça e da
barca do Pocinho, seguia para Muxagata e Trancoso.
Um outro eixo permitiria também fácil penetração,
a partir do planalto de Carrazeda e da travessia do
Douro junto à quinta do Vesúvio, para depois passar
no lugar da Torre (no cruzamento de Rumansil) e
não muito longe do castelo de Numão, seguindo para 23 - Capitel proveniente de uma desaparecida igreja, construída
no sopé do castelo de Sernancelhe, do mesmo clã senhorial, e
Penedono, Sernancelhe e Aguiar da Beira. Esta linha que se inspira em esculturas de S. Miguel de Lillo ou S. Salvador
de fortiicações, ao longo do seu trajecto, apresenta de Priesca, nos arredores de Oviedo
praticamente igual poder defensivo à da que bordejava (seg. Exposição de Arte Sacra, Sernancelhe, 1964).

a estrada anterior. Mas não foram descuidadas certas


No entanto, por alturas de Penacova existe uma
ligações secundárias, como o ramal que unia Penedono
portentosa barreira natural, em Livraria do Mondego,
a Trancoso, defendido pelo castelo de Terrenho, ou a
resultante da cadeia montanhosa formada pelas serras
estrada que vinha de Lamego, por Moimenta da Beira,
do Buçaco e da Atalhada, entre as quais o rio atravessa
a qual era vigiada pelo castelo de Caria. A apertada
num passo estreito, fácil de controlar. O mosteiro de
malha de fortiicações entre o Côa e Távora deve talvez
Lorvão, apesar de se encontrar a jusante de Penacova,
explicar as diiculdades sentidas posteriormente por
encontra-se protegido pelo mesmo sistema orográico,
Fernando Magno quando preparava a reconquista de
encaixado entre o Buçaco e a serra da Aveleira. E não
Viseu, pois viu-se forçado a mais do que uma tentativa,
obstante estar-se já a poucos quilómetros de Coimbra,
contornando o trajecto do Côa, sem dúvida o mais
parece que esta zona, na primeira metade do séc. X,
directo.
concretamente antes de 928 d. C., se encontraria
Uma outra zona sensível, do ponto de vista da
dominada pela estirpe lafonense, mais do que a
segurança de Viseu, no trânsito do séc. IX para o
coimbrã. Na verdade, as relações do clã – outrora
séc. X, seria a fronteira com Coimbra. A cidade
rebelde, mas nesta altura já perfeitamente integrado,
era dominada por uma estirpe rival, através da
graças à acção de Ordonho II e do príncipe Ramiro
descendência de Hermenegildo Guterres, o presor
– com o mosteiro de Lorvão parecem ser anteriores
da cidade e um dos homens em que Afonso Magno
às da casa de Coimbra. Estando essa dependência
mais coniava, a ponto de o nomear seu mordomo.
relacionada com alguém que se tornou malquisto de
Ora, a melhor ligação entre Viseu-Lafões e Coimbra
um sector da sociedade, avançamos com a hipótese
era feita através dos vales do Dão e do Mondego.
de tal circunstância poder ter sido responsável pela
possível damnatio memoriae que Maria João Branco
90 Acrescentamos o castelo de Sª Justa, em Marialva, na convicção de que
a sua posição estratégica e a antiguidade do lugar convidam a considerá-lo julga entrever, relativamente aos fundadores do
do mesmo período. Os casos de localização mais duvidosa são Vacinata
(Muxagata), Amindula (Meda) e Alcobria (Alcarva).
94 Manuel Luís Real

24 - A igreja-anta da Senhora do Monte, em Penela da Beira, construída provavelmente pelos mesmos patronos e que preserva algumas
características de matriz asturiana.

mosteiro91. Ora, na data referida de 928, a condessa de Miranda” (LT 43). A defesa desta barreira e o
Onega (já viúva) e seus quatro ilhos fazem doação controlo das duas vias de penetração, a norte e sul de
ao mosteiro de Lorvão da parte que lhes pertencia Penacova, seriam assegurados por atalaias no alto Viso
em Vila Cova. E fazem-no pro anima dominissimi e na serra da Atalhada. A primeira, vigiava também a
nostri domini Ueremudi (Bermudo Ordonhes) e para estrada secundária que, a norte do Buçaco, se dirigia
cumprir uma sua última vontade (LT 33)92. O vizinho em direcção a Mortágua e Santa Comba Dão, mas
castelo de Penacova, que no séc. X se designaria “torre tinha como papel principal defender o caminho que,
de Miranda” (LT 37), devia nesta altura estar sob a junto à portela da Oliveira, atravessava a própria serra.
alçada do ilho varão, o conde Ximeno Dias. Só assim À margem desta via, já em zona de protegida, situava-
se compreende que, em 936, seja ele o juiz de uma se a villa de Gondelim (“Gundelini uel Palacio” – LT
disputa sobre os limites entre Vila Cova e a villa de 50), onde icaria um paço que, pelos anos de 984-985,
Alcainça (LT 36), villa esta que icava à sombra do estava na posse de uns netos de Munia Dias e Alvito
castelo e que um documento de 980 situa “in territorio Lucides (LT 48-50). A própria ilha e genro de Diogo
Fernandes, os citados Munia e Alvito, entre 951-955
91 BRANCO, Maria João – Reis, condes, mosteiros e poderes: O irão doar ao mosteiro de Lorvão outras vilas localizadas
mosteiro de Lorvão no contexto político do reino de Leão (secs. IX-XI).
In Liber Testamentorum Coenobii Laurbanensis (Estúdios). Leon: Centro um pouco mais a montante, em Midões (“cum suos
de Estúdios e Investigación “San Isidoro”, 2008, p. 32-39. Doravante, monasterios”…) e em Touriz (DC 100). Ficavam
referiremos os documentos do Liber Testamentarum, pela sigla LT, seguida
do número respectivo. ambas nas imediações de Bobadela, a splendidissima
92 É esta a passagem em que referem estar a cumprir a vontade de civitas romana, cuja vida não sofreu interrupção
Bermudo Ordonhes: “Nos uero agnoscentes quod noster domno iam ea e que, na alta Idade Média, serviu de espólio para o
dederat ad ipso monasterio in uita sua et non potuit istum testamentum
complere, post hec adinplebimus nos quod ille inquoabit et nos et nos (sic)
aproveitamento de elementos arquitectónicos em
adirmabimus”. construções coevas – com destaque para S. Pedro de
O Signiicado da basílica do Prazo 95

25 - O mesmo templo, cuja capela-mor aproveita a câmara do dólmen, possuía sobre o chapéu desta última,
uma câmara superior de tipo asturiano.

Lourosa, quase seguramente ligada à mesma família a principal de ligação à “via da Prata”, já em território
patronal93 – e que pode também ter servido de assento leonês, mas, na zona, partia dela um ramal para Viseu.
a membros do clã94. No mesmo documento é referida Vindo de Coimbra, este eixo viário atravessava o festo
uma outra herdade, a villa que vocitant Flamianes, da serra da Atalhada e, pela ponte da Mucela (de
com o seu mosteiro, ornamento e biblioteca. Ficava musalla, “lugar de oração”) dirigia-se a S. Martinho da
junto ao rio Alva, tendo-a Rui de Azevedo identiicado Cortiça, Lourosa e Bobadela. Aqui divergia o referido
com Friúmes. Embora tivéssemos, no início, alguma ramal, inlectindo para norte e passando pelo “porto
diiculdade em aceitar esta hipótese, achamo-la cum suo barco” de Midões (DC 100) e por Oliveira do
possível depois de descartar outras alternativas e por Conde, a caminho de Viseu. A penúltima localidade,
veriicar que se situa na proximidade do actual “Vale de acordo com um documento do Livro Preto da Sé
do Conde”, justamente sobranceiro ao citado aluente de Coimbra chamava-se “villa de comite” já em 1105
do Mondego. A villa de Friúmes ica numa zona (LP 301). Na impossibilidade de sabermos a que conde
acidentada, na outra margem do rio e quase simétrica se referia o topónimo, deixamos a hipótese de aludir
a Gondelim, bem perto da já secular via colimbriana, a um membro da estirpe de Munia ou, mesmo, da
à qual ela serviria de sentinela no limiar do território do seu cônjuge Alvito. Isto porque a villa Teodorici
controlado pelo clã lafonense. Esta antiga estrada era (Touriz), referida no DC 100, terá recebido o seu
nome do conde Teodorico Lucides95, que devia deter aí
93 REAL, Manuel Luís – Op. cit, 2012, p. 108 e114-117.
também uma parcela, juntamente com seu irmão, pois
94 ALARCÃO, Jorge – A splendidissima civitas de Bobadela (Lusitânia).
Sep. de Anas, 15-16. Mérida (2002-2003), 155-180; GOMES, Mário Varela são ambos ilhos do conde Lucídio Vimaranes, aquele
e DIAS, Maria Manuela Alves – Jarro litúrgico, visigótico, de Bobadela
(Coimbra). In IV Reunió d´Arqueologia Cristiana Hispânica. Barcelona: 95 Este conde reaparece no Livro Preto, como testemunha de um
Institut d´Estudis Catalans; Universitat de Barcelona; Universidade Nova documento sobre uma villa da zona de Cantanhede, e é referido juntamente
de Lisboa, 1995, p. 91-98. com seus irmãos em documentos do mosteiro de Celanova.
96 Manuel Luís Real

a quem provavelmente foram retirados os direitos de são de apropriação muito precoce ou derivam de uma
sucessão no condado de Portucale. aquisição posterior à deposição de Afonso Magno.
A emergência desta elite beirã, no séc. IX-X, vai Um pouco mais tarde, os domínios de família irão
conduzir à ocupação de um espaço que, em grande conhecer uma evolução, começando a dispersar-se,
medida, se desarticulara após a crise do Império não apenas entre os herdeiros, mas também através de
e a instalação dos reinos bárbaros, mas sobretudo alienações. O exemplo mais expressivo encontra-se nas
na sequência das perturbações causadas pela disposições de Flâmula Rodrigues, que no testamento
invasão árabe da Península. O seu poder estrutura- mostra vontade de que parte desse património
se a partir de Lafões e vai irradiar de acordo com fosse usado para obras de caridade. Tratava-se,
objectivos estratégicos precisos, primeiro defensivos precisamente, dos castelos “in ipsa extremadura”
e, posteriormente, decerto já com um plano de e algumas “populaturas” a eles submetidas, que,
senhorialização do território. O ponto de viragem segundo a doadora, se deviam “omnia uindere et
parece localizar-se imediatamente após 910, ano da pro remedio anime nostre captiuos et peregrinos et
morte do rei Afonso Magno. Em estudo anterior, monasteria distribuere in ipsa terre” (DC 81). Em 960,
adiantamos a hipótese de a árida inscrição de 912, aparentemente, se já não era considerado obsoleto o
da igreja de S. Pedro de Lourosa, poder corresponder sistema defensivo de entre Côa e Távora, havia pelo
ao momento da fundação solene da basílica – e não menos o sentimento de que já não serviria para o im
à sagração – presumivelmente com a passagem do para o qual foi criado98. A expectativa de Flâmula de
futuro rei Ordonho II, em cuja corte e no referido que o mosteiro de Guimarães alcançaria a venda desses
ano já aparece o príncipe Ramiro, até então criado no bens, fundamentar-se-ia na consciência de que a
seio da família de Diogo Fernandes e Onega. Também sociedade senhorial estava a evoluir, com a emergência
em Trancoso existira outra basílica que forneceu uma de pequenos poderes regionais, susceptíveis de estarem
inscrição fundacional, hoje desaparecida, mas que interessados em adquirir os instrumentos necessários
icou transcrita com algumas imprecisões e se presume ao exercício de tais poderes. Mas o certo é que os
igualmente reportar ao ano de 91296. A ser verdadeira castelos voltam a aparecer na posse do mosteiro, em
a data crítica da epígrafe de Trancoso, teremos a 1059, icando nós a conhecer o nome de mais um, que
conirmação do que, com alguma lógica, se adiantou não chegou a ser citado no testamento de Flâmula:
a respeito de Lourosa. O im do reinado de Afonso III, Terrenho. Daí poder-se concluir que nunca terão sido
o Magno, pode ter representado o reforço do poder vendidos apesar das disposições nesse sentido, ou que,
desta família e os três lustros que se seguem devem talvez melhor, foram ocupados pelas forças cristãs
coincidir com a airmação do seu território “in inibus após a reconquista das Beiras por Fernando Magno e
Gallaeciae”, decerto com o beneplácito e proveito entregues ao mosteiro, ao abrigo do direito de presúria
do próprio Ordonho II. No im do reinado deste e com o argumento de outrora terem estado na posse
monarca a região encontrar-se-ia já suicientemente do cenóbio vimaranense.
amadurecida para a experiência autonomista do rei
Ramiro, em Viseu, antes de ascender ao trono de Leon.
Este curto período, entre 926-930, terá sido igualmente
responsável para o relançamento da descendência de
Diogo Fernandes e Onega no Entre-Douro-e-Minho,
a ponto de poder tomar as rédeas do condado de
Portucale.
Algumas passagens da documentação relativa aos santom quantum ibidem obtinuit Mito et Adosinda de dato de nostros
parentes” (DC 71);“In prato antile… ecclesia que fuit de parentes nostros
herdeiros deixam entrever a existência de propriedades uocabulo sancti iohannis” (DC 76); “villa de lalin sit in arbitrio de ipsa
de Diogo Fernandes e Onega bem para lá da Beira tia domna Mummadomna cum as villas que ibidem sunt testatas retorta
castro nugaria portella teobolosa… sicut illas ganauit auios nostros didaco
interior97. No entanto, subsiste a dúvida se esses bens fredenandiz et coniuge onnice, ad salizeta barrantes mastudo, ad pessegario
moledo, ad azer bretenandus, ad orreo villa mediana, ad palatiolo padule
96 BARROCA, Mário Jorge Barroca – Op. cit., , v. 2, t. 1, 2000, p. 34. et palatio…” (DC 81).
97 Por exemplo: “Tertia parte in villas de subpratello quomodo incartarunt 98 O destino histórico da região, com a reconquista das Beiras por
ad parentes nostros”…”In prato antile…et alia que comparauimos de Almançor, fez com que estes castelos regressassem à função para que foram
segiones etiam et ecclesia que fuit de parentes nostros”…”In ripa sause uilla criados, de novo como sistema defensivo face ao reino de León.
O Signiicado da basílica do Prazo 97

26

de Vila Nova de Foz Côa (Figura 16).


6. AS PROPRIEDADES DO CLÃ NO ALTO Quanto a Sequeira, uma evolução de “Vilar Sico”,
DOURO situa-se num importante cruzamento de vias, tendo
aparecido nas proximidades uma sepultura aberta na

F
lâmula Rodrigues incumbe suas tias rocha, nas Ladeiras99.
Mumadona Dias e Godo Eriz, na qualidade A respeito de “Eclesiola” não nos foi possível
de testamentárias e em nome do mosteiro de encontrar hoje o topónimo “Grijó”, tanto em Vila Nova
Guimarães, de providenciar a venda de um número de Foz Côa, como nos concelhos vizinhos. Colocamos
não quantiicado de castelos, penelas e povoas “in a hipótese de se tratar precisamente do Prazo, não
ipsa stremadura”, para que os benefícios colhidos da apenas por até agora – se excluirmos a Ervamoira –
respectiva transacção servissem para remédio de sua constituir um raro exemplo de igreja alto-medieval
alma e, como já dissemos, fossem distribuídos pelos na região, mas também por existirem antecedentes
cativos, peregrinos e mosteiros. O Prazo terá sido um paleocristãos (em sentido lato) que poderiam justiicar
desses monasteria , “in ipsa terra”, a que se refere a a consolidação do topónimo “eclesiola”, já em meados
ilha de Leodegúndia e Rodrigo Tedonis. No entanto, do séc. X. Além disso, há que recordar que o bispo
a sua menção não aparece explícita no testamento de Lamego se refere provavelmente a este templo,
ou se lá está, pelo menos, apresenta-se com alguma no séc. XIII, como uma “ermida”, o que faz supor
diiculdade de interpretação. São deixadas ao cenóbio
vimaranense, no território “inter ambos riuulos” – isto 99 Na fronteira com o concelho de Meda existe o lugar de Sequeiros
e, um pouco adiante, na Fontelonga, foi descoberta uma necrópole em
é, entre o Côa e o Távora – os lugares de “sabadelli, Muimentos, com uma vintena de sepulturas. Estamos mais inclinado,
vilar sico, ueiga, anta et eclesiola” (DC 81). Os três contudo, para considerar “Sequeira”, devido à sua estratégica face à rede
viária. A propósito do terceiro topónimo, há também a possibilidade de
primeiros não parecem causar grande dúvida. São as encontrar uma alternativa em “Cortes de Veiga”, no Pocinho. Contudo,
povoações de Sabadelhe, Sequeira e Veiga, no concelho afasta-se um pouco da área em estudo.
98 Manuel Luís Real

a continuidade da respectiva imagem como uma santuário. Assim, a anta maior foi adaptada a templo
“igrejinha”. Damos a identiicação como provável, mas cristão, aproveitando a câmara dolménica para capela-
não absolutamente segura. mor. Porém, como o corredor de acesso estava virado a
Outro problema reside na identiicação do oriente, icou no exterior, desenvolvendo-se a nave da
lugar “Anta”. O concelho de Vila Nova de Foz Côa igreja para o lado contrário (Figura 24). Trata-se de um
caracteriza-se pela total, ou quase total ausência, de templo de dimensão apreciável e que apresenta uma
monumentos dolménicos. O casal Leisner indica série de características que apontam, precisamente,
uma anta em Santa Comba, no entanto de localização para uma construção alto-medieval. O aparelho é bem
desconhecida100. Existem alguns topónimos, todos característico, sendo muito semelhante ao que então
eles no estreito planalto das Chãs, que indiciam a se praticava na arquitectura asturiana, com os cantos
possibilidade de ter havido uma ou outra sepultura reforçados por boa silharia – por vezes, alargada à
dolménica, mas a base é muito pouco segura. Parece- fachada principal, como em Valdedios – e com os
nos também de descartar a hipótese de se tratar da muros construídos por alvenaria de pedra miúda. Além
freguesia de “Antas”, no concelho de Penedono, não do mais, o aparelho da Senhora do Monte mantém
apenas por se tratar do corónimo no plural, mas grandes ainidades com o pano da primeira muralha
sobretudo por esta localidade icar já muito longe, de Trancoso, descoberto durante as obras de restauro
bastante a sul da sede do concelho101. A invocação da DGEMN e cuja fotograia nos é revelada pelos
de um monumento dolménico para nome de lugar, arqueólogos que recentemente escavaram no castelo103.
só pode ter duas explicações: ou era muito raro na Mais interessante, ainda, é o facto deste templo ter
zona, para poder servir de referência, ou então seria possuído uma câmara alta, sobre a capela-mor, da qual
algo a que, por alguma razão especial, se atribuía uma ainda se preservam evidências sobre a laje de cobertura
importância extraordinária. Estamos mais inclinado do dólmen (Figura 25). Estas enigmáticas câmaras
para esta última possibilidade. E, procurando qualquer constituem uma das marcas estilísticas identitárias da
situação do género, fomos dar com um exemplar de arquitectura asturiana. Encontram-se em igrejas como
importância excepcional no planalto da Senhora do Santullano, Nora, Valdedios, Tuñon ou Priesca104.
Monte, em Penela da Beira. Muito próximo, existia aí Tomando como referência estas últimas, é provável
uma “populatura” – Penela Vedra – que se implantou que a abertura de acesso fosse uma fenestração virada
ao abrigo de um castelo roqueiro ainda hoje com a leste, mas já nada resta na Senhora do Monte, dado
grande notoriedade. Aí haveria um templo dedicado que este compartimento superior se encontra muito
a Santo Tirso. E em redor, existiriam inúmeros casais, destruído. Mas a base do muro está intacta, assim como
como o provam a presença de uma série de sepulturas nos restantes lanços, excepto parte do muro norte, que
escavadas na rocha em Fonte Fria, Cômbaros, Cadestal, tinha entrado em ruína e foi restaurado há poucos
Tapada do Vento, Senhor da Agrela e Vale de Pardieiros. anos105. No templo não existe qualquer arco peraltado
Algumas unidades de povoamento deveriam ter ou em ferradura, vulgares nesta época. A razão está
uma certa expressão, como o indicará este último na circunstância de não existir arco triunfal na capela-
topónimo. E precisamente junto a este fértil vale, já em mor, devido ao aproveitamento da laje de cobertura da
zona plana e pouco acima do “paúlo”, iria nascer um anta, e ainda do facto de as portas serem rematadas
outro templo em honra da Senhora do Monte. Trata- por poderosos lintéis. Mas este tipo de solução
se de um lugar onde existia uma necrópole do período também era utilizado na época, como pode ver-se na
megalítico102, que a devoção popular transformou em ermida de San Xoán do Cachón (Orense), em que o
100 Agradecemos ao arqueólogo António Faustino Carvalho esta e 1910, perdendo o telhado cinco anos mais tarde. No museu concelhio, em
outras informações sobre a cultura dolménica na região. Penedono, é relatado que no dia da Senhora do Monte se reuniam nesta
101 Não podemos deixar de referir que nesta freguesia existem capela sete cruzes, que vinham em procissão das sete freguesias vizinhas.
sepulturas antropomóricas cavadas na rocha, o que aponta também para 103 Cfr. FERREIRA & LOBÃO – Op. cit., 2013, Figura 10b.
uma ocupação alto-medieval.
104 A título de exemplo, cfr: ARIAS, Lorenzo – Prerrománico asturiano:
102 CARVALHO, Pedro Manuel Sobral de – A necrópole megalítica da El arte de la Monarquia Asturiana. Gijón: Ediciones Trea, 1993.
Senhora do Monte (Penedono-Viseu).: Um espaço sagrado pré-histórico na
Beira Alta. Viseu: Centro de Estudos Pré-Históricos da Beira Alta, 1994. 105 Deste restauro, que não era fácil, devido à confusão gerada pela
Este arqueólogo efectuou escavações na área da igreja, tendo aparecido ruína junto à base da câmara dolménica, resultou uma reconstituição que
moedas desde D. Sancho II a D. Sebastião. A intervenção forneceu também julgamos defeituosa, pois não nos parece que o muro fosse aí arredondado,
espólio de época moderna, já que a igreja só foi abandonada entre 1900- tão diferente da solução preservada no lado sul da capela-mor.
O Signiicado da basílica do Prazo 99

lintel foi legendado para comemorar a sua construção Lamego, a menos de uma légua da igreja pré-românica
no ano 918, pelo abade Frankila106. Existe ainda outro de S. Pedro de Balsemão. Quanto à “villa cersaria”,
dado, da maior importância, para considerar neste o seu nome indica que era um local produtor de
período a adaptação da Anta a templo religioso. É que, cerejas. Esta característica era, na toponímia medieval,
relativamente próximo, existe a topónimo “Caniça”, designada não apenas por “Cersaria”, mas ainda como
o qual não deixa margem de dúvida sobre o seu “Cerdeira” “Cerzeira” ou “Zerzeira”. De acordo com
signiicado, que é “Igreja” em linguagem moçárabe. A. de Almeida Fernandes havia precisamente o lugar
Não é pensável que tal designação tenha tido origem de Zerzeira junto a Lamego, no limite das freguesias
noutra época senão entre os séculos VIII e XI. A sua de Cambres e de Sande, e que veio a pertencer ao
provável utilização posterior, como igreja paroquial, mosteiro de Tarouca110. Atendendo à sua implantação,
pode estar indiciada na sobrevivência do muro que na margem esquerda do rio Balsemão e próximo às
delimitava o passal107. Tudo leva a crer, por conseguinte, restantes vilas, deve ser neste local que se situava a
que o topónimo “Anta” usado no testamento de herdade de Flâmula. É possível que tais propriedades
Flâmula se possa reportar a este monumento. A as tenham recebido por herança de seus pais ou avós,
proximidade de uma Penela108 leva a pensar, também, já que apenas possuía metade de Valdigem, podendo
que esta seria uma daquelas que apenas aparecem estar a partilhá-la com algum parente, pois há outros
genericamente designadas na doação de Flâmula, sem familiares com bens na proximidade. Era o caso
precisar o nome. Finalmente, a Senhora do Monte ica da “villa samota juxta lumen Durio” (Samodães)
a uma quase equidistância de Veiga ou Vilar Seco e de que deve ter pertencido a seu primo Ximeno e foi
Trevões, todas elas propriedades de Flâmula109. permutada com o rei Ramiro (DC 81)111. E era o caso
Por documentação posterior a meados do século do mosteiro de Bagaúste, doado por sua tia Munia ao
X – e também da centúria seguinte – sabe-se que os mosteiro de Lorvão (LT 57)112. Nesta doação, Munia
descendentes de Diogo Fernandes e Onega eram inclui outros bens vinculados ao cenóbio de Bagaúste,
possuidores de numerosas propriedades ao longo mas na margem oposta e um pouco a jusante: “mea
do vale do Douro. Não iremos detalhar este aspecto, ecclesia, uocabulo Sancta Eolalia…et terras qui iacent
porque parte delas icam fora da área em análise, e usque in muro qui divident cum uilla de Ciuitadelia et
ica por saber em que momento começaram a ser de Porta de Sancto Uincenti”. Esta villa de Cidadelhe
adquiridas. Mas importa regressar ao testamento de corresponde ao lugar onde se implantava o castelo de
Flâmula, para ver o que se passava na região de Lamego. Aliobrio, na margem direita do Douro. Foi aqui que
Segundo a referida versão, copiada para o Livro de Ordonho II – logo após a morte de seu pai, Afonso
Mumadona, a sobrinha desta veio a legar ao mosteiro Magno, e como monarca independente na Galiza –
de Guimarães “in illa extrema” as seguintes herdades: reuniu uma cúria régia, no ano de 911, com “omnes
“villa cersaria, treuules, baldoigii medium” (DC 81). 110 FERNANDES, A. de Almeida – Taraucae Monumenta Histórica.
A última propriedade refere-se à actual Valdigem Braga: Câmara Municipal de Tarouca, 1991-93, v. I/1, p.84 e v. I/3, p. 134-
137.
e, como já vimos acima, a precedente diz respeito a
111 Ximeno Dias tinha-a oferecido à sobrinha Onega, que ingressara no
Trevões. Esta herdade pertencia ao actual concelho mosteiro de Guimarães. Posteriormente, a villa serviu para que Onega e
de S. João da Pesqueira e a outra icava às portas de sua mãe, Mumadona, permutassem com o rei Ramiro a villa de Creixomil.
Esta “villa Samota” tem sido identiicada com “Samoça”, no lugar da freg.
106 FREIRE CAMANIEL, José – El monacato gallego en la alta Edad de Ariz, conc. do Marco de Canaveses. Em nenhuma parte do documento
Media. A Coruña: Fundación Pedro Barrié de la Maza, 1998, tomo 1, p. é citada juntamente com outros bens situados “in ripa tameca”, local onde
227-236. se situa Samoça (apesar de também relativamente próxima do Douro). Por
107 Chamou-nos a atenção para este dado o amigo António Lima, numa outro lado, Samodães ica expressamente na margem do rio Douro (ao
visita conjunta que izemos ao local, tendo-se veriicado que o templo se abrigo do castelo de Penajóia) e, do ponto de vista linguístico, parece-nos
situa no meio de um círculo murado, precisamente a doze passos da igreja. muito mais pertinente a evolução de uma consoante dental para outra do
mesmo tipo. Quanto à terminação -ães é algo semelhante, por exemplo,
108 No reduzido espaço que medeia entre este castelo roqueiro e àquela que, de “Baloca”, terá dado “Balugães”.
a Senhora do Monte, está um outro morro que o povo designa como
“Pendão”, eventualmente a recordar que tenha servido outrora para 112 O resumo deste documento, na recente publicação do Liber
sinalização à distância, dirigida a outras posições estratégicas. Testamentorum (Op. cit,, p. 677-680), contem uma imprecisão. Considera
Munia casada com um tal Bermudo. Ora Munia estava casada com Alvito
109 No inventário dos bens do mosteiro de Guimarães (DC 420), de 1059, Lucides, que até subscreve o documento. A confusão surge da respeitosa
aparecem na mesma zona outras duas herdades – Spinosa (Espinhosa, em referência à memória de Bermudo Ordonhes: “pro remedio defunctorum
São João da Pesqueira) e Nace (que não logramos localizar). Elas podem meorum… et pro memoria dominissimi mei domini Ueremudi, diue
ter sido doadas por outros familiares, como está provado para mais alguns memorie”. O príncipe Bermudo, que se havia rebelado contra o rei seu
bens no vale do Douro, mas cujo testamento não chegou até nós. irmão, já havia falecido há mais de trinta anos.
100 Manuel Luís Real

episcopi, comites, et capitanei territorio Galeciense” asturianos. Isto dever-se-á, antes de mais, à igura
(DC 17). Todos estes dados comprovam tratar-se tutelar do príncipe Bermudo Ordonhes, que vai
de uma zona altamente estratégica, numa época de permanecer na estremadura beirã cerca de uns
transição na vida do reino asturo-leonês (Figura 18). trinta anos. Pensamos, também, que possa ter sido
O historiador Almeida Fernandes chega a colocar a o fundador de San Salvador de Valdedios (Astúrias),
hipótese de nesta altura, ou seja, na primeira metade templo posteriormente coniscado e que apresenta
do séc. X, a tenência de Lamego ter estado cometida claros indícios de uma “damnatio memoriae” sobre
ao conde Rodrigo113. Parece-nos uma hipótese mensagens epigráicas da primeira fase da construção.
plausível, como extensão da mandatione de entre Côa É possível que a sua primeira fundação, em território
e Távora114, porventura na época em que Ramiro se hoje português, tenha sido logo a igreja de S. Martinho
torna rei, com capital em Viseu. Nesta ocasião tem das caldas de Lafões, cuja fraca qualidade construtiva
todo o sentido o reforço do papel de liderança de Viseu revela bem as diiculdades em que se poderá ter
sobre a região Douro, como mais a norte, no coração deparado com a mão de obra local, numa altura em
do território portucalense, o que sucederá em 926 com que ainda seria um refugiado com cabeça a prémio,
os condes Hermenegildo Gonçalves e Mumadona, a por parte do seu irmão, Afonso Ordonhes, o rei
quem, por iniciativa de Ramiro, é entregue a terra de Magno. Com a morte deste, é de presumir que se tenha
Guimarães115. Aí irá nascer – após Lorvão – o segundo iniciado um processo de airmação regional de todo o
grande cenóbio da região a sul do rio Minho, o qual clã, o qual pode estar relacionado com um impulso no
sustentará o reforço do poder desta família, cujo movimento construtivo, em diversos locais da Beira
destino acompanha o evoluir do próprio senhorio do interior. Encontrar-se-á nesta situação a basílica do
condado de Portucale. Prazo, eventualmente à semelhança das de Lourosa,
Trancoso, Sernancelhe, etc.
Os elementos revelados pela escavação no Prazo não
permitiriam, só por si, adiantar muito mais do que até
CONCLUSÃO ao momento havia sido revelado. Todavia, a reanálise
dos dados existentes, à luz de um contexto mais

A
expansão do poder fundiário da família amplo – histórico, arqueológico e artístico – levou a
estabelecida nos inais do séc. IX na terra conclusões até há pouco insuspeitadas, inclusivamente
de Lafões, numa situação de rebeldia para o autor deste estudo. E estamos convicto de que,
contra o rei Afonso Magno, mostra que existiram com o imprescindível apoio do arqueólogo responsável
concentrações de propriedade sua em zonas onde se pela estação arqueológica, ainda se poderá chegar
vieram a implantar as três basílicas aqui analisadas mais longe, reconstituindo alguns passos do processo
e que parecem pertencer a uma mesma linha da escavação, interpretando-os, e publicando outros
programática: Lourosa, Balsemão e Prazo. Por outro registos de pormenor efectuados durante os trabalhos
lado, em todos os lugares onde foi possível localizar de campo. Mas, desde já, uma coisa é certa: a estação
vestígios materiais de construções patrocinadas por arqueológica do Prazo, tal como icou revelado para
membros do clã – arquitectónicos e ornamentais – horizontes da Pré-história, impõe-se também como
são visíveis inluências quase directas de modelos um local cimeiro no âmbito da arqueologia Alto-
Medieval, em território português.
113 Veja-se, por exemplo, GEPB sv “Parada do Bispo”.
114 Independentemente da identiicação do verdadeiro protagonista, a
famosa lenda de D. Tedo, referente ao concelho de Tabuaço, pode muito
bem estar relacionada com o domínio da descendência de Rodrigo Tedonis
na região entre o Távora e Lamego, pela extensão natural do seu senhorio
desde terras do Côa.
115 Foi do curso médio do Vouga que partiram Mumadona Dias e
Hermenegildo Gonçalves, para ocupar funções condais a norte do Douro
e com sede em Guimarães. Deixados, quando ainda eram novos, numa
posição relativamente secundária face às responsabilidades cometidas
aos restantes ilhos e genros de Diogo Fernandes e Onega, eles serão
considerados por Ramiro, em 926, como os adequados representantes da
corte de Viseu no coração do condado de Portucale.
O Signiicado da basílica do Prazo 101

Universidade Católica, Centro de Estudos de História


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104
Vias medievais
nos coutos monásticos de
S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas
texto: Ana Sampaio e Castro
Doutoranda em Arqueologia Histórica na F.L.U.P.
(ana.sampaioecastro@gmail.com)

Resumo Abstract
Apresenta-se os resultados de um primeiro estudo his paper presents the results of a irst study of the
acerca da rede viária medieval nos coutos dos mostei- medieval road network in the “coutos” of the Cister-
ros cistercienses masculinos de S. João de Tarouca e cian monasteries of S. João de Tarouca and Sta Maria
Sta Maria de Salzedas (Tarouca, Viseu). de Salzedas (Tarouca, Viseu).

Palavras-chave Key words


Mosteiro; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salze- Monastery; S. João de Tarouca; Sta Maria de Salze-
das; Couto; Medieval; Vias das; “Couto”; Medieval; Roads.
106 Ana Sampaio e Castro

para o desenvolvimento destes mosteiros. Tendo


1. INTRODUÇÃO também alterado as relações Homem/Natureza,
partindo assim do pressuposto lógico de que os grupos

O
s mosteiros cistercienses masculinos humanos são organismos vivos capazes de modelar o
de S. João de Tarouca e Sta Maria de seu habitat ou, mutuamente, a inluência que o meio
Salzedas localizam-se nas freguesas ambiente desenvolve nas próprias atividades humanas,
homónimas, concelho de Tarouca, distrito de Viseu. sejam elas de subsistência ou de construção.
A primeira notícia de que dispomos relativamente ao
primeiro data de 1140, quando D. Afonso Henriques 2. METODOLOGIA
outorgou a carta de couto, dando-se o início da sua

A
construção em 1154. No século XIII o couto inicial, metodologia seguida para o estudo da rede
de tamanho reduzido, foi ampliado (CASTRO, 2009: viária medieval nos coutos monásticos
19-23), passando de uma área de cerca de 11 km2 para de Salzedas e S. João de Tarouca abarcou
53 Km2. as seguintes fases de pesquisa: recolha bibliográica e
O mosteiro de Sta Maria de Salzedas recebe de documental; topograia, foto-interpretação e análise
D. Teresa Afonso a carta de couto em 1156116, sendo da paisagem; toponímia e hagiotoponímia e prospeção
transferido de sítio da Abadia Velha para o local atual arqueológica.
alguns anos mais tarde, iniciando-se a construção em Relativamente à recolha documental esta centrou-
1168. O seu couto abrangia uma área correspondente se nas já referidas cartas de couto, presentes nos
a 34 Km2, sendo o limite Sul correspondente à linha Documentos Medievais Portugueses de Rui Pinto
Norte do couto ampliado de S. João de Tarouca de Azevedo (1958); no cartulário medieval do
(Figura 1). mosteiro de S. João de Tarouca, publicado por A. de
Desde a fundação até à extinção, ocorrida em Almeida Fernandes em 1991 com o título «Taroucae
1834, toda a área dentro dos dois coutos foi sujeita a Monumenta Historica»; nos dois manuscritos de Fr.
grandes transformações que levaram ao surgimento, Baltazar dos Reis118 «Livro da fundação do Mosteiro de
desenvolvimento ou desaparecimento de alguns Salzedas» e «Breve relação da fundação e antiguidade
núcleos urbanos até à própria transformação da do Mosteiro de Santa Maria de Salzeda», ambas
paisagem envolvente dando origem à construção em fac-simile de 2002; e na informação contida no
de vias de comunicação ou aproveitamento das pré- «Portugaliae Monumenta Historica. Inquisitiones».
existentes, tendo por vezes como centro nevrálgico Infelizmente a mais preciosa fonte escrita – os arquivos
os cenóbios ou as grandes explorações agrícolas monásticos – desapareceram num incêndio ocorrido
patrocinadas pela comunidade monástica. em 1841 no edifício do seminário de Viseu, onde
Neste contexto elaboramos um primeiro estudo117 estavam depositados, diicultando-nos assim uma
relativo às vias medievais que ainda são possíveis de aproximação mais clara ao tema. O estudo de toda esta
observar e seu hipotético traçado, tentando entrever documentação revelou interessantes pistas relativas à
as ligações terrestres que se tornaram tão importantes rede viária, nomeadamente as designações pelos quais
os caminhos aparecem referenciados, como «strada
116 Nesta data o mosteiro ainda se encontra localizado no sítio da
Abadia Velha. De datas anteriores, nomeadamente 1152, 1153 e 1155 foi
mourisca» ou «viam antiquam», reletindo a sua
organizado o couto por parte de D. Teresa Afonso. Relativamente a estas antiguidade (ALMEIDA, 1968: 48).
questões consultar CASTRO, 2011, no prelo.
117 Foi já alvo de publicação uma primeira abordagem em 118 Fr. Baltazar dos Reis foi monge do Mosteiro de St.ª Maria de
relação ao mosteiro de S. João de Tarouca. Ver CASTRO & SEBASTIAN, Salzedas e contemporâneo do abade Fr. Bartolomeu de Santarém, eleito em
2008/2009. 1564 (VASCONCELLOS, 1934: XIII).
Vias medievais nos coutos monásticos 107

1 - Coutos monásticos de S. João de Tarouca e Sta Maria de Salzedas


108 Ana Sampaio e Castro

Considera-se como parte da segunda fase de veriicar algumas informações retiradas das cartas
investigação a análise topográica e da paisagem e a anteriormente descritas foram utilizadas as fotograias
foto-interpretação com recurso às Cartas Militares de de voo da USAF de 1958 à escala 1/25000 e as imagens
Portugal à escala 1/25000, em edições mais antigas, atualmente disponibilizadas pelo Google Earth. A
onde encontramos os caminhos de maior interesse análise desta documentação fotográica permitiu
e às cartas geológicas à escala 1/50000. De forma a reconhecer alguns pontos de interesse, sendo possível

2 - «strada mourisca» referida na carta de couto concedida a D. Teresa Afonso em 1152


Vias medievais nos coutos monásticos 109

traçar um percurso entre dois pontos através do detetar esta via, através dos limites anteriores e
estudo das linhas de passagem natural, obstáculos, posteriores da carta de couto, como sendo aquela que
geologia, natureza dos solos, capelas, encruzilhadas atravessa o sopé do Monte Raso, no sentido este-oeste,
e mesmo localização de sítios de cronologia anterior apresentando atualmente pouquíssimos vestígios de
(MANTAS, 1996: 167-168). calçada. Pela análise da sua implantação topográica
Na terceira etapa selecionamos os topónimos de veriicamos que se encontra numa zona de planalto,
maior interesse para o tema em estudo, bem como a evitando os abruptos declives que se encontram a
hagiotoponímia, recolhidos essencialmente nas Cartas oeste e sudoeste em direção ao rio Varosa (Figura 2).
Militares, nas Cartas Geológicas mais antigas e nos Nesta localização os solos são bastante permeáveis,
inquéritos que efetuamos aquando das saídas para o sendo essencialmente constituídos por rochas
terreno. calcossilicatadas e escarnitos, devido à presença de
A última fase corresponde ao trabalho de matriz carbonatada (FERREIRA & SOUSA, 1994: 15).
prospeção arqueológica, elaborada a partir da seleção Colocamos a hipótese desta via provir de Queimadela119
efetuada anteriormente que nos permitiu direcionar (e daí para Figueira em direção ao Douro) até Meixedo
as nossas pesquisas para os pontos de maior interesse, e Salzedas. De facto o sítio de Queimadela é já referido
abrangendo também os sítios de interesse arqueológico, em 1153 numa venda de uma «hereditate» de D.
como o caso de povoados, habitats, necrópoles …, Afonso Henriques a Pedro Viegas e Ouroana Daez,
uma vez que as vias tornam-se um pólo dinamizador sua esposa, onde se lê: «omni illa que primitus fuerant
do povoamento (MANTAS, 1996: 163), implantando- tua et que domnus Mozo ceperat tibi», entrevendo-se
se em zonas de anterior assentamento humano ou uma cronologia ainda mais recuada. Também através
promovendo a sua ixação. das Inquirições de 1258 (PMH – IS, 1067) sabemos
que Queimadela era já denominada de «villa», tendo
3. AS VIAS MEDIEVAIS aí propriedades o mosteiro de Salzedas, o mosteiro de
Cárquere e a Sé de Lamego. Só encontramos o sítio
3.1. Couto do mosteiro de Sta Maria de Salzedas de Meixedo num documento de 1209, onde consta a
a) «strada mourisca» na carta de couto concedida «villa Amexenedo» (FERNANDES, 1995: 211).
em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques «Portum de Alvares» ou «portam» remete-nos para
(AZEVEDO, 1958: 291); «viam covam» na carta a passagem do rio Varosa neste ponto que em 1364
de conirmação do couto a Teresa Afonso em 1155 teria poldras para facilitar a transposição do rio, como
(AZEVEDO, 1958: 315); «viam antiquam» na carta de é referido numa carta de D. Pedro I120.
irmidão ao mosteiro outorgada em 1161 (AZEVEDO, A «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de
1958: 354-355); Pelagio Randis», situados junto à via referida no ponto
b) «portum de Alvares» na carta de couto concedida a), relaciona-se com túmulos de senhores colocados
em 1152 a Teresa Afonso por D. Afonso Henriques junto a caminhos, garantindo orações de devotos e
(AZEVEDO, 1958: 291); «portam de Alvares» na viajantes (FERNANDES, 1985: 59). O nome de «Pelagio
carta de irmidão ao mosteiro outorgada em 1161 Randiz» surge-nos ainda recordado nas Inquirições de
(AZEVEDO, 1958: 354-355); 1258 em Figueira (concelho de Armamar): «casale de
c) «arcam de Mendo Hermezendiz» e «arcam de veteri, dixit quod vocatur casale de Pelagio Randiz»
Pelagio Randis» na carta de conirmação do couto a (PMH – IS, 1068).
Teresa Afonso em 1155 (AZEVEDO, 1958: 315); 119 Freguesia homónima, concelho de Armamar.
Relativamente à primeira referência conseguimos 120 «couto-lhe o dicto rio Barrosa des o direito do padrom que esta
acima das poldras» (FERNANDES, 1995: 32).
110 Ana Sampaio e Castro

3 - Ponte de Ucanha. Fotografia de P. Martins. ©DRCN

Uma das conhecidas passagens do rio Varosa é a uma ponte de cronologia romana. A topograia do
ponte de Ucanha (Figura 3) que apresenta quatro terreno indica-nos, pelo menos na área onde ainda se
arcos quebrados, tabuleiro com parapeito e dois preservam alguns vestígios de calçada, uma localização
talhamares a montante. A torre que lhe está adossada
foi construída já na segunda metade de século XV
por iniciativa do abade de Salzedas D. Fernando,
marcando a entrada no couto monástico e servindo
como depósito do pagamento da portagem que os
viandantes aqui entregavam para a transporem. É
também este abade que aqui ediica um hospital,
próximo da igreja, possivelmente no local onde ainda
hoje se pode observar uma porta de cariz medieval
(Figura 4) e que inicialmente se situava em frente
ao mosteiro de Salzedas (REIS, 2002b: 84). A via que
faria ligação a esta ponte continuava, para noroeste,
em direção a Lamego, sendo ainda possível observar
pequenos troços de calçada (Figura 5). Colocamos
a hipótese de, para sudeste, o seu traçado continuar
para a zona de Vila Nova de Paiva e a norte para
Sanins121, fazendo também a união à estrada que
provinda de Lamego iria para Moimenta da Beira. É
provável que esta estrada seja de iliação romana, pois
segundo Jorge Alarcão (2004: 333) a via que vinha de
Marialva, passando na Quinta da Lagoa, Rua, Aldeia
de Nacomba e Beira Valente, bifurcava-se neste ponto
para Lamego, validando a hipótese da existência de
4 - Porta medieval junto à torre de Ucanha, onde provavelmente
121 Hagiotopónimo antigo «Sancto Fiiz». funcionaria um Hospital. Fotografia de P. Martins. ©DRCN
Vias medievais nos coutos monásticos 111

com suaves declives a partir do rio Varosa, sendo o


granito grosseiro e poriróide (FERREIRA & SOUSA,
1994: 30), semelhante àquele utilizado na construção
da ponte e da torre de Ucanha.
Ainda deste caminho sairia uma via para Salzedas
(Figura 6), no sentido nordeste122, passando pela
Portela, topónimo que sugere passagem. Exatamente
neste local existe uma sepultura medieval escavada na
rocha e vestígios à superfície de cerâmica comum e de
construção. Este seguia o seu percurso até à atual capela
de Nossa Senhora da Piedade de traça setecentista e
5 - Calçada que seguia da ponte de Ucanha para Noroeste
em direção a Lamego
122 Tanto esta via como a seguinte tinham sido já identiicadas por
António Ginja (2008).

6 - Via que da ponte de Ucanha segue o sentido Nordeste em direção a Salzedas


112 Ana Sampaio e Castro

que terá substituído a igreja de S. Salvador de Argeriz,


cabeça do território com a mesma designação já
mencionado em 1135123, sendo mesmo referido em
1144 como «Villa Plana de Argeriz» (FERNANDES,
1995: 204). Baltazar dos Reis (2002b: 23-24) indica a
existência junto da igreja de S. Salvador de Argeriz de
«alicesses e vestigios de ediicios antigos, aonde parece
que estava o dito lugar de Argeriz». Esta estrada,
conservando pouquíssimos troços em calçada, segue
através de uma topograia suave, evitando sempre as
cotas mais elevadas, apresentando o mesmo tipo de
granito encontrado nas imediações da ponte de Ucanha.
Outra das vias ainda bem preservadas é aquela
que se situa a norte da povoação da Murganheira
(Figura 7). Embora possamos admitir a existência
deste aglomerado durante o período medieval, o
primeiro documento que o referencia é o foral de D.
Manuel I. Iniciando-se a cerca de 100 m para oeste
da Murganheira, junto à estrada municipal 1171, o
caminho em calçada segue para norte, evitando uma
pequena linha de água à sua esquerda, subindo desde
a cota de 520 m até aos 540 m, sendo a partir deste
ponto em terra batida e perdendo-se o seu traçado 7 - Calçada situada a Norte da povoação da Murganheira

mais à frente. Nesta zona o granito é de grão ino


não apresentam vestígios de marcas de canteiro que
de duas micas (FERREIRA & SOUSA, 1994: 26) e o
nos poderá indicar uma iliação mais recente, talvez
solo apresenta bastante permeabilidade. Analisando
de inícios da época moderna124. Contudo optamos por
a cartograia podemos colocar a hipótese desta via
incluí-la no nosso estudo, tendo presente a dúvida
continuar o seu percurso para norte, sempre junto da
quanto à cronologia da mesma.
linha de água que nasce nas proximidades da serra de
Relativamente à povoação de Vila Pouca a
S. Lourenço, indo juntar-se ao caminho já descrito que
indicação mais antiga refere-se a uma doação efetuada
de Queimadela vinha até Meixedo/Salzedas (Figura 8).
em 1288, onde se lê «Villa Arteira (…) alem do lugar de
Ainda dentro do couto monástico de Salzedas
Villa Pouca a par de Val Verde» (REIS, 2002a: 74). Do
encontramos a ponte de Vila Pouca (Figura 9),
primeiro topónimo – Vila Arteira – não há atualmente
localizada a cerca de 200 m a sudoeste da povoação
memória, podendo talvez equivaler ao sítio da Quinta
homónima. Atravessa o Varosa numa zona com
dos Castros, situado na encosta Norte de Vila Pouca,
bastantes aloramentos graníticos e onde o rio adquire,
pois neste mesmo local foram encontrados diversos
naturalmente, um percurso menos robusto. Tal como
materiais cronologicamente enquadráveis no século
a de Ucanha é em cavalete e apresenta arco único de
IV, presenciando-se assim uma continuidade em
volta perfeita, encontrando-se assente diretamente no
aloramento. Os silhares e aduelas que compõem o arco
124 Não encontramos qualquer notícia referente a esta construção,
123 «in termino de Argeriz subtus Ledanarium discurrentibus rivulis mesmo a consulta das Memórias Paroquiais de 1758 (CAPELA & MATOS,
Torno et Barosa» (FERNANDES, 1995: 204). 2010) revelou-se infrutífera.
Vias medievais nos coutos monásticos 113

8 - Via que da Murganheira segue para Norte


114 Ana Sampaio e Castro

9 - Ponte de Vila Pouca no rio Varosa

10 - Troço de calçada, recentemente destruído, na margem direi- 12 - Calçada na margem esquerda do Varosa a partir da ponte de
ta do Varosa partindo da ponte de Vila Pouca Vila Pouca
Vias medievais nos coutos monásticos 115

11 - Via que parte de Vila Pouca para Norte

termos de povoamento desta área. Quinta dos Castros. Fora do couto e no seguimento da
Da margem direita do rio Varosa até à ponte ponte de Vila Pouca, na margem esquerda do Varosa125,
existia um grande troço de calçada (Figura 10) que ainda se conserva bastantes metros de calçada (Figura
recentemente foi destruída e substituída por paralelos. 12). Esta segue para oeste no sentido de Britiande e
Esta iniciava-se mesmo junto à povoação de Vila Ferreirim, sendo possível, aquando da sua construção
Pouca, à cota de 430 m, continuando para sudoeste em a continuação para Lamego. Nesta área, até ao ponto
direção à ponte, situada à cota de 330 m. Como vemos onde termina, sobe suavemente de 330 m para 360
a inclinação é acentuada desde o primeiro ponto ao m, mantendo sempre esta última cota, podendo-
segundo, não invalidando a utilização deste caminho se observar granitos poriróides de grão médio
para transporte de cargas, pois como testemunhamos (TEIXEIRA et al., 1969: 24-26) na zona envolvente e
a calçada apresentava marcas de rodado. Também nas pedras que compõem a calçada em contraposição
a partir de Vila Pouca encontramos a continuação ao granito de grão ino localizado na margem direita
deste percurso para norte, ora pontuado por calçada, do Varosa, na encosta de Vila Pouca.
ora por terra batida, dirigindo-se para Queimadela
(Figura 11) e passando nas proximidades da referida 125 Concelho de Lamego.
116 Ana Sampaio e Castro

3.2. Couto do mosteiro de S. João de Tarouca


Na carta de couto do mosteiro aparece-nos a
«estradam de Paredes siccas» (MARQUES, 1998: 68)
que localizamos no terreno como sendo a via que
de Sanins126 segue para Sever127 e Alvite128 (Figura
13). Preserva ainda bastantes metros de calçada
bem conservada, nomeadamente desde a capela
de S. José para sudeste (Figura 14). Segundo A. de
Almeida Fernandes (1976: 337-338) o topónimo de
Paredes Secas, hoje desaparecido, pode ser situado
entre Sanins e Pinheiro, colocando a hipótese deste
se referir aos «muros do castro»129 que faz fronteira
entre a freguesia de Mondim da Beira e Sanins. A
reforçar esta hipótese está o documento de escambo
do ano de 1287 onde aparece «dous casaes junto do
lugar de Samins em Paredes Sequa» (REISa, 2002:
179). O mosteiro de S. João de Tarouca possuía aqui
uma granja que foi transferida nos inais de século XII,
inícios de XIII (FERNANDES, 1976: 107), estando
assim bem implantada junto a uma estrada de acesso a
localidades importantes. Após a passagem por Sanins
é provável que se juntasse à estrada proveniente 14 - Calçada desde a capela de S. José para Sudeste

da ponte de Ucanha que se dirigia para a zona de


perfeita, denotando-se várias fases de remodelação.
Moimenta da Beira.
De realçar a presença, no talhamar situado na margem
Percorrendo um sentido norte-sudeste esta via
direita, de uma marca de canteiro. A sua cronologia
segue a partir de Sanins, à cota de 790 m, para as
não é precisa, pois como referimos apresenta várias
proximidades do castro de Mondim, atingindo aqui a
remodelações, podendo contudo ter aqui existido
cota máxima de 830 m, descendo para os 780 m e daí
uma passagem já desde a época medieval. Atualmente
até a uma estrada atualmente asfaltada, podendo-se
não restam quaisquer vestígios de calçada na margem
novamente observar depois da capela de S. José (Figura
esquerda, apenas dois caminhos em terra batida, um
13), entre as cotas de 790 m a 860 m, encontrando-
deles seguindo o sentido de Mondim, acompanhando
se numa zona de granito de grão médio a grosseiro
o curso do rio sempre à mesma cota para a ponte
(FERREIRA & SOUSA, 1994: 25).
aí existente, e passando na zona baixa da Quinta
Junto ao mosteiro, a cerca de 200 m para Noroeste,
do Granjão130. O segundo caminho toma a direção
situa-se a ponte de S. João de Tarouca sobre o rio Varosa.
noroeste, passando pela capela de S. João da Boa Vista,
Apresenta tabuleiro em cavalete e arco único em volta
de traça setecentista, pelo topo da Quinta do Granjão
126 Freguesia de Passô, concelho de Moimenta da Beira.
e continuando para o Monte Ladário, sendo, poucos
127 Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira.
metros à frente, substituído por estrada asfaltada
128 Freguesia homónima, concelho de Moimenta da Beira.
129 Refere-se ao Castro de Sanins ou de Mondim, situado numa 130 A Quinta do Granjão foi uma das primeiras granjas pertencentes ao
elevação sobranceira a Mondim da Beira, concelho de Tarouca. mosteiro de S. João de Tarouca.
Vias medievais nos coutos monásticos 117

13 - «estradam de Paredes siccas» de Sanfins para Sever


118 Ana Sampaio e Castro

15 - Vias desde a ponte de S. João de Tarouca até à ponte de Mondim e Tarouca

(Figura 15). Este percurso, iniciado a uma cota de 550 de Mondim da Beira, situada junto a esta povoação
m, atinge os 600 m na capela de S. João da Boa Vista e ligando as duas margens do Varosa. Apresenta
seguindo por esta altitude até ao pequeno planalto do tabuleiro em cavalete e um único arco em volta
Monte Ladário, evitando assim a topograia abrupta do perfeita, tendo contrafortes apoiados no aloramento
topo desta elevação, na zona onde se entreve granitos do curso de água. Tal como a ponte de S. João de
de grão ino (TEIXEIRA et al., 1969: 48). Apesar deste Tarouca denota-se a presença de várias reparações,
caminho não apresentar qualquer vestígio de calçada existindo mesmo a notícia da sua reconstrução em
e transformando-se mesmo em estrada asfaltada junto 1638 (TEIXEIRA, 1993: 45). O mosteiro sempre
ao Monte Ladário, colocamos a hipótese de ter uma deteve propriedades agrícolas em Mondim, embora
iliação medieval, pois como já foi demonstrado em o território a norte e este só fosse incluído no couto
publicação (CASTRO & SEBASTIAN, 2008-2009) na ampliação ocorrida no século XIII, icando assim
existiria um pequeno aglomerado urbano na margem patente a importância de uma ligação ao cenóbio e a
esquerda do Varosa antes da fundação do mosteiro outras localidades importantes como Tarouca ou a já
de S. João de Tarouca, tendo sido aproveitado pela descrita via que passava na ponte de Ucanha. Embora
comunidade monástica e desenvolvido com a não existam vestígios de caminhos antigos podemos
construção da referida ponte. traçar hipoteticamente dois percursos que sairiam
Seguindo ainda este percurso encontramos a ponte da ponte, um deles já referido até ao mosteiro e
Vias medievais nos coutos monásticos 119

continuando pela margem do rio Varosa até Tarouca e


outro, para nordeste, até à via de Ucanha (Figura 15).
A última via identiicada localiza-se em
Almofala131, povoação situada no extremo sudoeste
do couto e nele incluída só no século XIII, embora
existindo aqui uma granja monástica132 ainda no século
XII, comprovada por conirmação papal em 1163
(FERNANDES, 1976: 105). A cerca de 250 m para sul
do aglomerado urbano testemunhamos a presença de
uma calçada bastante bem conservada (Figura 16),
seguindo o sentido sul à cota de 810 m e subindo até
aos 850 m na encosta do Corgo do Altar, evitando o
declive da Serra da Cascalheira (Figura 17), indo
de encontro a uma estrada secundária, subsidiária
da municipal n.º 1169. Toda esta área é pontuada
por grandes aloramentos graníticos de grão médio
(TEIXEIRA et al., 1969) e solos bastante impermeáveis.
É também de realçar os topónimos bastante sugestivos
aqui existentes com particular destaque para o Corgo
o Altar, Mourisca, Laje ou Castelejo.
Do lado este da elevação do Corgo do Altar
encontramos mais uma via, também ela bastante
bem preservada (Figura 18), partindo da ponte do
Touro (Figura 17) que está situada sobre o Varosa.
A reconstrução desta ponte data de 1839, não se
observando qualquer elemento mais antigo. A calçada
segue por um declive suave, desde o rio, para sul,
acompanhando uma pequena linha de água até à
já referida estrada secundária, tal como o caminho
descrito anteriormente. É possível que esta e a anterior
se juntassem em direção a Viseu e para norte, após
a ponte do Touro, para Tarouca, passando Bustelo,
Teixelo e Valverde. A reforçar encontramos em Teixelo
alguns troços de calçada, nomeadamente à saída da
povoação, próximo da capela da Senhora da Ajuda e
mais a norte na zona da capela da Senhora dos Alitos.

131 Freguesia homónima, concelho de Castro Daire.


132 A Noroeste da atual povoação existe o topónimo granja, indicador
16 - Calçada de Almofala até ao Corgo do Altar da presença monástica.
120 Ana Sampaio e Castro

17 - Vias junto a Almofala seguindo, possivelmente a direção Tarouca e Viseu


Vias medievais nos coutos monásticos 121

18 - Calçada que parte junto à ponte do Touro

4. CONCLUSÃO

C
onscientes da diiculdade em muitos dos agregar alguns troços de calçada, tal como as vias
casos de atribuir uma cronologia precisa principais, em zonas de maior risco, como junto a
aos caminhos descritos, pensamos ter linhas de água ou em cotas mais baixas.
traçado um quadro aproximado da paisagem viária na Apesar destes mosteiros se terem implantado numa
área dos coutos monásticos de Sta. Maria de Salzedas área onde já existiam alguns caminhos, é certo que
e S. João de Tarouca. Observando a distribuição geral contribuíram para a abertura de novos e de travessias
e a sua atribuição cronológica é clara a existência de luviais. Pensamos que serão responsáveis pelo
certos percursos antes da implantação dos mosteiros traçado de pequenas vias que nos séculos posteriores,
que os aproveitaram como a forma mais segura para nomeadamente durante a centúria seiscentista e
a circulação de pessoas e mercadorias. Embora não setecentista, foram profusamente utilizadas, ligando
tenhamos alorado os caminhos mais secundários os núcleos urbanos que se desenvolveram devido à
é certo que deveriam existir, ligando pequenos presença monástica, como aquela que de S. João de
núcleos humanos ou explorações agrícolas às rotas Tarouca segue para a povoação do Couto, formada
mais utilizadas. Estes deveriam ser bastante simples, após a fundação do cenóbio.
provavelmente em terra batida, correndo o risco de
durante as épocas de maior pluviosidade icarem
inundados e intransitáveis. Em outros casos podiam
122 Ana Sampaio e Castro

p. 10-14.
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de uma lua crescente»:
a implantação dos edifícios religiosos e a expansão
urbana de Lamego entre os séculos XVI e XVIII.
texto: Nuno Resende - DCTP- UP/Citcem
(nunoresende.m@gmail.com)

RESUMO ABSTRACT
Estudo-síntese que pretende compreender a evolu- his is a synthesis study that aims to understand
ção do urbanismo e do ordenamento periférico na ci- the evolution of urban and peripherical planning in
dade de Lamego durante o período moderno (séculos the city of Lamego during the modern period (XVI-
XVI-XVIII). Esta abordagem centra-se no estudo da -XVIII centuries). his approach focuses on the study
evolução da malha e da morfologia urbanas a partir of the evolution of urban morphology centered in the
dos edifícios religiosos (igrejas, capelas e ermidas) pre- construction of religious buildings (churches, chapels,
tendendo chamar a atenção para a importância des- convents) drawing attention to the importance of the-
tes edifícios como estruturantes de eixos ordenadores se buildings as structural axis in the urban space and
e catalisadores das relações sociais. Como assento de as catalysts of social relations. As episcopal see, Lame-
cátedra, Lamego foi, ao longo da modernidade, objec- go was throughout modernity subject of interventions
to de intervenções centralizadas na igura do bispo e centered on the igure of the bishop and other religious
das instituições religiosas que, quer no couto, quer no institutions, either in Couto (under the jurisdicton
burgo, contribuíram para a expansão urbana e monu- of the bishops) either in the borough. As we pretend
mentalização da cidade. to show, somes episcopates contributed to the urban
sprawl of Lamego and its monumentalization.
Palavras-chave:
Urbanismo, hagiotopograia, hierotopograia, Ida- Keywords
de Média, Renascimento, Barroco, ermida, capela, Urbanism, hagiotopography, hierotopography,
igreja, convento. Middle Ages, Renaissance, Baroque, chapel, church,
convent.
126 Nuno Resende

Ainda que este universo fosse essencialmente re-


O TEMPO DOS HOMENS ligioso e, portanto, muitas vezes limitado aos lugares
de culto, os leigos mais poderosos não deixaram de

D
ividido entre as perspectivas dos geógra- participar nesta dramaturgia do poder134. Casas no-
fos, dos antropólogos, dos sociólogos e bres de fachadas antes sécias e fechadas, abriram-se e
dos historiadores, o urbanismo, tomado deiniram os novos espaços das elites urbanas e rurais;
como o conjunto de questões e problemáticas associa- construíram-se capelas que rivalizavam em ornamen-
das ao estudo das cidades, tem permitido aprofundar tação com igrejas; e, mesmo antes do Romantismo se
aspectos globais ou especíicos das relações humanas, assumir como período de culto do Passado, os fautores
da evolução da paisagem e da própria percepção e va- do Barroco português reconverteram a medievalidade
lorização do espaço e do território. Frequentemente materializada nas torres e merlões ou as virtudes cava-
os geógrafos quando se referem às cidades falam em leirescas em artifícios de glória que serviam a cenogra-
eixos ordenadores encontrando-se dentro desta cate- ização dos novos palácios da nobreza local.
goria as vias e ruas principais e os largos, praças ou Estas idiossincrasias que, da talha aos elementos ar-
terreiros. Associados a cada um destes espaços estão quitectónicos, compõem o estilo barroco aportuguesa-
as igrejas, as capelas ou as ermidas que se inscrevem, do incorporam não apenas uma tradição cultural bem
ora como resultado de pré-existências, ora como no- irmada no devir histórico, mas relectem, também, o
vos elementos axiais do urbanismo e das relações so- desenho do lugar. Nos séculos XVII e XVIII um edi-
ciais. Mas sobre o impacto destas estruturas a nível de fício não podia escapar à sua envolvência. Sobretudo
ordenamento territorial, são escassos os trabalhos de se nos ativermos às características de um edifício des-
investigação. tinado ao culto, naturalmente sujeito a obrigações de
A própria ideia de hierotopograia ou de hagio- teor canónico e a formulações de ordem simbólica.
topograia, que qualiica o estudo da implantação de Por outro lado, como importantes espaços catali-
templos no território e a relação dos seus cultos com sadores, para onde aluíam grandes conjuntos de iéis,
o local e as comunidades, praticamente não tem sido quer pela sua dimensão, quer ainda pela posição no
aplicada pelos geógrafos e pelos historiadores em Por- território os templos modernos obrigaram a alterações
tugal133. signiicativas do espaço urbano. Os burgos medievais,
Neste estudo-síntese, essencialmente gizado pela estruturados em modelos de plantas nucleares ou ra-
leitura e revisão de bibliograia local e cartograia dis- dioconcêntricas de ruas estreitas e irregulares diicil-
ponível, pretendemos compreender a evolução do ur- mente admitiam novas construções de raiz. Frequen-
banismo lamecense ao longo da época moderna, num temente prevaleciam as soluções de reediicação e o
período marcado pela reintrodução do ideal clássico aproveitamento de edifícios e materiais.
seguido da reação ao mesmo de que resultou a disse- Foi o ideal renascentista, com a sua tentativa de
minação do gosto e do espírito barrocos. geometrização do território, que lançou as bases para
A cidade de Lamego, assento de cátedra medieval, a anulação dos volumes e da anamorfose do corpo
não deixou de impregnar-se deste espírito. Em ne- urbano medieval. Mas, como sabemos para o caso
nhuma época o poder se expôs de forma tão evidente português, restam desse período intervenções pouco
utilizando para tal a Arte e a Arquitectura como du- expressivas.
rante o barroco: abundantemente a ostensão deixou a Lamego é um caso particularmente interessante
privacidade das câmaras dos paços e das capelas das para aquilatarmos de mudanças urbanísticas que rom-
igrejas para tornar-se acessível a quase todos. No sécu- peram ou serviram de alternativa à planimetria me-
lo XVIII qualquer ermida possuía um vistoso altar de dieval em torno da qual a urbe acastelada se estrutura-
talha, dourada ou policromada e pintura, esculturas, ra ao longo da Idade Média.
os tecidos e paramentos convergiam os sentidos para a Por volta do século XII a cidade cindiu-se num te-
harmonia e a totalidade que envolvia sacerdotes e iéis cido binuclear, ou seja, a vida social e política e, na-
na liturgia. turalmente, o urbanismo passaram a estruturar-se em
redor de dois pólos urbanos: o do castelo numa cota
133 Sobre a terminologia o seu signiicado e a sua aplicação no estudo
devocional de um território (Montemuro) veja-se o nosso trabalho: RE-
SENDE, Nuno (2012), cap. III, PARTE 1. 134 Cf, a este propósito, o nosso trabalho RESENDE, N. (2007).
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente» 127

mais elevada e o da catedral, a uma cota inferior, junto culação da cidade com os seus arredores, pelo menos
ao rio Coura. Esta disposição de dois centros – o pri- até à primeira década do século XX137 (ver cartograia,
meiro associado à jurisdição municipal e o segundo ao mapas 1 e 2)138.
couto episcopal – deiniu precocemente a morfologia Foram já três os autores que procuraram compreen-
urbana, pelo menos quando em volta da ermida de São der e explicar a evolução morfológica da cidade ao longo
Sebastião se organizou comunidade canónica e o edi- da Idade Média, relacionando-a com os seus poderes e
fício se transmutou em catedral – templo que, outrora, instituições: Maria João Queiroz Roseira (1981)139, Rita
podia ter tido o seu assento na acrópole135. Costa Gomes (1988)140 e Anísio Saraiva (2002)141.
Tendo em conta, pois, a natureza topográica do Do ponto de vista da geograia, Maria Roseira, sa-
território, a bipolarização do poder (civil e eclesiásti- lientou a colina genética da cidade (um possível castro)
co), os agentes e as instituições da cidade, de que for- e a sua evolução até à dominação romana e a passagem
ma foi a evolução urbana desta cidade condicionada à cidade medieval. Sem conseguir um io condutor,
ou estimulada pela ediicação dos edifícios religiosos a autora aplicou o modelo disseminado por Alberto
ao longo da época moderna? Sampaio e seguidores sobre a estruturação da paisa-
gem agrária e os movimentos verticais das populações
A CIDADE BINUCLEAR castrejas, entretanto romanizadas. O período suévico
parece escoar-se em bruma até à intervenção muçulma-

P
ara compreendermos a ocupação humana na, marcada pelas conquistas e reconquistas e pela inex-
neste território, grosso modo articulado en- pugnabilidade da cidade que lhe permitiu resistir nas mãos
tre um esporão rochoso que quase no senti- ora de cristãos (877, 1057) ora de muçulmanos (987).
do norte-sul irrompe entre dois pequenos cursos de Rita Costa Gomes incluiu Lamego numa análise
água, necessitaríamos recuar à Pré e Proto-História. comparativa com outras duas cidades do interior: Vi-
Na falta de elementos arqueológicos, nada nos im- seu e Guarda. Destacou o papel dos patriciados urba-
pede de conjecturar sobre a apetência do lugar para nos e das forças políticas internas e externas (facções
remota ocupação humana. Lugar abrigado, entre os oligárquicas, os Coutinhos, os bispos, etc.) e questio-
550 metros de altitude registados no cume do espo- nou (sem, contudo, responder) as marcas que as elites
rão, e os 500 metros junto às margens do rio Coura, possam ter deixado no espaço urbano.
seria o ponto ideal para a sobrevivência do Homem, Anísio Saraiva, desconhecendo que a supracita-
quer como recolector ou assumindo já a uma condi- da autora havia já chamado a atenção para o carácter
ção agro-pastoril. As condições geomorfológicas des- binuclear de Lamego, apresenta-nos com novidade o
critas são, aliás, comuns à instalação das comunidades espaço urbano cindido, observado do ponto de vista
castrejas que procuravam outeiros semelhantes para a da documentação eclesiástica dos séculos XIV-XV. O
construção das suas povoações amuralhadas. autor salienta a formação do couto (instituído por D.
É, porém, o período da Romanização que pode Sancho em 1191) e a dispersão da propriedade (maio-
ter deinido os alicerces urbanos da cidade medieval. ritariamente eclesiástica) no seu território.
Embora existam algumas perspectivas sobre o peso da Embora quer M. Roseira, quer A. Saraiva salientem
romanidade em Lamego, e a importância de Lamecum a importância do eixo de circulação que atravessa o
em contexto imperial, a arqueologia não permitiu ain- couto e o castelo no sentido norte-sul como ordena-
da avaliar verdadeiramente o peso do desenho clássico dor do urbanismo, não assinalam, nem a interseção
(a existir) sob o traçado medieval136. daquele com outras vias importantes, nem o posicio-
E é este traçado que importa compreender, pois ele 137 Com o liberalismo e as nacionalizações da República, alguns dos
marcará até bastante tarde a mancha urbana e a arti- edifícios da cidade sofreram alterações profundas na sua estrutura, ou fo-
ram mesmo destruídos para dar lugar a novos projectos construtivos ou
135 O autor do artigo Lamego na GEPB refere, citando Viterbo, a exis- urbanísticos.
tência deste templo desde a subjugação da cidade por Afonso III (877),
cf.  [S.a] (1963), p. 611. 138 Mapa 1: [S.a.] (17--). Planta da cidade de Lamego e seus arredores,
pub. em RESENDE, N. (2006), p. 48-65.; Mapa 2: [S.a.] (1981). Planta de
136 Embora não se tenha em conta a mobilidade e o aproveitamento de Lamego, pub. em ROSEIRA, M. J. Q. (1981).
elementos pétreos de estruturas anteriores, o facto de terem aparecido ao
longo dos últimos séculos peças integrais ou fragmentos de aras e outros 139 ROSEIRA, M. J. Q. (1981).
monumentos epigráicos do período romano, é um valioso indicador da 140 GOMES, R. C. (1988).
presença de estruturas da Antiguidade Clássica no território. Cf., entre ou-
tros VAZ, J. I. (1982). 141 SARAIVA, A. M. d. S. (2002/2003).
128 Nuno Resende

namento dos edifícios em relação às mesmas.


De resto ica de fora da análise dos autores a posi- APOGEU E DECLÍNIO?
ção e a importância da igreja de Almacave em relação

A
à cidade amuralhada. Mesmo que diicilmente logre- maior parte dos autores tende a associar a
mos aclarar porque é que a ermida de São Sebastião foi Idade Média, em Lamego, a um período
favorecida em detrimento do templo de Almacave, o de apogeu económico ao qual se seguiu
facto é que junto a esta igreja terminava um dos prin- uma longa noite de declínio agravada com a expansão
cipais caminhos de acesso à urbe142. Esta estrada que ultramarina e a com a dominação ilipa. Estas razões
sulcava os campos de Fafel seguia a Medelo e Penu- fundamentam-se no facto de a cidade ter deinhado na
de, providenciava a circulação do trânsito serra acima passagem de plataforma giratória comercial (de que as
até à vila actual de Castro Daire e cruzava-se na Praça importante feiras seriam o motor)143 a centro da região
(principal centro de negócios do burgo) com o referi- produtora vinícola. Este assunto, o da bipolaridade
do eixo norte-sul. económica e cultural de Lamego foi já apresentado por
Embora a questão da implantação estratégica da alguns autores, nomeadamente pela citada geógrafa
cidade tenha suscitado o interesse da maioria dos mo- Maria João Roseira, pelo autor do verbete Lamego na
nógrafos lamecenses o assunto nunca foi analisado do GEPB144 e por Joaquim Veríssimo Serrão que, durante
ponto de vista territorial. Sim, o rochedo onde ainda a Comemoração dos centenários diocesanos, em 1977,
assenta a muralha é efectivamente inexpugnável, no- aludiu à Projecção cultural do Bispado145.
meadamente a partir da encosta nascente, mas um Ora a questão não é tão simples. Em primeiro lu-
ponto que interessa observar é a posição do lugar em gar, porque a cidade não é una. O burgo segue um ca-
contexto regional ou suprarregional. minho diverso do couto episcopal, nomeadamente pe-
A cidade encontra-se na margem do sul do Douro, las distintas prerrogativas de cada um dos territórios.
de onde dista cerca de 12 quilómetros e a sua posi- Compreendemos esta diferença pelas queixas de Rui
ção assenta na intersecção de dois corredores naturais Fernandes no início do século XVI: ao empreendedo-
de passagem: o vale do Balsemão e o vale do Coura. rismo episcopal no couto, opunha-se a má governança
Ambos permitem a ligação entre o vale do Douro e os dos mesteres no burgo e até as desavenças entre o al-
planaltos de Montemuro e da Nave, unindo, portanto, caide-mor e o prelado – Lamego evoluía a duas velo-
a costa atlântica ao hinterland ibérico. Esta localização cidades146.
foi sempre favorável aos habitantes de Lamego, quer Por outro lado, o crescimento económico e prova-
do ponto de vista defensivo, quer do ponto de vis- velmente demográico de Lamego na Idade Média não
ta económico. Efectivamente os primeiros caminhos ocorreu nem de forma tão expressiva nem tão mar-
aproveitavam a geomorfologia para ligarem mais rapi- cante que lhe possamos chamar época de ouro. Como
damente o ponto A ao ponto B, sem preocupações de esclarece Rui Fernandes, por volta da década de trinta
pendor técnico que a engenharia romana introduzirá. do século XVI a cidade sentia diiculdades para escoar
Ao longo destes primeiros trilhos fundaram-se várias matéria-prima e produtos. A extinção da feira de San-
comunidades que na sua implantação aliavam protec- ta Marinha, o excesso de impostos (nomeadamente a
ção ao acesso célere a recursos naturais. sisa e os direitos de alcaidaria) e a falta de investimento
É pois neste contexto supra-urbano que a cidade se grossista caracterizava os homens da terra como não
constrói e expande, sobretudo depois do século XVI sobejamente ricos. Mas estes pequenos mercadores,
quando, quer o burgo amuralhado, quer o couto já não muitos deles mesteirais de vários ofícios, comerciali-
podiam conter os desígnios meramente comerciais de zavam o que a terra dava e, neste aspecto, o compasso
uma cidade-entreposto - pretensamente enfraquecida era fértil e rico, embora no início do século XVI La-
pelo desvio dos principais eixos de importação-expor-
143 Realizaram-se várias feiras em Lamego, ao longo da Idade Média e
tação – que nunca deixou de ser importante centro bu- Moderna, em espaços cuja centralidade estava associada a edifícios religio-
rocrático religioso. sos: no campo do Tabolado, no castelo, no Rossio e no terreiro do convento
de Santa Cruz, cf. SARAIVA, (2002/2003), p. 259.
142 É provável que o templo dedicado a Santa Maria e São Sebastião
seja anterior à fundação eclesial em Almacave, não obstante este lugar estar 144  [S.a] (1963).
mais próximo do castelo – centro político e social da cidade em tempo de 145 SERRÃO, J. V. (1976).
guerra. Recordemos que até o século XIX nunca a catedral, através do seu
deão, deixou de superintender na igreja de Almacave. 146 FERNANDES, R. e BARROS A. J. M. (2012)..
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente» 129

mego não fosse ainda uma cidade voltada às culturas nho, em 1532. O antístite, mentor do formoso jardim,
do Douro, nem ao negócio do vinho, mas à exploração terreiro e cerco de muro, poço e carreira e outras mui
das serras que a contornavam. formosas benfeitorias que Vossa Senhoria tem feitas é o
É por isso que Rui Fernandes dedica especial aten- modelo do governante empreendedor150. A avaliar pe-
ção a Montemuro, às usanças dos seus habitantes e las palavras do cronista, que deine as intervenções do
sobretudo à importante fonte de alimento derivados prelado no couto da Sé como a melhor coisa desta ci-
da criação de gado bovino. Da serra provinha ainda dade, dever-se-ia a D. Fernando a tentativa de criação
a caça, o linho e a lã, as madeiras, o carvão, entre ou- de um plano urbanístico clássico em redor da catedral
tras matérias que abasteciam a cidade ou aqui se ar- e do paço episcopal. A atenção dirigida ao Rossio –
mazenavam para distribuição e venda147. O notável primitivo terreiro sulcado pelo rio Coura e paulatina-
número de almocreves conirma a vitalidade econó- mente fechado por edifícios de uso religioso – deine a
mica de Lamego que, não temos razão para pensar o introdução de noções de centralidade e de espaço que
contrário, prosseguiu ao longo do século XVII. Aliás, a tratadística renascentista apresenta como fórmulas
embora rareiem estudos económicos sobre esta centú- para a cidade ideal151.
ria148, Lamego poderia encaixar-se no modelo da Cor- Mas se são apenas ecos as notícias que nos chegam
te de Aldeia, que Francisco Rodrigues Lobo glosou na sobre os planos de criação de espaços ou estruturas
sua obra de 1619. A centralização em Valhadolid e em públicas destinados ao embelezamento ou enrique-
Madrid dos poderes da monarquia dual pode ter revi- cimento da cidade pelos prelados - como o poço e
talizado as antigas rotas ibéricas que durante a Idade carreira referidos em 1532 – possuímos registos mais
Média aproximaram Lamego da meseta castelhana ou concretos e mais completos sobre a directa interven-
do sul andaluz. E o couto da Sé, não obstante as va- ção episcopal na malha urbanística. Referimo-nos à
câncias ou as longas ausências de certos bispos, nunca construção ou reconstrução de edifícios religiosos.
deixou de fervilhar com uma população afecta à orga- Nesse sentido é particularmente activo o episcopado
nização eclesiástica exigida para governar no temporal de D. Manuel de Noronha (22-4-1551 a 23-9-1569)152
e no espiritual uma diocese com cerca de 23 mil fogos (ver cronologia).
e 79 mil almas149. D. Manuel provinha das famílias proeminentes que
integravam o movimento expansionista português:
OS TRÊS PERÍODOS pelo lado do pai era bisneto de João Gonçalves Zarco,
descobridor da Madeira e donatário do Funchal e pela

O
nosso olhar sobre o urbanismo lamecense mãe descendia de altos funcionários régios, como o
começa no século XVI e, embora se centre vedor da fazenda Gonçalo Vaz Castelo Branco, senhor
nos dois núcleos da cidade (burgo e couto) de Vila Nova de Portimão, seu avô materno. Esta pro-
não pode dissociar-se da igura do bispo. Aliás, acres- ximidade aos círculos de poder conduziu-o à impor-
centaríamos, nenhum estudo sobre economia, socie- tante cátedra de Lamego e a Roma, onde alcançou o
dade ou urbanismo pode eximir-se do papel das altas lugar de camarista pontifício. Naturalmente o seu per-
iguras eclesiásticas que, ou residiam ou estavam liga- curso biográico esclarece-nos sobre o poder e o gosto
das a Lamego por vínculos familiares. do ilustre prelado.
Embora, voltamos a frisar, não existam trabalhos Durante o seu episcopado não só prosseguiu os
sobre a acção do patriciado urbano no desenvolvi- melhoramentos e ampliações em decurso na catedral
mento urbano de Lamego, as grandes criações, enco- – nomeadamente na crasta onde mandou instituir
mendas e planos para a cidade estavam, sobretudo, nas três capelas – e no Rossio, mas reformou e ordenou
mãos dos Homens da Igreja. Testemunho essencial a também construção ou reconstrução de novos tem-
deste aspecto é a dedicação da obra cronística que Rui
150 FERNANDES, R. e BARROS, A. J. M. (2012).
Fernandes faz ao bispo D. Fernando Meneses Couti-
151 O próprio leito do rio Coura foi intervencionado a mando do
147 Sobre este aspecto ver o nosso trabalho RESENDE, N. (2012). bispo D. Fernando, para permitir o aproveitamento de uma maior porção
do espaço - e, naturalmente facilitar a ampliação da castra que o mesmo
148 Para o século seguinte existem alguns estudos de fundo sobre a eco- prelado ordenou reconstruir no princípio do segundo quartel do século
nomia local e regional, cf. OLIVEIRA, J. N. d. (2006), p. 94-103. XVI, cf. COSTA, M. G. (1982), p. 18
149 Mais concretamente 23765 fogos e 79265 almas. Os dados estatísti- 152 As datas extremas dos episcopados seguem a proposta de PAIVA, J.
cos são de 1739, cf. FREIRE, A. d. O. (1739). P. (2006), p. 581.
130 Nuno Resende

plos dentro e fora do couto, nomeadamente a ermida Mas do ponto de vista do estudo da arquitectura
de Santo Estevão (?-1568), cuja invocação medieval foi e do urbanismo limitamo-nos a gizar três grandes
substituída por culto mariano. Atribuem-se-lhe ainda períodos associados aos episcopados referidos: um
as fundações das capelas da Senhora dos Meninos tempo do classicismo que tenta a introdução dos mo-
(1555?), nas margens do Balsemão e do Divino Espí- delos renascentistas e maneiristas, balizado entre D.
rito Santo, junto ao Coura, onde o seu brasão, na falta João Madureira e D. Miguel de Portugal (1502-1644),
de outros documentos, atesta a directa intervenção. um período intermédio a que poderíamos chamar de
Ambas as ediicações, situadas nos limites do couto, transitório, condicionado pelo afastamento pós-res-
pretendem claramente assumir-se quer como novos tauracionista a Castela e pela lenta introdução de ele-
espaços de culto numa cidade em crescimento, quer mentos protobarrocos e, inalmente, o tempo do bar-
como novos eixos que inluenciaram a morfologia ur- roco pleno, materializado num conjunto expressivo de
bana de Lamego nos séculos seguintes. intervenções construtivas e decorativas que terminará
Porém, o caso mais paradigmático da interven- com o episcopado de D. Manuel de Vasconcelos Perei-
ção de D. Manuel de Noronha no reordenamento e ra (1670-1786).
expansão urbana da cidade episcopal foi a criação do Naturalmente a passagem de certos prelados em
santuário mariano dedicado à Virgem. Aproveitando tão dilatado período (1502-1786) fosse pela brevidade
as ruínas de uma ermida mandada levantar em mea- do seu episcopado ou ainda pela distância geográi-
dos do século XIV pelo seu antecessor na cátedra D. ca que mantiveram com a cátedra praticamente não
Durão (1350-1362), o camarista de Leão X lançou as deixou marcas no urbanismo lamecense. Outrossim
bases para um novo eixo - primeiro visual, depois ur- foram fecundos em obra e encomendas algumas va-
banístico – da cidade, ao mesmo tempo alargando a câncias da cátedra, nomeadamente no que respeita a
inluência directa dos prelados lamecenses para lá dos intervenções na sé, como a que trouxe a Lamego An-
limites do couto e criando, numa cidade pouco dotada tónio Pereira e Nicolau Nasoni (1734-1739).
de matéria sacra, um foco de romagem. A construção Destacam-se, contudo, nesta longa duração alguns
da ermida dedicada à Virgem dos Remédios parece episcopados mais activos, cujo tempo foi fundamental
ter sido, aliás, mais do que uma simples obra votiva, para determinar alterações na malha urbana – ou atra-
já que a mudança do sítio original do templo titula- vés da construção de novos eixos ordenadores ou atra-
do a Santo Estevão implicou alterações signiicativas vés da revitalização de espaços de cultos obscurecidos.
na paisagem e o aproveitamento dos recursos naturais
locais, nomeadamente certas águas mais tarde dispu- OS EDIFÍCIOS E O TERRITÓRIO
tadas entre Mitra e o convento de Santa Cruz – caudal

N
aquífero que devia abastecer a magníica fonte à roma- o século XVI Rui Fernandes não assina-
na mandada construir por D. Manuel de Noronha no lou na paisagem urbana de Lamego os
seu Rossio153. edifícios religiosos. O cronista destacou
Aceitamos a divisão deinida por M. Gonçalves da os aspectos mundanos do governo da urbe, aludindo
Costa para os períodos de bispos à frente da diocese apenas às casas da audiência, às da Relação, junto à
e, naturalmente na gestão do património da Mitra, Praça; ao bairro do castelo com a fortaleza, a cisterna
no período em análise: bispos pré-tridentinos (de D. e os paços dos Coutinhos; e, no couto da sé, às casas
João de Madureira a D. Simão de Sá Pereira); Bispos dos cónegos, beneiciados e nobres e ainda às benfei-
da época ilipina (de D. António Teles de Meneses a torias públicas de D. Fernando de Meneses. Estranha-
D. Miguel de Portugal), bispos do pré-Barroco (de D. mente, ou não, a arquitectura religiosa foi eliminada
Luís de Sousa a D. José de Meneses) e bispos do Barro- da memória pelo tratador de lonas e bordates. Mas em
co (de António de Vasconcelos e Sousa a D. Manuel de 1532 um pequeno conjunto de templos destacava-se
Vasconcelos Pereira)154. no horizonte da cidade: a igreja de Almacave, a igreja
ou capela do Salvador, no castelo, junto aos paços ar-
153 Cf. AZEVEDO, J. d. (1877), p. 13 Ainda no século XVIII estas águas ruinados dos alcaides da cidade e a catedral - conjun-
provocavam a discórdia, de tal forma que a memória cumulou de milagro-
sa a resolução do conlito a favor dos eclesiásticos seculares, cf. MARRA- to que era, nesse princípio do século XVI, claramente
NA, J. A. (1957), p. 41-42. insuiciente para servir uma cidade repartida por duas
154 COSTA, M. G. (1982) e COSTA, M. G. (1986). paróquias e uma população com cerca 2250 habitan-
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente» 131

tes155. Nos arredores, a ermida de São Sebastião, junto


ao campo do Tablado e a nascente, a gafaria de São
Lázaro com o seu pequeno templo, compunham a to-
pograia religiosa da paisagem de Lamego.
D. João de Madureira que parece ter falecido nu-
mas casas junto à capela do Salvador (sinal da perma-
nência do lugar como espaço importante na malha do
castelo) iniciou um projecto de ampliação e nobilita-
ção do espaço da catedral que prosseguiu pelos séculos
e episcopados seguintes156. De resto a sé foi sempre o
principal alvo das atenções dos prelados.
1 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores
Apenas com os episcopados de D. Manuel de No- (17--): Área do Castelo
ronha e D. António Teles de Meneses é que se iniciará
uma multiplicação do número de templos ao serviço e a estimular talvez a ediicação de templos nos limites
de uma população em crescimento, receosa das cons- da urbe, virando a sua atenção para o burgo, nomea-
tantes vagas epidémicas que obrigavam à encomenda damente para o Campo do Tablado (um terreiro em
dos corpos e das almas a um rol de hagioterapeutas. forma de quadrilátero onde existia já uma capela de
A igreja da Misericórdia ediicada em 1519 fora de São Sebastião) e para o Cerdeiral e a Seara locais afec-
muros e cuja fachada abria para uma nova via que cir- tos ao património da Mitra e onde, em 1587, se sagrou
cuitava o burgo amuralhado do lado oeste inaugurou a a ermida da Virgem da Esperança (Figura 2)159. Ou-
ediicação moderna na morfologia medieval do burgo trossim, no ano anterior se fez procissão inaugural de
lamecense, fora do couto episcopal157. A nova rua, pa- Almacave até à ermida da Virgem da Saúde, também
ralela ao pano ocidental da muralha, facilitará a liga- nos limites do burgo, junto à estrada para o Douro,
ção entre as zonas baixa e alta da cidade e conhecerá ediicada às custas de um certo António Soares.
uma rápida transformação como espaço privilegiado Embora se atribua a fundação quinhentista à ermi-
no urbanismo lamecense (Figura 1). da do Desterro (Figura 3), erguida num espaço sen-
Só cerca de meio século mais tarde se ediicaram sível do ponto de vista do trânsito, a fábrica que ainda
ou reediicaram as ermidas do Espírito Santo, da Vir- persiste é de 1640. Ediicada no limite meridional do
gem dos Meninos e da Virgem dos Remédios, já fora couto episcopal, com a fachada virada à principal via
do burgo e todas junto a vias ou a lugares de demarca- de acesso da cidade, havia de tornar-se um dos tem-
ção quer do couto quer da paróquia da Sé. O leitmotiv plos mais importantes de Lamego, não apenas pelas
de tais construções ou reconstruções158 parece expli- dotações que lhe faziam irmãos e confrades das agre-
car-se não apenas pelo reforço ou airmação do poder miações ali sedeadas, mas por tornar-se ponto de par-
episcopal (patente na exibição das armas do prelado), tida para as solenes entradas barrocas dos bispos que
mas também na disseminação de novos cultos, em sí- vinham ocupar a sua cátedra.
tio isolado ou junto a pequenos núcleos populacionais. A implantação destas ermidas ou capelas, paralelas
De facto a cidade muniu-se de uma autêntico cordão ou perpendiculares às vias, sem respeito pela orienta-
proiláctico, formado por um expressivo conjunto de ção canónica (cabeceira voltada a nascente) traduz-se
ermidas situadas junto às principais entradas da cida- numa forma de articulação dos edifícios com a malha
de, todas de fundação particular. pré-existente ou, perifericamente (no caso dos Remé-
D. António Teles de Meneses continuou a autorizar dios) de traçar novos caminhos e permitindo um aces-
155 Para a contabilização utilizamos o numeramento, fonte estatística so visual directo ao templo pelos fregueses da cidade.
que, cerca de 1527, aponta para a cidade de Lamego (freguesias de Almaca- Tais características sublinham a estratégia subjacente
ve e Sé) uma população distribuída por 563 moradores ou fogos. João José
Alves Dias indica o coeiciente 4 para desdobramento dos indivíduos por às construções: intervir no espaço urbano e periférico
casa, o que resulta no número apresentado, cf. DIAS, 1966. alargando a zona de inluência dos poderes episcopais
156 Cf., a respeito das suas casas no castelo, COSTA, M. G. (1982), p. 15.
157 Referências a este caminho em ibid. p. 460 159 O bispo possuía umas hortas no lugar da Seara. Aqui se instalará
uma comunidade popular composta por mercadores e cristãos-novos que
158 M. Gonçalves da Costa assinala, no caso da Virgem dos Meninos, a tinha na ermida da Esperança o seu templo comunitário, Cf. Ibid., p. 472 e
reconstrução de uma ermida anterior, cf. Ibid., p. 470. RESENDE, N. (2012), p. 485.
132 Nuno Resende

e o fomento ou criação de lugares catalisadores de de- tentado a reforma, mudando a observância masculina
voção e, naturalmente, eixos ordenadores do urbanis- para feminina, procurando assim proteger as donze-
mo – onde a visão desempenha um papel importante. las da cidade que não tinham onde se recolher, mas o
De facto a orograia da cidade proporcionava um jogo projecto icou por realizar162. Seria D. António Teles de
visual que aliava a distribuição e implantação concên- Meneses o mentor da primeira casa feminina de claris-
trica dos edifícios à sua contemplação pelos iéis, como sas ediicada em Lamego a partir de 1588.
forma de reforçar a protecção comunitária. O século XVII foi, em Lamego, profícuo na edii-
Mas não foram apenas as ermidas que a partir do cação de casas religiosas. Embora praticamente todas
século XVI marcaram o território urbano e periférico tenham sido fundadas com o beneplácito episcopal, as
de Lamego. Também as casas conventuais redeiniram dos religiosos de Santo Agostinho junto à Praça, e a
a morfologia do burgo ao longo da época moderna. casa dos Lóios, a sul do Couto, foram instituídas ou
De facto não foi sem consentimento dos prelados patrocinadas leigos.
que as ordens religiosas paulatinamente invadiram o O convento da Piedade, dos Eremitas de Santo
espaço urbano de Lamego, sobretudo na área sob a ju- Agostinho, planeado e construído entre 1630 e 1649
risdição municipal – já que o couto se isentou de rece- surgiu da intervenção piedosa do desembargador do
ber qualquer instituição monástica160. paço Francisco de Almeida Cabral que para o efeito
Os franciscanos, como ordem de cariz urbano fo- cedeu as casas onde habitava163. A construção da igre-
ram os primeiros a estabelecer-se em Lamego, mas o ja, do dormitório e da cerca ajudou a delimitar a norte
seu percurso determinou o abandono da ordem femi- o Campo do Tablado coninando com os quintais das
nina (no século XIII), a mudança dos religiosos claus- casas do Cerdeiral e da rua da Seara – uma área do
trais para capuchinhos e uma refundação masculina burgo particularmente urbanizada (Figura 2).
no século XVII161. D. Manuel de Noronha ainda terá Não seria, porém, sem alguma apreensão por parte
160 Ver delimitação do couto em SARAIVA, A. (2002/2003), p. 252. 162 COSTA, M. G. (1984), p. 565.
161 COSTA, M. G. (1979), p. 566 ss. 163 Cf. AZEVEDO, C. A. M. (2011), p. 211-212.

2 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--):


Praça, Bairro da Seara e conventos de Santa Clara e de Santo Agostinho (da Piedade)
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente» 133

do povo que as ordens se instalavam na cidade. Efecti- ainda durante o episcopado de D. António Teles de
vamente quando o bispo D. Martim Afonso de Mexia Meneses, prolongou-se pela centúria seguinte e air-
tentou obter a autorização para a instalação na cidade mou-se como uma das maiores construções religiosas
de um convento de frades Carmelitas o projecto foi de Lamego (Figura 3).
aceite pela câmara mas Filipe III negou o intento jus- O século XVII foi marcado pelo prosseguimento
tiicando a sua decisão com o fundamento de o povo da actividade construtiva iniciada na centúria ante-
já se encontrar já demasiado agravado com tantas fun- rior e, sobretudo, pela introdução dos novos gostos
dações164. De facto estas fundações retiravam espaço que a Lamego chegavam por via dos artistas ao serviço
urbanizável à cidade, admitindo isenções e excepções dos bispos e dos próprios religiosos. É possível que a
que feriam ou prejudicavam as prerrogativas das ou- impermanência dos prelados na cidade ou as longas
tras classes165. vacâncias na cátedra que se prolongaram até 1677 te-
O convento de Santa Cruz destaca-se na morfo- nham inluído na diminuição de encomendas ou na
logia urbana como a maior construção do género em autorização de grandes obras construtivas. Mas, ape-
Lamego. Ediicado fora dos limites do couto da sé a nas a título de nota, embora a centúria de seiscentos
sua cerca ocupava uma vasta área entre o rio Balsemão seja um período de estagnação construtiva, o barroco
e a estrada para Arneirós, paróquia moderna criada invadiu paulatinamente os espaços interiores das ca-
nos arrabaldes da cidade. Também esta casa, entregue pelas, ermidas e igrejas de Lamego, como evidenciam
ao cuidado dos Cónegos Seculares de São João Evan- as múltiplas referências a artistas e encomendas neste
gelista ou dos Lóios, se concretizou graças à doação período166.
da quinta de Vila de Rei por um nobre leigo chama- Os anos de setecentos fecharam o ciclo empreen-
do Lourenço Mourão Homem. Projecto iniciado em dedor começado pelos prelados D. Fernando Meneses,
1596, na sequência da reforma do mosteiro de Recião, D. Manuel de Noronha e D. António Teles de Meneses.
164 COSTA, M. G. (1982), p. 64. Para a ampliação da igreja de São Fran- As atenções dos antístites dirigiram-se para as novéis
cisco, foi também difícil obter esmolas dos moradores da cidade, valendo ou renovadas igrejas de São Francisco (Figura 6) e de
aos frades apenas as intervenções dos capitulares e do prelado, cf. COSTA,
M. G. (1984), p. 567 ss. Santa Teresa, para a ermida do Desterro e, claro, as-
165 A este propósito leia-se o que escreve Orlando Ribeiro, RIBEIRO,
O. (1994).. 166 Cf. entre outras obras, ALVES, A. (2001)..

3 Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--): Área do Couto


134

4 - Excerto da Planta da cidade de Lamego e seus arredores (17--):


periferia de Lamego e a construção do escadório dos Remédios
135

5 - Cronologia da actividade construtiva e episcopados de lamego (1500-1799)

6 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o convento de São Francisco

sim o pedia a espiritualidade barroca, para o santuário deinição de um percurso processional –, foi a cons-
da Virgem dos Remédios, cujo escadório, iniciado em trução da via-sacra que, em 1734, sublinhou dentro da
1777, constituiu um dos elementos mais marcantes na planta de Lamego o eixo principal de circulação que
monumentalização urbana (Figura 4). desde a Idade Média ligava a parte baixa à parte alta da
A instalação de um novo convento na cidade, o cidade. Aproveitando o declive, usou-se a orograia da
recolhimento de Santa Teresa (Figura 7), também cidade para reproduzir o percurso sacriicial de Cristo
marcou a paisagem icando, a partir de 1702, o couto até ao monte Gólgota. Ainda persistem algumas edí-
episcopal delimitado por dois grandes edifícios reli- culas com os passos da paixão do Salvador que traçam
giosos: este recolhimento e o convento de Santa Cruz desde a ermida do Desterro à igreja das Chagas o tra-
(Figura 3). jecto processional, passando pela catedral, pela rua da
Uma das obras que, não constituindo empreitada Misericórdia e pela ermida da Virgem da Esperança.
saliente, interveio na morfologia urbana – através da
136 Nuno Resende

7 - Excerto de bilhete postal ilustrado, não datado. Em segundo plano, central, o recolhimento de Santa Teresa

CONCLUSÃO ser vista do ponto de vista estratégico: instituição de


novos lugares de atracção cultual, extensão do poder

C
oninada à colina genética, a comunidade eclesiástico (nomeadamente episcopal) e até a monu-
de Lamego resistiu aos avanços e recuos mentalização do urbanismo – dentro de um espírito
dos seus conquistadores até ao século XI. A ou mesmo consciência da importância da intervenção
expansão da sua urbanização estruturou-se já em tem- mecenática (dos pontos de vista educativo e mesmo
po de paz ao redor de dois templos: o de São Sebastião, político) no espaço público.
a uma cota inferior à da acrópole, e o de Santa Maria Este aspecto relecte-se não apenas no couto com
de Almacave, quase às portas do burgo amuralhado. as benfeitorias de certos prelados, mas nas obras exe-
Com a deinição paroquial em torno dos principais cutadas ao longo dos primeiros episcopados do sécu-
templos urbanos e a criação régia do couto episcopal a lo XVI e nos do século XVIII, em áreas periféricas,
cidade cindiu-se em dois territórios: o primeiro entre- até onde era possível aumentar os limites urbanos ou
gue ao governo municipalista e o segundo sujeito ao o domínio (ainda que informal) da Mitra. São disto
poder episcopal, onde os prelados nunca deixaram de exemplos a construção do mosteiro das Chagas que
centrar no Rossio e na catedral a sua atenção. aproveitou um dos lados do terreiro do Tabolado (as-
Mas o domínio temporal dos antístites, bem pre- sociado desde a Idade Média à vida comercial de La-
sente nas intervenções renascentistas de D. Fernando mego) e o convento de Santa Cruz implantado num
Meneses Coutinho a D. António Teles de Meneses pequeno plano sobre o couto (que se tornará lugar de
- que claramente delinearam projectos públicos de mercado e negócio – ambos os projectos acalentados
embelezamento do seu couto-, alargou-se ao burgo e por prelados lamecenses.
aos seus arredores, impondo na morfologia urbana e Actualmente é impossível dissociar as principais
na paisagem envolvente, um domínio indirecto, fosse obras quinhentistas ou setecentistas, como as ermidas
pelo apadrinhamento de certas obras (inclusive a ins- do Espírito Santo ou da Virgem do Remédios, da mor-
talação de casas monásticas), fosse pela reabilitação de fologia urbana contemporânea. Ainda que, em alguns
lugares de cultos obscurecidos. casos, não tenha sido respeitada a importância visual
Estes edifícios ocuparam sítios chave da cidade e e a percepção do espaço, que os homens dos séculos
criaram elementos e pontos estruturantes, tais como XVI e XVIII reconheceram ou atribuíram àqueles edi-
novas vias ou espaços alargados (praças ou adros) que fícios e à sua envolvência – eles constituem um dos
determinaram novos trajectos na morfologia urbana principais motivos de engrandecimento e expansão
e/ou periférica – por motivos religiosos ou económi- que a cidade de Lamego conheceu ao longo da época
cos (ex. romagens e feiras). A sua construção pode moderna, em parte graças à ação dos seus prelados.
«É esta Cidade situada a forma de uma lua crescente» 137

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138
139

Painel 2

ARQUEOLOGIA
NO/DO DOURO
Susana Cosme
Paulo Dórdio
Pedro Pereira
António Sá Coixão
140
O contributo das pequenas
‘villae’ rústicas
na economia e povoamento
dos séculos IV-VII no Douro.
texto: Susana Rodrigues Cosme, Archeo’Estudos, Ltd, CITCEM,
(susanarodriguescosme@gmail.com)

Resumo: Abstract:
A importância das pars rustica e pars fructuária das he importance of pars rustica and pars fructuá-
villae romanas como base da actividade económica e ria of villae Romans as base of the economic activity
sua relação com o povoamento na região do Douro and its relation with the populating in the region of
durante a transição da época romana para a alta idade the Douro during the transition of the time Roman for
média (séculos IV/VII). Estado da investigação sobre the high average age (centuries IV/VII). State of the
as estruturas destas dependências, suas características inquiry on the structures of these dependences, its
e funcionalidades, que ruturas e continuidades se en- characteristics and functionalities, that ruptures and
contram nesta transição de períodos. continuities if ind in this transition of periods.

Palavras Chave:
villae rusticas, villae fructuarias, economia, povoa-
mento, Douro.
142 Susana Rodrigues Cosme

turas através do registo arqueológico. Por im, tentar


1 - NOTAS INTRODUTÓRIAS perceber se este modelo de povoamento, vingou nos

Q
uando me solicitaram que escrevesse so- séculos seguintes e/ou que alterações sofreu, será sem-
bre Arqueologia no Douro em época ro- pre um objectivo presente.
mana, iquei algo apreensiva sobre o que
escrever, não que o assunto não seja vasto e não haja
muitos motivos de interesse sobre o que falar, mas por- 2 - O CONCEITO DE VILLAE
que, se bem que tenha iniciado os meus trabalhos de

A
investigação167 nesta área geográica, há muito que não o estudar-se o povoamento romano, os
me debruçava sobre a ocupação humana destes mon- núcleos habitacionais são classiicados
tes e vales da bacia hidrográica do Douro. consoante a sua importância dentro do
Embora o meu percurso proissional me tenha aparelho político de Roma e consoante a sua funciona-
afastado geograicamente do Douro, não me afastou lidade: civitas, vicus, villa, casais, povoados mineiros,
da investigação arqueológica, nem do meu interesse mutacios, etc, não nos podemos esquecer que todos
pelo período romano e principalmente, na transição se encontram dependentes de uma civitas capital de
deste para o período alto-medieval. província e em última instância de Roma.
Também o facto de em 2012, ao im de 10 anos Normalmente, os estudos de povoamento baseiam-
portanto, ter voltado a trabalhar na região, desta vez -se em prospecções de superfície que depois resultam
no vale do rio Sabor168, levou-me a aceitar escrever al- em cartas arqueológicas169 com mapas cheios de pon-
gumas considerações/inquietações com que me tenho tinhos maiores ou menores consoante os resultados
debatido nos últimos tempos. dessa mesma prospecção. Apesar de se reconhecer a
Ao resolver escrever sobre as villae rústicas no Dou- importância destes trabalhos como base para estudos
ro começam as problemáticas, a começar pelo próprio futuros, não podemos deixar de chamar a atenção para
conceito de villae, suas características e funcionalida- que a leitura que se faz dos mesmos seja cuidadosa e
des. Sobre as villae no Douro, esbarramos com os mui- sempre critica, pois como veremos, para o caso das
tos sítios referenciados como villae, mas muito poucas villae, elas não são iguais entre elas e o mesmo aconte-
dessas referências foram objecto de intervenções ar- ce para os outros tipos de habitat.
queológicas ou de qualquer outro tipo de análise. Ten- Genericamente compreende-se o termo villae
tar incidir este trabalho na pars rústica e pars frutuária como um tipo de propriedade que engloba uma casa
das villae, ainda pior, pois a monumentalidade da pars principal do proprietário, a chamada pars urbana, as
urbana das villae continua, ainda, a cativar mais, quer casas dos trabalhadores, a pars rústica e os anexos rela-
os promotores de trabalhos, quer o público em geral, cionados com as actividades de exploração económica,
mas principalmente, os investigadores. pars fructuaria a que a villa estava vocacionada com
Este trabalho tem como objectivo caracterizar as lagares, celeiros, fornos, forjas, estábulos. Fazia ainda
estruturas existentes numa pars frutuária de uma villa, parte deste modelo o fundus com os campos cultiva-
apontar sugestões para uma melhor compreensão das dos (agri), as pastagens (saltus) e os bosques (silva).
mesmas, relembrar os casos conhecidos através da bi- O modelo romano para as villae não é estanque, e
bliograia no Alto Douro e chamar a atenção aos inves- como refere André Carneiro é “um conceito que hoje
tigadores da importância de dar conhecer e de estudar sabemos polissémico, com muitos signiicados e mate-
este tipo de estruturas para uma melhor compreensão rializações vivenciais” (CARNEIRO: 2010, 228).
da economia romana, não esquecendo de alertar para Seria bem mais fácil, mas não mais interessante, se
a diiculdade que é reconhecer algumas dessas estru- a conceito de villa fosse mais estanque e homogéneo,
167 “Projecto de Investigação do Monte do Castelo/Calábria” em 1995 mas não é, ele varia ao longo do período cronológico,
com o apoio do GEHVID e com PNTA entre 1998-2002 do qual resultaram varia consoante a área geográica em que se insere, va-
diversas publicações e uma tese de Mestrado apresentada à Faculdade de
Letras da Universidade do Porto sob o título “Entre o Côa e o Águeda – ria consoante o poder económico ou importância po-
Povoamento nas épocas romana e alto-medieval”, em 2002. litica ou até mesmo do gosto pessoal do seu proprie-
168 Dirigindo em colaboração com João Niza a intervenção arqueológi-
ca no EP189 (Quinta de Crestelos, Meirinhos, Mogadouro), sob a coorde- 169 Algumas teses que apresentam listagem de sítios romanos para o
nação de Sérgio Pereira para o ACE/AHBS, pela empresa de arqueologia período aqui abordado: AMARAL: LEMOS: 1993; Coixão: 2000; Cosme:
Archeo’Estudos, Lda. desde Fevereiro de 2012 até Novembro de 2013. 2002.
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas 143

tário, varia consoante a actividade económica a que se


dedica, enim as variáveis são muitas para podermos 3 – ESTRUTURAS DA PARS RUSTICA
estabelecer um conceito de villae perfeita e temos de

A
estar atentos à sua constante mutação não só concep- s estruturas da pars rustica são essencial-
tual mas também física. mente as casas de habitação dos trabalha-
Sobre a evolução da villae em período alto-me- dores da villa, seja qual for a sua condição:
dieval, não existe um critério ixo. Algumas villae são de escravo ou de liberto.
completamente abandonadas, outras são continua- Estas construções também podem ser maiores ou
mente ocupadas, sofrendo algumas alterações urba- menores, mais ricas ou mais pobres consoante o poder
nísticas, mas mantendo a mesma funcionalidade eco- económico do próprio dono da villa. São estruturas
nómica, deixando de estar sob a alçada de uma civitas que apresentam paredes com muros em xisto ou gra-
para passar a responder a uma vila cabeça de terra, nito, consoante a área geográica, usando argamassa
outras, por sua vez, são abandonadas e criam-se es- como ligante. As paredes podem ser rebocadas e al-
truturas novas em zonas contíguas que respondam às guns desses rebocos podem ter pinturas. Normalmen-
necessidades de uma nova forma de política (junto a te os pavimentos são em terra batida e apenas algumas
castelos), de religião (em torno de uma capela) ou até divisões apresentam pisos em opus signinum. Os telha-
de actividades económicas diferentes como serão os dos são em tegula e/ou imbrex sobre ripas de madeira.
casos de povoados mineiros que foram abandonados As cozinhas apresentam lareiras nos centros das divi-
e as suas gentes vêem-se obrigadas a canalizar a sua sões ou num dos cantos e são normalmente feitas em
força produtiva para outras áreas económicas. pedra, tijolo ou tegulae invertidas.
Uma proposta dessa evolução até um período mais Podemos encontrar divisões de habitação, cozinha,
recente foi a apresentada em 1998 por Ricardo Tei- latrinas, armazéns e muitas das vezes nas villae do
xeira ao fazer uma aproximação das villae romanas Douro a pars rústica e pars frutuária não são zonas se-
às quintas do Douro. É um estudo comparado muito paradas mas sim fundem-se num único edifício. Mas
interessante, principalmente, se o izermos em termos a villa urbana também tem divisões para os criados,
urbanísticos e funcionais, tal como as antigas villae, as com cozinhas e salas para trabalhos mais delicados e
quintas têm também elas no ver do autor “um modelo em certos casos temos algumas estruturas da pars fru-
de propriedade, uma forma de gerir e explorar os recur- tuária como lagares na pars urbana, por isso mais uma
sos agro-pecuários, de organizar o parcelário rural, de vez a divisão tripartida da villa tem de ser tida como
dispor as construções e os edifícios” (TEIXEIRA: 1998, um ponto de partida mas não seguida à letra.
86), muito própria. Estas quintas ou evoluíram para al-
deias ou quando isoladas mantêm a casa de habitação,
o lagar, o forno, os currais, a eira e em certas zonas a 4 – ESTRUTURAS DA PARS FRUTUÁRIA
destilaria, são normalmente construções pobres em al-

E
venaria seca (com pedras de xisto ou granito consoan- stas estruturas como vimos estão intima-
te a zona), com coberturas em telha vã sobre traves de mente ligadas com a actividade económica
madeira ou em colmo. praticada na villa e essa depende da sua lo-
No entanto, e como mais uma vez André Carneiro calização geográica das condições dos solos, da proxi-
nos chama a tenção e muito bem, “ver a villa unica- midade ou não de linhas de água, da proximidade de
mente como uma unidade de produção agro-pecuária” matérias primas como minerais, madeiras (bosques),
(CARNEIRO: 2010, 230) também não deixa de ser re- das condições climatéricas, enim de uma ininidade
dutor. Embora a economia se mantenha iel ao cereal, de factores.
olival e vinha e a maioria das vilas fosse auto-suicien-
te, algumas delas especializaram-se em certos produ- 4.1 – Lagares (torcularium) e adegas (cella viná-
tos especíicos e de qualidade que serviam não só de ria ou cella olearia)
moeda de troca mas que entravam nas grandes rotas
de comerciais ou então dedicavam-se a produtos de As estruturas mais comuns presentes nas villas do
difícil percepção aos olhos do arqueólogo, como teci- Douro são os lagares e as adegas, o maior problema é
dos, couros, ou produtos alimentares. relacioná-los com a produção vinícola ou com o azei-
144 Susana Rodrigues Cosme

te. Para chegar a essa distinção ou se fazem recolhas ao trabalho do lagar. Em dois casos por nós escavado
de sedimentos para análises ou são detectados caro- o do Olival dos Telhões (Almendra, Vila Nova de Foz
ços de azeitonas ou grainhas de uva ou ainda se tem Côa) e o da Insuínha, (Pedrógão, Vidigueira) surgiram
a sorte de encontrar mós olearias tronco cónicas. Ter associados aos lagares badalos ou guizos de bovinos.
em atenção para a presença de pesos de lagar, de mós, Não nos podemos esquecer da imensa quantida-
de restos de madeiras ou tecidos. Não esquecer tam- de de lagares rupestres, existentes na região duriense,
bém que para a obtenção do azeite é sempre necessário principalmente nos planaltos graníticos que embora
mais água que para o vinho e como tal os lagares de não estejam integrados nas villae muitos estão dentro
azeite devem icar junto a linhas de água ou ter forma dos seus respectivos fundi e foram utilizados em época
de a fazer chegar até junto do lagar. Segundo Vitruvio, romana.
o torcularium devia permanecer junto da cozinha ou Os exemplos dos lagares da Fonte do Milho, Oli-
em íntima relação com a adega, o lagar devia estar um val dos Telhões (Fig. 1) (Almendra, Vila Nova de Foz
pouco mais elevado na sua implantação e a ligação en- Côa), Rumansil, Prazo, Zimbro (Freixo de Numão,
tre os espaços fazer-se por uma porta. A cella vinária Vila Nova de Foz Côa), Vale de Mouro (Coriscada,
devia estar orientada a Norte, o que a tornaria fria e Meda).
quase obscura, devia estar longe de sítios com maus
odores, como termas, fornos, latrinas ou instalações de
animais, já para cella olearia recomenda-se um espaço 4.2 – Armazéns (granaria) e celeiros (horrea) e
ameno para o azeite não coalhar. Para complementar moinhos (molinum).
o estudo destas estruturas deve-se estar atento ao tipo
de alfaias agrícolas encontradas que são distintas na Outra das grandes actividades económicas era a
viticultura e na olivicultura. Outro aspecto que deve- produção cerealífera e como tal devíamos encontrar
mos ter em conta é a presença de gado bovino na ajuda no registo arqueológico as estruturas de armazena-

1 - Lagar do Olival dos Telhões (Almendra. Vila Nova de Foz Côa)


145

2 - Celeiro da Quinta de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro)

mento: silos, dolia ou sacos de tecido (estes mais di- ao cereal não podemos esquecer os fornos de pão, os
fíceis de detectar) e os próprios armazéns, horrea, moinhos de cereal, quer de mós manuais, moinhos de
onde estes recipientes seriam guardados e protegidos água ou de vento. Associado a tudo isto, temos de es-
das intempéries e dos animais predadores. Estes ar- tar atentos à presença dos pesos de tear, dos cossoiros,
mazéns deviam fazer parte integrante dos anexos da das placas de tear, das mós e mais importante, recolher
pars rústica e por isso nem sempre são caracterizados sempre amostras de sedimento para realização de lu-
isoladamente. Dentro desta actividade são referidos os tuações e análises de macro-restos.
granaria para os grãos de cereal, os fenile para os depó- Os exemplos dos celeiros de Vale dos Mouros (Co-
sitos de feno e os farrariia para os silos de trigo, todos riscada, Meda) (Figura 2) e da Quinta de Crestelos
eles deveriam ser construídos em local alto e ventila- (Figura 3) (Meirinhos, Mogadouro).
do, afastados de fontes de calor ou fogo. Os granaria
ou celeiros, são os mais facilmente detectados no re-
gisto arqueológico, predominam na zona duriense os 4.3 – Pecuária e criação de gado
de pavimento sobre-elevado, apresentando uma série
de muros construídos sob a tabulata, que deveria ser As estruturas ligadas à pecuária e criação de gado
em madeira, mas que também nos surge em lajeado de que deviam aparecer são as que ainda hoje se usam
pedras de xisto. Outro tipo de celeiros são os construí- numa quinta, currais, vacarias, galinheiros. Estas es-
dos sobre pilares tipo palheiros ou espigueiros, neste truturas são mais difíceis de detectar, embora algumas
caso o registo é de mais difícil percepção. Ainda ligado construções existentes nas villas aqui estudadas, sejam
146 Susana Rodrigues Cosme

3 - Celeiro de Vale dos Mouros (Coriscada, Meda)

apontadas como cavalariças, por serem espaços muito 4.4 - Fornos


compartimentados e estreitos no Vale de Mouro em
mais nenhum dos casos aqui apresentados nos mos- Numa villa rústica ou villa frutuária podemos en-
tram estruturas desta tipologia que tivessem como contrar fornos de pão, fornos de cerâmica, de vidro, de
funcionalidade a proteção dos animais. No entanto fundição de metal, de cal.
têm surgido algumas estruturas de forma oval ou elip- Os fornos apresentam normalmente uma câma-
soidal que têm vindo a ser apontadas como currais de ra de combustão, sobre a qual é colocada uma grelha
bovídeos noutras zonas do país ou para outros perío- que depois seria coberta com uma abóbada. A tipolo-
dos. O exemplo da Casa dos Mouros 241 (São Marcos gia de fornos também varia ao longo dos anos e dos
da Serra, Silves) de época romana e os da Quinta de materiais que iriam a cozer, tornando-se ao longo da
Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) de época alto-me- ocupação romana cada vez mais elaborados e a atingir
dieval. Chama-se a atenção para as estruturas de bura- temperaturas mais elevadas: podemos encontrar sim-
cos de poste ou paliçadas muito utilizadas neste tipo ples covachos abertos no solo de base e que serviram
de estruturas, bem como uma recolha cuidadosa da como câmara de combustão ao mesmo tempo que se
fauna mamalógica exumada em cada sítio arqueoló- colocavam as peças no meio, junto com a madeira e
gico e perceber se os veados se encontram mais numa se chegava o fogo, tapando com terra e deixando co-
zona que outra, ou as cabras, ovelhas, vaca/boi, gali- zer em soenga; a fornos de pão também escavados no
nhas, coelhos, patos, enim, percebendo não só o tipo substrato rochoso e apresentando paredes e chão do
de alimentação que faziam à época mas também que forno muito rubfatada, fornos para redução de ferro
animal prevalecia e para que servia se só alimentação como é o exemplo do encontrado no Olival dos Te-
ou se eram animais de trabalho (de tração). lhões (Almendra, Vila Nova de Foz Côa). Estrutura se-
mi-circular constituída por lajes de xisto, com um leito
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas 147

4 - Estrutura de curral em elipse da Casa dos Mouros 241 (São Marcos da Serra, Silves)

de placas de xisto, revestida a argila e grandes blocos Os fornos mais conhecidos e cuja tipologia se man-
de argamassa. Associada a esta estrutura detectou-se teve até à actualidade são os fornos de cerâmica, tra-
uma grande quantidade de cinzas e uma sua observa- tam-se de fornos grandes ovalados ou rectangulares,
ção macroscópica revela que a argila foi sujeita a eleva- com uma câmara de combustão em arcos de tijolo ou
das temperaturas. Descrições semelhantes, nomeada- pedras, com um pilar central ou com vários pilares que
mente numa propriedade do Carvalhal, Moncorvo170, sustentem os arcos. Grelhas robustas em tijolos e argila
são comuns, retratando um determinado tipo de for- e abóbadas em tijolo ou em argila e xisto partido. Estes
nos romanos para uma pequena oicina metalúrgica fornos também podem surgir em pedra como são os
de ferro, de carácter artesanal e local. casos dos fornos do Rumansil. (Figura 5).

170 CUSTÓDIO, 1984, p.30.


148 Susana Rodrigues Cosme

5 - Estrutura de curral em elipse da Quinta de Crestelos 6 - Forno do Rumansil (Freixo de Numão, Vila Nova de Foz Côa)
(Meirinhos, Mogadouro)

5 - NOTAS FINAIS

A
s actividades económicas realizadas nas dor da religião. Passou a existir a divisão do territó-
villas eram a base e o motor da economia rio em bispados e estes por sua vez em paróquias. Se
em época romana, quase todas eram auto a estes bispados correspondiam as áreas de inluência
suicientes e muitas delas produziam em excesso o que das antigas capitais de civitas ou se às paróquias cor-
lhes permitia por esses produtos nas rotas comerciais. respondiam a área dos vicus, isto é, se se mantiveram
A ocupação do território com as características as fronteiras físicas das antigas divisões administrati-
sócio-políticas romanas, mantiveram-se até inícios/ vas, para as divisões religiosas da Idade Média é um
meados do século VI, altura em que o território sofreu aspecto ainda por esclarecer.
a ocupação sueva e visigoda durante o inal do século
VI inícios do século VIII. As alterações sentidas em
termos de povoamento não foram muito signiicativas,
as alterações izeram-se sentir mais no aspecto inova-
O contributo das pequenas ‘villae’ rústicas 149

6 – BIBLIOGRAFIA

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(coord.) – Prot-História e Romanização: guerreiros Estrela-Côa – Agência de desenvolvimento territorial
e colonizadores. III congresso de arqueologia trás-os- da Guarda. p. 209-213.
-montes, alto douro e beira interior: actas das sessões.
Porto: ACDR de Freixo de Numão, vol. 3, p. 29-55.
150
Investigação e Desenvolvimento
no Plano de Salvaguarda do Património do Aproveita-
mento Hidroeléctrico do Baixo Sabor
texto: Paulo Dordio
Investigador do CITCEM/FLUP
Coordenador Geral do PSP do AHBS

Resumo Abstract:

A construção de uma nova barragem hidroeléctrica he construction of a new hydroelectric dam in the
na região de Trás-os-Montes - Aproveitamento Trás-os-Montes region – Baixo Sabor Hydroelectric
Hidroeléctrico do Baixo Sabor (AHBS) - promoveu Plant (AHBS) – was behind an ambitious plan to
o desenvolvimento de um ambicioso plano de minimise the impact of the construction works on a
minimização dos impactes da empreitada de obra very extensive set of heritage assets that include a large
sobre um conjunto muito alargado de elementos number of archaeological sites. Under the guidance
patrimoniais, entre os quais grande número de sítios of a special document drated for the purpose, the
arqueológicos. Orientado por um documento próprio Heritage Protection Plan (Plano de Salvaguarda do
elaborado para o efeito - Plano de Salvaguarda do Património) (PSP), we look at the Baixo Sabor area and
Património (PSP) – centra-se sobre um território, o develop an integrated approach designed to examine
Baixo Sabor, e desenvolve uma aproximação integrada the transformation dynamics of this territory in the
que visa a investigação das dinâmicas de transformação long term, from prehistory to the present day.
desse território na longa duração, da Pré-história aos
nossos dias.
152 Paulo Dordio

1 - O Plano de Salvaguarda do Património do Aproveitamento Hidroelétrico do Baixo Sabor é um plano de execução das Medidas de
Minimização do Impacto de uma Grande Obra de Construção Civil, duas barragens e respetivas albufeiras afetando 23 freguesias dis-
tribuídas por 4 concelhos ao longo de 60 km do curso final do rio Sabor.

1. INTRODUÇÃO

O
Plano de Salvaguarda do Património do neste momento, no 1º semestre do corrente ano de
Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo 2014, o conjunto dos relatórios inais de cada um dos
Sabor171 encontra-se em execução plena sítios e elementos patrimoniais intervencionados e já
desde 2010 e, praticamente encerrados todos os a iniciar-se a elaboração das Monograias que, uma
trabalhos de campo (incluindo as tarefas de selagem vez editadas, concluirão os estudos desenvolvidos
de sítios arqueológicos e preservações in situ) até inal no âmbito do PSP do AHBS. O Plano, que integra
do passado ano de 2013, estão em fase de conclusão um núcleo de Estudos Especíicos (A Pré-história
do Baixo Sabor, A Arte Rupestre, A Proto-história,
171 O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) faz parte da Empreitada A Romanização, A Idade Média ou a Paisagem
Geral do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor promovida pela
EDP, Produção, e cuja execução é da responsabilidade do Baixo Sabor, ACE, Tradicional) bem como Programas Especializados
constituído pelo consórcio ODEBRECHT/Bento Pedroso Construções (Protecção e Monitorização de Valores Patrimoniais,
S.A. e LENA, Construções. O Plano de Salvaguarda do Património tem
a seguinte estrutura de coordenação: Coordenação Geral: Paulo Dordio; Acompanhamento de Obra, Preservação in Situ,
Coordenação de Equipas e de Estudos: Filipe Santos (Cilhades), José Sastre Trasladação de Elementos Patrimoniais,…), implicou
(Proto-história), Luís Fontes (Idade Média), Paulo Dordio (Ediicado),
Rita Gaspar (Pré-história), Sérgio Antunes (Acompanhamento) Sérgio uma inusitada concentração de recursos humanos e
Pereira (Romanização), Soia Figueiredo (Arte Rupestre), Susana Lainho materiais com o objetivo da implementação de um
(Conservação). O Plano de Salvaguarda do Património (PSP) integra
a Área do Ambiente, Qualidade e Segurança da Empreitada Geral, área
projeto de investigação patrimonial numa delimitada
coordenada por Augusta Fernandes. região deprimida do interior transmontano e duriense.
Investigação e Desenvolvimento 153

O processo está a potenciar muitas e diversiicadas


iniciativas paralelas que, privilegiando uma constante
e intensa interação com a comunidade local,
perspetivam a futura continuação da investigação e do
desenvolvimento a partir dos valores do património
cultural, histórico e natural.

2. BREVE CRONOLOGIA DO PLANO DE


SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO

1992 Estudos Prévios


2004 Declaração de Impacto Ambiental (DIA)
2008 Início da obra e da execução das primeiras
medidas de minimização
2009, Maio/agosto - Deinição inal do Plano de
Salvaguarda do Património (PSP) do AHBS
2009, Dezembro/2010, Fevereiro - Entrada ao
serviço da atual estrutura e equipa de execução do PSP
2010, Agosto /setembro - Conclusão da execução
das medidas de minimização prioritárias para
desbloqueamento das frentes de obra
2011, Março - Início das escavações arqueológicas
na área das albufeiras
2011, Abril - Início da prospeção arqueológica
intensiva e sistemática na área das albufeiras
2011, Dezembro- Conclusão da prospeção
arqueológica intensiva e sistemática na área das
albufeiras
2013, Dezembro - Conclusão dos trabalhos de
campo
2014 Conclusão dos trabalhos de gabinete e redação
dos relatórios inais ou Monograias dos Estudos

2 a 5 - Baixo Sabor.

3. PAISAGENS E TERRITÓRIOS NO BAIXO


SABOR

O
Vale do Baixo Sabor impõe-se a quem o
observa cavando o curso vigoroso através
de uma paisagem de planaltos a perder de
vista. As formas são robustas e esmagadoras. Na maior
parte do curso, as encostas são abruptas conigurando
154 Paulo Dordio

um vale muito encaixado entre arribas. Mas, por nos planaltos adjacentes. A ruptura e mudança de
vezes, o vale abre, multiplicando-se os subsidiários paradigma parecem ter ocorrido no último milénio,
que rasgam os planaltos de ambos os lados do da Baixa Idade Média ao Presente.
rio, aplanando as encostas das margens onde se
identiicam antigos terraços luviais. São esses nichos
alveolares que as populações mais antigas, desde que
se começaram a sedentarizar e a criar aldeamentos
permanentes, escolheram para centro dos seus
territórios. Atualmente, porém, nessas mesmas zonas,
não se implanta uma única aldeia. Todas se situam

6 - As zonas de concentração da antiga ocupação humana (até c. de 1000 dC.): Escavações Arqueológicas no âmbito do PSP do AHBS.
Áreas de Escavação: situação em agosto de 2013, prévia ao Plano Final de Crestelos.
Investigação e Desenvolvimento 155

4. EXECUÇÃO DO PLANO DE SALVAGUARDA


DO PATRIMÓNIO EM NÚMEROS

Parâmetro Quantidades Comentário

Prazo de Execução 5 anos 2010 - 2014

Área de Afetação c. 3 093 hectares 2 albufeiras e estaleiros


Sítios/Elementos Patrimoniais
243 À data de 2008
individualizados (RECAPE)
Sítios/Elementos Patrimoniais
2411 À data de 30/10/2013
individualizados (PSP)
Sítios/Elementos Patrimoniais objeto de
115 À data de 30/10/2013
Intervenção Arqueológica
Área total de Escavação Arqueológica c. 24 000 m2 À data de 30/10/2013
Variável/máximos atingidos
Dimensão total equipas internas c. 200 a 250 técnicos (não inclui laboratórios, unidades de
investigação e colaboradores externos)

5. DESENHO DO PROJETO. DESENHO DO


PLANO DE SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO
(PSP)
do património arqueológico e arquitetónico. Mas

I
nformada pelos Estudos Prévios realizados a é já num momento avançado do ano de 2009 que
partir de 1992, que visaram a identiicação e surge o Plano de Salvaguarda do Património (PSP),
avaliação dos valores e elementos patrimoniais estabelecendo, num único documento coordenador
arqueológicos, arquitetónicos, históricos e etnográicos e globalizante, os objectivos e as especiicações
existentes na área a inundar e a afetar como resultado concretas e pormenorizadas do projeto de salvaguarda
do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor do património do Baixo Sabor, assinalando os recursos
(AHBS), a Declaração de Impacto Ambiental humanos e materiais mínimos adequados à dimensão
(DIA)172 de 2004 deiniu e estabeleceu um conjunto das tarefas em vista e deinindo metodologias. Aquele
de condições a que o Projecto de Execução do AHBS documento faz a airmação de três principais vetores
deveria obedecer. Posteriormente, o Relatório de de atuação, com plena consciência da novidade
Conformidade Ambiental do Projecto de Execução introduzida na prática corrente deste tipo de aplicação de
(RECAPE) desenvolveu e especiicou de forma mais medidas minimizadoras de impacto e afetação de obra:
completa essas condições, identiicando entre as 17 1. Ao estabelecer que a salvaguarda do
Medidas de Minimização elencadas, a obrigação de património não se realiza apenas através do
ser elaborado um Plano de Salvaguarda do Património Registo, Monitorizações ou Preservações in situ
(PSP). mas, em primeiro lugar, através da Produção de
Encetada a Fase de Obra em 2008, foi, em Conhecimento, concebe o Plano como um plano
paralelo, iniciada a execução de diversas tarefas de de estudo de um território e de uma paisagem
minimização e de monitorização de impactos na área estruturando-o através de um núcleo de estudos
ou investigações especíicas de âmbito cronológico
172 A Declaração de Impacto Ambiental (DIA) do AHBS foi publicada (Estudo da Pré-história do Baixo Sabor, da Proto-
no «DIÁRIO DA REPÚBLICA — II SÉRIE», N.o 233 — 2 de Outubro de
2004, p. 14719 - 14726. Disponível em <http://www.ambs.pt/index.php/ História, da Romanização, da Idade Média e o
documentos/category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>. [Consulta Estudo das Idades Moderna e Contemporânea),
realizada em 3/02/ 2014]
156 Paulo Dordio

geográico (Estudo da Área de Cilhades) ou à época contemporânea, percebendo a forma como


temático (Estudo da Arte Rupestre). se constituiu a paisagem atual. Poderemos dizer que
2. Ao recusar uma visão atomística do as principais novidades passam pelo objeto de estudo
património, propõe para o estudo dos elementos assumir toda a diacronia e por se exigir um registo
patrimoniais - sítios arqueológicos, ediicado ou não descritivo, mas interpretado. Fica postulada
modos de vida e memórias das populações atuais uma aproximação multidisciplinar à ocupação mais
- uma investigação integrada, perspetivando-os na recente, numa abordagem da mesma natureza da que
sua inter-relação e na relação signiicativa com o é feita à ocupação humana datável das cronologias
território e a paisagem em diacronia. mais antigas. Desaparece a consideração de elementos
3. Ao valorizar patrimonialmente e fazer incluir arqueológicos, arquitetónicos ou etnográicos
na Salvaguarda o Momento Atual da Paisagem, individualmente considerados, e encaram-se todos
aproximando-se dele não só como o momento de estes elementos como partes de um todo histórico-
chegada de uma longa diacronia mas também como arqueológico que importa interpretar176.
um continuum multidimensional (macro e micro
ediicado, coberturas vegetais, gestos, memórias e
representações dos seus habitantes). 6. OPERACIONALIZAÇÃO DA EXECUÇÃO
Foi, deste modo, no entendimento daquele DO PLANO DE SALVAGUARDA DO
documento que o âmbito do «património cultural PATRIMÓNIO (PSP)
integra não somente o conjunto de bens materiais

I
e imateriais de interesse cultural pertinente, como niciada a execução em “obra” do PSP, foi
também os respetivos contextos que, pelo seu valor desde logo evidente a necessidade de criar um
testemunhal, possuam com aqueles uma relação Sistema de Informação Geográica (SIG/GIS),
interpretativa e informativa»173. Assim, determina o único instrumento capaz de apoiar a eicaz gestão e
referido documento que controlo do volume de informação georreferenciada
«os estudos a realizar, articulando as variadas fontes
existentes, deverão espelhar uma análise diacrónica e sincrónica
expectado. Na verdade, não é apenas o volume de
das realidades cronoculturais identiicadas, permitindo avaliar a produção da informação georreferenciada que adquire
persistência do modelo de organização do espaço (...) abordando rapidamente proporções gigantescas. É o volume
a estrutura do povoamento como fenómeno de longa duração. (...)
A realização de diversos estudos especializados sobre o património de produção de informação procedente das mais
do Vale do Sabor deverá procurar garantir as condições para a diversas fontes de informação (registos arqueológicos,
reconstituição narrativa e gráica desta realidade territorial na
sua vertente histórico-patrimonial. Por isso far-se-á um registo inquéritos antropológicos, levantamentos gráicos e
integrado (relacionado) quer do ponto de vista espacial, quer arquitetónicos, registos de fontes arquivísticas, …)
temporal de todos os elementos patrimoniais (...) evitando
uma abordagem atomizada, casuística e descontextualizada dos e suportes (texto, imagem, vídeo, áudio) que atinge
elementos patrimoniais existentes»174. uma dimensão difícil de gerir e controlar, bem como
de articular entre si, de modo a alcançar os objetivos
A preocupação de se passar para um nível propostos. Paralelamente, houve que equacionar
de interpretação global ica claramente expressa o modo como toda a informação e conhecimento
neste documento orientador e traduz a procura da produzidos deveriam ser devidamente organizados
transposição para a prática do enquadramento teórico e preservados para futuro num Sistema de Base de
da mais atualizada problematização sobre a salvaguarda Dados devidamente integrado com o Sistema de
do património cultural que as convenções internacionais Informação Geográica (SIG/GIS), capaz de gerir,
ratiicadas pelo Estado português vêm consignando175. controlar e preservar a informação e conhecimento
Estamos perante o esforço de interpretar a evolução da produzidos.
ocupação humana do território, desde a pré-História Do mesmo modo, e uma vez que, quer em fase de
Estudos Prévios, quer já em fase de RECAPE (Relatório
173 Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico de Conformidade Ambiental do Projecto de Execução),
do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, 86 p.
todos os trabalhos de prospeção, identiicação e
174 idem
inventariação dos elementos patrimoniais existentes
175 FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA, Alexandra Cerveira
(2013) – Paisagem Como Fonte Histórica. In Actas Congresso Internacional
Arqueologia Moderna. Lisboa. 2011. CHAM 176 idem
Investigação e Desenvolvimento 157

na área a afetar haviam sido realizados com critérios prospeção de malha apertada em cerca de 2500 ha de
e metodologias de malha excessivamente larga, surgia terreno acidentado, com difíceis acessibilidades e, na
agora como prioritária a execução de uma Prospeção maior parte da área, coberto com densa vegetação177.
Sistemática e Intensiva em Fase de Obra. Desde logo O resultado obtido pelas equipas de prospeção alterou
porque a execução da “prospecção Intensiva, durante profundamente o conhecimento do património
a fase de construção, da totalidade da área afectada” arqueológico, arquitetónico e etnográico do vale,
constituía uma das Medida de Minimização dos tendo multiplicado por 10 o número de Elementos
Anexos da Declaração de Impacte Ambiental (DIA) Patrimoniais inventariados (2411 Elementos
do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor de Patrimoniais à data de 30/10/2013).
2004. Mas ainda, porque, apenas com a realização dos
primeiros trabalhos não sistemáticos de prospecção
pelas equipas do PSP em 2010, os 253 Elementos
Patrimoniais identiicados em RECAPE (2008)
haviam rapidamente sido incrementados para cerca
de 900 sítios, o que demonstrava sobejamente quanto
o património do vale do Baixo Sabor se encontrava
subavaliado. Foi assim concebido e implementado um
plano de ação com a dimensão e os recursos necessários
a que, num prazo de tempo que se apresentava 177 Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda a Área de
Afectação Durante a Fase de Construção do Aproveitamento Hidroeléctrico
manifestamente escasso, fosse possível realizar uma do Baixo Sabor. 04.03.2011. AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS.

7 - Situação em março de 2011: prévia ao Plano de Prospecção Sistemática e Intensiva


158 Paulo Dordio

8 - Situação em fevereiro de 2012: posterior à execução do Plano de Prospeção Sistemática e Intensiva

Outro importante desenvolvimento em fase de já o objetivo de um estudo especializado sobre os


execução do Plano de Salvaguarda do Património Terraços do Sabor e da Evolução Geomorfológica do
(PSP) foi o da estruturação e organização autónoma Rio Sabor mas deixava outras dimensões deste tipo
de uma Área de Conservação, Laboratório e Arquivo de aproximação numa formulação muito mais vaga.
de Espólio e Materiais, não prevista como tal na O concurso e colaboração de vários especialistas,
formulação original do Plano mas que, fruto das laboratórios e unidades de investigação externas
necessidades identiicadas no decurso da experiência viriam a permitir concretizar o arranque de programas
da sua operacionalização, viria a ser objecto de de estudo e analíticas especializadas não apenas sobre
formalização em Adenda ao documento original do a dinâmica luvial mas igualmente sobre a dinâmica
PSP178. de vertentes, a identiicação dos recursos ambientais
Deverá ser do mesmo modo realçada a importância e da sua manipulação antrópica (paleobotânica,
que a componente de reconstituição Paleo-ambiental zooarqueologia, recursos minerais – nomeadamente
tem vindo a assumir ao longo da execução do Plano de os metais, pétreos e as argilas) assim como o estudo das
Salvaguarda do Património (PSP). Esta parece ser aliás populações humanas (antropologia física incluindo
a consequência lógica de um Estudo centrado num uma analítica bio-antropológica)179. Ensaia-se deste
território e na sua longa diacronia. O Plano especiicava modo um esforço de reconstituição paleo-ambiental

178 Plano de Salvaguarda do Património, Adenda. Aproveitamento


Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção. 12.01.2012 179 Neste âmbito está a ser ultimado um protocolo de colaboração com
e Revisão 1 do mesmo datada de 09.03.2012. AHBS/ADPSP.01.01. o CIAS, Departamento de Ciências da Vida - Universidade de Coimbra
Investigação e Desenvolvimento 159

global e multi-disciplinar180. última zona do planalto uma vez que todo o processo
O diálogo que tem vindo a ser implementado de intervenção no âmbito do PSP se centra, quase
entre os diferentes investigadores e especialistas em exclusivo, no fundo do vale, a área futuramente
envolvidos, cruzando os sucessivos avanços inundada pelas albufeiras.
obtidos no conhecimento, começa a permitir a
problematização das dinâmicas da ocupação humana
na longa diacronia do Baixo Sabor sobre uma base
empírica e analítica de largo espetro. O aprofundar
da reconstituição paleoambiental e o emergir da
importância das dinâmicas e relações entre a zona do
vale e os planaltos adjacentes está também a mostrar a
urgência da abertura de uma área de amostragem nesta

180 Estão neste momento envolvidos investigadores, laboratórios


e unidades de investigação como o CIBIO, Faculdade de Ciências –
Universidade do Porto, Cegot, Faculdade de Letras - Universidade do
Porto, UNIARQ – Universidade Nova de Lisboa, ITN – Universidade
de Lisboa, Universidade do Minho, e Grupo de Tecnologia Mecânica y
Arqueometalurgia - Universidade. Complutense, Madrid. Um indicador
quantitativo da dimensão do esforço empreendido é, por exemplo, o do
volume de sedimento arqueológico sujeito a lutuações para estudos
astrobotânicosue se contabilizava à data de 30/10/2013 em 38 505 litros! No
que respeita ao programa de datações absolutas através de radiocarbono
estão envolvidos diversos laboratórios nos EUA e na Holanda, as datações
TL estão a cargo do ITN – Universidade de Lisboa e Paleo-magnetismo da
responsabilidade do GPM - Universiddad Complutense, Madrid.
160 Paulo Dordio
Investigação e Desenvolvimento 161

9 a 12 - Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). No topo de um esporão com amplo domínio visual, no local hoje conhecido por Castel-
inho, as escavações arqueológicas puseram a descoberto um sítio fortificado proto-histórico (Idade do Ferro). Já a ocupação humana
dos períodos subsequentes, mesmo a romana, parece privilegiar as zonas de topografia mais baixa e de maior proximidade com o próprio
Rio Sabor, no Cemitério dos Mouros e no Laranjal. Muito embora os vestígios da ocupação humana mais visíveis atualmente se prendam
com construções tardias, diretamente relacionadas com o aproveitamento sazonal dos terrenos agrícolas ali existentes – edifícios
de apoio agrícola, muros de socalco, muros apiários, poços de captação, levadas de água... – há neste pequeno lugar claras evidências
de uma ocupação continuada no tempo, iniciada ainda na Pré-história Recente (c. 3000 aC). Bastante mais expressivas são as marcas
deixadas durante a Idade do Ferro, o período romano e medieval até, praticamente, aos nossos dias. Cilhades manteve-se, até aos anos
de 1980, como uma zona de passagem fluvial importante, servida por uma barca que garantia o acesso de pessoas e bens entre as duas
margens do Rio Sabor. A importância desta passagem fluvial, documentado desde pelo menos a Época Moderna, é assinalável, observan-
do-se este lugar destacado na cartografia portuguesa mais antiga, datada do século XVI, como Barca de Silhades. Esta embarcação só
seria suplantada em 1982 pela construção, nas proximidades do local de travessia, de um pontão.
162 Paulo Dordio
Investigação e Desenvolvimento 163
164 Paulo Dordio

13 a 16 - O sítio de Crestelos (Meirinhos, Mogadouro) está localizado num meandro do Sabor onde o rio abre uma ampla bacia propici-
adora da ocupação humana e de características semelhantes às de Cilhades (Felgar, Torre de Moncorvo). Os estudos realizados nesta
área revelaram uma ocupação humana intensa desde o Paleolítico, no sítio do Medal, passando pelo Calcolítico, Idade do Bronze, Idade
do Ferro, período romano, Idade Média e a era Moderna, prolongada até hoje com a Quinta de Crestelos que estava ainda em exploração
no início da intervenção no âmbito do PSP. O povoado da II Idade do Ferro revela um modelo pela primeira vez reconhecido na região em
que um pequeno esporão fortificado, com várias linhas de muralha e fossos, se associa a uma extensa área habitacional aberta implanta-
da no sopé da elevação. As principais construções de época romana e medieval (sécs. II-III a XIII) identificaram-se imediatamente a Oeste
dos actuais edifícios da Quinta de Crestelos, prolongando-se por debaixo destes. Estas edificações de alvenaria, exibindo uma densa e
complexa sequência construtiva, utilizaram diversas soluções arquitectónicas desde a casa de uma única divisão a casas de planta de
pátio central. Conexas desta fase identificaram-se dois cemitérios com numerosos enterramentos. Regista a memória local na aldeia de
Meirinhos que a Quinta de Crestelos era baldio da comunidade e apropriada pela família Távora, detentora de grande poder e influência
na região, uma vez que foi entregue pela população àquela família apenas por três vidas, ou seja três gerações, em troca da construção
da Capela de Santa Cruz, situada na aldeia, e da ponte de arco pleno que atravessa o ribeiro de São Pedro, ligando os termos de Meir-
inhos e de Valverde. A documentação arquivística e as fontes históricas entretanto identificadas no âmbito do PSP, estão a permitir
reconstituir e entender melhor os pormenores da difícil e conflituosa relação mantida ao longo dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, desde
que a família Távora se estabelece na região no final da Idade Média e é obrigada a contrariar a resistência das comunidades locais à
construção do seu extenso domínio territorial.

17 e 18 - Sondagens nas pinturas parietais da capela da Santo Antão (Parada, Alfândega da Fé), localizada na margem oposta à Quinta
de Crestelos, permitiram identificar três campanhas sucessivas sendo a primitiva, datada de meados do século XVIII, de uma enorme
qualidade artística e valor patrimonial, provavelmente associada a uma encomenda da família Távora a um pintor da Corte ainda não
identificado. A descoberta das pinturas no decurso da intervenção do PSP obrigou à reformulação do projeto inicial de salvaguarda
que passou a incluir a trasladação integral das pinturas murais e o restauro de todo o recheio artístico.
Investigação e Desenvolvimento 165

patrimoniais individualizados (EP) em «processos»,


8. DESENVOLVIMENTO DE UMA METODO- «técnicas», «vivências», «práticas» ou «expressões» de
LOGIA ADEQUADA AO REGISTO E ESTUDO nível superior. Veriique-se a especiicação extraída do
DO CONTINUUM MULTIDIMENSIONAL QUE É PSP182:
«os levantamentos patrimoniais realizados no vale do Sabor
A PAISAGEM MAIS RECENTE E ACTUAL: O ES- durante o EIA e o RECAPE do empreendimento identiicaram um
TUDO DO EDIFICADO. número elevado de estruturas que se relacionam com a ocupação
do território durante a Época Moderna e Contemporânea (...).

E
Estes elementos patrimoniais contemplam habitações, estruturas da
stabelecendo o PSP uma estratégia de arquitetura de produção, caminhos, muros de propriedade, obras de
abordagem em que todos os estudos contenção de terras e modelação do solo, obras de aproveitamento
do rio e manifestações de religiosidade popular. Ainda que
parcelares e ações a realizar deverão ser alguns destes elementos apresentem um valor próprio pela sua
perspetivados de modo articulado e integrador, tipologia, expressão arquitetónica ou artística, singularidade
ou caráter simbólico e social, a maioria deles só ganha expressão
com o objetivo último de estudar na longa duração quando integrada no conjunto de testemunhos dos processos de
a construção de uma paisagem, a do Baixo Sabor, assentamento, das técnicas construtivas, da vivência social, da
prática económica ou da expressão simbólica das comunidades que
é talvez na investigação que o Plano de Salvaguarda ocuparam o vale do Sabor.
designa como «estudo sobre os elementos ediicados e «Neste sentido entende-se que é essa dimensão integrada de
conjunto, no que diz respeito à integração histórica strito senso
construídos de caráter arquitetónico e etnográico no e formal (formas que tal património assumiu na dinâmica da
Vale do Sabor» que se levantaram os maiores desaios ocupação histórica) que deve ser objeto deste estudo. De modo
simpliicado, diremos que o registo das manifestações da arquitetura
no desenvolvimento de uma metodologia adequada
tradicional e de todas as atividades desenvolvidas no vale do Sabor
aos objetivos apontados uma vez que aqueles mesmos em época que cremos ser moderna e contemporânea, tem como
elementos tem vindo a ser considerados de forma diversa principal objetivo um estudo que personiicará a sua salvaguarda
na memória futura. As visões de conjunto caminham a par com
noutras intervenções de Minimização de Impactos. este registo».
Foi entendimento da coordenação da equipa em Para a execução dos objetivos propostos em PSP
campo, em articulação com a tutela, que o objeto entendeu-se que a operacionalização no registo
central do estudo proposto em PSP se foca sobre o que e no estudo da dimensão integrada de conjunto
designaremos paisagem tradicional entendida como o deveria assentar na consideração do cadastro como
momento de organização da paisagem imediatamente enformador das unidades funcionais (prédios rústicos)
anterior às profundas roturas que no prazo de apenas através das quais é possível integrar diversos elementos
meio século, entre 1950 e 2000, fariam reduzir o peso patrimoniais individuais (EP) que passam deste
da população rural portuguesa de valores superiores a modo a relacionar-se no interior de uma unidade de
50% para valores inferiores a 5%. Perspetivada na longa paisagem. A integração é assim operacionalizada não
duração, a paisagem tradicional preenche o período apenas na extensão ou espaço, como igualmente no
que se estende entre a Idade Média Plena (século XI) e tempo e na História. Na verdade, cada uma daquelas
o auge da ocupação demográica do espaço rural que unidades de paisagem:
acontece nas décadas de 1950 e 1960. - é uma propriedade, quer dizer uma extensão
A necessidade de compatibilizar a macro com a sobre a qual se exercem direitos associados a
micro arquitetura, o registo do material com o registo determinados indivíduos ou famílias; os quais
das memórias e das representações dos habitantes181, foram, ao longo do tempo e das sucessivas gerações,
perspetivando a paisagem e o território como um objeto de herança ou alienação;
continuum, conduziu a relexão metodológica à eleição - é uma unidade de exploração agrícola, quer
do “prédio rústico” como a unidade de informação dizer um conjunto de recursos organizados de
base nas tarefas de descrição e interpretação. acordo com as tecnologias disponíveis de forma a
Importa realçar o que na formulação do garantir subsistência e rendimento que sofreram
Plano de Salvaguarda surge como a «dimensão ao longo do tempo processos de maior ou menor
integrada de conjunto», bem como a necessidade de intensiicação ou de abandono;
integração, expressa nesse documento, dos elementos - é uma memória, quer dizer um lugar

181 As entrevistas e inquéritos de caráter antropológico junto dos 182 Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento Hidroeléctrico
habitantes do Baixo Sabor no período de 28/09/2009 a 25/09/2013 do Baixo Sabor, Empreitada Geral de Construção, EDP, 2009, ponto 4.7.
totalizaram 1067 inquéritos e entrevistas a 389 informantes tendo sido Estudo sobre elementos ediicados e construídos de caráter etnográico no
obtidas 938 h de registos áudio e/ou vídeo. Vale do Sabor.
166 Paulo Dordio

identiicável pela comunidade por nome próprio ocupação deste território pelas gentes da época moderna
(micro-topónimo) no qual se acumulam e ao qual e contemporânea, é o de uma integração de nível
se associam vivências e expressões que fazem parte sucessivamente superior das unidades de paisagem de
da memória e da História da mesma comunidade. forma a dar conta do tecido contínuo e dinâmico que
O passo seguinte neste processo de estudo da a paisagem do Vale do Sabor constitui.
paisagem, que visa uma compreensão global da

19 e 20 - Foz da Ribeira de Zacarias: olgas espraiadas e muito férteis; concentração de quintas: Crestelos e Barrais; Quinta Branca;
Quinta de São Gonçalo (Freguesia de Meirinhos- Mogadouro; Cerejais e Ferradosa - Alfândega da Fé). Levantamento Arquitetónico da
Quinta Branca. Alçados do Núcleo Central.
Investigação e Desenvolvimento 167

21 e 22 - Moinho do Freitas
(entre Vilar Chão, Alfân-
dega da Fé e Paradela,
Mogadouro). Moinho de sub-
mersão, de caráter sazonal,
constituindo o tipo de mo-
agem mais comum no passado
do curso do Baixo Sabor. A
vontade e a persistência do
seu proprietário e moleiro –
Sr. António Freitas – mantin-
ham ainda em funcionamento
este moinho, até ao ano de
2011. Último descendente
de uma família de moleiros,
permitiu o registo vivo do
fazer e saber fazer bem como
da memória de várias ger-
ações ligadas à utilização
tradicional da força do rio
como elemento essencial de
uma paisagem de pão como
foi a do vale e planaltos do
Baixo Sabor.
168 Paulo Dordio

9. INVESTIGAÇÃO E QUE DESENVOLVI-


MENTO?

P
róximos do momento da conclusão do
processo enunciado no Plano de Salvaguarda
do Património do Aproveitamento
Hidroelétrico do Baixo Sabor - que se completará com
a publicação e difusão da síntese do conhecimento
produzido, já prevista sob a forma de uma colecção
de Monograias correspondentes a cada um dos
Estudos desenvolvidos – deverá ser-nos permitido
traçar um esboço de balanço do que de mais positivo
e, paralelamente também, de mais negativo, resultou
desta experiência e projecto.

Negativo Positivo

Descobertas inesperadas e produção de conhecimento


Escasso conhecimento prévio dos valores patrimoniais em
arqueológico e histórico com contributos excecionais e
presença no Baixo Sabor
novos paradigmas

Diiculdades e atrasos ocasionados pelos processos


Alargada concentração de recursos técnicos e cientíicos
burocráticos de expropriação ou de abate de árvores
que transformou o PSP do AHBS num dos maiores
Diiculdade e atrasos na mobilização de recursos humanos
projetos arqueológicos realizados em Portugal
e materiais

Escassos indicadores à superfície do solo com a ocultação


dos níveis arqueológicos sob espessos depósitos de fundo Compatibilização entre uma obra de construção civil
de vertente ou nos terraços do rio; forte ação destrutiva de grande complexidade e um projecto de estudo e
dos níveis arqueológicos pela dinâmica do rio salvaguarda patrimonial muito ambicioso num contexto
de prazos muito apertados

Necessidade muitas vezes de um diálogo musculado


entre as partes e interesses envolvidos: Dono de Obra,
Empenho e metodologia de proximidade na ação dos
Empreiteiro Geral, Investigadores e Tutela
organismos e técnicos da Tutela do Património

Inexistência de um Plano de Comunicação ao longo da


Experiência acumulada de redeinição de objetos
execução do projecto
de atuação, desenvolvimento de metodologias mais
Atraso na deinição e elaboração de uma Estratégia e
adequadas de registo e estudo e de instrumentos de gestão
Plano de Valorização e Difusão Futura
Investigação e Desenvolvimento 169

23e 24 – Dinâmica e iniciativas do grupo informal Aldeia Viva*. O envolvimento e a proximidade de elementos das equipas do PSP com as
comunidades locais potenciou uma sequência de iniciativas conjuntas, que tiveram origem e continuam a ter lugar de forma paralela e
autónoma ao processo institucionalizado de Minimização de Impactos, mas que criaram seguramente raízes para futuro.

*As actividades do grupo Aldeia Viva podem ser acedidas através dos seguintes links: http://grupoaldeiaviva.wix.com/aldeiaviva; https://www.facebook.
com/aldeia.viva.5?ref=tn_tnmn; http://www.lickr.com/photos/97386232@N03/"
170 Paulo Dordio

Por último, quatro do que penso deverem ser prin-


cípios estratégicos de um desenvolvimento regional BIBLIOGRAFIA
futuro potenciado pelos valores patrimoniais identii-
cados e estudados no âmbito do Plano de Salvaguarda Declaração de Impacte Ambiental (DIA) do AHBS
do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico do (2004) - Diário da República, II Série, N.º 233 — 2
Baixo Sabor. de Outubro de 2004 [4719 – 14726]. Disponível
em <http://www.ambs.pt/index.php/documentos/
1. A participação e envolvimento das comunida- category/5-decaracao-de-impacto-ambiental>.
des e dos decisores locais é a chave da sustentabilidade [Consulta realizada em 3/02/ 2014].
de qualquer projecto local.
FERREIRA, David; DORDIO, Paulo; LIMA,
2. Mais do que criar novas estruturas importa
Alexandra Cerveira (2013) – Paisagem Como
requaliicar estruturas já existentes na região e promo-
Fonte Histórica. Velhos e Novos Mundos. Estudos de
ver redes e parcerias.
Arqueologia Moderna. Lisboa: CHAM – FCSH/Nova-
3. Os valores patrimoniais em presença susten- UAC.
tam absolutamente uma ambição muito elevada nos
futuros projectos a implementar. Memória Descritiva. Prospecção Intensiva de Toda
a Área de Afectação Durante a Fase de Construção
4. Não é possível fazer valorização e educação do Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor.
patrimonial de qualidade sem um continuado supor- (2011.04.03) AHBS/NTPSP.08.00, 25 p. + 4 ANEXOS.
te em investigação e produção de conhecimento sobre (policopiado).
esse mesmo património. A futura investigação e pro-
dução de conhecimento sobre o património do Baixo Plano de Salvaguarda do Património, (Adenda).
Sabor deverá promover uma estratégia regional de Aproveitamento Hidroeléctrico do Baixo Sabor,
investigação prosseguindo e potencializando as pro- Empreitada Geral de Construção. (2012.01.12) e
blemáticas abertas e a articulação com linhas de acção Revisão 1 do mesmo datada de (2012.03.09) AHBS/
complementares do projecto de investigação desen- ADPSP.01.01. (policopiado).
volvido no âmbito do PSP do AHBS, procurando con-
trariar a tendência sempre mais comum de “começar Plano de Salvaguarda do Património, Aproveitamento
tudo de novo a cada vez”. Neste sentido, será impor- Hidroeléctrico do Baixo Sabor, Empreitada Geral de
tante identiicar uma Rede regional de sítios arqueoló- Construção (2009). EDP. (policopiado).
gicos e patrimoniais prioritários e de elevado potencial
bem como promover a criação de uma linha editorial
devotada à difusão de qualidade dos resultados da in-
vestigação.

A conclusão e o encerrar do Plano de Salvaguar-


da do Património do Aproveitamento Hidroeléctrico
do Baixo Sabor, com um balanço que, neste momen-
to, só pode ser considerado positivo, deverá constituir
um novo desaio, em particular para os técnicos en-
volvidos neste tipo de processos de Minimização de
Impactos de Obra. Aqui chegados, importa agora, em
futuros empreendimentos, fazer a Regra do que se con-
descendeu aceitar, a mais das vezes, como uma Excep-
ção irrepetível.
171
172
De vino ac vineas
viticultura romana no Vale do Douro
texto: Pedro Pereira
(UMR 5138 Archéologie et Archeonometrie (CNRS) e do CITCEM-FLUP (FCT)

Resumo Abstract

No século Iº a.C., Estrabão escreve uma das primei- Strabo, on the Ist century B.C., writes one of the
ras obras conhecidas, a Geograia, em que a Lusitânia isrt known works on Lusitania, Geographia. On the
é referida. No primeiro parágrafo do terceiro capítulo irst paragraph of the third chapter of the third book,
do terceiro livro, descreve os povos do Norte da Lu- he describes the people of Lusitania as drinkers of zi-
sitânia enquanto consumidores de zithos, um tipo de thos, a type of beer, “(…) they are short of wine, and
cerveja, “(...) mas são escassos de vinho, e o vinho que when they have it, they drink it hastily during wed-
teem bebem-no rapidamente em festas de casamento dings with their kin.”. On the other hand, Archaeology
com seus familiares.”. A Arqueologia, pelo seu lado, has proved this consumption, at least among the elites,
tem vindo a comprovar este mesmo consumo, pelo around the Douro basin at least since the IInd century
menos entre elites, na bacia do Douro pelo menos des- BC.
de o século IIº a.C. However, the increase of consumption and pro-
Todavia, a massiicação de consumo e produção duction of wine will be a reality only during the Ro-
de vinho serão fruto do processo de romanização, manization of the area. Starting mostly around the Ist
empreendido a partir do século I a.C. e que consta da century BC, it’s part of the roman production classic
triologia de produção romana, a passo com as produ- trilogy, along with the cereal and olive oil productions.
ções cerealífera e oleícola. Early on the traditional XIXth century historiogra-
A vinicultura romana é desde muito cedo associada phy, roman wine production has been associated the
ao Douro na historiograia tradicional do século XIX, Douro Valley. Yet, it will only be during the XXth cen-
mas será apenas em meados do século XX que será tury, that this will be proven, with the excavation of the
comprovada a sua antiguidade na região, com as esca- Alto da Fonte do Milho. It is an important moment for
vações do Alto da Fonte do Milho. Este será um mo- the history of wine in the Douro region and it’s when
mento fundamental para a história do vinho no Douro the Archaeology of Wine is born in the region.
e a partir do qual a Arqueologia do Vinho no Douro
nasce. Keywords: wine; Douro; Romanization
Palavras chave: vinho; Douro; romanização
174 Pedro Pereira

Em 1947, Fernando de Russel Cortez chega à esta- teriais e de sítios arqueológicos intervencionados an-
ção de caminhos-de-ferro de Peso da Régua com uma teriormente.
bolsa do Instituto do Vinho do Porto para realizar uma Durante a sistematização do nosso estudo, estabele-
prospecção arqueológica no Vale do Douro. Um dos cemos sete conjuntos de elementos que se revelam es-
seus objectivos é deveras especíico: o de comprovar senciais para compreender o papel que o vinho joga no
a antiguidade do vinho na região. Seguir-se-ão vários processo de aculturação que normalmente chamamos
anos de escavação no que virá a ser conhecida como de romanização e na economia regional. Em primeiro
a primeira estação arqueológica de cronologia clássica plano, o estudo das estruturas produtivas, tanto as es-
com produção de vinho descoberta em território por- truturas de exploração agrícola de maiores dimensões,
tuguês, o Alto da Fonte do Milho (Canelas). como as villae, tanto como as estruturas menos im-
Em 2007 realizamos um trabalho de mestrado so- portantes, como os casais rústicos, e as estruturas de
bre a produção romana de vinho no Vale do Douro, produção de elementos de armazenamento e transpor-
no qual abordamos todos os sítios arqueológicos com te, normalmente associados ou estabelecidos a curta
produção e vestígios de consumo de vinho durante distância das estruturas de produção de vinho. Estes
a época romana. Em seguimento a este trabalho, es- três tipos de sítios, muitas vezes concomitantes, per-
tamos a realizar um doutoramento sobre tecnologia mitem-nos elaborar sobre como, onde e quando é que
e economia vinícola na Lusitânia. No decurso destes o vinho era produzido e, muitas vezes, compreender
dois trabalhos académicos, realizamos centenas de o seu destino inal. Em segundo plano, o estudo dos
prospecções, sondagens, escavações e estudos de ma- elementos utilizados para a plantação e tratamento da

1 - Lagar do Alto da Fonte do Milho


(Pedro Pereira, a partir de F.R. Cortez, 1947).
De vino ac vineas 175

vinha, dos elementos utilizados para a produção de vi- transformado e é construída uma série de estruturas
nho e dos elementos utilizados para o armazenamen- de apoio, típicas de uma villa, aproveitando o terreno
to e transporte de vinho, permitem-nos compreender acidentado do Douro enquanto possível. Aqui é esta-
a cadeia operatória de produção neste período e, em belecido um lagar e construída uma cella vinaria de
conjunto com elementos variados, relacionados com a estrutura rectangular, embora durante as primeiras
vida quotidiana e/ou de carácter religioso, permitem- escavações R. Cortez apenas tenha, aparentemente,
-nos não só compreender como e quando se desenvol- identiicado o primeiro.
ve a viti-vinicultura no período romano nesta região
mas também como é que esta actividade, com uma O lagar do Alto da Fonte do Milho consistiria numa
matriz cultural tão forte, se implanta e loresce. estrutura simples, de contrapeso ancorado na parede
Num total de 19 sítios romanos com actividade do edifício (arbol). A viga exercia pressão sobre uma
vinícola comprovada conhecidos na Lusitânia, seis estrutura de madeira que, por sua vez, faria com que as
encontram-se na zona do Vale do Douro. Destes seis, uvas, que estariam dentro de sacos de ibra vegetal ou
apresentaremos quatro dos mais representativos e dois iscinae, libertassem o seu sumo. A fermentação seria
outros sítios, a Norte, na Hispania Tarraconensis, mas realizada directamente no interior dos dolia, recipien-
ainda na zona do Douro. tes cerâmicos de grandes dimensões revestidos com
O sítio do Alto da Fonte do Milho, o primeiro a pez, na cella vinaria.
ser descoberto ainda na década de 30 do século passa-
do183, consiste num provável povoado proto-histórico O sítio do Prazo (Freixo de Numão) foi interven-
ou castro, assimilado algures durante o século IIº da cionado entre as décadas de 80 e 90 do século XX. No
nossa Era numa estrutura de exploração rural. Nesse decurso desse trabalho, foi identiicado um território
momento, o ponto mais alto do castro é totalmente utilizado enquanto habitat humano durante pelo me-

183 TEIXEIRA, 1939.

2 - Prazo (ACDR de Freixo de Numão).


176 Pedro Pereira

piso elevado em opus signinum, aparentam ser parte


de um lagar. Da mesma forma, a própria orientação e
forma do edifício são similares a outras cellae vinariae
presentes na Lusitânia, como Torre de Palma (Monfor-
te) ou Vale do Mouro (Coriscada). Da mesma forma,
nos níveis relativos à cronologia romana, foi desco-
berta uma grande quantidade de dolia recobertos com
pez. Foi também descoberto um bloco deste material,
associado a uma lareira.

O sítio de Rumansil I (Murça do Douro), à primei-


ra vista, aparenta ser um casal rústico de pequenas di-
3 - Rumansil I (Pedro Pereira, a partir de T. Silvino, 2003).
mensões. Todavia, a identiicação do sítio de Rumansil
II, entretanto destruído, aparenta ilustrar a funciona-
lidade deste complexo artesanal como uma fracção da
nos 8000 anos. No período tempo cronológico relati- pars rustica de uma villa, da qual o Prazo faria parte
vo à época romana, foram identiicadas uma série de enquanto pars urbana. Uma explicação que podere-
estruturas que aparentam corresponder, pelo menos mos apresentar para a presença de duas cella vinarias
parcialmente, à pars urbana, ou casa senhorial, de uma numa única villa pode prender-se com os terrenos di-
villa. Entre outras, aparenta ter especial interesse um fíceis onde Rumansil I se implanta e a distância entre
edifício rectangular, re-ocupado durante a Alta Idade os dois núcleos. Ao mesmo tempo, a proximidade de
Média e onde foram encontrados três tanques, parcial- Rumansil I ao rio Douro facilitaria certamente um es-
mente destruídos. Estas estruturas, associadas a um coamento da produção.

4 - Calcatorium, lacus e lacus musti de Vale do Mouro (Pedro Pereira).


De vino ac vineas 177

Para além de uma cella vinaria extremamente com-


pleta e num estado de conservação excepcional, com
uma série cinco de tanques escavados directamente
sobre um rochedo e cobertos com opus signinum, o
sitio de Rumansil I possui também dois fornos de pro-
dução cerâmica, um dos quais de produção de dolia.
As formas detectadas em Rumansil I aparentam ter to-
das sido utilizadas para o armazenamento de vinho184.

O sítio de Vale do Mouro (Coriscada) é, até ao


momento, a villa de maiores dimensões conhecida no
Douro português. Com uma área intrevencionada li-
geiramente superior a 5.000 m2 e com uma dispersão
de materiais superior a 12.000 m2, esta villa tem tam- 5 - Lagar escavado na rocha III de Pegarinhos (Pedro Pereira).
bém o lagar romano de vinho em melhor estado de
conservação presente na região duriense. Composto
por uma área de prensagem e três tanques, o lagar é estruturas. Os elementos mais visíveis que temos des-
completado por uma cella vinaria com uma dimensão tes casais são os lagares escavados na rocha. Todavia, a
superior a cerca de 150 m2. A produção de vinho apa- própria morfologia do terreno do Douro é tacitamente
renta iniciar-se durante o século II da nossa Era, pe- propícia à implantação de estruturas de menores di-
ríodo, aliás, do estabelecimento da planta em peristilo mensões e ao que aparentam ser minifundia. Assim, os
que podemos observar ainda hoje em dia, uma evolu- lagares escavados na rocha, enquanto forma simples
ção da planta linear original. Nesse momento e com os de garantir a produção de vinho em zonas de difícil
dados que possuímos, pensamos que a produção era acesso, mas também de garantir a construção a valores
exclusivamente armazenada em tonéis, que não deixa- inferiores aos de um lagar em maçonaria, perduram
ram vestígios no registo arqueológico. até aos nossos dias, sendo na maioria dos casos muito
Num segundo momento da produção, a partir do complicado atribuir-lhes datações precisas.
século IV e a par de alterações arquitectónicas na villa, Todavia, é possível compreender como é que são
aparentemente assistimos a uma alteração de paradig- utilizados e desenvolvemos uma tipologia simpliicada
ma, com a utilização de dolia vinários em zonas que, que, em 11 variantes, permite-nos identiicar o esque-
anteriormente, teriam funções distintas, facto bem pa- ma produtivo, necessidades especíicas e, em alguns
tente na pars urbana, mas não só. casos, excluir determinadas datações e utilizações,
O sítio de Olival dos Telhões (Almendra), interven- como as produções de azeite ou mel, entre as cerca de
cionado na década de 1990 constitui outro exemplo duas centenas de lagares escavados na rocha conheci-
de uma exploração rural romana no Douro. Situado dos no Vale do Douro.
numa zona de planície, entre o Douro e o Côa, a in- Chegamos assim aos elementos de armazenamen-
tervenção realizada neste sítio permitiu identiicar um to e transporte, que se caracterizam entre cerâmicos e
lagar romano de vinho. Infelizmente, a fraca potência perecíveis.
estatigráica e o facto de estarmos numa zona arada A forma cerâmica mais facilmente associada ao vi-
com frequência não permite identiicar exactamente nho durante a época romana é a ânfora. Todavia, a sua
como se desenvolveria a estrutura, tendo-se descober- existência na zona do Douro é relativamente escassa
to apenas o lacus, calcatorium e zona de implantação e encontra-se normalmente associada ao transporte e
do praelum. armazenamento de produtos, entre os quais podemos
contar com o vinho, exógenos à região. Da mesma for-
Para além das estruturas de exploração agrícola ma, não são conhecidos ateliers cerâmicos de produ-
de médias e grandes dimensões existem outras, mui- ção na região e, entre as formas produzidas na Lusitâ-
to menos visíveis tanto ao nível do espólio como das nia, apenas uma é associável ao transporte de vinho,
embora apenas devido à sua morfologia formal185.
184 MAZZA et SILVINO, 2003. 185 Aqui referimo-nos naturalmente à ânfora de tipo Lusitana 3, cujo
178 Pedro Pereira

A segunda forma cerâmica é o dolium. Infelizmente,


o estudo destes recipientes foi remetido para segundo
plano durante muito tempo, sendo que apenas recen-
temente se têm vindo a realizar estudos mais abran-
gentes sobre este tipo de forma cerâmica. Ao mesmo
tempo, a dimensão e forma desta tipologia permitiria,
quando cheios, uma deslocação que podemos classii-
car como muito reduzida. Nos últimos anos temo-nos
dedicado ao estudo e à identiicação deste tipo de re-
cipientes em várias estações arqueológicas de período
romano na Lusitânia, sendo que estabelecemos uma
tipologia de dolia vinários, dos quais pelo menos os
6 - Rochedo afeiçoado para poderem ser enconstados dolia,
cinco primeiros tipos, de sete, eram produzidos no Rumansil I (A. Sá Coixão, 2000).
Vale do Douro. A possibilidade que levantamos de
que dolia poderão ter sido transportados no Vale do e de odres poderá ter sido extensiva para o transporte
Douro186 parece comprovar uma deslocação, ainda que e o armazenamento de vinho na época romana. Este
reduzida, deste tipo de forma cerâmica de armazena- facto deve-se à parca existência de recipientes de tipo
mento. anfórico utilisáveis para vinho de produção regional e
Assim, e embora o registo arqueológico não nos a uma fraca densidade de dolia que, quando existem
permita vislumbrar recipientes de vinho de formas em quantidades suicientes para o abastecimento da
perecíveis no Douro, a iconograia, com as cupae, es- estrutura de exploração agrícola onde se encontram,
tátuas funerárias em forma de tonéis, e a etnograia, como sucede em Rumansil I (Murça do Douro), não
com os odres, associados ao transporte de líquidos em aparentam ser utilisáveis, pelo menos em larga escala,
terrenos acidentados, à inexistência de outros tipos de para o transporte de vinho.
recipientes nos sítios arqueológicos de produção e de
consumo de vinho e às fontes clássicas permitem-nos O estudo dos elementos associados à agricultura da
pelo menos colocar a hipótese de que estes tipos de vinha, à produção de vinho e, sobretudo, à cultura do
recipientes tenham sido utilizados, sobretudo a partir vinho no período romano constituem outra das ver-
da segunda metade século IIº da nossa Era, quando a tentes que consideramos essenciais para compreender
própria importação de ânforas vinárias para a bacia do não só o esquema produtivo mas também como é que
Douro apresenta uma forte queda. a cultura do vinho inicia a sua progressão na malha
social e na psique duriense.
Existem dados que suportam a existência de um
Ao mesmo tempo, a comparação das cupae em pe- consumo, ainda que apenas por elites, de vinho no
dra, monumentos funerários romanos que se encon- Douro, como é o caso do sítio de Pintia. Em contex-
tram em toda a faixa Sul da Península Ibérica, com to funerário, análises cromatográicas a várias peças
tonéis do mesmo período descobertos na Europa do
Norte e Central, revela-nos uma série de similitudes,
sobretudo ao nível das tipologias formais e volumes.
Assim, todas as cupae conhecidas em território na-
cional inserem-se perfeitamente as cinco tipologias de-
tectadas por Elise Marlière na sua tese doutoral187. No
Vale do Douro, e embora apenas se conheça um exem-
plar deste tipo188, pensamos que a utilização de cupae

peril ovalado a classiica como candidata ideal ao armazenamento de vinho.


186 PEREIRA, 2012.
187 MARLIÈRE, 2000.
188 FAUVRELLE, 2001. 7 - Cupa de Trevões (N. Fauvrelle, 2003).
De vino ac vineas 179

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sobre Celtiberos. Fundación Segeda – Centro de Estu-
revelaram consumo de vinho a partir do século II a.C.
dios Celtibéricos.
Todavia, será apenas com o apogeu da incursão de
PEREIRA, P. (2007) - A produção de vinho no Vale
Decimus Junius Brutus em 138 a.C. e com as campa-
do Douro durante a Romanização. Porto: Faculdade de
nhas cantábricas, levadas a cabo por Augusto no inal
Letras da Universidade do Porto. Seminário de Projec-
do século II a.C. que a integração do território onde
to do Curso de Arqueologia.
se insere o Vale do Douro no território administrati-
vo imperial e a subsequente aculturação romana será
PEREIRA, P. (2008) - Economie et Production du
mais evidente.
vin dans la vallée du Douro (Portugal) dans l’Antiquité
A cultura do vinho é retratada extensivamente na
tardive. Mémoire de Master II Recherche. Lyon : Mai-
iconograia peninsular durante o período romano, não
son de l’Orient et de la Méditerranée. (Policopiado)
sendo a região de fronteira a que corresponde o vale
do Douro uma exceção. Desde representações de ce-
PEREIRA, P. (2012) - Materiais esquecidos - o es-
nas agrícolas até à iconograia de teor religioso, como
pólio cerâmico de armazenamento (dolia) do Alto da
o comprova o mosaico do triunfo báquico de Vale do
Fonte do Milho, Peso da Régua. Almadan. 17. Tomo 1.
Mouro, o vinho e a vinha surgem representados na
Almada.
vida quotidiana das populações locais desde pelo me-
nos o século II d.C., marcando a vida dos durienses até
PEREIRA, P. (2013) - Uma história de dolia – uma
aos nossos dias.
primeira análise aos recipientes cerâmicos de armaze-
nagem de Vale do Mouro (Coriscada, Meda). Porto:
CEM 3, CITCEM.
189 MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R., GAÑÁN, C. G. et DE PABLO
MARTÍNEZ, R., 2009; MÍNGUEZ, C. S., CARNICERO, F. R. et GAÑÁN,
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180 Pedro Pereira

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181
182
1980/2013
33 Anos de investigação arqueológica
nos concelhos de Vila Nova de Foz Côa e Meda
texto: António do Nascimento Sá Coixão / Museu da Casa Grande
(sacoixao@hotmail.com)

Resumo Abstract
A partir do ano de 1980, o autor deste artigo ini- Since 1980, the author has started a series of pro-
ciou a investigação arqueológica na área do concelho jects in the area of Foz Côa. he two irst sites to be ex-
de Foz Côa. Os dois primeiros sítios a serem interven- cavated were the roman villa of Prazo and the roman
cionados foram a villa Romana do Prazo e o Comple- industrial complex of Rumansil I.
xo Industrial Romano do Rumansil I. he dig of the roman villae of Salgueiro and Zim-
Seguiram-se intervenções nas Villae Romanas do bro II soon followed, as well as surveying and the in-
Salgueiro e Zimbro II, bem como trabalhos de prospe- ventory of other sites throughout Vila Nova de Foz
ção e inventário de sítios e todo o concelho, culminan- Côa, which would later be published in the local Carta
do com a publicação da Carta Arqueológica (já com Arqueológica (already on its second edition).
duas duas edições). In 1996 the Casa Grande Archaeological Museum
Em 1996, é inaugurado o Museu de Arqueologia da was inaugurated in Freixo de Numão.
Casa Grande em Freixo de Numão. In 2003 started a project in the Mêda region, with
No ano de 2003, o autor inicia trabalhos arqueo- the dig of the roman site of Vale do Mouro, the Castro
lógicos no concelho de Mêda, com escavações no vi- de S. Jurge and the Templo de Marialva. he surveys he
cus Romano de Vale do Mouro, Castro de S. Jurge e made in the region were published in the local Carta
Templo de Marialva. Em paralelo, procede a trabalhos Arqueológica in 2009.
de prospeção que culmina com a publicação da Carta
Arqueológica do Concelho de Meda, em 2009. Key-words: Archaelogy – Douro – Vila Nova de
Foz Côa – Meda
Palavras-chave: Arqueologia, Douro, Vila Nova de
Foz Côa, Meda
184 António Sá Coixão

Colodreira/Escorna Bois, todos no termo da Vila de


OS 33 ANOS DE INVESTIGAÇÃO Freixo de Numão.
Já nos inais da década de 80 (mais precisamente no

N
o ano de 1980, mais precisamente a 19 ano de 1989) iniciaram-se trabalhos de investigação no
de maio, é celebrada a escritura pública sitio pré-histórico do Castelo Velho de Freixo de Nu-
da “Associação Cultural Desportiva e Re- mão, sob a orientação da Professora da Faculdade de
creativa de Freixo de Numão” (mais conhecida por Letras do Porto, Professora Doutora Suzana Oliveira
ACDR). Dão-lhe corpo um grupo de jovens que tinha Jorge, trabalhos esses que se prolongaram por mais de
como propósitos a defesa e divulgação do património uma década, com participação de estudantes de uni-
Cultural e como mote “Em busca de uma identidade”. versidades espanholas e inglesas. O sítio foi adquirido
Nesse verão iniciam-se trabalhos arqueológicos com pelo IPPAR que executou um projeto de musealização.
duas sondagens no sítio do Prazo. Graças à disponibilidade de verbas comunitárias
Nos anos seguintes, durante toda a década, foram (do II QCA), foram entregues candidaturas na CCRN,
intervencionados os sítios arqueológicos do Rumansil tendo em vista a musealização de diversos sítios ar-
I, Zimbro II, Salgueiro, Quintal da Casa Grande. Já na queológicos na área geográica da Vila de Freixo de
década de 90, após aquisição dos terrenos do PRAZO Numão, tendo-se salvaguardado e tornado visitáveis
(cerca de 4 hectares) foram organizadas várias cam- os sítios que viriam a integrar o “ Circuito Turístico-
panhas de escavação, com uma equipa na área do Ro- -Arqueológico de Freixo de Numão”. De todos, o mais
mano, tendo como responsável o autor deste artigo e, emblemático continua a ser o sítio arqueológico do
na área da pré-história, o professor da Faculdade de Prazo, onde foram registados níveis e materiais de vá-
Letras do Porto, Dr. Sérgio Rodrigues. Foram ainda rios períodos da pré-história: Paleolítico, Mesolítico,
intervencionados os sítios da Mutatio das Regadas e Neolítico, Calcolítico e Bronze (este, já na fase inal),
uma importante villa Romana com três fases de ocu-
pação, uma basílica paleocristã com ocupação até ao
século XIII, bem como vestígios de ocupação dessa
fase tardo-romana e, ou, alto medieva.
No sítio do Salgueiro, iniciou-se o estudo de uma
villa Romana associada à exploração de uma pedreira
de aplito (rocha granítica esbranquiçada e mole, fazen-
do lembrar a chamada pedra “de Ançã”). Essa pedrei-
ra teve exploração desde o período romano até pelo
menos o século XVIII. Fachadas de edifícios, brasões,
colunatas, essencialmente associadas ao barroco, têm
como matéria-prima o “Aplito do Salgueiro”.
Emblemático, no aspeto arqueo-industrial, o sítio
romano do Rumansil I. Ali cavando as rochas, os ho-
mens deram corpo a um lagar de vinho, ao respetivo
pio de receção, ao calcatorium, ao armazém de vinhos,
com concavidades nas paredes laterais de rochedos,
onde a pança dos dolia encostava e fermentava debai-
xo de tampas de xisto e em vasilhas com paredes inte-
riores revestidas a pêz.
A recolha de uma provadeira em bronze poderá
colocar-nos perante a hipótese de, nos séculos III/IV
d.C., já se ter armazenado vinho naquele local, em
pequenas pipas de madeira. Através da peneiração, e
posterior trabalho de lutuação de carvões e terra car-
1 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Prazo
bonizada, foi possível recolher duas dúzias de grainhas
(Freixo de Numão – Foz Côa) de uva.
30 anos de investigação arqueológica 185

2 - Planta geral das escavações arqueológicas do sítio do Vale do Mouro (Coriscada – Mêda) até ao ano de 2012
186 António Sá Coixão

3 - Foto geral das estruturas postas a descoberto no sítio arqueológico do Prazo

Poderá falar-se na existência de um “complexo in- nos de cozer cerâmica (a maior para cozedura de dolia,
dustrial”, porque no conjunto dos edifícios, apenas um o mais pequeno para cozedura de pondus e cerâmicas
compartimento poderá ter sido utilizado como “habi- inas (vermelhas ou cinzentas). Milhares de fragmen-
táculo”. Os restantes apresentam ou forno de fundição tos cerâmicos foram exumados na área exterior dos
de chumbo, forjas de trabalho de ferro, trabalhos de citados fornos.
canteiro, fabrico e armazenamento de vinhos, dois for- De realçar que a lutuação de algumas cinzas e ter-
ra carbonizadas, proveniente destes fornos, apresenta-
vam a existência de grainhas de uva! Certamente que o
denominado bagaço das uvas terão servido para com-
bustível dos mesmos, a par da urze.
Com os trabalhos de prospeção foi possível fazer
um inventário quase exaustivo de sítios arqueológicos,
da pré-história, à história, salientando-se um levado
número de lagaretas cavadas na rocha (a maioria em
rocha granítica). Na área do concelho de Mêda, já
Adriano Vasco Rodrigues, na sua obra Por Terras da
Meda, havia referenciado a existência de duas ou três
dezenas de lagaretas nos termos das freguesias de Ma-
4 - Lagar Romano e outras estruturas do sítio arqueológico do
rialva, Longroiva e Mêda.
Rumansil I Dentro da problemática de localização da ainda
30 anos de investigação arqueológica 187

5 - Fornos de cozer cerâmica postos a descoberto no sítio arqueológico do Rumansil I

não descoberta cidade romana de Meidobriga, o in- ciadas à tecelagem e à moagem nos levam a considerar
vestigador Professor Jorge d’ Alarcão inclina-se para estarmos perante edifícios que pertenciam a homens-
a atual freguesia de Numão, onde foram inventariadas -livres, pertencentes ao vicus.
algumas epígrafes, essencialmente rupestres. Na área dos fornos de fundição, foi exumado um
Na área do concelho de Mêda salienta-se a investi-
gação já efetuada no Vicus de Sangoabonia, atualmen-
te denominado de “sítio do Vale de Mouro”, termo da
freguesia de Coriscada. Desde o ano de 2003 que uma
equipa Luso-Francesa (com arqueólogos de Lyon),
vem investigando cerca de 3 hectares de terreno. Foi
posta a descoberto uma casa senhorial (villa propia-
mente dita) com as termas, as salas com pavimento em
mosaico policromo, onde se salienta o Painel de Baco,
o Triclinium, igualmente com pavimento em mosaico,
o lagar de vinho e o correspondente armazém, salas
com pavimento em opus signinum, lareiras, braseiros
(localizados ao centro das salas), entre outros.
Na zona envolvente, um conjunto signiicativo de
edifícios, onde a presença de um grande celeiro, de 6 - Mosaico Romano policromado, denominado “Painel de Baco”,
fornos de fundição e forjas, de áreas funcionais asso- posto a descoberto no sítio do Vale do Mouro
188 António Sá Coixão

7 - Tesouro Monetário de 4600 moedas datadas de finais do seculo III e inícios do seculo V d.C., associado a artefactos de ferro,
exumado no sítio arqueológico do Vale do Mouro no ano de 2007

tesouro de 4600 moedas datado entre inais do século rochas e, ou, estelas, já inventariadas.
III d.C. e inícios do século V d.C., juntamente com al- Nas áreas dos concelhos de Foz Côa e Mêda, as vá-
guns artefactos em ferro. rias epígrafes dedicadas a Júpiter (IOVI) levam-nos a
Na zona da Devesa (Marialva) registamos a exis- justiicar a forte ocupação romana nesta zona do Dou-
tência, no interior de um imóvel, da base de um tem- ro: certamente a existência de um grande potencial
plo (podium) dedicado a Júpiter. Também uma ação de mineiro, através da exploração de metais como o ouro
limpeza no local denominado de LAGO permitiu-nos (quartzítico ou de aluvião), do chumbo, do estanho e
o registo de uma imponente barragem romana. do ferro. Recentemente, no interior da igreja de Lon-
No termo da aldeia de Ranhados, junto à barragem groiva, embutida numa das paredes, foi registada uma
do Rio Torto, temos estudado um castro romanizado, epígrafe, onde se faz referência à divindade PLUMB-
denominado “Castro de S. Jurge”. Vestígios da Idade VS, certamente associada à exploração do chumbo, ali
do Bronze, das 1.ª e 2.ª Idades do Ferro, ocupação ro- bem perto, na zona dos Areais.
mana (de pelo menos desde 35/36 a.C) e ainda uma Foi já feito pelo autor, um ensaio da rede viária no
ocupação medieval, para já presente através de ruínas tempo dos romanos, nas áreas destes dois concelhos,
de uma pequena igreja dedicada a S. Jurge e de dois salientando-se a existência de grandes vias com traça-
enterramentos no seu adro. do de Sul para Norte (ou vice-versa), todas elas atra-
A arte rupestre, através da representação de cerca vessando o rio Douro.
de 1.000 fossetes ou covinhas, serpentiformes, podo- Igualmente com orientação Este-Oeste, temos um
morfos e outras iguras, está presente em mais de 80 conjunto de vias secundárias que cortam o rio Côa em
30 anos de investigação arqueológica 189

8 - Um dos 80 painéis com arte rupestre inventariada no Castro de S. Jurge (Ranhados – Mêda)
– rocha que denominámos de “Fraga Formosa”

ambas as margens. Um conjunto signiicativo de vias


cruza a civitas Aravorum (atual Marialva).

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190
191

Painel 3

HISTÓRIA
NO/DO DOURO
Carla Sequeira
Manuela Vaquero
Gaspar Martins Pereira
Otília Lage
192
A oposição à Ditadura Militar e
Estado Novo na Região Duriense
(1926-1949)
texto: Carla Sequeira - Investigadora do CITCEM. Bolseira de Pós-Doutoramento da FCT
(carla.m.sequeira@sapo.pt)

Resumo: Abstract:
Relexão sobre a Oposição desenvolvida na Região Relection on the Opposition developed in the Douro
Duriense, entre o 28 de Maio de 1926 e a candidatura Region between the 28th May 1926 and the presiden-
presidencial de Norton de Matos, em 1949. Procu- tial candidacy of Norton de Matos, in 1949. We will
raremos compreender em que medida a defesa dos seek to understand to what extent the defense of re-
interesses regionais conduziu a uma aparente cola- gional interests led to an apparent collaboration with
boração com o novo regime. Examinaremos a evo- the new regime. We will also examine the evolution
lução política regional, centrando-nos no confronto of regional policy, focusing on the confrontation be-
entre Situacionistas e Oposicionistas, desde a revolta tween the Situationists and Oppositionists since the
reviralhista de Fevereiro de 1927, até à tentativa de «reviralhista» insurgency of February 1927, until the
regresso ao regime constitucional através de uma «via attempt of a ‘peaceful’ return to the constitutional re-
pacíica», concretizada na adesão, em 1931, à Aliança gime through the 1931 association with the Socialist
Republicana Socialista. Abordaremos a campanha Republican Alliance. Finally, we will discuss the pre-
da candidatura de Norton de Matos à presidência da sidential campaign of Norton de Matos as a new at-
República, como uma nova tentativa de transição de tempt of regime transition through an electoral route.
regime através da via eleitoral.
Keywords: Military Dictatorship; «Estado Novo»;
Palavras-chave: Ditadura Militar; Estado Novo; Political opposition; Elites
Oposição política; Elites
194 Carla Sequeira

Vila Real (Infantaria 13 e GNR)195. Durante os aconte-

1.
O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926 cimentos, registaram-se confrontos na Régua, entre o
trouxe mudanças à realidade política da destacamento de Lopes Mateus (governamental), que
Região Duriense. Assistir-se-ia, a partir de vinha de Viseu, e uma força de Infantaria 13, de Vila
então, a uma crescente clariicação política entre Si- Real (a caminho do Porto), comandada pelo major
tuacionistas e Opositores. Pelo decreto nº 11.875, de Fernandes Varão, na tentativa de impedir que aque-
13 de Julho desse ano, foram dissolvidos todos os cor- le atravessasse o rio Douro pela ponte da Régua. De
pos administrativos. Republicanos históricos, como acordo com a imprensa local, viveu-se um cenário de
Antão de Carvalho, Carlos Richter ou Macedo Pinto, guerra civil e temia-se pelo destino do Douro, uma vez
abandonaram os cargos políticos. A Câmara da Régua, que se acreditava que a Ditadura viria mudar a sorte
onde Antão de Carvalho era vereador190, foi demitida regional e agora «todo um programa em seu benefício
e substituída por uma comissão administrativa, que pode cair por terra»196. Em Lamego, onde se veriica-
integrava personalidades como Gaspar Henriques da ra a adesão do regimento de Infantaria 10197, alguns
Silva Monteiro191 e António Pereira do Espírito Santo elementos civis procuraram apoderar-se da adminis-
(como substituto)192, ambos pertencentes à primeira tração do concelho mas foram repelidos pelas autori-
comissão republicana reguense, em 1895. dades. Além dos factos referidos, registaram-se ainda
intentonas em Alijó e Valpaços198.

2.
Ainda em 1926, teriam lugar algumas Os principais líderes durienses assumiram uma
acções conspiratórias contra a Ditadura postura de não comprometimento com a Revolta.
Militar. Contudo, a primeira manifesta- Na sequência do 28 de Maio, Antão de Carvalho de-
ção organizada teria lugar em Fevereiro de 1927, com cidira demitir-se também do cargo de presidente da
o apoio político dos Partidos Radical, Democrático, CVRD. As suas motivações eram não apenas políticas
Esquerda Democrática, Acção Republicana e Seara mas também económicas, uma vez que o Alto Douro
Nova193. Inaugurava-se, assim, a primeira fase de re- atravessava uma grave crise de escoamento e as culpas
sistência à Ditadura Militar, conhecida pelo Reviralho, eram assacadas a este organismo. Tornava-se patente
devido às suas características revolucionárias de luta a necessidade de novas formas de intervenção. Agre-
armada, marcado por uma forte participação dos mi- gados em redor da defesa dos interesses ligados ao
litares, e que predominaria até meados da década de sector vitícola, os notáveis regionais fariam ressurgir
1930. Para Luís Farinha, o Reviralho «constituiu-se o movimento dos paladinos do Douro, que pretendia
como a mais importante frente de combate à Ditadu- constituir-se como órgão de representação perante os
ra»194, empreendida por sectores democráticos e libe- poderes públicos. Na sua liderança, surgia Antão de
rais que, tendo apoiado a Ditadura numa fase inicial, Carvalho que, assumindo-se como um republicano
deixam de se reconhecer nela e passam a combatê-la. independente, se abstinha de tomar posições políticas
A Revolta eclodiu no Porto, a 3 de Fevereiro, e de modo a não prejudicar os interesses regionais, re-
previa-se uma acção simultânea em vários pontos do presentados pela efectivação do «entreposto único e
país. A participação regional duriense fez-se sentir de exclusivo para os vinhos generosos do Douro em Vila
diversas formas. Em primeiro lugar, na fase da prepa- Nova de Gaia».
ração, através da colaboração de Pina de Morais, que A defesa do Entreposto de Gaia levaria Antão de
conseguiu angariar a adesão das unidades militares de Carvalho a, aparentemente, colaborar com a Ditadu-
ra Militar. Disso poderia ser indício a participação na
conferência proferida pelo major Alberto Lelo Portela,
190 A comissão executiva era constituída por João da Silva Bonifácio na Régua, com a assistência de Cunha Leal, Craveiro
(presidente), António Cardoso da Fonseca Mirandela, Artur Gonçalves
Martinho e Manuel Pinto de Magalhães. Lopes e Mendes Cabeçadas. Contudo, Antão de Car-
191 Cf. Autoridades administrativas. «O Povo do Norte», 1 Agosto 1926, 195 Pina de Morais viria ainda a assumir a cheia dos serviços de comu-
p. 2. Gaspar Monteiro era também, à data, presidente da Associação Co- nicações durante os acontecimentos revolucionários (SEQUEIRA, 2007:
mercial de Peso da Régua e da Direcção do Sindicato Agrícola da Régua. 284-285).
192 Viria a ser presidente da comissão administrativa da Régua em 1934. 196 Hora de luto. «A Defesa do Douro» 13 Fevereiro 1927, p. 1.
193 FARINHA, 1998: 47. 197 FARINHA, 1998: 69.
194 FARINHA, 1998: 15. 198 FARINHA, 1998: 39.
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense 195

valho declarara não ter aderido ao novo regime, em- implantação203. Contudo, de acordo com o mesmo
bora também não fosse seu opositor. Airmava que a autor, Vila Real foi também dos distritos que, conhe-
única política que lhe interessava era a da Região. E era cendo um grande número de adesões na fase inicial,
nessa perspectiva que manifestava o seu apoio ao mi- progressivamente foi perdendo inscrições.
nistro da Agricultura, Alves Pedrosa, pela criação do Do ponto de vista da composição política das co-
Entreposto, que considerava a melhor obra da Ditadu- missões concelhias da União Nacional na Região
ra Militar, e que era necessário não deixar desaparecer Duriense, tomemos como exemplo a de Peso da Ré-
devido à inluência da viticultura do Sul e do sector co- gua, constituída unicamente por monárquicos e evo-
mercial. Seria também nessa perspectiva que faria des- lucionistas (a que juntariam antigos unionistas, como
locar a Lisboa centenas de viticultores, em Fevereiro de António Pereira do Espírito Santo). As restantes forças
1928, prometendo a participação regional nas eleições políticas do concelho – lealistas, portelistas, radicais,
presidenciais de Março desse ano para legitimação de democráticos – unir-se-iam, a partir de Junho de 1931,
Carmona no cargo de Presidente da República, a troco na Aliança Republicana Socialista, também conheci-
da manutenção do Entreposto de Gaia199. Esta postura da como Frente Única. Estava-se, portanto, num novo
de idelidade aos interesses regionais acarretar-lhe-ia a momento de clariicação política por parte das elites
ostracização dos democráticos de Lisboa, que o acusa- locais.
vam de trair os seus antigos ideais. A ARS era uma conjunção de opositores ao regime,
de carácter nacional e com sede em Lisboa. O seu Di-

3.
A fragmentação da elite política regional rectório era constituído por Norton de Matos (PRP),
acentuou-se com a adesão de vários repu- Tito de Morais (Nacionalista), Crispiniano da Fonseca
blicanos históricos à União Nacional. (Esquerda Democrática), Mendes Cabeçadas (União
A primeira tentativa de organização da União Na- Liberal Republicana), Maurício Costa (Acção Republi-
cional ocorreu em 1927 (sendo então denominada de cana), Almeida Arez (Partido Radical), Azevedo Go-
União Nacional Republicana) e, também na Região mes (Seara Nova), Ramada Curto (Partido Socialista),
Duriense, se promoveram inscrições nesta data. Tinha António Luis Gomes, Azevedo e Silva, Paulo Falcão e
por objectivo consolidar politicamente o regime saído Duarte Leite (independentes)204.
do 28 de Maio200. Nesse sentido, uma das suas tarefas A ARS fora criada com o propósito de conseguir
consistiu na preparação das eleições presidenciais de a transição de regime de forma pacíica, «através de
1928, desaparecendo de seguida. eleições»205. A primeira oportunidade surgia com as
Em 1930, seria fundada a União Nacional, no in- anunciadas eleições municipais de 1931, que se trans-
tuito de solucionar o problema político ainda em aber- formaram na primeira tentativa de participação eleito-
to201. Para Manuel Braga da Cruz, o Estado Novo era ral da Oposição. Aproveitando as novas disposições le-
inimigo do sistema partidário mas não do sistema re- gais eleitorais (decreto nº 19694, de 5 de Maio de 1931)
presentativo, pelo que necessitava «de um instrumento a ARS levou a cabo uma campanha para a inscrição de
político que activasse os mecanismos de sufrágio e de eleitores nos cadernos eleitorais.
representação que pretendia ver salvaguardados»202. A adesão na Região do Douro foi imediata e glo-
Foram implantadas comissões promotoras nas capitais bal, assistindo-se à formação de delegações da ARS em
de distrito e nas sedes de concelho. As inscrições atin- diversos concelhos e freguesias: Peso da Régua, Alijó,
giram um número avultado logo em 1931, integrando Tabuaço, Freixo de Espada à Cinta, S. João da Pes-
antigos membros dos partidos da Primeira República, queira, Mesão Frio, Armamar, Vila Real, Carrazeda de
dos mais moderados aos mais radicais. Segundo Braga Ansiães, Santa Marta de Penaguião, etc. As comissões
da Cruz, o distrito de Vila Real era um dos com maior concelhias eram formadas por eminentes vultos locais,
como Antão de Carvalho, João de Araújo Correia ou
199 Segundo a imprensa local (Cf. QUEIRÓS, Amâncio de - Eleição. O
Douro cumpriu. «A Defesa do Douro», 1 Abril 1928, p. 1), teria havido uma
Carlos Richter, reunindo em sua volta diversos qua-
forte participação regional, calculada em 81,4% por Manuel Braga da Cruz drantes políticos. Com a inalidade de disputar as elei-
(CRUZ, 1988: 219).
203 CRUZ, 1988: 228.
200 CRUZ, 1988: 130.
204 Seria também nomeada uma comissão de propaganda, da qual fazia
201 CRUZ, 1985: 366. parte Raul Lelo Portela.
202 CRUZ, 1988: 164. 205 FARINHA, 1998: 17.
196 Carla Sequeira

ções, iniciaram-se acções de propaganda e de recen- me constitucional através de uma «via pacíica», não
seamento eleitoral. Porém, sucediam-se na imprensa tendo aceite o convite.
as denúncias das diiculdades encontradas, devido ao

4.
boicote das autoridades locais. Por outro lado, a pró- Em 1945, inaugurou-se um segundo ciclo
pria União Nacional contribuía para esse boicote, ao de resistência essencialmente eleitoralista,
projectar pedir ao Governo a irradiação de todos os isto é, «assente sobretudo na exploração
funcionários que não votassem com eles. das oportunidades legais-eleitorais»208. A dissolução
Esta primeira tentativa de transição de regime por da Assembleia Nacional e o anúncio, pelo Governo, de
via eleitoral não surtiria efeito. Como refere Luís Fa- eleições legislativas (reguladas pela legislação de 22 de
rinha, a participação activa de dirigentes da ARS na Setembro de 1945), foi vista pela Oposição como uma
revolta reviralhista de 26 de Agosto de 1931, foi o sub- nova oportunidade. A 8 de Outubro, o Movimento de
terfúgio da Ditadura para adiar sine die umas eleições Unidade Democrática, reunido no Centro Almiran-
que nunca haviam estado marcadas. te Reis (Lisboa), fez publicar um manifesto em que
Em 1933, o motivo próximo da contestação pren- se exigiam eleições livres, o adiamento das eleições
dia-se com a Constituição, sufragada em 19 de Março por seis meses para organização de partidos da opo-
desse ano. O novo texto constitucional consagrava a sição, representação política às minorias, iscalização
conirmação do monopartidarismo e da representação, eleitoral, liberdade de candidaturas e um novo recen-
atribuída à União Nacional, a separação de poderes e seamento eleitoral. Vastos sectores se reviam nestas
a representação política através de uma assembleia reivindicações, desde os democratas liberais, Esquer-
com capacidade legislativa e iscalizadora dos actos do da Democrática, republicanos do PRP, monárquicos
Governo. Revestia também uma dimensão autoritária independentes, socialistas, comunistas, anarquistas
através do reforço e independência de um «executivo e nacionais-sindicalistas, aos democratas-cristãos do
bicéfalo, partilhado entre o Presidente da República e grupo Era Nova, a par de personalidades das artes, le-
o do Conselho, e isento de responsabilidades perante tras, ciências e forças armadas.
a assembleia»206. Consequentemente, desencadeou-se O Manifesto de 8 de Outubro foi recebido com
a reacção, não apenas dos opositores do regime, mas entusiasmo na Região Demarcada do Douro por par-
também «do sector liberal republicano dos fautores do te dos opositores ao regime. Em contrapartida, os
28 de Maio»207. apoiantes do Governo identiicavam o MUD com o
Em protesto contra a unicidade da representação Reviralho, devido à sua ligação ao Partido Comunista
política ratiicada no texto da Constituição, Antão de e à memória da I República209.
Carvalho absteve-se no dia do sufrágio, manifestando Imitando o movimento de Lisboa, convocou-se
publicamente o seu acto. Por outro lado, organizava e uma reunião em Vila Real, no dia 15 de Outubro, a que
presidia a reuniões no sentido de fazer reviver a ARS acorreram republicanos de todo o distrito. De seguida,
no concelho da Régua, que considerava absolutamente constituíram-se comissões concelhias do MUD, nos
fundamental naquele momento. distritos de Vila Real e Viseu, algumas delas denotan-
Neste contexto, a inluência de Antão de Carva- do a inluência de Nuno Simões. Na Régua, a comis-
lho continuava a ser reconhecida, como o comprova são concelhia do MUD era constituída por Antão de
o aliciamento que lhe foi feito para que integrasse a Carvalho, António Cardoso Mirandela, António Silva
União Nacional. Argumentava-se com as declarações Correia, Cândido Bonifácio Gouveia e João de Araú-
de Antão de Carvalho, de ser partidário da Ditadura, jo Correia, entre outros. Esta comissão empenhou-se
e prometia-se-lhe a nomeação para a presidência da particularmente na recolha de assinaturas de apoio ao
Casa do Douro. Todavia, se, num primeiro momento, MUD, mas, tal como em 1931, teve de enfrentar a po-
Antão de Carvalho parecera colaborar com a Ditadu- lítica de intimidação das autoridades que, de imediato,
ra Militar, essa atitude devera-se à sua idelidade aos intimou dois dos seus elementos a esclarecerem o mo-
interesses regionais. Antão de Carvalho continuava a tivo da recolha, levando a um protesto formal «contra
airmar-se republicano, desejando o regresso ao regi- tal arbitrariedade e desrespeito àquilo que foi autoriza-
208 ROSAS, 2010: p. 11.
206 GÓMEZ, 2011: 32.
209 Veja-se como exemplo, o artigo O que eles querem. «Ordem Nova».
207 CRUZ, 1985: 368. 28 Outubro 1945, p. 1.
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense 197

do pelo Chefe do Governo»210. do Directório do Partido Republicano, previamente


Em solidariedade com as decisões tomadas no contactados pela província»212. No Alto Douro, um dos
Centro Almirante Reis, diversas comissões durienses rostos visíveis desse apoio era Antão de Carvalho que,
enviaram telegramas ao chefe de Estado, secundando por ocasião do aniversário do General, em 1947, dava
o pedido de eleições livres. conta a Nuno Simões das iniciativas empreendidas na
Segundo a imprensa211, republicanos de todos os Régua «de manifestação ao senhor General Norton de
concelhos do distrito de Vila Real decidiram pedir Matos», de onde haviam sido enviados muitos telegra-
autorização ao Governador Civil para realizarem reu- mas individuais e um colectivo com 66 assinaturas de
niões a im de decidirem a estratégia perante o acto republicanos «de destacada categoria social»213.
eleitoral. Todas estavam programadas para o mês de Apenas em Abril de 1948 Norton de Matos viria a
Outubro: em Vila Real, dia 12; Chaves e Santa Marta aceitar formalmente, declarando que aceitava concor-
de Penaguião, dia 14; Mesão Frio e Sanins do Douro, rer desde que a campanha e os actos eleitorais tivessem
dia 15; Valpaços, dia 16; Alijó e Régua, dia 17. Tam- características democráticas de liberdade e indepen-
bém em Lamego, a cuja comissão concelhia pertencia dência214. Como referem Fernando Rosas e Armando
Alfredo de Sousa, foi solicitada autorização ao Go- Malheiro da Silva, a candidatura e campanha de Nor-
vernador civil de Viseu para uma reunião política no ton de Matos correspondia ao im do «segundo ciclo
Teatro Ribeiro Conceição. Revestia-se de uma especial de resistência»215, iniciado em 1945, mantendo-se na
expectativa a reunião projectada para Santa Marta senda de uma «via ordeira de contestação ao regi-
de Penaguião, onde participariam representantes do me»216. A candidatura, com um programa de demo-
MUD dos concelhos do sul do distrito e de vários da cratização semelhante ao do MUD, seria apresentada
Guarda e Viseu (incluídos na região duriense), além ao Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Julho de 1948.
de delegados do mesmo Movimento, no Porto. Na Região do Douro, formaram-se diversas comis-
Como seria de esperar, todas as reuniões foram sões (concelhias e de freguesia) de apoio à candidatu-
proibidas nas vésperas das eleições, com o argumento ra de Norton de Matos. Algumas como, por exemplo,
de que já não era possível apresentar candidaturas. Em a da Régua, continuavam a denotar a inluência de
resposta, a comissão do MUD de Peso da Régua resol- Nuno Simões na sua constituição. Ao mesmo tempo,
veu endereçar um telegrama de protesto ao Governa- demonstravam a continuidade de uma elite política
dor Civil de Vila Real. opositora, de cariz familiar, de que era testemunho a
Nos anos seguintes, o MUD manteve actividade presença de João Macedo Pinto na comissão concelhia
no distrito de Vila Real, havendo indícios de reuniões de Tabuaço. Em Lamego, a oposição continuava a ser
em Favaios e Pegarinhos (concelho de Alijó), presidi- liderada por Alfredo de Sousa.
das por Nuno Simões e nas quais participaram Carlos Além da constituição de comissões, organizou-se
Amorim, Joaquim Pinto Furtado e Camilo Botelho, uma vasta actividade de propaganda através da aixa-
entre outros, vindo a ser, por esse motivo, vigiados ção de cartazes e distribuição de folhetos, bem como
pela PIDE. de realização de comícios e conferências em diversas
localidades, das quais destacamos Peso da Régua, Vila

5.
O MUD viria a ser ilegalizado em Março Real, Murça e Alijó. Várias destas sessões contaram
de 1948. Concorrer às eleições presiden- com a presença de personalidades eminentes da Opo-
ciais de 1949 dava-lhe uma nova possi- sição Democrática.
bilidade de voltar a uma actuação legal e o candidato
212 CRUZ, 1983: 713.
escolhido foi Norton de Matos (membro da comissão
213 ADVRL – Fundo Nuno Simões – Correspondência recebida, Carta de
consultiva do MUD), decisão que lhe fora comunicada Antão de Carvalho para Nuno Simões, 23 de Março de 1947.
por ocasião do seu aniversário natalício, em Março de
214 Durante a campanha eleitoral icaria patente que as condições pedi-
1947. das por Norton de Matos não haviam sido tidas em conta. Prova disso era o
O apoio à candidatura de Norton de Matos vinha corte de milhares de nomes do recenseamento eleitoral, entre os quais o de
Alves Redol. A falta de condições de liberdade de propaganda, realização e
de um amplo sector, incluindo de «muitos membros iscalização do acto eleitoral levariam Norton de Matos a desistir da candi-
datura a 12 de Fevereiro, véspera do acto eleitoral.
210 Um protesto da comissão da Régua. «República». 11 Novembro 1945,
p. 5. 215 ROSAS, 2010: 9.
211 Cf. O momento eleitoral. «República». 31 Outubro 1945, p. 4-5. 216 SILVA, 2010: 62.
198 Carla Sequeira

Em Lamego, o comício realizou-se a 2 de Fevereiro, e, até a sindicalização da lavoura, através da criação


no Teatro Ribeiro Conceição, e foram oradores Alfre- da Casa do Douro (embora esta contivesse disposições
do de Sousa, Santos Almeida, Pina de Morais217 e F. contrárias ao movimento associativo e representativo,
Fonseca Almeida. Pina de Morais marcaria também com as quais os seus mentores não concordavam).
presença na sessão realizada na Régua, juntamente Quanto aos momentos e estratégias de oposição,
com o tenente-coronel Lelo Portela, Artur Castilho e icou patente a integração no quadro nacional de Opo-
Alberto Gonçalves, entre outros. sição. A forma de contestação privilegiada foi a via
Em Murça, registou-se a intervenção de Virgínia pacíica variando entre um «intervencionismo até ao
Moura (membro da Comissão Distrital de Candidatu- im» (1931), abstenção (1945) e «desistência à boca
ra do Porto), e ainda de Artur Castilho, João Correia das urnas» (1949)218. De realçar, a forte capacidade de
Guimarães e José Alberto Rodrigues. Virgínia Mou- mobilização das elites regionais; sintoma da perma-
ra seria novamente interveniente no comício de Vila nência de clientelas e das antigas estruturas partidá-
Real, em 10 de Fevereiro, ao lado de Rui Luís Gomes e rias, permitia a rápida constituição de comissões e or-
Alves Redol. ganização de acções de propaganda, particularmente
A par do movimento de apoio a Norton de Matos, entre as classes mais ilustradas. À luz dos dados até
ocorriam manifestações dos apoiantes de Carmona, de agora recolhidos, não surgem indícios de uma partici-
que era exemplo o artigo publicado por Vítor Queirós pação activa das classes mais baixas da sociedade nos
de Vasconcelos – ilho de Amâncio de Queirós, já fale- movimentos de oposição no Douro entre 1926 e 1949.
cido à data – no jornal Notícias do Douro, de 10 de Fe-
vereiro de 1949. Em artigo intitulado O Douro e a sua
organização corporativa. As próximas eleições e o direi-
to que o Senhor Marechal Carmona tem ao nosso voto,
o autor defendia que, por uma dívida de gratidão em
vista da organização corporativa da viticultura, toda a
Região Duriense devia votar no Marechal Carmona.

6.
Em conclusão, entre 1926 e 1949 assis-
tiu-se a uma divisão política das elites
durienses, entre Situacionistas e Oposito-
res ao novo regime. Essa situação foi particularmente
visível no concelho da Régua. Assim, enquanto Antão
de Carvalho, fundador da primeira comissão munici-
pal republicana reguense, em inais do século XIX, se
situou do lado da oposição do Regime, outros repu-
blicanos também de longa data, aderiram à Situação,
passando a integrar as comissões administrativas no-
meadas pelo Governo.
Contudo, a divisão em campos políticos opostos
não prejudicou a defesa dos interesses regionais. Na
verdade, a primazia dos interesses vitícolas sobrepôs-
-se à evolução política no Douro, como o demonstra a
postura de Antão de Carvalho, de uma oposição mo-
derada, o que possibilitou a concretização de várias
reivindicações regionais, como o Entreposto de Gaia
217 Após o regresso do exílio, abandonara a defesa da via revolucionária
para a mudança de regime, manifestando a intenção de fazer oposição ao
Estado Novo no quadro da legalidade instituída; nesse sentido, aderira ao
MUD, em 1945, e viria a desempenhar papel político de relevo na campa-
nha de Norton de Matos (Cf. SEQUEIRA, 2007: 543). 218 CRUZ, 1983: 703.
A oposição à Ditadura Militar e Estado Novo na Região Duriense 199

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rais. Vida, pensamento e obra. Porto: Edições Caixotim
200
O Tribunal da Inquisição
de Lamego
texto: Manuela Vaquero – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
– Centro de Estudos em Letras / Museu de Lamego *

(mvaquero@sapo.pt)

* Regime de voluntariado

Resumo: Abstract:
Pretendeu-se trazer à luz do dia um Tribunal, que his study intended to expose a Tribunal that, al-
embora de vida efémera (1541 – 1547) desempenhou though short-lived (1541 - 1547), played a somewhat
um importante papel a nível da sociedade lamecense. devastating role at the societal level in Lamego.
Uma das prioridades do trabalho foi tentar com- One of the priorities of our work was to try to
preender o porquê do estabelecimento do Tribunal da understand why the Tribunal of the Inquisition was
Inquisição na cidade de Lamego, avaliando o desem- established in the city of Lamego, evaluating the per-
penho do bispo que doutrinava a diocese durante este formance of the bishop who indoctrinated the diocese
período, D. Fernando de Meneses Coutinho e Vas- during this period, D. Fernando de Menezes Coutinho
concelos, primo de D. João III, bem como do cardeal and Vasconcelos, a cousin of D. João III, as well as the
D. Miguel da Silva e a possível inluência que ambos Cardinal D. Miguel da Silva and the possible inluence
tiveram na formação do Tribunal da Inquisição de La- that both had in shaping the Tribunal of the Inquisi-
mego. tion of Lamego.
Após transcrição do Livro de Denúncias referente Ater the full transcript of the Livro de Denúncias
à Inquisição de Lamego efetuou-se uma pesquisa e le- relating to the Inquisition of Lamego, it was under-
vantamento das mesmas, bem como dos Processos dos tooked a thorough research and survey of the same
cristãos-novos lamecenses daí resultantes, arquivados book, as well as of the Processes of the New Christians
na Torre do Tombo. of Lamego, iled in the Torre do Tombo.

Palavras-chave: Inquisição, Lamego, denúncias,


cristãos-novos
202 Manuela Vaquero

E
sta análise terá de inédito trazer à luz do dia Como em muitas outras terras, também em Lamego
o Tribunal da Inquisição de Lamego, tema os judeus se organizaram de forma particular embora,
muito pouco estudado, e mesmo pratica- na prática, convivessem normalmente com os cristãos.
mente suprimido nos muitos documentos e ensaios Apesar de viverem nas judiarias, as portas nem sequer
sobre o tema. O estabelecimento da Inquisição em eram cerradas ao anoitecer, nem vigiadas como acon-
Portugal foi resultado de um longo e complexo pro- tecia nas restantes espalhadas pelo território. Lamego
cesso de adaptação de normas e cânones, com a ina- tornou-se um caso à parte onde não eram cumpridas
lidade de reprimir a heresia e consagrar a pureza da as leis provenientes do Estado que procuravam, o mais
fé católica, de acordo com a ilosoia anunciada. Antes possível, separar cristãos de judeus. Era enorme o
da sua existência formal, houve no reino inquisidores número de famílias hebraicas que habitavam o velho
da fé que exerciam a sua atividade temporariamente, burgo, radicando-se em duas judiarias que, no ano de
embora coubesse ao tribunal diocesano o julgamento 1436, eram povoadas por cerca de quatrocentos ju-
de todos os casos de heresia, feitiçaria ou blasfémia, deus e considerada uma comunidade muito numerosa
coadjuvado pela justiça secular. Os conlitos entre os . Em 1541, no ano em que foi instituído o Tribunal da In-
judeus e cristãos limitavam-se, em geral, a pequenos quisição de Lamego, os judeus residiam especialmente
tumultos, sem graves consequências, provocados de na Judiaria Grande ou Judiaria Nova – cujos indícios
ambos os lados pelo ódio religioso e o consequente ainda hoje perduram, acabando por dar o nome à atual
sectarismo ou por circunstâncias de natureza inancei- Rua Nova. A sociedade judaica concentrava-se ainda
ra pois, desde a Idade Média, os judeus desfrutavam entre o bairro do Castelo, a rua da Seara e no núcleo
de tolerância e proteção real, conforme a ordenação de envolvente à igreja de Santa Maria Maior de Almacave,
D. João I, situação que se manteve até ao reinado de D. sendo nas imediações deste santuário que se situava o
Afonso V, considerado como o último período sereno cemitério judaico onde se enterravam, em covas vir-
dos judeus em Portugal. gens, os seus mortos, facto que tantas delações viriam a
No entanto, com a expulsão dos judeus de Espa- originar. O Livro de Denúncias da Inquisição de Lamego
nha, em 31 de março de 1492, no reinado de D. João , do qual izemos a transcrição e que é parte integrante
II, dar-se-ia início à Inquisição em Portugal, ain- deste estudo, nem sempre é rigoroso quanto à morada
da que oicialmente o seu estabelecimento viesse a dos judeus; muitas das denúncias referem apenas os
ocorrer apenas em 1536, por bula do papa Paulo III acusados como moradores em Lamego, mas quando
. Durante este período de tempo, muitas negociações indicam as ruas constata-se que os judeus, muitos de-
são efetuadas, quer com Roma quer com os próprios les cristãos-novos, residiam além da rua Nova, na Pra-
judeus, tendo em vista os interesses políticos e econó- ça, rua da Seara, rua da Cruz … todas elas situadas nas
micos da nação portuguesa . imediações da Judiaria Nova.
Trazer à luz do dia um tribunal – o Tribunal da O antagonismo entre cristãos e judeus era grande,
Inquisição de Lamego – que, embora de vida eféme- os conlitos estavam latentes; às razões habituais deste
ra (1541–1547), desempenhou um importante papel antagonismo soma-se o facto de, em Lamego, o co-
a nível da sociedade lamecense foi o repto, para ten- mércio e a produção agrícola serem controlados por
tar compreender e explicar o porquê do seu estabe- cristãos-novos, avolumando as razões que os torna-
lecimento na cidade, a sua escassa durabilidade e as ram alvo de profundas invejas e, depois da instituição
circunstâncias da sua fundação – preocupando-nos o da Inquisição, levariam a que cristãos-velhos os de-
aparente desinteresse a que o estudo da Inquisição de nunciassem compulsivamente.
Lamego tem sido votado, fazendo ele parte integran- Os Breves e Bulas papais que permanentemente se
te dos primórdios do estabelecimento do Tribunal do contradiziam desde o ano de 1532, ora beneiciando
Santo Ofício em Portugal, quando estava ainda numa ora acusando os cristãos-novos, muito contribuíram
fase inicial, procurando a sua consolidação no reino. É para que o ódio entre cristãos e judeus se desenvol-
certo que na urbe, bem como nas suas cercanias, exis- vesse e o medo tomasse proporções desmedidas na
tia uma comunidade judaica próspera e erudita, com consciência dos cristãos-novos, originando a fuga de
uma signiicativa importância económica, social e cul- muitos do aro do burgo. Não por acaso, as manifesta-
tural mas tal facto, só por si, não justiicava a formação ções de júbilo registadas na cidade de Lamego, quando
de um tribunal. constou que o Tribunal da Inquisição iria aí ser estabe-
O Tribunal da Inquisição de Lamego 203

lecido, foram enormes. Coutinho e Vasconcelos, primo do rei D. João III que,
D. Agostinho Ribeiro, então bispo da cidade, re- em simultâneo, exercia as funções de capelão-mor da
cebeu do rei D. João III, com data de 30 de junho de corte e conselheiro do monarca; posteriormente ace-
1541, um traslado com os preceitos que deveria tomar, deu ao cargo de inquisidor-mor no ano de 1536, quan-
para que no bispado de Lamego e no de Viseu, sob a do ainda doutrinava o bispado de Lamego e, segundo a
sua jurisdição, se formasse o Tribunal da Inquisição, nossa ótica, foi a sua grande inluência na corte e junto
alegando que o executasse com a maior brevidade pos- do monarca, uma das causas do estabelecimento do
sível, em virtude do grande serviço que se iria prestar Tribunal da Inquisição em Lamego. De salientar, que
a Nosso Senhor. Esta carta foi enviada em simultâneo foi este antítese o patrono de uma obra, considerada
para o bispo do Porto e para o reitor da Universidade de referência pelos historiadores, Descripção do Ter-
de Coimbra . reno ao redor de Lamego duas leguas [1531-1532], da
Na missiva podemos ler as disposições que o so- autoria de Rui Fernandes, cidadão lamecense tratador
berano estabelecia para que os oiciais, de que a ins- de lonas e bordatas de El-rei e mercador – cristão-no-
tituição iria necessitar, não usufruíssem de qualquer vo – de ascendência judaica conforme registo no Livro
pagamento e fossem pessoas da maior coniança, de- de Denúncias da Inquisição de Lamego, onde aparece
vendo aceitar o cargo pelo grande prestígio que este acusado, ele e os seus familiares, por crimes de judaís-
lhes proporcionaria. Estávamos, claramente, numa mo em várias delações. A descrição contida na obra
fase experimental da Inquisição em Portugal, onde de Rui Fernandes proporciona uma informação de-
não tinha sido elaborado ainda um Regulamento talhada sobre a cidade e suas redondezas, facultando
para que todos os tribunais espalhados pelo reino se uma perspectiva do dia-a-dia das suas gentes, do seu
pudessem orientar e, por esse motivo, o cardeal-infan- viver e do seu pensar. Através da sua leitura podemos
te D. Henrique e inquisidor-geral, por nomeação de concluir que a região de Lamego tinha um enorme in-
seu irmão, o rei D. João III no ano de 1539, iria ainda tercâmbio com a cidade do Porto, centro escoador dos
escrever mais uns despachos aos supracitados bispos seus inúmeros produtos. Em meados do século XVI,
transmitindo-lhes mais instruções. Os inquisidores entre as produções do seu aro são de salientar os ce-
iriam desfrutar, portanto, de toda a autoridade poden- reais, o sumagre, as sedas, frutas, azeite, panos de linho
do nomear para funcionários do tribunal as pessoas e os vinhos, particularmente os “vinhos cheirantes” de
que reconhecessem competentes e com as habilitações Lamego.
requeridas pelo monarca. Apesar do Tribunal da Inquisição de Lamego ter tido
A Inquisição de Lamego teve por inquisidores, para uma duração breve, os cristãos-novos da cidade protes-
além do bispo D. Agostinho Ribeiro, homem descri- taram veementemente contra a sua forma de atuar, por
to como de bom caráter, muito humano e letrado, o causa do comportamento dos inquisidores em relação
doutor Manuel de Almada, cónego da sé de Lisboa e às disposições da Bula de 23 de maio de 1536, pois os
o doutor Gonçalo Vaz. Foram seus notários os bacha- abusos eram enormes sendo difícil controlar o poder
réis António Gonçalves e Diogo Rodrigues, cabendo a que lhes era oferecido. Os cristãos-novos temiam as
Sebastião Rodrigues e a Fernão Esteves as funções de irregularidades das prisões que eram efetuadas, recea-
meirinho e carcereiro, respetivamente. vam as acusações verdadeiras ou forjadas dos atos de
A Inquisição estabelecida em Lamego, para além judaísmo, pois tudo justiicava a perseguição aos acu-
de transitória, foi também controversa e não admitida sados e esta população de origem hebraica vivia aterro-
por alguns historiadores lamecenses muito bem con- rizada pela chegada do terrível tribunal e pela nomea-
ceituados e que muito escreveram sobre a grandeza ção de inquisidores com tão fraca reputação, apesar
desta urbe na época. de serem ainda bastante jovens – Manuel de Almada
Não restam dúvidas nem faltam documentos que tinha sido vigário capitular no arcebispado de Lisboa
comprovem a importância que a cidade tinha a nível e fora aí um lagelo para o próprio clero; e o licencia-
do reino neste período, pois os produtos manufatura- do Gonçalo Vaz era laico e comprovadamente bígamo.
dos na região contribuíam para o engrandecimento e Nada abonava em favor destes inquisidores. Não exis-
riqueza do país, e a sua diocese tinha uma jurisdição tem dados concretos para que possamos conhecer com
enorme a nível eclesiástico, sendo governada nos anos pormenor a limitação ou o desregramento com que
30 do século XVI pelo bispo D. Fernando de Meneses se houveram os inquisidores, embora estejamos con-
204 Manuela Vaquero

victos, pelos poucos dados existentes e lidos nos Pro-


cessos, que os excessos seriam desmedidos, quer pela E contámos, no Livro de Denúncias, quarenta e
falta de rigor especiicada nas leis, que praticamente uma delações de criados e escravos que incriminavam
não existiam, o que originava a que cada inquisidor os seus antigos amos acusando-os de práticas de ju-
actuasse mediante a sua própria consciência; quer pelo daísmo dizendo tê-las presenciado quando com eles
número de réus que faziam apelações para o Tribunal viviam. O supradito Livro de Denúncias abrange o pe-
de Lisboa para aí serem julgados e sentenciados. ríodo compreendido entre 20 de agosto de 1543 e 22
O Tribunal da Inquisição de Lamego nunca dispôs de dezembro de 1544, ou seja engloba 489 dias e con-
de sede própria. A casa do despacho da Santa Inquisi- tém 308 denúncias onde aparecem 997 acusados. Mui-
ção, situava-se no paço episcopal de D. Agostinho Ri- tos dos denunciantes são serviçais, vizinhos, amigos e
beiro, localizado no Rossio e mandado reediicar pelo familiares dos incriminados, o que consideramos mui-
seu antecessor D. Fernando de Meneses Coutinho e to relevante e nos indicia bem o espírito que norteava
Vasconcelos, ou nas pousadas de Manuel de Almada as acusações, que têm por base, quase exclusivamente,
ou de Gonçalo Vaz. Também o aljube era o episcopal o judaísmo conirmado como heresia mais grave que
ou cárceres privados em casa dos inquisidores. qualquer outro tipo de delito e os judeus seu alvo pri-
Outras questões surgem: apesar de D. Agostinho meiro. Neste Livro, profundamente analisado, as de-
Ribeiro ser considerado o menos cruel dos três inqui- núncias apresentam-se bem clariicadas e prevalecem
sidores, era ele que, do alto do púlpito e no meio das muitos casos de ajuntamentos sucessivos aos sábados;
solenidades religiosas, impunha aos iéis como um de- falar e possuir livros hebraicos; circuncidar os ilhos;
ver vingarem a paixão de Cristo, indo dar testemunho de guardar os sábados, não trabalhando e vestindo-se
contra os cristãos-novos. O povo era, portanto, esti- de festa; executar algum trabalho ao domingo e dia
mulado pela Igreja a denunciar o amigo, o parente ou santo de guarda; limpar candeeiros e deixá-los acesos
o vizinho que, vivendo lado a lado, tinham criado en- sexta-feira à noite até que se apagassem; não comer
tre si laços de estima e situações de familiaridade, mes- peixe de pele ou rejeitar a carne de porco; jejuar o je-
mo com crenças bem diferentes. Em Lamego, como já jum maior, que era em setembro, não comendo todo
dito, o convívio entre cristãos e judeus tinha sido amis- o dia até ao nascer das estrelas; solenizar a Páscoa co-
toso e, portanto, o judaísmo era vivido praticamente mendo pão ázimo. Estes sinais, entre muitos outros,
a descoberto. Estes laços de convivência foram então todos eles do foro íntimo de cada família, eram os fac-
alterados pela palavra da Igreja, na qual a sociedade tos considerados passíveis de acusação pela Inquisição
daquele tempo se apoiava quase exclusivamente. e fazem parte integrante da tipologia de acusações que
Alexandre Herculano descreve assim o desconten- o Livro contém. Mas é, contudo, sobre as mulheres que
tamento dos cristãos-novos lamecenses: recaem o maior números de denúncias e processos,
alguns réus que insistiam em não os aceitar por pois elas eram as grandes mestras da crença e as que
juízes [Vaz e Almada] eram mandados para Lisboa. mais sofreram por ela manifestando um sentimento
Velhos, mulheres honestas, donzelas pudibundas mar- de religiosidade maior, já que era dentro de casa que a
chavam em levas para a capital, e esse largo trânsito maior parte dos “crimes de judaísmo” eram praticados,
convertia-se em dilatado martírio. Os guardas que dado o seu caráter especiicamente doméstico, apesar
os conduziam eram parentes de Gonçalo Vaz, a cada da religião judaica ser pelos seus rituais predominan-
um dos quais os réus deviam pagar dois cruzados por temente masculina. Registámos não só o judaísmo
dia. Entretanto o processo prosseguia em Lamego, mas todo o tipo de denúncias contidas no livro, mes-
sem audiência dos interessados, tomando-se, confor- mo que o seu número seja muito reduzido pois foram
me se dizia, testemunhas que faziam ofício de depor tidas em conta neste tribunal:
contra os suspeitos de judaísmo e pagas para isso. (…)
prendiam-se alguns indivíduos antes de denunciados:
depois é que se tratava de lhes achar culpa. Para isto
recorria-se não raro aos escravos e criados, que, con-
duzidos ao tribunal, quando de bom grado não que-
riam acusar os seus senhores, eram a isso compelidos.
(HERCULANO, 1975: 108-109)
O Tribunal da Inquisição de Lamego 205

Judaísmo ....................................................................827 antever a sua fé; com esta análise conseguimos o aces-
Blasfémias e palavras proferidas contra a fé.......... 55
Manifestações contra o dogma ............................... 33 so às vítimas sentenciadas, examinando a tipologia das
Bigamia ...................................................................... 6 denúncias e crimes, constituição dos agrupamentos
Feitiçaria .................................................................... 3
Contra o Santo Ofício .............................................. 7 familiares, proveniências geográicas, representações
Formulação de conteúdo erótico-sexual ............... 3 sociais, bem como reconhecer as principais famílias
Motivos extravagentes.............................................. 6
Diversos ..................................................................... 44
desta comunidade de cristãos-novos.
Suborno...................................................................... 10 Ao reconstituir as famílias sobre as quais recaíram
Culpas não deinidas ................................................ 3
maior número de delações também constatámos que
Tipologia das Denúncias as denúncias da Inquisição de Lamego deixam antever
alguma ambição referente aos cristãos-novos de maio-
Consideramos que o conteúdo do Livro de De- res possibilidades económicas ou com estatuto social
núncias encerra quase só delitos menores de heresia, mais elevado. Eram eles o alvo de mais denúncias por
onde praticamente apenas há judaísmo, que é um parte dos cristãos-velhos que revelavam um certo con-
dos tipos de denúncia mais consistente para o Santo tentamento em ver os judaizantes, seus conterrâneos,
Ofício, mesmo que a sua objetividade possa ser posta presos. É o caso da família de Pedro Furtado, que tem
em causa; mas o Tribunal de Inquisição de Lamego, um número signiicativo de denúncias pois era médico
tal como os outros tribunais instituídos no reino, têm de prestígio na cidade e arredores, onde atendia clien-
algo a tratar que examinam com uma severidade ex- tes de elevada posição social; foi julgado e preso pela
trema – o Judaísmo – que pensamos seria praticado, Inquisição e num traslado de culpas são incluídos qua-
nestes tempos, sem grande secretismo, em virtude dos se todos os membros da família, sendo um acusado
judeus viverem desde o reinado de D. Manuel e após de receber dinheiro dos cristão-novos para impedir o
as perseguições que lhe foram feitas com uma certa li- negócio da Inquisição em Roma.
berdade e imunidade. Todos os Processos arquivados na Torre do Tombo
A comunidade cristã-nova nesta cidade vivia com incidem nos agregados familiares por nós identiica-
os seus usos e costumes mais ou menos a descoberto, dos e grande parte recaem sobre elementos das mes-
sem grandes sigilos, praticava os seus rituais judaicos mas famílias, chegando uma delas, com doze elemen-
com um certo à vontade, sem sentir que necessitava tos, a deter treze processos levantados e abrangendo
de grande discrição ou de se esconder. Daí a enorme apenas seis dos seus membros; detectámos a existência
quantidade de denúncias que relatam que os cristãos- de processos absolutamente inconclusivos, chegando o
-novos guardavam o sábado e nele faziam ajuntamen- Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, para onde os réus
tos, em casa uns dos outros ou à porta de casa, sem apelavam frequentemente, a pronunciar a sentença
qualquer tipo de precaução, o que não passava des- num dos processos e a incluir nela os restantes elemen-
percebido aos vizinhos que abraçavam outra crença e tos da linhagem a quem a sentença também abrangia,
outros ideais. embora não se chegue a saber o que lhes sucedeu.
É de salientar que, nesta fase em que a Inquisição Nos Processos, não encontrámos qualquer sentença
dava os primeiros passos, não existia ainda um tipo de que puna verdadeiramente os cristãos-novos, apenas
inquérito absolutamente preciso, pelo que se constata abjurações, absolvições e a grande maioria não contém
que, muito poucas vezes, são mencionadas as relações qualquer sentença:
entre acusados e acusadores; também como denun-
ciantes aparecem cónegos, vigários e clérigos, embo- Não contêm sentença ..............................................23
ra o seu número seja insigniicante, apenas dezassete. Abjurações ................................................................12
Novamente interrogados ..........................................5
Temos ainda a acrescentar que a crença foi normal- Incompletos ................................................................5
mente omitida nos acusadores onde apenas 16 são Absolvições.................................................................3
Soltas sob iança .........................................................2
considerados cristãos-novos e os outros apresentam Ré ausente ...................................................................1
crença desconhecida; já no grupo dos acusados tal não Inutilizado ..................................................................1
acontece e dos 997 apenas cinco têm crença especíica,
os restantes 992, mesmo que não estejam todos desig- Sentenças dos Processos levantados na Inquisição de Lamego
nados por cristãos-novos, as acusações feitas deixam
206 Manuela Vaquero

Podemos airmar que não existiu em Lamego qual- tãos-novos junto da corte de Roma. Também a impor-
quer auto-de-fé e que no Tribunal do Santo Ofício da tância estratégica da cidade, a sua antiguidade e o seu
cidade iniciaram-se e concluíram-se somente vinte e poder sócio-económico no reino tiveram, por certo,
cinco processos, dos cinquenta e dois por nós encon- grande peso na formação do referido tribunal.
trados e analisados. Por estes dados somos levados a Subsiste como memória da existência deste tribu-
airmar que o Tribunal da Inquisição de Lamego não nal de vida tão efémera um Livro de Denúncias com-
foi tão punitivo para os cristãos-novos como os outros pleto, um macete com sete documentos soltos e um
tribunais espalhados pelo reino na mesma época. fragmento de um outro Livro de Denúncias, que fomos
Na sequência do estudo feito estamos convictos de identiicar na Torre do Tombo e que conirma a exis-
que o Tribunal da Inquisição foi estabelecido no bispa- tência de outros livros de denúncias que desaparece-
do de Lamego, tendo sob sua jurisdição o bispado de ram; também os cinquenta e dois processos levantados
Viseu, por inluência do seu bispo D. Fernando de Me- pela Inquisição de Lamego, embora bastante inconclu-
neses Coutinho e Vasconcelos que, sendo homem de sivos, vão facultar-nos uma visão mais elucidativa so-
grande inluência na corte, o fez instituir no bispado, bre os efeitos que esta instituição teve a nível social,
que acabava de abandonar, quando no reino eram, em incriminando especialmente as mulheres; no entanto,
simultâneo, criados outros tribunais. De referir que a não há registo de qualquer Livro de Reconciliações que
ausência de documentação é a primeira diiculdade tenha chegado aos nossos dias; apenas encontrámos
que nos surge para podermos chegar a uma conclusão num dos documentos soltos uma conissão/abjuração,
deinitiva que conirme estas airmações, o que não onde um Pêro Rodrigues, morador em Lamego, pede
implica, no entanto, que não tivéssemos desenvolvi- perdão das suas culpas e, num outro documento apen-
do as investigações de molde a conseguir obter dados so, a respectiva sentença pecuniária (1544)220.
mais consistentes e concretos que nos conduzissem a Como reminiscência da Inquisição, não só em La-
respostas mais precisas e comprovadas. Também pon- mego mas em todo Portugal, icaram frases e ditos que
deramos a interferência, se bem que indireta segundo se propagaram através das gerações e fazem ainda par-
o nosso parecer, do bispo e posteriormente cardeal D. te do nosso quotidiano, sem que nos apercebamos da
Miguel da Silva, relativa à criação do Tribunal do San- sua verdadeira essência e do horror que elas causaram
to Ofício em Lamego. Mesmo não possuindo dados a quem as sofreu na pele: “Ano da Graça”; “Levar couro
suicientemente claros que conirmem na totalidade e cabelo”; “Dar neste e naquele”;“Dar o braço a torcer”;“-
esta nossa asserção, há uma interdependência percetí- Ficar sem pinga de sangue”;“Gastar cera com ruins de-
vel entre o seu afastamento do bispado de Viseu e a sua funtos”; “Negar a pés juntos”;“ Tens medo de entalar o
nomeação a Cardeal in petto no ano de 1539, e a de- rabo?”;“Qual carapuça”; “Rabos de palha”;“O debaixo é
fesa por ele assumida com tenacidade, junto do Sumo meu, o de cima é dum judeu”, entre muitas outras.
Pontíice, em relação aos cristãos-novos e a criação do As leis não tiveram força para vencer os costumes e
Tribunal da Inquisição em Lamego. No ano de 1541 a fé – ao longo dos tempos alguns cristãos-novos man-
recebeu as insígnias de cardeal, no entanto, D. João III tiveram-se iéis às suas crenças; outros mesmo, tendo
não aceitou bem a sua nomeação e tudo fez para evitar a perceção da sua proveniência, eram já cristãos, em-
que ela se concretizasse219. bora todos saibamos que os cerimoniais aprendidos e
Em função desta circunstância, somos levados a apreendidos na família e repetidos ao longo das gera-
considerar a hipótese do Cardeal da Silva, embora, de ções, deixam marcas profundas na identidade de cada
forma indireta, ter tido inluência na criação do Tri- indivíduo e não são esquecidos com facilidade, nem as
bunal do Santo Ofício no bispado de Lamego com a pessoas deles se libertam num curto espaço de tempo
diocese de Viseu sob a sua jurisdição. O rei e o inqui- continuando, por esse motivo, a praticar rituais an-
sidor-geral pretenderam com a submissão do bispado cestrais, mesmo que eles não tenham a conotação que
de Viseu, onde D. Miguel ainda pontiicava, a um Tri- lhes era atribuída.
bunal de Inquisição recém-formado no patriarcado A presença da Inquisição em Lamego causou mui-
Lamego, humilhá-lo e depreciá-lo pois D. Miguel da ta intranquilidade entre as suas gentes, na medida em
Silva era, como provado, um dos defensores dos cris- que deixou em evidência as complexas relações entre
219 Cf. sobre o assunto: ALMEIDA, 1971: 666-669; KAYSERLING, 220 Documento nº 5, faz parte de um macete arquivado no ANTT que
2009: 274; Corpo Diplomático Português, 1884: 141-144, Tomo IV. possui sete documentos soltos da Inquisição de Lamego.
O Tribunal da Inquisição de Lamego 207

os cristãos-novos, a sociedade lamecense e demais ha-


bitantes da região. As acusações eram inúmeras e cria- BIBLIOGRAFIA
ram um ambiente de desconiança entre as pessoas,
porque muitas delas apresentavam-se na Casa do Des- Manuscritos:
pacho do Tribunal, sem qualquer fundamento, denun- Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) –
ciando atos praticados há mais de três, quatro, cinco Fundo do Santo Ofício
ou mesmo dez anos. Poderemos ainda concluir que,
ao contrário do que nos parece hoje absolutamente Inquisição de Lisboa:
ilógico, o Tribunal do Santo Ofício foi muito ansiado Livro [1] da Inquisição de Lamego (20/08/1543 –
e pretendido pela grande maioria da população lame- 22/12/1544): Denúncias
cense221, bem como a de todo o reino; ele era desejado 1 Macete – Sete documentos soltos da Inquisição
porque representava a puriicação das almas hereges, de Lamego.
numa época em que o religioso se confundia com o Fragmento de Livro da Inquisição de Lamego
social, o económico, o político e o espiritual. (1546).
Cinquenta e dois Processos.

Impressos:

ALMEIDA, Fortunado de (1968-1970) – História


da Igreja em Portugal. 4 vols. Barcelos: Livraria Civili-
zação Editora.

AZEVEDO, D. Joaquim de (1877) – Historia Eccle-


siastica da Cidade e Bispado de Lamego. Porto: Typo-
graphia do Jornal do Porto.

AZEVEDO, João Lúcio de (1921) – Historia dos


Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica
Editora.

AZEVEDO, D. Joaquim de (1877) – Historia Eccle-


siastica da Cidade e Bispado de Lamego. Porto: Typo-
graphia do Jornal do Porto.

AZEVEDO, João Lúcio de (1921) – Historia dos


Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica
Editora.

BETHENCOURT, Francisco (1996) – História das


Inquisições – Portugal, Espanha e Itália. vol. I. Lisboa:
Temas e Debates.

COSTA, Manuel Gonçalves da (1977-1993) – His-


tória do Bispado e Cidade de Lamego. 6 vols., Braga:
Oicinas Gráicas de Barbosa & Xavier, Limitada.

DIAS, Augusto (1947) – Lamego do Século XVI.


Edições «Beira Douro».
221 Cf. Corpo Chronologico, parte 1ª, maço 75, doc. 75.
208 Manuela Vaquero

FERNANDES, Rui (2001) – Descrição do Terreno TAVARES, Maria José Pimenta Ferro (1984) – Os
ao redor de Lamego duas duas léguas [1531-1532]. Edi- Judeus em Portugal no Século XV. vol. II. Lisboa: Insti-
ção Crítica de Amândio Morais Barros. Beira Douro: tuto Nacional de Investigação Cientíica.
Associação de Desenvolvimento do Vale do Douro.
(1987) – Judaísmo e Inquisição. Estudos. Lisboa:
FERREIRA, Maria Manuela de Sousa Vaquero Editorial Presença.
Freitas (2012) – A Inquisição de Lamego – Contributo
para o Estudo da Inquisição no Norte de Portugal. Vila VASCONCELOS, José Leite de (1958) – Etnograia
Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Portuguesa. 4 vols. Lisboa: Imprensa Nacional.
Tese de doutoramento
VITERBO, Sousa (1904) – “Ocorrências da vida Ju-
FRANCO, José Eduardo; Assunção Paulo de (2004) daica”. in Arquivo Historico Portuguez. Lisboa: II. Of.
– Metamorfoses de um Polvo - Religião e Política nos Typ. – Calçada do Cabra.
Regimentos da Inquisição Portuguesa (Séc. XVI – XIX).
Lisboa: Prefácio.

GÓIS, Damião (1619) – Chronica do Felicissimo


Rey Dom Emanvel da Gloriosa Memoria. Lisboa: An-
tonio Aluarez Impressor, & Mercador de Liuros.

GRIGULÉVITCH, Iossif (1990) – História da In-


quisição. Tradução de José António Torres Rodrigues.
Lisboa: Editorial Caminho.

KAYSERLING, Meyer (2009) – História dos Judeus


em Portugal. São Paulo: Editora Perspectiva S. A. In-
trodução e notas de Anita Waingort Novinsky.

HERCULANO, Alexandre (1975) – História da


Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal.
Tomo I, II e III. Lisboa: Livraria Bertrand.

MEA, Elvira Cunha de Azevedo (1997) – A Inqui-


sição de Coimbra no Século XVI – A Instituição, os Ho-
mens e a Sociedade. Porto: Fundação Eng.º António de
Almeida.

NUNES, Eduardo Borges (2009) – Abreviaturas pa-


leográicas Portuguesas. Lisboa: Edições Cosmos.

REMÉDIOS, J. Mendes dos (1895) – Os Judeus em


Portugal. 2 Vols. Coimbra: F. França Amado – Editor.

RODRIGO, D. Francisco Xavier G. (1884) – Histó-


ria Verdadeira da Inquisição. 2 vols. Guimarães: Cen-
tro de Propaganda Catholica em Portugal.

SARAIVA, António José (1956) – A Inquisição Por-


tuguesa. Lisboa: Publicações Europa-América.
209
210
Entre a Etnograia e a História:
os romances durienses de Alves Redol
texto: Gaspar Martins Pereira* (FLUP/CITCEM)

* Professor catedrático do Departamento de História e de Estudos


Políticos e Internacionais da FLUP. Investigador do CITCEM – Centro
de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço & Memória».

Resumo: Abstract:
Para lá da trama iccional dos quatro romances que Beyond the ictional plot of the four novels that
Alves Redol escreveu sobre o Douro, rio e região — Alves Redol wrote about the Douro, river and region
Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os Ho- — Porto Manso (1946), Horizonte Cerrado (1949), Os
mens e as Sombras (1951) e Vindima de Sangue (1953) Homens e as Sombras (1951) and Vindima de Sangue
—, tentamos compreender, nesta breve comunicação, (1953) —, we shall try to understand, in this brief
as condições de produção desses romances, as fontes communication, the conditions of production of these
de informação de que o escritor se serviu, desde ele- novels, the sources of information used by the writer,
mentos da observação etnográica e de análise históri- from the elements of ethnographic observation and
ca de documentação da época até testemunhos orais, the historical analysis of contemporary records to the
e a forma como os incorporou na narrativa literária. oral testimonies, and the ways in which these elemen-
Cruzando tempos diversos, entre o tempo dos acon- ts where incorporated in the narrative. Trough time,
tecimentos históricos e o tempo vivido e partilhado crossing the time of historical events and the time li-
pelo escritor no imediato pós-guerra, os romances ved and shared by the writer in the immediate postwar
de Redol oferecem-nos um valioso quadro histórico period, the novels of Redol ofer a valuable historical
e antropológico das gentes do Douro, baseado na ob- and anthropological framework of the people of Dou-
servação da vida das aldeias durienses, da faina luvial ro, based on the observation of life on Douro villages,
dos barqueiros e dos trabalhos da vinha, dos rituais e the work of the «barqueiros» (the Douro river boat-
tradições, mas também das preocupações e aspirações men) and of the work in the vineyards, the rituals and
dos diversos grupos sociais da complexa sociedade traditions, but also the concerns and aspirations of the
duriense. various social groups of the complex Douro society.

Palavras-chave: Douro, Alves Redol, História, Et- Keywords: Douro, Alves Redol, History, Ethno-
nograia, Literatura. graphy, Literature.
212 Gaspar Martins Pereira

interesse pelo Douro, os problemas «sempre latentes»


INTRODUÇÃO que, ao longo dos séculos, caracterizaram a lavoura da
região:

D
ois dos trabalhos em que me envolvi nos […] a riqueza de tipos durienses foi o principal
últimos tempos222 levaram-me a revisi- atractivo que o Douro me lançou. Ora eles não existem
tar os quatro romances que Alves Redol com interesse quando não há problemas. Os do Douro
escreveu sobre o Douro e a compreender melhor as são dos mais complexos da vida nacional: o desbrava-
condições de produção desses romances, as fontes de mento dos montes quase inacessíveis que hoje orgulham
informação de que o escritor se serviu e a forma como a nossa condição de homens, as vidas que por ali se gas-
incorporou na narrativa literária elementos da obser- taram, o vinho depois com as suas crises constantes, a
vação etnográica e de análise histórica. luta entre produtores e especuladores, a iloxera que foi
Nesta breve comunicação, e integrando-me num um dos mais dramáticos passos do país, as lutuações
painel sobre «História no/do Douro», gostaria de de riqueza, misérias confrangedoras e riquezas princi-
destacar alguns desses aspectos da obra duriense de pescas…223.
Redol que, a meu ver, ultrapassa muito o domínio da Nessa mesma entrevista, como em muitos dos seus
Literatura e constitui um valioso contributo para o co- romances, deixava transparecer uma mensagem de
nhecimento da região, nos planos da Etnograia e da futuro, de libertação do homem, de valorização do
História, cruzando tempos diversos, com a liberdade trabalho e de correcção das injustiças e desigualdades
da icção. sociais na sociedade que haveria de vir, em consonân-
cia com os ideais comunistas que perilhava. À questão
Tempos cruzados «E acha que os lavradores do Douro poderão um dia
Entre o tempo em que Redol escreveu os seus ro- resolver esses problemas — descansar enim?», Redol
mances, desde meados dos anos quarenta ao início respondeu:
da década seguinte, e o tempo em que os situou, re- Sem dúvida. O homem que já é capaz de vencer de-
cuando, no caso do «Ciclo Port Wine», às primeiras sertos, saberá dominar também estes problemas. Um
décadas do século XX, intrometem-se, aqui e ali, por organismo colectivo que defenda os pequenos proprietá-
vezes nas entrelinhas, outros sentidos e dimensões do rios da agiotagem, concedendo-lhes créditos e colocando
tempo. Por um lado, seguindo as concepções do rea- directamente os seus produtos nos mercados consumi-
lismo socialista, Alves Redol valorizou, numa dimen- dores, será a grande obra de defesa do viticultor e do
são intemporal ou de longa duração, o papel heróico trabalhador durienses. É anti-nacional o que até hoje
do povo na epopeia da criação da região vinhateira do vem sucedendo — que um dos maiores valores de expor-
Douro e do vinho do Porto. Na epígrafe de abertura tação do país só deixe angústia e fome àqueles que são os
do romance Horizonte Cerrado, o escritor comunis- seus mais devotados realizadores. A solução deste pro-
ta vincava a sua admiração pelo trabalho das gentes blema exige tudo; não podem haver obstáculos que não
do Douro: «‘Port Wine’ é o vinho dos Ingleses. Cha- sejam destruídos para se obter essa justiça elementar.
mam-lhe sol engarrafado, mas só os Durienses sabem / Criem-se lagares em cooperativa ou mobilizem-se os
o preço das tragédias e heroísmos que viveram para que já existem, conceda-se-lhes um longo crédito de base
criar esse sol — fazer um astro com as mãos é tarefa para que os seus vinhos sejam beneiciados, armazena-
de gigantes». dos e vendidos por conta própria, não só para criar uma
E, logo a seguir, na dedicatória «Aos Durienses», agricultura próspera, mas para salvar dos cardenhos, da
sublinhava: «Sonhei erguer, com este ciclo de roman- sub-alimentação, e da morte precipitada, os saibrado-
ces, um monumento à vossa epopeia, soberana entre res e os cavadores, as vindimadeiras e os lagareiros do
as demais que o homem empreendeu». Douro, todos aqueles que izeram, através [de] gerações,
Numa entrevista concedida a Francisco Tavares Te- de uma região fragosa e inóspita uma das mais ricas
les, em Setembro de 1947, para ser publicada no jor-
nal Trasmontano, do Clube Transmontano de Angola, 223 A entrevista seria publicada, no ano seguinte, no jornal Trasmonta-
Redol destacava, entre os principais motivos do seu no, comemorativo do 35º aniversário do Clube Transmontano de Angola,
sob o título O Douro encontrou o seu romancista, uma entrevista com o ro-
mancista Alves Redol, por Francisco Tavares Teles, com a indicação do local
222 PEREIRA, 2013a; PEREIRA, 2013b. e da data (Pinhão, Setembro de 1947). Cf. PEREIRA, 2013a.
Entre a Etnograia e a História 213

províncias de Portugal.224 relectiu esse embate de tempos e representações:


Esta mesma projecção de uma economia coopera- — Sim. Foi o comboio que matou tudo isto: os ho-
tiva do Douro vinhateiro surgiria, pela voz do médico mens e o rio, a alegria e até a honra. Os rapazes abalam;
Pimenta, nos romances do «Ciclo Port Wine»225. O fu- as mulheres morrem sem marido.
turo mistura-se, a cada passo, nos sentimentos e aspi- — Que tenho com isso?...
rações, nos gestos e trabalhos, ligados pela memória — És um dos que andam a fazer o cavalo do Diabo.
e pelas tradições, no io das gerações, na relação dos Um ilho meu!... O destino não perdoa; nunca perdoa.
homens com a terra. Entre muitos outros exemplos, — O destino são todos os homens.
leia-se aquela passagem em que Francisco Teimas se — Os homens!... O destino da aldeia é a devastação.
senta no degrau da escadaria de um socalco, recordan- São os vícios e a fome, a morte dos barcos e as terras
do as palavras do pai, que acabara de falecer, a propó- para novos donos que nunca lhe meteram a enxada. O
sito do assentamento das pedras de xisto: «Não, assim comboio arrasou tudo.
não, Francisco!», dissera-lhe o pai. «Mete essa pedra — E há-de construir tudo. O futuro anda já com ele.
mais a direito. Isso!... É um degrau para pôr os pés, — Um futuro de miséria, António. Tu não sabes…
mas não é só a gente que aí vai passar… Serão os teus — Sei uma coisa que o pai não viu ainda. O comboio
ilhos e os teus netos…».226 desencadeou todo o mal que queira; mas, lá dentro, vi-
Ou, ainda, o desenlace do romance Porto Manso, nham também os fogueiros, os maquinistas e os homens
em que a vitória do caminho-de-ferro sobre os barcos das oicinas. Vinham os descarregadores e todo o outro
rabelos, se, por um lado, trazia a morte da ancestral pessoal. Ele não tem culpa de haver uma companhia.
actividade luvial dos barqueiros, por outro, se trans- Aproximou-se do pai e apertou-lhe o braço, como
formaria em «cavalo de Tróia para o futuro»227, dando se quisesse transmitir-lhe a sua certeza. Um sorriso lu-
«uma vida nova» ao Douro. Era a mensagem neo-rea- minoso abriu-se no seu rosto tisnado; no olhar passou
lista de esperança e libertação trazida pelos operários, uma irmeza de aço, que parecia capaz de transformar
construtores da sociedade nova sobre os escombros da o mundo.
tradição: — O pai talvez não compreenda; mas o comboio…
É da morte que a vida ressurge. São as batalhas per- — Trouxe a companhia, como tu disseste.
didas que caldeiam o esforço novo da última batalha — Mas trouxe também os operários.
para vencer. O anseio de cada lutador caído vai lores-
cer no coração de centenas de outros homens. E depois Quatro romances do pós-guerra
serão milhares. E depois milhões. / E essas lores não Alves Redol escreveu os seus quatro romances so-
se desfolham nem murcham, porque são vivas como bre o Douro entre 1945 e 1952, no contexto do pós-
sangue e rijas como aço, são lores estranhas com per- -guerra, quando a região vinhateira sofria o impac-
fume para uns e espinhos para outros, são lores com to de uma conjuntura comercial desfavorável para o
alma — lores de alma eterna que vem das cavernas sector do vinho do Porto. Por essa altura, a sociedade
e caminha para o futuro. E o futuro não se lhe pode duriense mantinha ainda os quadros de vida tradicio-
negar, porque a certeza dos que tombam é a certeza nais, com uma forte ruralidade em torno do trabalho
dos que icam. E todos permanecem até ao im. Todos. manual das vinhas, com grandes desigualdades so-
Até os mortos. Porque estes mortos não vão a enter- ciais e profundas carências acumuladas desde o pe-
rar — o seu sacrifício loresce no coração de centenas ríodo iloxérico, na segunda metade do século XIX,
de outros homens. E depois serão milhares. E depois e sucessivamente agravadas, depois, com o esforço de
milhões. / É nesta morte que a vida ressurge e canta.228 reconstrução do vinhedo, com as crises comerciais e,
E, no diálogo inal entre o velho arrais António do mais proximamente, com as condições impostas pela
Monte e o seu ilho, que se tornara ferroviário, Redol guerra, gerando enormes diiculdades de escoamento
dos vinhos, a par da sua depreciação, o que se relectia
224 Idem, ibidem.
na vida miserável da maior parte das aldeias. Foi esse
225 Por exemplo, em REDOL, [1951]:182-187; REDOL, [1953]: 195. Douro do imediato pós-guerra que Redol captou nos
226 REDOL, [1953]: 287. seus romances, independentemente da época histórica
227 REDOL, [1946]: 315. em que situou os respectivos enredos. Era ainda um
228 REDOL, [1946]: 337. tempo em que alguns rabelos continuavam a sulcar o
214 Gaspar Martins Pereira

rio na faina do transporte das pipas de vinho para os pela Editorial Inquérito229. Nessa sua primeira estadia
armazéns de Gaia, apesar da concorrência do comboio, no Douro, encontrou-se com José Arnaldo Monteiro,
retratada em Porto Manso, e mesmo já de camiões. editor da Régua230, que o terá acompanhado por vários
Seria preciso esperar pelos revolucionários anos ses- lugares, nomeadamente ao Pinhão, onde o apresentou
senta e pela construção da barragem do Carrapatelo a Francisco Tavares Teles, de quem se tornaria amigo
para que a faina luvial dos rabelos se extinguisse de para toda a vida231. Com 31 anos, Alves Redol era já
vez, coincidindo com outras transformações, não me- um escritor reconhecido e sê-lo-ia também no Douro,
nos radicais, na paisagem física e social das aldeias do sobretudo nos meios intelectuais de Oposição ao re-
Douro, de que se poderiam destacar os movimentos gime. Além de colaboração dispersa na imprensa, em
migratórios dos pobres e mais jovens para as cidades especial em O Diabo e Sol Nascente, tinha publicado
e para a Europa, despovoando os lugares e impondo diversas obras, desde Glória, Uma Aldeia do Ribatejo
novas relações laborais, devido à falta de mão-de-obra, (1938), avançando, de forma pioneira, para uma es-
numa conjuntura comercial de grande crescimento, tética neo-realista com o romance Gaibéus (1939), a
mais favorável aos produtores. Mas o Douro de Re- que se seguiram Marés (1941), Avieiros (1942) e Fan-
dol é o Douro anterior a todas essas transformações, ga (1943)232, entre outros. Mas esse primeiro projecto
coincidente, em múltiplos aspectos, com as represen- duriense de Redol não teve sequência imediata, pro-
tações de muitas outras obras de escritores de diversas vavelmente porque se intensiicou, logo a seguir, a
correntes literárias, que izeram dos anos quarenta o militância política do escritor, com a sua participação
período áureo da literatura duriense. Basta recordar, nas actividades do Movimento de Unidade Nacional
sem preocupações de exaustividade: os contos de Pina Anti-Fascista (MUNAF)233 e na mobilização dos meios
de Morais, reunidos nos livros Sangue Plebeu e Vidas operários da zona ribeirinha do Tejo. Na sequência do
e Sombras, publicados em 1942 e 1949; ou os de João importante movimento grevista de Maio de 1944, Al-
de Araújo Correia, Contos Durienses, Terra Ingrata e ves Redol seria preso pela polícia política, dada a sua
Três Meses de Inferno, de 1941, 1946 e 1947, na sequên- intimidade com Soeiro Pereira Gomes234, seu compa-
cia de Contos Bárbaros, saído em 1939; Miguel Torga dre235 e um dos organizadores da greve, que passaria,
publicou os Contos da Montanha e os Novos Contos entretanto, à clandestinidade. Redol esteve quase três
da Montanha, em 1941 e 1944, a que se seguiria o ro- meses na prisão, só sendo libertado em 5 de Agosto.
mance A Vindima, em 1945; O caminho para lá, de O apertar da vigilância policial poderá ter levado Re-
Domingos Monteiro, saiu a público em 1947; depois dol a regressar ao seu projecto duriense, no início de
de publicar A Aldeia das Águias, em 1939, Guedes de 1945, instalando-se então em Porto Manso, uma aldeia
Amorim daria à estampa Os Barcos Descem o Rio, em de barqueiros, no concelho de Baião, onde recolheu in-
1945; ainda dos anos quarenta é o romance de Sousa formações para o seu primeiro romance sobre o Douro.
Costa, As Filhas do Pecado, saído em 1946. Nunca a De regresso a Lisboa, continuaria a envolver-se,
literatura duriense foi tão pródiga como nessa década, sobretudo a partir do inal da Guerra, em actividades
enriquecida também com os romances de Redol, Por- políticas e em iniciativas culturais. Nos últimos me-
to Manso (1946) e Horizonte Cerrado (1949), primei- ses desse ano, participou activamente na criação do
ro volume do «Ciclo Port Wine», a que se seguiriam
229 Cf. entrevista de Redol, publicada no jornal A Tarde, Porto, ano 1,
mais dois, Os Homens e as Sombras (1951) e Vindima n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4.
de Sangue (1953).
230 O jovem José Arnaldo Monteiro (?-1964) foi um reguense oposi-
Por outro lado, vale a pena compreender as condi- cionista ao salazarismo, com ligações ao Partido Comunista. Apaixonado
ções de produção da obra duriense de Redol, do ponto pelas letras e pelos livros, formou em 1935 uma sociedade (Figueiredo,
Correia & Monteiro, Lda.) com o médico e escritor João de Araújo Correia
de vista das vicissitudes que rodearam então a vida do e com Domingos Macedo de Figueiredo, para criar a Imprensa do Douro,
escritor e dos constrangimentos que lhe foram impos- na Régua.
tos pelo regime, através da censura prévia. 231 TELES, 1975: 49.
Alves Redol esteve pela primeira vez no Douro em 232 Sobre a importância da obra de Redol no neo-realismo português,
Setembro de 1943. Nessa altura, o escritor pretendia veja-se: FERREIRA, 1992; VIÇOSO, 2011.

reunir informações relacionadas com o trabalho na 233 PEREIRA, 1999: 349; GODINHO, 2001: 103-104.

região duriense, para um livro que deveria integrar 234 FALCÃO, 2005: 115; REDOL, 2011: 265.
uma colecção sobre O Trabalho em Portugal, a lançar 235 Era padrinho do ilho de Alves Redol, António Mota Redol.
Entre a Etnograia e a História 215

MUD - Movimento de Unidade Democrática, a cuja e umas sopas?»238.


Comissão Central chegou a pertencer. Ao mesmo tem- No início de Setembro, estava instalado na Pensão
po, desenvolvia acções nas colectividades locais, como Douro, iniciando as suas pesquisas. Durante cerca
o Ateneu Artístico Vilafranquense, e envolvia-se na de uma semana, compilou elementos, deslocando-se
fundação de importantes organismos culturais, inte- à Régua, Lamego, Valença, S. Salvador do Mundo e
grando a Comissão dos Escritores, Jornalistas e Artis- outros locais. Em Janeiro de 1948, já Redol começara
tas Democráticos, sendo-lhe atribuída a redacção do a escrever o primeiro volume do «Ciclo Port Wine».
«manifesto contra o regime fascista», publicado em Nessa altura, pensava dedicar ao Ciclo quatro volumes,
Novembro de 1945236. Ainda nesse ano, participou na pedindo a opinião de Tavares Teles sobre os títulos que
criação do Círculo de Cultura Teatral e, no início de tencionava dar-lhes: Esganados, Sangue dos homens ou
1946, do Teatro-Estúdio do Salitre, onde seria repre- Horizonte fechado, Estrela a Estrela e Raízes na terra239.
sentada a sua peça de teatro Maria Emília, publicada Porém, logo a seguir, novas contrariedades na vida
no ano anterior na revista Vértice. Nesse ano de 1946, de Alves Redol vieram perturbar a prossecução do seu
empenhou-se também na fundação do PEN Club, in- projecto. As relações com a Inquérito, que publicava
tegrando a sua primeira direcção, como secretário-ge- os seus livros desde 1944, degradaram-se até ao ponto
ral. de ruptura e Redol teve de assumir funções de editor,
Redol terá escrito Porto Manso nesse período agi- à frente da ARS – Editorial, para a publicação de no-
tado da sua vida, entre o Verão de 1945 e os primeiros vos fascículos de A França. Mesmo assim, não deixaria
meses de 1946. Talvez por isso, o resultado o tivesse de se deslocar ao Douro, pouco depois, para assistir
deixado insatisfeito do ponto de vista literário. Dirá, às cavas240. E, em Julho, estava já a fazer a revisão o
mais tarde: «Porto Manso, por exemplo, que vou tentar livro, com o título Horizonte Fechado, esperando po-
refundir, é um romance característico do que se não der dispor de uma pausa «para subir ao Douro» e ler
deve fazer em literatura»237. o texto aos amigos241. No início do Agosto, enquanto
Quanto aos romances do «Ciclo Port Wine», cuja preparava a edição da peça de teatro A Forja, procedeu
ideia terá partido de conversas com José Arnaldo a uma nova revisão do Horizonte Fechado242, antes de
Monteiro e Francisco Tavares Teles, provavelmente participar no Congresso Internacional de Intelectuais
ainda em 1945, a sua concretização foi também afec- para a Paz, que decorreu em Breslávia (Wroclaw), na
tada por contínuos contratempos e pelas multifaceta- Polónia, entre 25 e 28 de Agosto243, e que reuniu alguns
das actividades do escritor. No Verão de 1946, após a dos maiores escritores, artistas e cientistas de todo o
publicação de Porto Manso, Redol retomou a prepa- mundo e onde Redol falou em representação dos in-
ração do Cancioneiro do Ribatejo, que viria a publicar telectuais portugueses. Não sabemos se Redol chegou
em 1950, envolvendo-se ainda em outros projectos, a ir às vindimas do Douro nesse ano, como planeara,
entre os quais a adaptação ao cinema de Porto Manso, mas no início de Outubro entregaria o original do li-
que acabou por não se concretizar. A partir de inais vro à censura244. E, em Dezembro, estava na tipograia,
de Setembro, e durante alguns meses, Redol viveu em já com o título Horizonte Cerrado, icando pronto em
Paris, num hotel do Quartier Latin, multiplicando-se Janeiro ou Fevereiro do ano seguinte. Pelo meio, a vida
em contactos para recolher informações para um novo conturbada de Redol enfrentou outros problemas, des-
livro, A França — da Resistência à Renascença, que co- 238 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 15 de Agosto de
meçaria a publicar em fascículos, no início de 1948. 1947, publicada em PEREIRA, 2013a.
No entanto, esse livro já deveria estar concluído ou 239 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 27 de Janeiro de
muito avançado no Verão de 1947, quando o escritor 1948, publicada em PEREIRA, 2013a.

anunciou ao seu amigo Tavares Teles a sua intenção de 240 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 29 de Março de
1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
começar a recolha de informações para o seu romance
241 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 7 de Julho de
sobre o Douro: «É desta vez que me disponho a fa- 1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
zer o romance do seu Alto Douro. Tenho aí no Pinhão
242 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 3 de Agosto de
uma pensão ou taberna onde se arranje uma tarimba 1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
236 REDOL, 2011: 268. 243 Cf. REDOL, 2011: 274-275.
237 Diálogo com Alves Redol. «Gazeta Musical e de Todas as Artes», n.º 244 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 11 de Outubro de
118, Janeiro 1961, p. 174. 1948, publicada em PEREIRA, 2013a.
216 Gaspar Martins Pereira

de o envolvimento na empresa de materiais de cons- Certamente, o reconhecimento público da obra de


trução, Redol & C.ª, que criara com o pai e o cunhado Redol, a par da atribuição, em 1950, do Prémio Ricar-
em inais de 1947245, até à degradação da sua relação do Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa,
conjugal com Maria dos Santos Mota, que conduziu ao romance Horizonte Cerrado, animou o escritor a
à separação do casal, em Outubro de 1948, com um prosseguir. Em 1951 e 1952, trabalhou aincadamen-
consequente maior afastamento de seu ilho António, te no terceiro e último romance do «Ciclo». Em Maio
então com cinco anos, que icaria a viver com a mãe. de 1951, tinha já imenso material recolhido, pedindo
Redol teve de encontrar um quarto para recomeçar a ao seu amigo Tavares Teles para lhe arranjar um local
vida, com a sua nova companheira, Natália Cruz246, para dormir e comer em Valdigem ou Cambres, onde
com quem viveria durante cerca de quinze anos, até tencionava passar alguns dias «para colher os últimos
1963. elementos» de que necessitava250. Nesse ano e no se-
A escrita do segundo volume do «Ciclo Port Wine», guinte, Redol deslocou-se algumas vezes ao Douro,
inicialmente intitulado Terra Mártir, foi ainda mais pe- continuando a dividir-se entre a actividade comercial
nosa. As diiculdades inanceiras obrigavam-no a de- do negócio familiar de materiais de construção, em
dicar-se a tempo inteiro ao trabalho na empresa Redol Vila Franca, a vida em Lisboa, a escrita e o cinema251.
& C.ª, tirando-lhe ânimo para prosseguir, como con- Em Novembro de 1952, anunciava a Tavares Teles a
fessou a Tavares Teles, em Agosto de 1949: «O segundo conclusão de Vindima de Sangue:
volume do ciclo continua na mesma — e se não tivesse Ando em revisão do 3.º volume do ciclo, conten-
escrito o primeiro deixaria o encargo para outros. A te algumas vezes, descontentíssimo noutras, embora a
empreitada é difícil e sem estímulos torna-se penosa. tipograia comece esta semana a imprimi-los. Mas até
É que isto de fazer literatura a pensar em pagamentos ao im há «espinhos» por arrancar, icando ainda com
de renda de quarto e de comida é tarefa superior a um a certeza de que tantos outros permanecem, como a
cérebro já cansado e que não pode achar repouso»247. avisar o pobre escriba que a literatura já se não pode
Mas, como é sabido, Redol oscilava entre períodos de fazer por amadorismo. / Acabo, porém, o ciclo com a
desânimo e outros de grande entusiasmo, em que es- impressão de que deixei nele o melhor que consegui até
crevia sem parar. Menos de três meses depois, em De- hoje — e lembro-me quase todos os dias, eu que sou um
zembro, já o escritor dava por concluído o segundo vo- falhado de memória, naquilo que te prometi ao iniciá-
lume do «Ciclo», entregando o original à Censura, que -lo. Tive vontade — sincero desejo mesmo — de subir até
o sujeitou a inúmeros «cortes»248. Só seria publicado ao Douro e fazer uma leitura contigo e o Zé Arnaldo.252
mais de um ano depois, no inal de Abril de 1951, com
muitas alterações. Ainda em Janeiro desse ano, Redol Observação etnográica e análise histórica
revelava a Tavares Teles: Na construção dos seus romances durienses, Alves
Entretanto cá prossigo, vencendo os inimigos exterio- Redol seguiu o método já utilizado em obras anterio-
res e mais este que mora dentro de mim, dizendo-te que res, desde Gaibéus, procurando que a narrativa não
“heroicamente” reiz por duas vezes Terra Mártir e só só se aproximasse de um «documentário humano» da
agora o considero um romance digno do meu propósito: vida popular, mas que emanasse também do povo, que
o de dar ao ciclo o meu melhor trabalho. Alterei quase penetrasse nas suas mais profundas preocupações e
tudo, para não dizer tudo, e modiiquei-lhe o título que aspirações, numa lógica mimética, como salientou Ví-
será agora Os Homens e as Sombras, reservando o ou- tor Viçoso253. Para isso, Redol utilizou a metodologia
tro, o primitivo, para o 3.º volume. A publicação deve etnográica de recolha de informação, combinada com
ainda demorar, porque não me abunda o dinheiro e não 1951, publicada em PEREIRA, 2013a.
procuro editor.249 250 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 24 de Maio de
245 REDOL, 2011: 268. 1951, publicada em PEREIRA, 2013a.

246 Natália Cruz terá sido a «mulher da sua vida», segundo REDOL, 251 Elaborou o argumento do ilme Nazaré e os diálogos de Vidas sem
2011: 275 e 303. Rumo, ambos realizados por Manuel Guimarães e que seriam severamente
amputados pela censura. Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Te-
247 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Agosto de les, 27 de Agosto de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.
1949, publicada em PEREIRA, 2013a.
252 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 19 de Novembro
248 Cf. REDOL, 2011: 137 e 277. de 1952, publicada em PEREIRA, 2013a.
249 Carta de Alves Redol para Francisco Tavares Teles, 1 de Janeiro de 253 VIÇOSO, 2011: 35.
Entre a Etnograia e a História 217

o que chamaríamos hoje de «observação-participan- (surribas, podas, cavas e vindimas, ceifas e malhadas,
te», método correntemente utilizado pelos antropólo- etc.), ouvir os modos de falar locais, a que dava grande
gos. Desde o seu primeiro livro, Glória: Uma Aldeia do importância, perceber as preocupações das pessoas,
Ribatejo, publicado em 1938, uma obra de etnograia, colhendo materiais para os seus livros256. Neste ciclo
inspirada nos trabalhos de Leite de Vasconcelos, Re- de romances, cujo enredo se situa, cronologicamente,
dol nunca deixou de usar o «trabalho de campo» para entre inais da Monarquia e os primeiros anos da Re-
recolher informações sobre acontecimentos, situações, pública, Redol traçou, além disso, um notável painel
termos populares, alfaias de trabalho, tradições, for- da história do Douro nesse período dramático que su-
mas de pensar, de dizer, de fazer e de viver dos perso- cedeu à reconversão pós-iloxérica, marcado pela crise
nagens e ambientes que pretendia trabalhar nos seus comercial, por formas de concorrência desleal, com
romances e que ia reunindo nos seus cadernos de no- imitações e falsiicações, pela desvalorização do vinho
tas. Recorria também ao uso da fotograia. Em 1945, do Porto e pelas diiculdades de escoamento, que pro-
para escrever Porto Manso, acompanhou os barquei- vocaram a pauperização das aldeias durienses e uma
ros do Douro, em viagens perigosas de transporte de forte agitação social, culminando no trágico motim
vinho pelo rio. Em Fevereiro desse ano, sob o título O popular de Lamego de 20 de Julho de 1915. Nestes ro-
humano romancista da Fanga, barqueiro entre barquei- mances, Redol revela um profundo conhecimento his-
ros, foi instalar-se em Porto-Manso, aquém-Baião, onde tórico, situando com bastante rigor cronológico e fac-
prepara um livro sobre a trágica vida dos mareantes do tual, situações e acontecimentos regionais, nacionais
Douro, o diário portuense A Tarde abria uma entrevis- e europeus. Além das informações locais, Redol pro-
ta ao escritor com as seguintes palavras: cedeu a uma intensa pesquisa de fontes documentais.
Chegou ao Porto e desembarcou na Ribeira. Veio Alguma documentação que estudou foi-lhe fornecida
num rabelo carregado com 16 pipas de vinho ino e, du- por amigos da região, mas completou-a, depois, nas
rante dois dias e duas noites, pés descalços, camisola de bibliotecas da capital, com leituras de jornais da época,
lã grossa a tapar-lhe o peito forte, a inseparável gorra actas das sessões da Câmara dos Deputados e do Sena-
azul a cobrir-lhe a cabeleira espessa, fez vida de barquei- do, memórias de políticos e diplomatas, etc.257
ro. Em Entre-os-Rios, com a força da corrente e o espesso
nevoeiro — de cortar à faca — o barco bateu num pegão NOTAS FINAIS
e correu risco de naufrágio. Nem assim se intimidou.

C
Voltará para Porto-Manso pelo Douro acima e lá icará onsiderando as fontes de informação de
até colher todos os elementos de que precisa para o seu que Alves Redol se serviu e a forma como
próximo romance.254 incorporou na narrativa literária elementos
No caso dos três romances do «Ciclo Port Wine», da observação etnográica e da análise histórica de do-
em que descreveu a vida de uma família de pequenos cumentação da época, não é difícil perceber a impor-
viticultores do vale do Rio Torto no início do século tância da sua obra para aprofundar o conhecimento
XX, Redol baseou-se em grande parte, como já o tinha sobre o Douro, em diversos campos e sentidos. Antes
feito em Porto Manso, nas informações colhidas local- de mais, como procurámos salientar, oferece-nos um
mente, quer transmitidas pelos seus amigos durien- quadro antropológico do Douro no pós-guerra, basea-
ses, em especial José Arnaldo Monteiro e Francisco do na observação apurada da vida nas aldeias durien-
Tavares Teles, aos quais dedicou o romance Horizonte ses, na faina luvial dos barqueiros e nos trabalhos
Cerrado e com quem trocou abundante correspondên- da vinha, nos rituais e tradições, desde as «pulhas»
cia. Muitas cartas de Redol para Tavares Teles deixam carnavalescas às canções de trabalho, como a «Maria
perceber a importância deste último como seu infor- Cavaca» dos cavadores, mas também às preocupações
mador privilegiado, com quem discutia os romances
ou parte deles, antes de ixar a versão inal255. De resto, 256 A este propósito, vale a pena ler o depoimento de TELES, 1975: 49-
57.
as estadas de Redol no Douro permitiram-lhe convi-
257 Como Alves Redol refere na coda do livro Vindima de Sangue: «Os
ver com o povo das aldeias, observar fainas agrícolas três volumes de que se compõe o ‘Ciclo Port-Wine’ abarcam os primeiros
quinze anos deste século, que se não pretendem historiar, embora o roman-
254 A Tarde, Porto, ano 1, n.º 45, 21.02.1945, p. 1 e 4. cista se tenha documentado para o enquadramento das suas personagens
nos problemas da época». Também na correspondência para Francisco Ta-
255 PEREIRA, 2013a vares Teles se refere à leitura de memórias e documentos da época.
218 Gaspar Martins Pereira

e aspirações dos diversos grupos sociais da complexa


sociedade duriense. Por outro lado, tendo em conta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
a interacção do discurso literário com as representa-
ções colectivas, a leitura atenta destes romances per- Obras de Alves Redol
mite-nos perceber a importância e os signiicados
que as pessoas com quem Redol contactou no Dou- REDOL, Alves [1946] — Porto Manso. 4.ª ed. Lis-
ro atribuíam aos fenómenos que marcaram os movi- boa: Editorial Caminho, 1999.
mentos populares do inal da Monarquia e no início
da República e a sua integração nos movimentos re- REDOL, Alves [1949] — Horizonte Cerrado. 3.ª ed.
gionais mais amplos. Finalmente, o contributo para o Lisboa: Publicações Europa-América, 1974
conhecimento de diversas situações e acontecimentos
marcantes da história regional. Alguns deles, como o REDOL, Alves [1951] — Os Homens e as Sombras.
motim de Lamego de 1915, apesar da sua importância, 2.ª ed. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d.
foram, até há pouco tempo, praticamente ignorados
pela historiograia nacional, que lhes concedeu, quan- REDOL, Alves [1953] — Vindima de Sangue. 3.ª ed.
do muito, mesmo em obras de maior fôlego, algumas Lisboa: Publicações Europa-América, 1975.
linhas258, para não falar na deturpação dos aconteci-
mentos259. É verdade que a historiograia mais recen- Entrevistas a Alves Redol
te sobre a região do Douro tem vindo a desenvolver
análises mais detalhadas e fundamentadas sobre este Diálogo com Alves Redol. «Gazeta Musical e de To-
período260. Mas não é menos verdade que só começou das as Artes», n.º 118, Janeiro 1961, p. 174-177.
a fazê-lo várias décadas depois da publicação dos ro-
mances de Alves Redol261. O humano romancista da Fanga, barqueiro entre
barqueiros, foi instalar-se em Porto-Manso, aquém-
Porto, Setembro de 2013 -Baião, onde prepara um livro sobre a trágica vida dos
mareantes do Douro. «A Tarde». Porto, ano 1, n.º 45,
21.02.1945, p. 1 e 4.

Outras referências:

FALCÃO, Miguel (2005) — Espelho de ver por den-


tro – O percurso teatral de Alves Redol. Lisboa: Facul-
dade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação
de doutoramento em Estudos de Teatro.
258 Veja-se, por exemplo: PERES, 1954: 118-119; MARQUES, 1978: 159.
259 Por exemplo, na obra recente de António José Telo sobre a I Repúbli- FERREIRA, Ana Paula (1992) — Alves Redol e o
ca, pode ler-se a seguinte interpretação: «As vagas de assalto são sobretudo Neo-Realismo Português. Lisboa: Caminho.
um resultado da conjuntura de guerra e não podiam ser dela dissociadas.
A prova surge em Julho de 1915, quando o que tinha começado por ser
um movimento exclusivamente urbano se alarga às zonas rurais. Começam GODINHO, José Magalhães (2001) — Alves Re-
nesse mês as “revoltas camponesas”, com as populações rurais a “invadi-
rem” Lamego para assaltar armazéns e destruir tudo o que lhes cheirasse
dol, Combatente pela Liberdade. In MARINHO, Maria
a Estado que encontrassem pela frente, a começar na câmara municipal». José; REDOL António Mota, org. — Alves Redol, Tes-
TELO, 2010: 328. temunhos dos seus Contemporâneos. Lisboa: Caminho,
260 A propósito dos antecedentes e do contexto histórico em que se si- p. 103-104.
tuam os romances de Alves Redol do «Ciclo Port Wine», veja-se SEQUEI-
RA, 2000; SEQUEIRA, 2003: 77-86; PEREIRA & SEQUEIRA, 2004: 59-77;
SEQUEIRA, 2011. MARQUES, A. H. de Oliveira, coord. (1978) — His-
261 Já antes, Pina de Morais tinha centrado um dos seus textos no motim tória da Primeira República Portuguesa. As estruturas
de Lamego. No entanto, ao estilo de Pina de Morais, trata-se de um texto
breve, sem avançar para a contextualização ampla que Redol desenvolveria
de base. Lisboa: Iniciativas Editoriais,.
nos seus romances. MORAIS, 1942.
Entre a Etnograia e a História 219

MORAIS, Pina de — Sangue Plebeu. Porto: Marâ- TELES, Francisco Tavares (1975) — Alves Redol no
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ratura e o real, os processos e os agentes». Lisboa/Vila
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mo, 7-10 de Novembro 2012. [no prelo]

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220
Revoltas populares no Douro
Vinhateiro (Carrazeda de Ansiães e Lamego),
no inal da Monarquia e início da República:
representações sociais e identidades
a partir da imprensa da época
texto: Maria Otilia Pereira Lage / Investigadora do CITCEM
e Professora Associada da Universidade Lusófona do Porto

Resumo: Abstract:
Faz-se uma aproximação socio-histórica, com base Makes it a socio-historical approach, based on the
na imprensa local e nacional, aos movimentos sociais e local and national press, about social movements and
revoltas populares durienses veriicados em Carrazeda popular uprisings seen in Douro ( Carrazeda Ansiães,
de Ansiães, Vila Flor, Sabrosa, Alijó, Régua e Lamego, Vila Flor, Sabrosa, Alijó Ruler and Lamego), between
entre 1909-1910 e 1915, relectindo-se, no contexto 1909-1910 and 1915, relected whether in the context
da “Questão do Douro”, tonada questão nacional, e da of the “question of the Douro,” made a national issue,
defesa da “marca regional” do vinho, sobre a emergên- and the defense of “regional brand” wine, on the emer-
cia de representações sociais e identidades conjunturais/ gence of social representations and identities situatio-
contextuais, em situação de crise, cujas dinâmicas de nal / contextual, in crisis, whose dynamic construction
construção e airmação especíicas, se tentam qualii- and airmation speciic if they attempt to qualify the
car, na perspectiva de análise sociológica dos levanta- perspective of sociological analysis of popular uprisin-
mentos populares. gs.

Palavras-chave: Motins e revoltas populares; Re- Key words: Riots and uprisings; Douro region; the
gião do Douro; século XX; Identidades e representa- twentieth century; identities and social representa-
ções sociais tions
222 Maria Otília Lage

INTRODUÇÃO 1. QUADRO TEÓRICO E METODOLÓGICO


DE ANÁLISE

A
Região do Douro Vinhateiro é historica-

D
mente uma espácio - temporalidade alta- esde a época moderna que a região Vi-
mente regulamentada e profundamente nhateira do Douro tem sido um espaço de
normativizada, em especial desde que, com o Marquês forte tensão social e palco de recorrentes
de Pombal, se tornou na primeira região vitivinícola manifestações populares. A sua análise, enquanto fe-
demarcada e cadastrada do mundo. Considera-se que nómenos isolados ou enquadrados noutras temáticas
tal regulamentação, que desde então oscilou entre o tem merecido interesse esporádico dos historiadores
proteccionismo e o livre-cambismo, é factor de uma que os estudam, em regra, sob a perspectiva das suas
latente e constante conlitualidade de interesses, me- motivações, consequências e lideranças, em contextos
lhor ou pior representados, mobilizando fortemente históricos mais latos, e não como fenómeno sócio-his-
em momentos de crise e ameaça de ruptura as popu- tórico autonomamente considerado, embora caracte-
lações locais, as quais, em diferentes conjunturas, as- rizado por traços e características gerais próprias, no
sumiram formas extremas de manifestações sociais: quadro da Região Duriense, cuja história social, o seu
motins, tumultos, levantamentos, sublevações popula- estudo relexivo e crítico, em concreto, melhor ajudará
res, comícios e outras formas de protesto que importa a iluminar.
estudar no seu conjunto, para melhor compreender o Tenta-se então descrever e analisar com enfoque
seu signiicado histórico. em Lamego e Carrazeda e num enquadramento socio-
Nos inais da Monarquia e durante os primeiros -histórico, as reivindicações e revoltas durienses dos
anos da Republica, milhares de trabalhadores e pe- inais da Monarquia e primeiros anos da República,
quenos proprietários da Região Vinhateira do Douro período marcado por aguda crise comercial, super-
se manifestaram em revoltas e motins populares que produção e agitada conjuntura social em que tem lu-
ocorreram, sucessiva e alternadamente, em diferentes gar a nova demarcação franquista.
concelhos (Régua, Santa Marta, FozTua, Carrazeda de
Ansiães, Alijó, Vila Flor e Lamego), de 1910 a 1915, 1.1. Lutas sociais e imprensa
tal como sucedeu noutras regiões vinhateiras da Eu- Dada a importância e protagonismo dos órgãos de
ropa de que é exemplo, o signiicativo movimento dos comunicação social no contexto dos movimentos po-
vinhateiros franceses no Languedoc em 1907, com pulares em observação, (Régua, Santa Marta de Pena-
desfecho trágico e grande amplitude, chegando a jun- guião, Armamar, Carrazeda, Alijó, Vila Flor e Lamego
tar cerca de 600.000 pessoas em Montpellier. (Gaspar com episódios idênticos noutros concelhos) num arco
Martins Pereira e Carla Sequeira262). temporal de 5 anos, a fonte principal — um manancial
No Douro, as contestações populares coniguraram inesgotável — há-de ser sempre a imprensa da época.
um dos aspectos sociais e políticos mais relevantes da Tendo sido alvo de vasta cobertura da imprensa na-
designada “Questão do Douro”, cuja resolução insti- cional, regional e local, estas manifestações podem ser
tucional iria ser tentada, por legislação reguladora da reconstituídas, recorrendo-se aos seus registos jorna-
produção e comércio dos vinhos generosos e pela nova lísticos, embora seja delicada a tarefa do historiador,
demarcação franquista da região Duriense vinhateira já que “ a voz jornalística” sempre pretende conferir
(1907-1908). objectividade a suas opiniões particularistas induzi-
É neste processo social da história contemporânea das pelos interesses inanceiros, políticos e contextos
do Douro, profusamente informada pela imprensa, sociais em que os jornais agem e tentam sobreviver,
mas historicamente pouco estudada, que se centra sem se afastar muito do universo de seus leitores cuja
agora o nosso interesse. opinião pretendem formar.
Sabe-se que os meios de comunicação estão em
constante disputa pela sua sobrevivência que reside
262 PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla - Da Missão de Alijo nos seus públicos, cujas necessidades tentam conhecer
ao Motim de Lamego: crise e revolta no Douro Vinhateiro em inícios do sécu-
lo XX publicado em “Revista de História da Faculdade de Letras do Porto”,
não para satisfazê-las mas para os não perder, móbil
Série III:vol.5, pág.59-77.
Revoltas populares no Douro Vinhateiro 223

do carácter empresarial do jornalismo.263


Tal não inviabiliza porém o uso destas fontes, pois 2. DESCRIÇÃO DE SUBLEVAÇÕES POPULA-
se podem encontrar em suas páginas - “os rostos” da RES NO DOURO E CONTEXTO HISTÓRICO
multidão, editoriais sobre o assunto - , informações va-

A
liosas sobre as descrições dos acontecimentos, tentati- situação no Douro, no início do séc. XX,
vas da explicação dos factos, mesmo que parcelares e caracteriza-se por uma profunda miséria
facciosas, conhecimento de como a cobertura foi feita, geral provocada por um vasto conjunto
de como chegou ao público leitor, quais as suas posi- de diiculdades inerentes em grande parte, aos múl-
ções dominantes, como explicá-las e ainda poder des- tiplos problemas de produção, escoamento e comer-
cobrir, aspectos e características da composição social cialização dos seus vinhos com especial destaque para
dos revoltosos e lideranças. o Vinho do Porto, principal produto de exportação, e
É ainda de considerar a imprescindibilidade de respectiva legislação reguladora.
pesquisa e análise das notícias jornalísticas sobre as Nesse ambiente de crise generalizada e confrange-
revoltas sociais pela exiguidade ou até inexistência de dora desgraça, tornada questão nacional premente de
outras fontes directas sobre tais acontecimentos mais solidariedade, fraternidade e intervenção humanitá-
ou menos “espontâneos e sigilosos”. ria, designadamente em toda a imprensa, a “Miséria
do Douro” era denunciada, através dos males sociais
1.2. Para uma aproximação socio-histórica aos que atingiam a região, as suas populações e centenas
levantamentos populares durienses de trabalhadores e lavradores: fome, doença, morte,
Impondo-se por outro lado, uma referência teó- promiscuidade primitiva dos casebres, emigração cres-
rica consistente para o estudo socio-histórico destas cente, despovoamento, isco implacável, velhos, mulhe-
sublevações populares, recorremos à perspectiva dos res e crianças à espera da caridade alheia, num qua-
novos estudos sociais e históricos, estabelecida por I. dro generalizado e pavoroso a que era urgente valer.
Wallerstein, sociólogo americano, director do Centro Caldeava-se assim um pano de fundo social gerador
Ferdinand Braudel, reportando-nos aqui, em especial, de peditórios públicos e campanhas de solidariedade
a uma sua análise relexiva actual dos mais recentes le- através da imprensa e, em casos limite, revoltas e mo-
vantamentos populares em vários países do mundo264, tins populares.
que caracteriza em 5 aspectos principais: 1 - contes-
tação da legitimidade do estado, com uma tonalidade 2.1.Tumultos em Carrazeda de Ansiães, Alijó,
de “esquerda” na arena política, pautada pela repressão Vila Flor… (1910-1912)
que age no curto prazo e/ou cedências; 2 - diiculdade Por exemplo, no concelho de Carrazeda de Ansiães,
destes levantamentos em manter-se por muito tempo espaço signiicativo da RDD, o frio, a fome e as exíguas
em alto nível; 3 - protestos que deixam um legado, mu- condições de vida, por extrema falta de trabalho que
dando sempre alguma coisa na política, para melhor; nem a cultura do tabaco então aí iniciada conseguiu
4 - muitos, quase sempre “de direita” que se juntam atalhar, chegaram a provocar vítimas mortais e expli-
mais tarde a estes levantamentos, não fortalecem os cam que recorrentemente se implore a caridade públi-
seus objectivos iniciais, antes os pervertem; 5 - todos ca. Veja-se por exemplo, o que noticiava o “Primeiro
os levantamentos populares são envolvidos pela luta de Janeiro” em Fevereiro de 1909:
geopolítica, o que exige perceber as suas consequên- “Escrevem-nos de Carrazeda de Ansiães a pro-
cias em termos de sistema mundo. pósito da miséria que lavra naquele concelho. É uma
senhora que se nos dirige. Começando por aplaudir a
nossa atitude e traçando depois o quadro de infortú-
nio que ali presencia dia a dia, jornaleiros e pequenos
lavradores não têm pão para comer. Os últimos ainda
263 MARCONDES Filho citado por CHARLESTON José de Sousa Assis
- Grande imprensa e lutas sociais: os jornais e os populares na revolta po- têm algum vinho mas é quase o mesmo que não ter
pular carioca de 1987, pág.10, Disponível em www.encontro2010.rj.anpuh. nada, visto que oferecem 7$000 réis por cada pipa pos-
org/.../1276740123_ARQUIVO consultado em 2 /5/2013.
ta em Foz - Tua. Ora só carreto custa 2$500 réis… A
264 WALLERSTEIN, I. - Commentary No. 356, July 1, 2013. “Uprisings
Here, here, and Everywhere”. Disponível em http://www2.binghamton.
nossa leitora pede-nos que lembremos o seguinte (…)
edu/bc/commentaries/archive-2013/356en.htm, consultado em 3/9/2013 - que se examine com mais atenção e justiça, a área
224 Maria Otília Lage

demarcada da região privilegiada do Douro, a im de clusiva dos vinhos durienses, circunstâncias agravadas
serem atendidos os pobres daquela comarca.” pela escassez das colheitas de anos anteriores, falta de
trabalho e miséria dos trabalhadores.
Continua a alorar aqui, como na Representação às
Cortes dos Viticultores de Carrazeda, de 1907, a in- 2.2. O Motim de Lamego (1915)
vocação de justiça e de um olhar atento para a Região Numa primeira fase, a designada “missão de Alijó”,
Demarcada do Douro. conferenciou com sindicatos, associações e várias câ-
Por sua vez, a Liga dos Lavradores do Douro repre- maras da região, com reuniões na Câmara de Lamego,
sentava ao Governo, em 4 de Fevereiro de 1909, su- gerando-se um forte movimento institucional visando
gerindo medidas e criticando as contradições da nova a alteração do artº 6 do Tratado de Comércio Luso-
legislação dita em favor do crédito de genuinidade dos -britânico (12 de Agosto de 1914) de forma a garantir
vinhos desta região e, advogando a causa dos operá- os direitos da região do Douro como único produtor
rios pede-se “ao Estado que auxilie os operários com do Vinho do Porto para exportação. Numa segunda
obras nos caminhos que são ainda quase os mesmos fase (Jan. -Jun. de 1915), perante o impasse das nego-
da época em que se iniciou o comércio dos vinhos do ciações com o governo, a instabilidade governativa, vi-
Douro há quase 300 anos” 265 sando afastar do poder os republicanos, a carestia e es-
Pela mesma ocasião, em Fevereiro de 1909, “O Pri- cassez de géneros intensiicada pelo alastrar da Guerra
meiro de Janeiro”, divulga uma grande foto de crianças na Europa, assiste-se ao Motim de Lamego, expressão
famintas nas ruas de Favaios, e publica carta de um máxima de enorme exaltação popular.
transmontano, com idênticas denúncias e o seguinte A 20 de Julho de 1915, o povo das aldeias de Cam-
alvitre conciliador: bres, Valdigem, Sande e Figueira, formando “uma
“É sabido que há milhares de pipas de vinho sem marcha da fome” de cerca de cinco mil pessoas, di-
sequer ter pretendentes e que ainda não se ixou preço rigiu-se à cidade de Lamego, manifestando-se em
a cada pipa, devido a não ter aberto preços a “Compa- frente ao edifício da Câmara. No momento em que a
nhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro”, comissão de representantes se encontrava a conferen-
conhecida vulgarmente por “Companhia Velha” que é ciar com a Comissão executiva da Câmara de Lamego,
a reguladora dos preços dos demais compradores…. ocorreu a tragédia. De acordo com os relatos dos jor-
Perante tamanha desgraça, sendo certo que a prospe- nais (“ A Fraternidade”, Lamego, 24 de Julho de 1915,
ridade da Companhia é devida à excelência dos vinhos p.1) tudo corria paciicamente, quando de repente, a
do Douro, haverá quem censure os seus directores por população foi atacada com bombas, caindo mortos ou
pagarem os vinhos daquela região por preço que sem feridos vários manifestantes e debandando a maioria.
prejudicar a Companhia, beneicie tanto infeliz?” Com a população em fuga, mais nove pessoas seriam
Esta fortíssima onda social de queixas alitivas, de- atingidas, mortalmente pelas costas, por tiros dispa-
núncias de males “in extremis”, recorrentes represen- rados das janelas traseiras da câmara. 266. O balanço
tações dos viticultores e proprietários às Cortes, contra trágico do “motim de Lamego” somou doze mortos e
as fraudes e visando inluenciar as leis que o Gover- vinte feridos.
no preparava, acaba por explicar a súbita e sucessiva As entidades oiciais, a começar pela Câmara Mu-
emergência de motins e sublevações de milhares de nicipal de Lamego, procuraram atribuir as culpas aos
indivíduos e o alastramento da excitação popular, de manifestantes, posição adoptada também por parte da
umas povoações a outras. imprensa de Lamego, afecta ao Partido Democrático
Em 1914, cresce ainda mais, no Douro, a agitação 267
. O povo era acusado de ter provocado as forças mi-
social (imponentes comícios em Vila Real, Régua…) litares com desacatos. Por outro lado, conferindo um
reclamando do governo maior iscalização e protecção carácter político aos acontecimentos, airmava-se que
para os seus vinhos generosos e garantias de exporta- os manifestantes se deixaram aliciar por elementos
ção do Vinho do Porto, cuja proveniência de origem monárquicos que pretendiam derrubar a República.268
se defendia face às fraudes e concorrências protegidas
por leis, contestadas por não garantirem a marca ex- 266 “A Defesa do Douro” Peso da Régua, 26 de Julho de 1125, p.3
267 “A Tribuna”, Lamego, 25 de Julho e 29 de Agosto de 1915, p.1
265 “O Primeiro de Janeiro”, Fevereiro de 1909. 268 PEREIRA, Gaspar Martins, SEQUEIRA, Carla, ob. cit.
Revoltas populares no Douro Vinhateiro 225

A versão oicial dos factos, incluindo relatórios e


pareceres judiciais acusava o povo de Lamego, porta- 3. ANÁLISE DE JORNAIS - REPRESENTA-
dor de armas brancas e de fogo, de provocar as forças ÇÕES SOCIAIS E IDENTIDADES
militares e os poderes instituídos e de premeditar a

O
repetição dos acontecimentos de Armamar e da Ré- anteriormente exposto, é ponto de partida
gua; pelo contrário, a percepção regional viu na acção para a análise em concreto que, balizada
popular, um acto heróico em defesa dos interesses da pelas noções de representações sociais272 e
Região, considerando os mortos “mártires” da causa identidades273, vamos agora fazer dos discursos trans-
que unira na luta as populações do Douro. critos de alguns jornais que noticiaram, em regra, de-
Em idêntico sentido, a imprensa269 lembra ainda, nunciando, como violentas estas manifestações popu-
recentemente, esses acontecimentos: lares e reclamando forte repressão das forças da ordem
“(…) Há 90 anos, várias dezenas de explorados pe- para se lhes pôr cobro.
los grandes proprietários do Douro foram recebidos a
tiro por um destacamento militar, quando se dirigiam 3.1. Comentário analítico de algumas notícias
à autarquia para reclamar melhores condições de vida. jornalísticas
Mesquita Montes, da Confraria dos Enóilos da Região As sublevações e motins ocorridos em Carrazeda,
Demarcada do Douro, contou ao JN o signiicado da Alijó, Sabrosa, Vila Flor, Santa Marta, Armamar, Ré-
evocação “Serve para lembrar aqueles que, numa altu- gua e Lamego (1910-1915) eram assim noticiados na
ra em que o Douro vivia uma crise que parecia inul- imprensa:
trapassada, apenas pediam pão e trabalho nas vinhas. Em Abril de 1910, decorridos 5 dias sobre os levan-
Mas as forças da ordem, por razões que não tem qual- tamentos populares de Carrazeda, “O Villarealense”,
quer tipo de explicação, acabaram por metralhar gente Folha Regenadora274 que dá ainda noutro lugar, a noti-
de chapéu”. (…) cia “alarmante” do assalto aos armazéns do Tua, inclui
Na sequência das revoltas vinhateiras do início do na primeira e segunda páginas a seguinte noticia, com
século XX, em que o Douro enfrentou uma crise co- base em informações telegráicas recebidas de Carra-
mercial aguda e o país vivia uma conjuntura econó- zeda, “Tumultos em Carrazeda de Anciães – a questão
mica depressiva,270 tem-se defendido271 a existência de duriense – assalto à repartição de Fazenda – documen-
“uma empenhada intervenção das elites regionais” na tos e mobília reduzidos a cinzas – situação alarmante”
liderança dos movimentos populares e “um marcado (…)
carácter regionalista” nos protestos durienses de 1914- “Depois dos acontecimentos do Tua recrudesceu a
1915, pela defesa da denominação de origem de Vinho indignação entre o povo de Carrazeda que queimando
do Porto, para os vinhos produzidos no Douro. a repartição de fazenda e arrombando as portas da re-
cebedoria. (…)
Carrazeda de Anciães, 17, às 9h da manhã – Pela
uma hora da noite, mais de oitocentos homens arma-
dos com espingardas, cacetes e machados, entraram

272 Representações sociais, elementos simbólicos, sistema de interpreta-


ção da realidade, de composição polimorfa, são um conjunto de conceitos,
proposições e explicações com origem na vida quotidiana no desenrolar
das comunicações interpessoais (Moscovici,2003) isto é, “comportamen-
tos em miniatura” (Leontiev,1978). São aqui tomadas como saber popular,
269 Jornal de Noticias, 21/7/205. mitos, crenças, costumes, condensados de memórias e expressão de iden-
tidades múltiplas, convergentes e contraditórias que conluem num senso
270 Texto disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/icheiros/9644. comum e que são histórica e socialmente partilhadas.
pdf, consultado em 3 de Jan. de 2012. Ver da mesma autora o artigo Do
poder local ao poder regional: o movimento dos paladinos do Douro. Dis- 273 Identidades sociais deinidas num processo de identiicação em que
ponível em http://academia.edu/1368742/Do_poder_local_ao_poder_re- os actores se integram num conjunto mais vasto de referência/pertença,
gional_o_movimento_dos_paladinos_do_Douro . Consultado em 10 através do qual tendem a autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, por
Jan.2012. mecanismos de identiicação a dois níveis: produção de identidades con-
correntes – identidades locais e regional - que coexistem sem se anular; e
271 SEQUEIRA, Carla - “Da ‘Missão de Alijo’ ao ‘Motim de Lamego’: re- consolidação da identidade social, pelo acesso ao mercado gerando insta-
percussões do tratado luso-britânico de 1914 no sector do Vinho do Porto”. bilidades e rebeliões.
Disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/icheiros/2375.pdf, consulta-
do em 3 Jan.2012 274 5ªfeira, 21 de Abril de 1910
226 Maria Otília Lage

nesta vila e arrombaram as portas da casa onde está to, podem dar entrada vinhos de fora desta região”.275
a repartição de fazenda e recebedoria retirando de lá
tudo quanto existia para o meio da praça onde lhe pe- Outra notícia do mesmo dia e jornal dá também
garam o fogo, deitando-lhe algumas latas de petróleo conta do
para ajudar. Alguma gente que tentou chegar às janelas “Incêndio da repartição de fazenda de Carrazeda
foi obrigada a retirar-se, ameaçada pelas espingardas e – Na madrugada de domingo, 17 do corrente (…) A
pedras. proximidade deste facto com o da estação do Tua, o
Às quatro horas, depois de estar a papelada e mó- mesmo número aproximado de indivíduos, os vivas à
veis queimados, retiraram-se, fazendo grande algazar- Pesqueira e a Alijó e principalmente a Presandães, um
ra e dando tiros para o ar. lugarejo deste último concelho, fazem presumir que
Carrazeda de anciães, 17 – daqueles concelhos sejam também os incendiários.
Consta que chega hoje aqui uma força de infantaria, Partiram para Carrazeda contingentes de cavalaria
(…) Eram quatro horas quando tudo se retirou fa- e infantaria e também o governador civil do distrito
zendo uma balbúrdia infernal. para dirigir as investigações policiais.
Ficaram porém iludidos em seus projectos os in-
As Novidades referindo-se a este procedimento cendiários…os magistrados procurarão reconhecê-los
comentam da seguinte forma: a miséria do Douro é através das máscaras, com que alguns cobriam os ros-
grande mas não há miséria que justiique os factos tos; também na repartição de fazenda do distrito existe
criminosos referidos nos telegramas de Carrazeda de a relação das dívidas relaxadas… e existem todas as
Anciães. (…) Aí de mistura com a miséria e a ruína há cadernetas para a reconstituição das matrizes…”276
evidente anarquia nos espíritos que ninguém já pode Os “Motins no Douro” são ainda noticiados e co-
modiicar e cujos ímpetos somente podem ser conti- mentados em 1910, por F. d’ Almeida e Brito em “A
dos pela presença da força pública, à semelhança do Vinha Portuguesa”– publicação periódica da especia-
que se passa há mais de um ano em Sabrosa, onde a lidade:
tropa ocupa a repartição de fazenda e recebedoria. “Na madrugada do dia 16 deste mês [Abril] de-
Aqui deixamos de novo consignado o nosso pro- ram-se na Estação do Caminho de Ferro do Tua, no
testo contra o vandalismo de incendiar repartições pú- Douro, graves tumultos que provam bem o estado de
blicas, o que além de ser um gravíssimo crime, tira à excitação desta província.
causa do Douro a simpatia que ela devia merecer aos Cerca de 2.000 pessoas, armadas dirigiram-se à
poderes públicos. (…)” Estação do Tua, izeram levantar o chefe da Estação,
obrigaram-no a abrir-lhes as portas dos armazéns e
No dia seguinte é o “Jornal Nordeste”, semanário veriicando que aí se encontrava vinho, proveniente
regional de Bragança, especializado em comunicação do Sul, do Valado, arrombaram as pipas a machado e
da informação dessa região, que cobre também assim rolaram outras para o rio.
a matéria que qualiica como “estado de loucura a que (…) O vinho que se achava em trânsito dirigia-se
chegaram os povos daquela região”: para o distrito de Bragança, Estação de Cortiços, linha
“Os arrombamentos da Estação do Tua – Na noite de Mirandela.
de sexta para sábado da semana passada, uma grande O decreto com força de lei, de 1 de Outubro de
multidão… de perto de oitocentos homens dos con- 1908, no seu artº 5º proíbe a entrada de vinhos de pas-
celhos limítrofes da estação de Foz-Tua, invadiram o to, sem serem engarrafados, nas regiões de vinho lico-
recinto dela, exigiram pela violência, do chefe da es- roso, e de vinho de pasto, anexa, portanto, desde que
tação que lhes fosse abrir o cais fechado, e uma vez as autoridades e a Comissão da Régua não vigiam esta
ali retiraram e izeram em estilhaços três cascos de vi- determinação, os povos do Douro exercem por suas
nho, que vinham do sul para os Cortiços do concelho mãos, e violentamente, essa iscalização.
de Macedo de Cavaleiros. O acto daqueles indivíduos Mas o que o facto sucedido mostra é a tristíssima
constitui um crime grave e sem que haja atenuantes a situação em que o Douro se encontra. Sem vender as
desculpá-lo porque os Cortiços icam fora da região
do Douro, e aonde por isso, nos termos do regulamen- 275 “ O Nordeste”, 22.04.1910, p. 2
276 ibidem
Revoltas populares no Douro Vinhateiro 227

suas colheitas ou obtendo por elas preços miseráveis vatória do Registo Predial e das Finanças, para onde
os povos estão no último extremo. (… ) foi deslocado um grande aparato de forças militares,279
A lei do exclusivo da Barra do Douro, tão arden- como sempre aconteceu nas rebeliões durienses.
temente solicitada, proclamada nos comícios como o Observando as motivações, espaços, lideranças, re-
único salvatério! já não presta! (…)”277 sultados e signiicados destas sublevações populares
com manifestações violentas e violentamente repri-
Decorridos dois anos, motim idêntico ocorre em midas, veriica-se que: 1 - os factos referidos de natu-
Vila Flor, em 1912, sendo a propósito os acontecimen- reza mais ou menos espontânea a que certa imprensa
tos de Carrazeda, fortemente criticados: atribui carácter de premeditação e motivos políticos,
“Os incendiários de Vila Flor -… um magote de ou uma situação de crise social generalizada, apresen-
dementados do concelho de Vila Flor veio, com o in- tam lideranças difusas e difusamente identiicadas; 2-
cêndio posto aos papéis da secretaria e tesouraria de ocorreram numa vasta e disseminada área da região
inanças daquele concelho, acrescer a má fama, que duriense; 3 - tendo-lhe sido atribuídas diversas causas
os anais da justiça penal tem criado à gente do nos- ou motivações - miséria generalizada; inconsequência
so distrito….E o crime foi premeditado e preparado dos governos face à resolução dos graves problemas de
com muita antecedência, como se revela do facto de produção e comércio dos vinhos durienses, acusados
ser praticado por indivíduos de diversas povoações e de favorecerem os vinhos e aguardentes do Sul contra
todos os actos serem dirigidos a toque de apito por um os do Norte; legislação regulamentadora de 1908 da
comandante. E nada se soube em Vila Flor! Mas o que nova demarcação e exclusivo da Barra do Douro, sua
fazem os regedores por essas aldeias?...Quando dos não aplicação efectiva, e deiciente iscalização, diicul-
incêndios de Alijó e Carrazeda de Ansiães todos atri- dades extremas de escoamento da produção, esta, por
buíram o facto a questão política. Seria agora a mesma sua vez, em crise profunda.
causa? Mas nesse caso é um acto de rebelião, porque os Quanto aos resultados e consequências, a generali-
partidos republicanos não estão ainda organizados em dade da imprensa regista insistentes avisos ao gover-
Vila Flor para tentarem um golpe daqueles, nem eles no para que tire dos tumultos as ilações necessárias e
por si o tentariam sem que tivesse repercussão noutros tome providências enérgicas para proteger a Região
concelhos (….) Se os incendiários de Carrazeda tives- do Douro. As peças noticiosas que se lhe referem são
sem sido punidos…já agora não haveria tanta facilida- genericamente de denúncia acerva e crítica acérrima
de de se cometer o crime de Vila Flor… E não é só aos dos actos tidos por criminosos e violentos, premedita-
incendiários de Vila Flor que é necessário fazer justiça: dos, em que o povo é induzido por forças e interesses
é também aos de Alijó e de Carrazeda…e a República obscuros, a par da defesa insistente da repressão pelas
não pode deixar icar esquecidos os crimes cometidos forças militares e judiciais, destes movimentos e seus
mesmo antes da sua proclamação…. Como suspeitos lideres, julgados e presos.
estão já presos sete indivíduos e parece que alguns se
resolvem a falar.” 278 3.2. Representações sociais e identidades conjun-
turais emergentes
Esta vaga de rebeliões populares que uniam po- Prosseguindo a análise interpretativa desse movi-
pulações de vários concelhos contra os efeitos perni- mento de sublevações, socorremo-nos das noções de
ciosos das fraudes, concorrência desleal, desemprego representações sociais e identidades conjunturais no
e miséria absoluta de trabalhadores, o isco, autêntico sentido de que a identidade é relacional e não essen-
garrote dos pequenos lavradores, e outras circunstân- cial, como um processo em constante reiguração com
cias adversas, como a não aplicação ou ausência de especial visibilidade em situações de crise, identidades
iscalização de novas leis e a inconsequência dos go- que (des)aparecem, em função de interesses conjuntu-
vernos, repercutiu-se em 1915, de norte a sul do Dou- rais. (Cliford, 1998:10-11).
ro não só em Lamego mas também na Régua, com Numa observação de conjunto, veriica-se que são
motins de centenas de pessoas, incêndios da Conser- recorrentes as seguintes representações sociais: indig-
nação / onda de revolta / anarquia / vandalismo/ in-
277 Ano 25, Abril nº4 (1910), p.117-118.
278 “O Montanhês do Norte”, 10.11., 1912, p. 2 279 “A República”, 18 e 19 de Julho de 1915.
228 Maria Otília Lage

cendiários / dementados/ punir e fazer justiça/quem os poder político; Objectivos dos levantamentos, evolu-
iludiu?/crime grave sem atenuantes / factos criminosos ção, aumento de escalada e legados idênticos.
que nem a grande miséria justiica/ aviso ao governo b) Aspecto geopolítico, mais visível por exemplo
/graves tumultos /estado de excitação desta província/ no Motim de Lamego em que entre outros motivos,
violentamente impedidos [chefes] de cumprir seus deve- se contestavam disposições do tratado luso-britânico
res/ reclamando-se a perseguição e repressão feroz dos que abriam formalmente os mercados ingleses a todos
manifestantes. os vinhos de Portugal, sem atender à especiicidade da
região duriense, e seus efeitos nefastos na exportação
do Vinho do Porto e defesa da denominação de ori-
gem e marca.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Lembre-se por im que à época deste movimento
de rebeliões, Portugal tomava parte activa na I Guerra

E
merge assim um processo de construção Mundial onde o que estava em causa como pano de
identitária nas populações do Douro Vinha- fundo socio-histórico era a passagem da hegemonia,
teiro, forjado em numerosas lutas da Região, dentro do mesmo sistema mundo capitalista, da domi-
com as mesmas motivações mas diferentes níveis de nação inglesa para a americana.
identiicação e experiências enraizadas em problemas
locais/ internacionais, em que as relações com as ins-
tituições do poder são factor fundamental na estrutu-
ração e diferenciação de estratégias de uma unidade
possível, num contexto de diferenciação/identiicação
em que os mais afastados das instituições do poder po-
lítico se identiicam, mais facilmente, com as pertenças
localistas/regionais, que aloram em contextos de cri-
se. Foram, aliás, crises económicas da região duriense
que levaram à criação sucessiva das suas instituições
enquadradoras: Companhia Geral das Vinhas do Alto
Douro (1756), Comissão de Viticultura da Região
Duriense (1907) e Casa do Douro (1932), cuja acção
tem operado para homogeneizar uma identiicação
regional.
Evidenciam-se factores comuns à Região, numa
base forte de identiicação local/regional com proble-
mas iscais, diiculdades de trabalho e subsistência de
jornaleiros e pequenos proprietários, em tensão sub-
terrânea com fortes interesses e inluências económi-
ca, social e política de grandes proprietários, comer-
ciantes e exportadores do Vinho do Porto, com mais
condições de liderança nacional/global.
Transpondo para o caso das revoltas populares
durienses nos inícios do séc. XX, a explicação socio-
lógica de Wallerstein dos levantamentos populares ac-
tuais, podemos isolar, sem perigo de anacronismo, os
seguintes dispositivos analíticos tidos em conta, para
um melhor entendimento deste processo de rebeliões
populares:
a) Características gerais: tonalidades da arena
política e da arena social: grupos e interesses em con-
fronto; movimentos de repressão e de concessões do
Revoltas populares no Douro Vinhateiro 229

consultado em 3 Jan.2012.
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MARCONDES Filho, citado por CHARLESTON


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MORAIS, João Pina de (2003) – “No Douro” in 1912.
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tras do Porto”, Série III: vol. 5, pág.59-77. de Abril de 1910.
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PINHEIRO, Bruno, MAGALHÃES, REIGADA, p.117-118.
Tiago (2010) – Uma época histórica, uma cidade, três
motins: análise comparativa dos motins do Porto de
1592, 1661 e 1757.”Revista CEM nº1 Cultura, Espaço
& Memória”. CITCEM.

SEQUEIRA, Carla - “Da ‘Missão de Alijo’ ao ‘Mo-


tim de Lamego’: repercussões do tratado luso-britâni-
co de 1914 no sector do Vinho do Porto”. Disponível
em http://ler.letras.up.pt/uploads/icheiros/2375.pdf,
230
231

Painel 4

HISTÓRIA,
Património
e Acção
Local/Regional
Teresa Soeiro
Nelson Campos
Alexandra Cerveira Lima
232
Requiem
pelo património luvial vernacular do Douro
texto: Teresa SOEIRO - UP/FLUP - CITCEM
(msoeiro@letras.up.pt)

Resumo: Abstract:
Neste texto procuramos sumariar o patrimó- Our aim in this paper is to give an overview of
nio luvial vernacular do Douro, material e ima- the Douro’s luvial cultural heritage, both tangible
terial, não só o perdido desde o início do séc. XX, and intangible. We cover what was gradually lost
como aquele de que ainda restam testemunhos since the beginning of the 20th century as well as
físicos in situ e memória oral, fortemente amea- the physical evidence still remaining in situ and
çados pelas transformações da sociedade e do ter- recalled in oral memory, which is highly threat-
ritório. Recordamos as actividades de transporte, ened by changes in society and territorial trans-
pesca e moagem, as respectivas infra-estruturas formations. We review the transportation, ishing
ediicadas, o equipamento, o saber e o quotidia- and milling of grains activities, the related built
no da gente do rio e dos que sazonal ou pontual- infrastructures, the equipment, the knowledge
mente desciam até esta artéria fundamental para and the daily life of the riverine areas inhabitants,
a região. including the people who, seasonally or occasion-
Destacamos o impacto negativo dos projec- ally, would come down to this waterway/trade ar-
tos de aproveitamento hidroeléctrico sobre o pa- tery so vital for the region.
trimónio vernacular vinculado às águas e a derra- We emphasize the negative impact of the hy-
deira oportunidade que representam os aluentes droelectric projects on the vernacular heritage
para o estudo e preservação de exemplares para- tied to the waters, and how the tributaries con-
digmáticos. stitute a last chance for the preservation of prime
examples of this heritage.
Palavras-chave: rio Douro; património lu-
vial; tecnologia vernacular; imaginário do rio Keywords: river Douro; luvial culture herita-
ge; vernacular technologies; river imaging.
234 Teresa Soeiro

1 - Paredão de pesqueira do rio Douro (S. João da Pesqueira. Fot. T Soeiro, 2003)

C
ompletou-se uma década sobre o tra- tivos açudes de suporte desapareceram, destruí-
balho de investigação e diagnóstico dos ou submersos. Em simultâneo com a desacti-
do património luvial do Douro que vação e abandono deste ediicado (permanente e
realizei no âmbito da Estrutura de Projecto para sazonal) perdeu-se a tecnologia associada.
o Museu do Douro, missão liderada por Gaspar Se a navegação de carga e passageiros que vi
Martins Pereira, entre 2001 e 2004. Pude então ve- ao longo do rio também em nada se assemelha-
riicar quão pouco restava na área do Alto Douro va com a prática tradicional, já a pesca mostrou
Vinhateiro das estruturas construídas e dos meios maior resiliência. Embora sem pesqueiras, nassei-
técnicos afectos quer à navegação do rio e à pesca, ros ou caneiros, sem os migradores sáveis e lam-
quer ao aproveitamento das suas águas como for- preias (e o solho-rei) a subir para a desova, condi-
ça motriz para a moagem de cereal. cionada por metros de profundidade onde antes
No percurso de Mesão Frio/Resende à desem- se iam armar as artes a pé, continuou a ser prati-
bocadura do Sabor, apenas permanecia intacto o cada, obrigando o pescador a reaprender o rio e as
paredão da margem sul de uma pesqueira frente a espécies, a utilizar novos aparelhos de rede e outro
Foz Tua, cuja preservação foi recomendada à Câ- modo de pescar. Os barcos eram ainda da família
mara Municipal de S. João da Pesqueira (Figura rabela, construídos em ribadouro mas já difíceis
1 e 2), sendo que, mesmo neste caso, a estrutura de manter ou substituir por outros idênticos, dada
complementar da margem norte (Carrazeda de a falta de carpinteiros de ribeira. Se claudicassem,
Ansiães) tinha sido desmontada para alargamento disseram, no seu lugar passariam a igurar embar-
do canal de navegação. Junto à Alegria (Linhares, cações de produção industrial.
Carrazeda de Ansiães) aloravam também ruínas Apesar deste cenário pouco promissor, talvez
de outra pesqueira. Nenhum conjunto moageiro por vício de arqueólogo, pareceu-me que se esca-
se montou nos últimos cinco decénios, os respec- vasse um pouco na memória da gente da beira do
Requiem pelo património luvial vernacular do Douro 235

2 - Paredão de pesqueira com rede cabaceira Armada (rep. de Baldaque da Silva, 1892:205)

rio e nas arrecadações poderia encontrar pontos da memória a experiência da moagem de cereais
de referência que por um lado materializassem (OLIVEIRA et alii, 1983), com raríssimas excep-
em peças musealizáveis, por exemplo, o equipa- ções. Mas essa recordação pode (e deve) também
mento piscatório (artes e aparelhos) que aprende- ser procurada junto da população que, vivendo
ra nas fontes documentais e bibliográicas terem mais afastada do grande rio e habituada aos pe-
existido, e por outro revelassem o quotidiano liga- quenos moinhos de ribeiro, percepcionou cada
do não só a essa prática de captura de importan- descida estival às azenhas do Douro, feita na in-
tes recursos alimentares, como à presença sazonal fância/juventude, como uma aventura singular,
das moagens, à utilização das barcas de passa- marcante pelo esforço da caminhada e imponên-
gem, à construção e reparação das embarcações cia da paisagem, assim nos narraram em Arma-
ou mesmo à participação na vida aventurosa de mar.
arrais e marinheiro. Foi do cruzamento do saber Quanto à construção de barcos de modelo ra-
aprendido dos livros, documentos de arquivo e belo (de carga, travessia e pesca) tive oportuni-
imagens com o adquirido a ouvir os relatos, ver as dade de conirmar que eram encomendados ou
demonstrações e a manipular património móvel adquiridos a mestres e carpinteiros de ribeira per-
que nos foi facultado (para ver, ser emprestado ou tencentes a outra área do rio, para jusante de Me-
integrar a colecção do MD) que surgiu o núcleo são Frio. Foi também aí, a Lavadouros (Paços de
da exposição Jardins Suspensos dedicado ao rio, e Gaiolo, Marco de Canaveses), que me desloquei
o texto - Douro, um rio de vida - publicado no vo- para solicitar a um destes antigos proissionais a
lume Viver e saber fazer (2003: 359-413). feitura de miniaturas que contemplassem as dife-
Sumariei então artes e aparelhos, além de locais rentes fases da construção do rabelo, exemplares
onde ainda se encontravam pescadores a exercer destinados à exposição e colecção MD.
a faina, para a qual preservavam barcos de mo- Lamento que não tenha sido viável então reali-
delo rabelo. Pude recolher para o Museu redes já zar a investigação que suportaria o núcleo museo-
obsoletas como a chumbeira, e armadilhas como lógico dedicado ao rio, pensado para Barqueiros.
o côvo e a nassa de varas, por exemplo. O estudo Esta foi uma comunidade excepcional, dependen-
pormenorizado de caso não cabia no tempo de te da faina luvial e implantada num local de tran-
realização daquele projecto, mas podia ainda ser sição para as características da navegabilidade,
concretizado junto de pescadores isolados, com que era também uma barreira onde o controle da
memória familiar da proissão, e no remanescen- região demarcada, com toda a sua carga adminis-
te dos aglomerados piscatórios (p.e.) de Godim e trativa e policial, mais se fazia sentir.
Foz do Sabor. Pelas informações transmitidas, coincidentes
Meio século de ausência tinha quase varrido com as colhidas em outras fontes de informação,
236 Teresa Soeiro

3 - Moinhos temporários do rio Tâmega (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Foto Albano, 1964)

grande parte desta actividade tradicional do rio díspares que nos mostram realidades e reconsti-
terá esmorecido bastante desde a década de cin- tuições próximas do que seria a labuta ao longo
quenta, vindo a colapsar na seguinte, quando à do percurso, que para o almirante Sarmento Ro-
transformação socioeconómica do país a cami- drigues (RODRIGUES, 1972), um homem do re-
nho da modernização se juntou o êxodo para a gime, se estendeu de Barca de Alva até ao Porto.
Europa e a migração para os centros urbanos. No Acompanhando esta Última descida do rio Douro
rio, podemos dizer que o encerramento da barra- em barco rabelo (RTP - José Maria Tudela, 1971)
gem de Carrapatelo em 1971 (e as obras que o pre- tomamos contacto com as artes de navegar e o trá-
cederam) foi como que um novo Cachão, tornou fego, vemos a paisagem a partir do rio, passamos
muito difícil a ligação luvial entre as áreas produ- pontes e cais, paredões de pesqueiras e pescado-
toras e o mercado portuense. Ao mesmo tempo res empoleirados na penedia. Por im ouvimos o
submergiu as estruturas implantadas no leito e almirante justiicar que as perdas e mudanças na
margens do Douro até à Régua, onde em 1973 se vida daquelas gentes ribeirinhas seriam ampla-
fecharia nova barragem, Bagaúste, que estendeu o mente compensadas pela riqueza energética gera-
contínuo de albufeiras até ao Tua. da «para bem da nação». Numa perspectiva bastante
Como era prática comum na época, nenhum diferente, o realizador Adriano Nazareth, em Barcos
registo sistemático do património cultural ver- rabelos do Douro (RTP 1960) deixa-nos imagens
nacular foi realizado nesta extensa área. Curio- impressivas das diiculdades da navegação e do
samente, são dois documentários de objectivos quotidiano dos arrais e marinheiros na sua tare-
Requiem pelo património luvial vernacular do Douro 237

4 - Derradeiro ano de montagem dos moinhos (Amela, Penafiel/ Fasteilá, Marco de Canaveses. Fot. Teresa Soeiro, 1986)

fa de transportar o vinho generoso desde a região o levantamento do pouco que restar das estrutu-
vinhateira até às caves de Gaia e à cidade do Por- ras construídas, a exemplo do trabalho realizado
to. Não lhe faltam aspectos que hoje classiicaría- em 1985 por Ricardo Teixeira relativamente à
mos como património imaterial, desde questões Ponte dos Piares. A esta valeu-lhe o estatuto de
técnicas de carga, transporte e navegação à pobre monumento medieval, o património vernacular
gastronomia e ao respeito pelo sagrado, especial- icou mais uma vez esquecido pela tutela, como
mente marcado na quase mítica passagem pela sucederia também aquando do PROZED - Plano
Senhora da Cardia. Regional de Ordenamento do Território da Zona
O que podemos fazer para suprir esta lacuna Envolvente do Douro (1991).
no registo? Certamente que pouco, mas mesmo
esse continua em espera, sendo de sublinhar a ur- Para montante da área central do Alto Douro
gência de colher testemunhos directos desta faina Vinhateiro há um curto tramo com especial inte-
interrompida, porque os participantes, mesmo resse por o nível das águas não se ter elevado de-
que então crianças ou jovens, hoje terão idade masiado, entre a foz do Tua e o paredão da Valeira
avançada. Algumas experiências na procura de (fechado em 1976). É aqui que, por exemplo, se
conhecidos construtores de embarcações já nos vislumbram as pesqueiras, como dissemos antes.
mostraram a fragilidade destas testemunhas, que Além disso, o aglomerado de Foz Tua (Carrazeda
de boa vontade marcam sessões de trabalho, mas de Ansiães) continua a apresentar uma signiica-
depois não as concretizam por impossibilidade fí- tiva ligação ao rio, não como porto de carregação
sica. que foi, mas sobretudo no binómio pesca/gastro-
Outra perspectiva será espreitar as raríssimas nomia. Este aspecto é ainda mais forte na Foz do
oportunidades em que as albufeiras têm de ser Sabor (Torre de Moncorvo), onde bastava olhar
esvaziada para nesse curto lapso temporal fazer para o número de embarcações com aparelhos
238 Teresa Soeiro

5 - Moinho e engenho de linho no Museu de Penafiel (MMPNF/ Fot. Manuel Ribeiro)

para nos apercebermos da maior persistência des- tricos portugueses no Douro Internacional, que
ta comunidade piscatória, onde não faltam barcos entraram em funcionamento entre 1958 e 1964.
de pesca na linha do rabelo. O Sabor teve também Perscrutando imagens anteriores às obras, mais
boas bateiras para travessia publica em locais con- uma vez encontramos na profundidade do vale
vencionados (LADRA e PINHO, 2010-11) e dei- os açudes com as unidades moageiras sazonais e
xava ver quase até à foz pequenos exemplares, de os locais propícios para a passagem em barca, de
estrutura simples e construção local, para uso pri- que a documentação nos fala. No entanto, mes-
vado dos lavradores com terrenos nas duas mar- mo para esta área de transformação mais antiga,
gens, que ali convivem com os modelos do grupo algumas tentativas de recuperação da memória se
rabelo. mostraram relevantes, e tomamos como exemplo
Infelizmente, na albufeira da Valeira (1976) a bem sucedida missão de Octávio Lixa Filguei-
como na obra mais tardia do Pocinho (1983) ras na busca da jangada de botos (FILGUEIRAS,
nada se fez em prol do estudo do património 1984), que em 1981 acabou por ver remontada e
luvial vernacular, atitude pouco desculpável. a navegar.
Não se esperariam essas preocupações aquando
da construção dos aproveitamentos hidroeléc-
Requiem pelo património luvial vernacular do Douro 239

6 - Conjunto moageiro e engenho de maçar linho da Feitoria (Amarante. Fot. E. Biel)

A poente do Alto Douro, ou melhor para ju- neo com a (re)edição em DVD do documentário
sante da barragem de Carrapatelo, ica uma ex- Arquitectura do Rabelo, produção da SinalVídeo
tensa área em que não havia aproveitamentos (1992), e a abertura ao público da exposição tem-
moageiros apoiados em estrutura permanente. porária intitulada Embarcações Tradicionais do
Predominava a instalação de pesqueiras, nasseiros Douro: Homenagem a Octávio Lixa Filgueiras, in-
e canais de pesca, que ganhava subida importância tegrada no projecto Rios Douro, de 2009-2010.
(SOEIRO, 1998; 2001; 2008), o mesmo sucedendo Esta mais do que merecida manifestação de dí-
com a construção de rabelos. Daqui provinham os vida e gratidão do Douro a este especialista que
mestres carpinteiros de ribeira, os arrais e muitos divulgou as embarcações rabelas e a região jun-
dos marinheiros. Foi por isso alvo principal da in- to da comunidade cientíica mundial continua a
vestigação sobre as embarcações tradicionais do aguardar, enquanto os barcos rabelos desapare-
Douro levada a cabo, por exemplo, por Arman- ceram, incluindo um dos últimos exemplares de
do de Matos (1940), François Beaudouin (1964) grandes dimensões que teve o cuidado de fazer
e, com particular intensidade, por Octávio Lixa recolher por instituição pública com obrigações
Filgueiras (publ. 1955-93). A obra do primeiro patrimoniais, pensando talvez que assim seria
foi republicada em 2006, pela Associação de Ami- preservado. Baldado esforço para nossa vergonha,
gos de Pereiros; relativamente à última, coordenei que o vemos desfazer-se sem remédio, enquanto
para o Museu do Douro uma colectânea com to- o rio se enche dessas formas estranhas que ain-
dos os textos do autor referentes às embarcações da viu despontar, com incómodo, chamando-lhes
do rio, que devia ter sido apresentada em simultâ- pseudo-rabelos.
240 Teresa Soeiro

7 - Azenha e moinhos temporários da Feitoria (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)

Sobram-nos uns quantos rabões com a sua car- instalações do Parque das Tílias (Castelo de Paiva)
ga de pipas vazias, permanentemente ancorados mantém o espaço visitável designado Sala do Bar-
ao cais de Gaia/Porto, que ganharam nova função co Rabelo e do Arquitecto Filgueiras e, no exterior,
ao serviço da publicidade, e outros que no Alto a sua embarcação rabela. O Museu Municipal de
Douro ainda fazem pequenos circuitos de passeio. Resende, aberto em 2006, expõe também artes de
Para a referida exposição, o Museu do Douro re- pesca luvial e referentes da navegação.
cuperou um rabão pertencente à Casa do Douro, O valboeiro, muito usado de Entre-os-Rios
antes usado para publicidade frente à Régua, hoje para jusante, será, pela sua dimensão, facilidade
no espaço do museu. de construção e versatilidade, o mais bem suce-
Dos barcos de pesca remanescentes falámos dido modelo desta família rabela e aquele que
antes, das barcas de passagem ica-nos o exemplo continua a ser encomendado para utilização na
de Bitetos (Marco de Canaveses), outrora um im- pesca e em deslocações, agora adaptado à utili-
portante ponto de cruzamento do rio, onde o bar- zação de motor. Melres e Avintes são os centros
queiro continua (2012) ao serviço dos transeuntes onde se concentrou a actividade construtiva nas
com um espécime de linha rabela já gasto e mal últimas décadas do século XX. Mas, mesmo para
remendado, por não saber onde o levar para con- estas embarcações, o risco mantém-se, como ve-
sertar. riicamos ao vê-las desaparecer, por exemplo, de
Cabe aqui recordar o esforço de associações Entre-os-Rios, o mais importante porto luvial na
em defesa deste património luvial, nomeadamen- transição para o Baixo Douro. E não foi apenas
te a recolha feita desde a década de oitenta pela esta embarcação que deixou aquelas águas, há
Associação de Estudo e Defesa do Património quase meio século que os rabelos e rabões tam-
Histórico-Cultural de Castelo de Paiva, que nas bém o izeram, e depois deles os barcos de pesca
Requiem pelo património luvial vernacular do Douro 241

e passagem, que tinham encontrado refúgio no


Tâmega, até à conclusão, em 1988, da barragem
do Torrão (SOEIRO, 1987/88 e 2013). No Mu-
seu Municipal de Penaiel guardam-se dois destes
exemplares, uma barca de pesca/passagem e um
valboeiro com a respectiva vela.
A subida das águas devida ao encerramento
do aproveitamento hidroeléctrico de Crestuma
(1985) representa, por sua vez, o im das pesquei-
ras do Baixo Douro destinadas à captura de sá-
veis e lampreias que subiam o rio para a desova.
Não só as estruturas construídas icaram submer-
sas ou foram destruídas, como as artes de pesca
e toda a vivência da ribeira se alterou deinitiva-
mente, pondo im a um processo de abandono
que já se fazia sentir nas décadas anteriores, com
o desactivar das companhias que trabalhavam as
vargas, rede de arrastar para os grandes areios, e
mesmo dos alares, estacada com armadilha mon-
tada a cruzar o leito (SOEIRO, 1998; 2001; 2008).
Perdidos que estão esta prática e o saber com ela
construído - o conhecimento da morfologia do
rio, das correntes e marés, das espécies e suas ca-
racterísticas - não deixa de ser bizarro vermos os
municípios e agentes turísticos apoiar a gastrono-
mia tradicional baseada naquele bem, que já não
é seu nem pela natureza nem pelo saber e mobi- 8 - Mecanismo e estruturas em degradação na azenha da Feitoria
(Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)
lização dos habitantes locais para a faina. Ficou a
prática de, quando a lampreia é trazida de outras
águas, a manter viva durante algum tempo nes- Na área era particularmente relevante a presença
tas, supostamente para que ganhe determinadas de açudes (aqui dizia-se paredes) que atravessa-
características antes de ser cozinhada com o sabor vam o rio, suporte para moagens de cereal, enge-
local, um património imaterial que tornou a re- nhos de macerar linho e também barreira para
gião afamada. abertura de boqueiros de pesca destinados às es-
pécies migradoras.
Submerso que foi, em grande medida, o pa- Coube ao Instituto Português do Património
trimónio luvial vernacular do rio Douro - em Cultural, através do Departamento de Etnolo-
sentido literal pela subida das águas das albufeiras gia dirigido por Henrique Coutinho Gouveia, a
e igurado pela obsolescência socio-económica - iniciativa de promover o inventário, que contou
estávamos coninados às hipóteses de estudo que com o apoio logístico da EDP. O investigador no
nos proporcionam os seus aluentes, nenhum de- campo foi Joaquim Roque Abrantes, autor do re-
les, porém, replicando as características físicas e latório publicado em 1985 com o título Patrimó-
de usufruição do grande rio. nio etnográico afectado pela barragem do Torrão
Em um destes, o rio Tâmega, foi programado o (ABRANTES, 1985), responsável também pela
primeiro levantamento sistemático de estruturas investigação de suporte ao documentário gravado
construídas de época moderna e contemporânea em vídeo, editado em 1989 pelo IPPC - Departa-
a submergir por uma albufeira, executado entre mento de Etnologia.
1984 e 1986, aquando da construção do aproveita- Em simultâneo, a Câmara e Museu Municipal
mento hidroeléctrico do Torrão (Baixo Tâmega). de Penaiel completaram, com maior detalhe, o
242 Teresa Soeiro

9 - Canal ou caniço para a pesca no Tâmega (Amarante. Fot. T. Soeiro, 2008)

levantamento na área do município afectada, ten- (Vila Boa do Bispo-Marco de Canaveses) ilustra
do sido por nós registadas em desenho e imagem bem este processo de desinteresse pela activida-
todas as estruturas existentes no rio, bem como o de económica, neste caso a moageira: estava em
património móvel que lhes era pertinente, tanto pleno funcionamento quando foi ixada por um
moinhos amovíveis com todo o seu equipamento, fotógrafo local (Fot. Albano) em 1964; já quase
um engenho de linho que há algumas décadas não desactivada no verão de 1985 em que percorre-
era montado, como várias artes de pesca usadas mos o rio, com apenas um moinho a funcionar
nas pesqueiras ou individualmente e as barcas de e outro montado para obter a compensação; sub-
passagem e pesca presentes. mersa e recuperados, em contexto museológico
A estes bens materiais, ediicados e móveis, os (2009), exemplares de moinhos e um engenho de
últimos oportunamente retirados para preserva- linho, após os primeiros terem sido daniicados
ção no Museu Municipal, uma vez que no local na cheia de 1986, quando já fora programada a
a mesma não era viável, juntámos informação sua remoção devido ao fecho da barragem e su-
documental existente em arquivo, bibliograia e, bida das águas. No relatório Penaiel: o Tâmega de
sobretudo, na memória oral recolhida junto das ontem (SOEIRO, 1987/88) icaram compilados os
pessoas que utilizaram estes recursos, fossem pro- resultados obtidos.
prietários, responsáveis pela exploração e clien- Esta oportunidade de retirar bens com inte-
tes, ou simplesmente vizinhos, lembrados da sua resse patrimonial que iriam icar abaixo da cota
existência. A sucessão de imagens (Figura 3 a 5) prevista para a albufeira seria, perante a insistên-
da Parede da Amela (Boelhe-Penaiel)/Fasteilá cia de Penaiel, oferecida pela EDP aos três muni-
Requiem pelo património luvial vernacular do Douro 243

10 - Caniço de pesca do Tâmega (rep. de PINHO, 1995-08: 454)

cípios afectados, sendo que o primeiro, além da actividade moageira que envolvia toda a comu-
diversiicada informação, integra hoje na colecção nidade, estando muitas casas construídas sobre o
do Museu diversas peças com esta proveniência. ribeiro ou as levadas para que a água tocasse du-
Infelizmente, apenas o município de Amarante rante grande parte do ano os moinhos de rodízio
tinha então, e ainda mantém, a possibilidade de que possuíam nos pisos baixos. Quando escassea-
preservar no rio signiicativos exemplares que va, recorria-se às azenhas do Tâmega que, pelo
documentam as vivências deste original aluente contrário, eram insustentáveis durante os meses
do Douro, que por não ser navegável facilitou a de inverno devido ao caudal, testemunho de uma
implantação de dezenas de açudes-barragem para complementaridade bem conhecida e imperativa
suportar moagens e um sem número de pesquei- em todo o vale do Douro.
ras e pesqueirões, particularmente importantes Agora que o património luvial ediicado do
nas áreas a jusante, onde chegavam em maior Tâmega está também ameaçado para montante de
quantidade as espécies migradoras que o subiam Amarante (a partir de Fridão), esperam-se novos
para a desova. estudos de impacte resultantes da planeada cons-
A controvérsia então gerada pela elevada cota trução das sucessivas barragens. Exemplos raros
das águas pretendida pela EDP e o seu pernicioso de técnicas de pesca (Figura 9 e 10), como a do-
efeito na cidade de Amarante bloqueou o diálo- cumentada pelo canal ou caniço da Quinta das
go e quase condenou o conjunto da Feitoria, onde Chouzas (Fridão), icam em questão e precisam
uma azenha pétrea instalada na margem convivia que a sua preservação seja equacionada, visto es-
com moinhos temporários montados com ma- tarmos perante casos remanescentes, se não úni-
teriais perecíveis e um engenho de maçar linho, cos, de ediicado e tecnologia que durante séculos,
um caso exemplar a que urge atender (Figura 6 a pelo menos desde os centrais da Idade Média, ser-
8). A jusante da cidade, junto ao periférico bairro viram os habitantes da região do Douro (PINHO,
da Torre e no ribeiro de S. Lázaro estão, na mar- 1905-08; SOEIRO, 2009: 271).
gem direita, as azenhas dos Morleiros, umas per- Outras formas de pesca, como a tão disputa-
manentes e outras de uso temporário, relíquia da da colocação de alares (SOEIRO, 1987/88:124 e
244 Teresa Soeiro

2013:103) ou o uso da chumbeira, são inviáveis no


Baixo Tâmega. Raríssimas barcas da família rabe- BIBLIOGRAFIA
la, que serviram as passagens e a pesca, seguem
no rio, no tramo inal, mas é mais uma vez Ama- ABRANTES, Joaquim Roque (1985) – Pa-
rante que tem condições favoráveis à manutenção trimónio etnográico afectado pela barragem do
de embarcações de modelos originais, bem do- Torrão. Lisboa: Instituto Português do Património
cumentadas por Lixa Filgueiras (p.e. 1963), neste Cultural, Departamento de Etnologia.
caso guigas e gamelas que poderiam bem ser usu-
fruídas para ins recreativos no parque ribeirinho BEAUDOUIN, François (1964) - Les bateaux
da cidade, embora saibamos que pelos construto- du Douro: étude des origines. Revista de Etnogra-
res e exploradores deste ilão é dada preferência ia, vol. 2. Porto, p. 321-408.
à construção em metal, mais rápida, duradoura e
segura, em detrimento do uso da madeira. DUARTE, Luís Miguel; BARROS, Amândio
Outros aluentes do Douro têm merecido a Jorge Morais (1997) - Corações alitos: navegação
atenção e o cuidado de associações de defesa e travessia do Douro na Idade Média e no início
especiicamente dedicadas, bem como estudos da Idade Moderna. Douro. Estudos & documentos,
monográicos, sirvam de exemplo o rio Bestan- vol.4. Porto, p. 77-118.
ça (VENTURA, 1999), ou o Paiva (OLIVEIRA e
outros 1999). No extremo oposto do Douro por- FILGUEIRAS, Octávio Lixa [1963] - Barcos.
tuguês, o projecto transfronteiriço Arquitecturas In LIMA, Fernando Castro Pires de (coord.). A
da Água investiga e procura preservar a memória Arte Popular em Portugal. vol. 3. Lisboa: Editorial
das moagens dos rios Côa e Águeda, bem como Verbo, p. 339-403.
do troço internacional do Douro, registando pa-
trimónio moageiro construído e o imaterial liga- FILGUEIRAS, Octávio Lixa (1984) - As jan-
do a esta actividade, sob a forma de publicação gadas de botos. Lucerna, número extraordinário
e documentário - Mó - realização solicitada pela (Colectânea de Estudos de Homenagem a D. Do-
Direcção Regional da Cultura do Norte (PINTO e mingos de Pinho Brandão). Porto, p. 291-308.
RODRIGUES 2013).
Mas foram mais uma vez os polémicos apro- GUIMARÃES, Joaquim Gonçalves (2000) - Os
veitamentos hidroeléctricos dos grandes aluentes moinhos do Côa. Introdução ao seu estudo. Côa-
do Douro que obrigaram a realizar levantamentos visão. Cultura e ciência, vol. 2. Vila Nova de Foz
sistemáticos, agora também atentos ao património Côa, p. 15-20
vernacular. Assim se fez no vale do Côa, tarefa de
início (1992-94) a cargo de uma pequena equipa LADRA, Lois; PINHO, Valdemar (2010-2011)
liderada por Nelson Rebanda. Interrompida que - Tecnologia tradicional na navegação luvial em
foi a construção da barragem, terá icado aberta a Trás-os-Montes. as bateiras do rio Sabor. Brigan-
via da preservação em condições protegidas pela tia, vol. 30-31. Bragança, p. 411-424.
classiicação do Vale e instalação do Parque.
De novo se lançaram as equipas para o terre- MATOS, Armando de (1940) - O barco rabelo.
no no Sabor (2009), sob a coordenação de Paulo Porto: Junta da Província do Douro Litoral.
Dórdio, mas com recursos antes impensáveis, ao
abrigo das medidas de minimização dos impactos OLIVEIRA, Américo e outros (1999) - Rio Pai-
negativos da construção. Segue-se a área da albu- va. Porto: Campo das Letras.
feira do Tua. Fazemos votos para que, parecendo
inevitável tamanha destruição do património ver- OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO,
nacular, no mínimo dele ique bom registo para Fernando; PEREIRA, Benjamim (1983) – Tecno-
memória futura. logia tradicional portuguesa. Sistemas de moagem.
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mills on the rivers in Northern Portugal. Inter-
246
PROJECTO ARQUEOLÓGICO DA
REGIÃO DE MONCORVO,
1983-2013
BREVE BALANÇO DE CERCA DE 30 ANOS
DE ACTIVIDADE
texto: Nelson Campos - Direção do PARM e Investigador do CITCEM

Um primeiro balanço da actividade do PARM foi realizado pelo


signatário e pelo então presidente da direcção desta entidade, Dr.
Eduardo Carvalho, no 1º Encontro de Arqueologia Trasmontana,
realizado em Mirandela em 18-19/03/2005. O presente texto partiu
dessa apresentação, que não chegou a ser publicada.

Resumo: Abstract:
Partindo de um programa de trabalho elaborado On the basis of a Work Programme drawn up
em 1983 por um grupo de então estudantes de in 1983 by a group of then archaeology students,
Arqueologia, que se viriam a constituir em associação which would later constitute as an association in late
em inal de 1986, o autor faz um balanço da 1986, the author makes a review of archaeological
investigação arqueológica, preservação do património, research, heritage preservation, formative actions and
acção formativa e intervenção cívica na região de civic intervention in the region of Moncorvo, in the
Moncorvo, sul do distrito de Bragança. É destacado o Southern District of Bragança. Is highlighted the role
of the Association in the recovery and management
papel da associação na recuperação e gestão do Museu
of the Iron Museum since 1995. Making reference  to
do Ferro, desde 1995. São referidas as diiculdades e
the past and current diiculties as well obstacles. he
obstáculos passados e actuais. A bibliograia inclui
bibliography includes research undertaken, published
trabalhos realizados, impressos ou ainda inéditos.
or still unpublished.
Palavras-chave:
Associativismo, Arqueologia, Património, Keywords:
Moncorvo Associations, Archaeology, Heritage, Moncorvo
248 Nelson Campos

arqueologia à época, assente num paradigma de


INTRODUÇÃO – o que é o PARM? especialização segundo períodos cronológicos, o
grupo do PARM procurava centrar a sua acção no

O
PARM é uma associação de estudo, “território”, tal como defendiam as correntes mais
defesa e divulgação do património vanguardistas da Arqueologia, nomeadamente
arqueológico, histórico e etnográico, da “New Archaeology”. Procurava-se assim
com iguais preocupações relativamente ao meio intervir na realidade “região”, não só ao nível
natural envolvente, centrada na “região” de do conhecimento da sua evolução e construção,
Moncorvo, deinida como o concelho de Torre de mas também como agente de preservação e
Moncorvo e concelhos limítrofes. transformação cultural, na linha do que então
já apontava Cláudio Torres e sua equipa, em
A associação teve por base um grupo de Mértola. Deste modo, entendia-se que os três
então estudantes do curso de História-Variante pólos da actividade do grupo deveriam ser:
de Arqueologia, da Faculdade de Letras do
Porto280, que em 1983 deram seguimento a um «1) a nível cientíico, a proposta e resolução de um
primeiro levantamento arqueológico do concelho problema do passado da região – o conhecimento
de Torre de Moncorvo, iniciado pelo signatário
das sucessivas “paisagens” no seu processo evolutivo
(1981), com objectivo de se concretizar uma
Carta Arqueológica do concelho o mais completa até aos nossos dias;
possível. 2) a criação de um espaço de aprendizagem
onde os elementos do grupo [pudessem] aperfeiçoar
os seus conhecimentos e métodos de trabalho;
3) intervir culturalmente no sentido da
valorização da região e das suas populações e no
sentido do reconhecimento da função social do
arqueólogo»282

E, nesse texto fundador, acrescentava-se ainda:


«Ao desviar a atenção do arqueólogo de um ponto
único – a estação arqueológica – de modo a ixá-
lo sobre a região, estamos a enriquecer a nossa
1 – emblema do PARM. Berrão das Cabanas de Baixo, achado perspectiva de encarar os problemas acerca das
em 1895 (desenho do Prof. Santos Júnior)
populações do passado e, ao mesmo tempo, a
possibilitar uma intervenção cultural ao nível
Este trabalho não pretendia ser apenas um dessa região»283.
mero registo arqueológico, pois tinha por trás um
programa cientíico, resultante de uma série de Nesse sentido, logo após um primeiro trabalho
debates internos, que culminou na publicação de de identiicação, cartograia e registo dos sítios
um texto intitulado precisamente “Introdução a arqueológicos do concelho de Torre de Moncorvo,
um programa de investigação regional – Projecto foram tentadas cartas de síntese para cada um
Arqueológico da Região de Moncorvo”281, o dos principais momentos da ocupação humana
qual passou a valer como uma linha de rumo do território, sendo o produto desse trabalho
orientadora do grupo de trabalho que então se dado a conhecer através de uma Exposição sobre
reunia regularmente no Porto e, temporariamente, a Arqueologia e História da região, realizada no
em Torre de Moncorvo. Mercado Municipal de Torre de Moncorvo em
1986, a qual voltou a ser reeditada numa versão
Partindo de uma crítica do modus faciendi da mais abreviada, em 1987, aquando de uma visita do
então Presidente da República Dr. Mário Soares.
280 Fizeram parte desse grupo os seguintes elementos: Alexandra Pinto,
António Leal, Carlos Ferreira, Joaquim Henriques, Jorge Almeida, Maria Nessa exposição se propunha uma retrospectiva
João Coelho, Miguel Rodrigues, Nelson Rebanda, Paulo Amaral, Paulo
Dórdio e Ricardo Teixeira. 282 PARM, 1985: 144
281 PARM, 1985. 283 Idem, ibidem.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo 249

da história regional, através de textos, fotograias,


mapas de síntese e diversos vestígios da chamada 1 - A VERTENTE CIENTÍFICA
“cultura material” (fragmentos cerâmicos,

D
moedas, mós manuárias, estelas funerárias ecorrendo paralelamente aos trabalhos
romanas, um pequeno sarcófago de granito, etc.). de realização da Carta Arqueológica
do concelho de Torre de Moncorvo,
Esta mostra fez-se tendo em conta a tendo em vista uma leitura totalizante do
preocupação já referida de dar conhecer junto das território, izeram-se também “incursões” nos
pessoas locais o produto do trabalho do grupo concelhos vizinhos de Vila Flor e Freixo de
de jovens investigadores, recém-licenciados. O Espada à Cinta, onde, através de elementos do
acolhimento por parte do público foi bastante PARM, se identiicaram o importantíssimo sítio
receptivo, o que encorajou o referido grupo a pré-histórico do Cabeço da Mina (Assares) e as
constituir-se em associação (sem ins lucrativos), pinturas rupestres de Fraga do Gato (Poiares)284.
podendo assim aglutinar muitas das pessoas que Outros trabalhos, essenciais a essa compreensão
se haviam manifestado mais interessadas nas sincrónico-diacrónica do território foram levados
questões de arqueologia e património. A escritura a efeito: levantamento toponímico do Vale da
notarial foi feita em 21 de Novembro de 1986, Vilariça e resto do concelho de Moncorvo; um
tendo sido publicada no Diário da República, em trabalho de cariz mais etnográico sobre as Quintas
7 Janeiro de 1987. e Quinteiros da região de Moncorvo/Freixo
de Espada à Cinta; inventariação arquivística,
Desde então para cá, a associação manteve-se, com transcrição de alguns dos pergaminhos do
de modo ininterrupto, apesar de altos e baixos na Arquivo Municipal, etc.
sua actividade resultantes de condicionalismos
diversos, como seja o rumo pessoal e proissional Após o primeiro balanço que constituiu a
de cada um dos elementos do grupo fundador, referida Exposição de Arqueologia de 1986, tendo-
tornando-se cada vez mais numa associação de se constatado uma problemática bastante rica no
defesa do património. que à época medieval dizia respeito, ilustrada por
sítios tão emblemáticos como a “mítica” Santa
Prosseguindo os seus desígnios no que à missão Cruz da Vilariça, o local da torre roqueira do
social diz respeito, a associação assumiu a herança Baldoeiro com as ruínas da igreja de S. Mamede
de um pequeno núcleo museológico dedicado ao (descobertas no âmbito de prospecções), várias
Ferro, o antigo museu da empresa Ferrominas necrópoles de sepulturas escavadas na rocha,
criado precisamente em 1983, quando o PARM igreja tardo-românica de Adeganha, restos dos
se encontrava no seu início. O encerramento da castelos de Torre de Moncorvo e de Mós, além
empresa em 1986, e o relativo estado de abandono de abundante documentação medieval para a
deste pequeno museu, levou à sua transferência Baixa Idade Média (parte dela hoje felizmente
para a sede do concelho, em 1995, por protocolo resguardada no Arquivo Histórico Municipal),
entre a Câmara de Torre de Moncorvo e a Empresa o núcleo de investigadores do PARM decidiu
de Desenvolvimento Mineiro, entregando depois abrir uma via de pesquisa sobre esta época,
o município a gestão do museu ao PARM, através apresentando ao Conselho Consultivo do então
de outro protocolo entre estas duas entidades. IPPC, um projecto de investigação intitulado: “A
região de Moncorvo na Idade Média”, o qual foi
Passemos agora a um breve balanço da aprovado em 1986285.
actividade do grupo, depois associação, e do seu
contributo para a Arqueologia da região Sul do
284 As primeiras estelas calcolíticas do Cabeço da Mina, Assares,
distrito de Bragança (e não só). achadas pela família Ochoa Pimentel Gonçalves, proprietários do terreno,
foram dadas a conhecer a inicialmente a Mª. João Coelho, N. Rebanda e M.
Rodrigues em Dezº.1983, que depois as revelaram à comunidade cientíica.
Quanto às pinturas rupestres da Fraga do Gato, foram comunicadas a N.
Rebanda e F. Ochoa Morgado em 1985, que inicialmente as apresentaram
no 1º Congresso sobre o Rio Douro, V. N. Gaia, Maio de 1986 – cf.
REBANDA 2008.
285 LIMA et al., 1989.
250 Nelson Campos

2 – Grupo de elementos do PARM, junto das pinturas rupestres da Fraga do Gato, Poiares, Freixo de Espada à Cinta, 1986

Foi já no âmbito deste programa de investigação Calcolítico288, que, juntamente com o núcleo
na época medieval, que se izeram várias campanhas de estelas congéneres do Cabeço da Mina (Vila
de escavações no sítio do Baldoeiro (entre 1987 e Flor)289, Quinta do Couquinho e o chamado
1991), Santa Cruz da Vilariça, também conhecida “ídolo de Moncorvo”, indiciam um relevante foco
por Vila Velha ou Derruída (entre 1989 e 1991), de povoamento do IIIº milénio a.C. centrado no
Castelo de Torre de Moncorvo (entre 1988 e 1989), vale da Vilariça, culturalmente com ainidades ao
trabalhos que foram sendo publicados em revistas mundo mediterrânico, até aí desconhecido.
especializadas (revista Arqueologia, do GEAP,
Trabalhos de Antropologia e Etnologia, Actas das Entretanto, continuou-se a actualização da
Jornadas de Cerâmica Medieval e Pós-medieval de Carta Arqueológica do concelho, cujo Relatório
Tondela, etc.)286 Ainda ao abrigo deste projecto, e respectivo icheiro foram cedidos à Câmara
izeram-se prospecções geofísicas no sítio romano Municipal de Torre de Moncorvo para inclusão no
de Vila Maior (vale da Vilariça), onde se viria a PDM em 1993. No seguimento desse trabalho foi o
localizar posteriormente uma inscrição dedicada PARM solicitado para acompanhamento de obras
a Júpiter, que permitiu identiicar esse local como particulares na vila de Torre de Moncorvo, tendo-
sendo um “vicus”287. Ainda no mesmo local, se efectuado um levantamento do casco urbano
por elementos do PARM, foi descoberta uma medieval, incluído no Plano de Salvaguarda do
importante estela antropomórica do período Centro Histórico. Escavações de emergência em

286 Vd. Bibliograia no inal do texto. 288 Descoberta por Ricardo Teixeira e Paulo Dordio Gomes, actualmente
exposta no Museu do Ferro & da Região de Moncorvo – vd. CUSTÓDIO
287 Esta ara foi identiicada primeiramente por N. Rebanda em 1994, & CAMPOS 2002: 161-162.
que a registou e deu a conhecer a outros investigadores nesse mesmo ano
(F. S. Lemos) e anos seguintes (A. Coelho e A. Redentor). 289 Ver nota 6.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo 251

3 – Escavações arqueológicas na vila deserta de Santa Cruz da Vilariça, 1990

alguns pontos da vila de Moncorvo, conduzidas No tocante ao património ediicado e artístico,


pelo signatário, se bem que no quadro do IPPAR, além do registo de capelas, solares e fontenários,
contaram também com o apoio do PARM foi realizado um estudo sobre a igreja matriz de
(Largos Balbino Rego, 1996, e General Claudino, Torre de Moncorvo, monumento nacional do séc.
1997, solar da Biblioteca, 1999, Praça Francisco XVI, de que resultou uma monograia de autoria
Meireles, 2002, casa nº 15 da R. dos Sapateiros, de dois elementos do PARM291. Posteriormente,
2005), além de outros trabalhos (p. ex. prospecção um destes investigadores, Eugénio Cavalheiro,
no traçado de acesso de Moncorvo ao IP-2, 1998- também presidente da mesa da Assembleia-Geral
2001) e monitorização de sítios arqueológicos, da associação, publicaria mais dois trabalhos
constatando ameaças ou destruições. da maior importância sobre outros relevantes
monumentos concelhios: a capela de Senhora da
No que à etnograia diz respeito, izeram- Teixeira (Açoreira) com as suas famosas pinturas
se alguns trabalhos de recolha e estudo, a fresco292 e igreja tardo-românica de Adeganha293.
nomeadamente sobre o centro oleiro do Larinho
e Felgar, documentado desde o séc. XVII, Em 2002 foi estudada e publicada a colecção
contextualizados no âmbito de outros centros temática do ferro herdada do núcleo museológico
oleiros do distrito de Bragança e zona fronteiriça da Ferrominas e ora patente no Museu do Ferro294.
de Espanha290.
291 CAVALHEIRO & REBANDA, 1998.
292 CAVALHEIRO, 2000.
293 CAVALHEIRO, 2011.
290 RODRIGUES & REBANDA, 1995b), RODRIGUES & REBANDA,
1996. 294 CUSTÓDIO & REBANDA, 2002.
252 Nelson Campos

região (Freixo de Numão e Museu do Ferro) e no


2 – ESPAÇO DE APRENDIZAGEM Posto de Turismo de Torre de Moncorvo.

E
nquanto espaço de aprendizagem, Mas, quando se fala em aprendizagem, não
é de referir que os investigadores nos podemos cingir apenas às orientações
constituintes do núcleo inicial do PARM proissionais. Foram muitas dezenas os jovens
deram aqui os primeiros passos das suas carreiras de Torre de Moncorvo (e não só) que ao longo
proissionais no âmbito do património cultural e dos anos passaram pelas escavações do PARM,
arqueologia. O trabalho de campo, sobretudo no através dos programas ocupacionais apoiados
tocante à prospecção sistemática, funcionou como pelo Instituto da Juventude (OTL, OTJ, IJOVip).
verdadeira escola de aprendizagem, culminando Para esses jovens, alguns dos quais mantêm
na detecção de vestígios arqueológicos de ligação à associação, embora tenham seguido
primeira grandeza, como foi o caso das gravuras outros rumos, foi uma oportunidade que tiveram
rupestres do vale do Côa. A participação nos de contactar com a arqueologia, de conhecer
trabalhos de campo e contacto com a associação, melhor o património da sua terra e, a partir daí,
decerto contribuiu para a opção de alguns jovens desenvolverem uma atitude pró-activa e uma
colaboradores do PARM pelas áreas da Geologia, sensibilidade perante estas questões que, de
Arqueologia e História. outro modo, talvez não tivessem. Além disso, a
experiência associativa e o voluntariado foram,
Entre 1997 e 1999 o PARM, em colaboração para alguns, um campo de formação cívica, no
com o IEFP e apoio do município, organizou sentido de uma melhor cidadania.
um curso CPC (Conservação do Património
Cultural), frequentado por oito jovens formandos,
alguns dos quais vieram a trabalhar em museus da

4 – Sessão do curso CPC, durante uma visita de dirigentes do IEFP, 1998


Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo 253

Banienses, os berrões das Cabanas de Baixo (um


3 – INTERVENÇÃO CULTURAL NA CO- dos quais adoptado como emblema do PARM297),
MUNIDADE – O PROJECTO “MUSEU” E entre outras peças.
OUTROS TRABALHOS
O encerramento das minas de ferro de

E
m relação ao resto da comunidade para Moncorvo, em 1986, e a liquidação da empresa
além do círculo dos mais interessados, “Ferrominas” em 1992, provocando a letargia
percorreu-se um caminho árduo e difícil, do pequeno Museu do Ferro, inicialmente
desde o tempo em que ainda se questionava a localizado no bairro mineiro do Carvalhal,
utilidade das “pedras, dos cacos e do ferro velho” levaram a negociações entre o Município de Torre
até se ter a percepção da importância “destas de Moncorvo e a nova empresa concessionária
coisas” enquanto elemento identiicador das das minas, a EDM, no sentido de se transferir
pessoas locais e interessando também a “gente de o núcleo museológico do Ferro para a sede do
fora”. Para este efeito, sempre entendemos como concelho. A essa decisão não foi alheia a chamada
essencial a existência de um espaço de reunião de atenção, por parte do PARM, sobre o estado
da informação recolhida e (re)produzida, que de abandono em que se encontrava o Museu do
funcionasse como espelho da comunidade, onde Ferro da Ferrominas, desde os inais dos anos 80.
as pessoas se pudessem rever. Como tal, desde
o início que se entendeu que o Museu deveria Assim, após a promessa da cedência do
ser o corolário lógico de toda a actividade do espólio desse Museu à Câmara Municipal, pela
PARM: museu enquanto local de recolha, mas EDM, veio a estabelecer-se um protocolo entre
também estabelecimento educativo e célula de a Autarquia e o PARM, no sentido de se criar,
sensibilização para as questões do património. na sede do concelho, um museu que reunisse as
Numa nota do “texto fundador” referido duas vertentes: a Arqueologia & História, por um
inicialmente, dizia-se: «A abertura em Dezembro lado, e o núcleo do Ferro, por outro. Esse primeiro
de 1983 do Museu do Ferro, é algo de novo no protocolo foi irmado em 27.11.1993. Com base
panorama cultural local, mas ele não resolve, neste documento, fez-se a inventariação de todo
pelo seu âmbito muito especíico [a temática do o espólio e, tendo-se assente a escolha do edifício
Ferro], a necessidade de um Museu Regional de do antigo quartel da GNR (um solar do séc. XVII
Moncorvo»295. entretanto devoluto), para sede do novo Museu,
foi o mesmo aqui instalado em 20.02.1995.
Devemos dizer que o desejo de um museu
local era uma ideia antiga, à época com quase um As deicientes condições das novas instalações,
século. Com efeito, foi em 1895 que o Abade José apesar de algumas obras de conservação nos
Augusto Tavares, pioneiro da arqueologia do Sul inícios dos anos 90, levaram a associação do
do distrito de Bragança, defendera um Museu PARM a recorrer a fundos comunitários para
Municipal de Moncorvo, no que foi apoiado pelo recuperação do ediicado, bem como para uma
seu amigo José Leite de Vasconcelos296, fundador melhoria da exposição permanente dedicada ao
do actual Museu Nacional de Arqueologia. Por Ferro. As obras icaram concluídas em 2000 e a
falta de vontade política dos poderes públicos instalação museológica ocorreu em 2002, ainda
locais esta ideia não foi avante. Logo de seguida sem a componente de Arqueologia e História por
surgiu o Museu Municipal de Bragança (1896), não ter chegado a dotação inanceira.
mais tarde absorvido pelo Museu Regional, depois
chamado do “Abade de Baçal”, icando Moncorvo
à espera, indeinidamente. Isto levou a que muitas 297 Este corresponde ao javali das Cabanas de Baixo (freg. de Cabeça
peças arqueológicas importantes saíssem do Boa) o melhor conservado do conjunto, guardado no Museu Nacional
concelho, como foi o caso das já mencionadas de Arqueologia (Lisboa) sob o nº. E-5249. Além da importância da peça,
os responsáveis do PARM izeram questão de usar um desenho do Prof.
estelas calcolíticas do Couquinho e “ídolo de Santos Júnior (1901-1990) incluído na sua obra Berrões proto-históricos
Moncorvo”, a ara que refere a “cividade” dos do Nordeste de Portugal (1975), também como forma de homenagear
este distinto investigador, com fortes ligações a Torre de Moncorvo. A
autorização foi solicitada, e concedida, por escrito, em 1987.
295 PARM, 1985: 148.
296 VASCONCELLOS, 1895.
254 Nelson Campos

5 – Fachada principal do Museu do Ferro & da Região de Moncorvo, após as obras de 2000

A concretização do Museu tem sido, assim, e Ambiente), envolvendo a população local e


desde 1993 e, de modo mais efectivo desde visitantes externos.
1995, a grande obra da associação do PARM.
Paralelamente realizou-se o 1º. Colóquio sobre Além de trabalhos de maior envergadura,
Mineração e Metalurgia do Ferro, em 1996 e como a revisão do Inventário Arqueológico do
editaram-se algumas publicações, nomeadamente concelho de Torre de Moncorvo para integração
o Catálogo do Museu, dedicado à parte do Ferro298. no novo PDM299 e o Inventário de Arte Sacra
da igreja matriz de Moncorvo300, digamos que
A aposta na formação de pessoal qualiicado a actividade do PARM, nos últimos anos, se
para museus e postos de turismo da região, levou confunde um pouco com a do Museu do Ferro &
o PARM a organizar um curso de Conservação do da Região de Moncorvo. Isto deve-se sobretudo
Património Cultural (CPC), em colaboração com à necessidade de concentração no objectivo
o Centro de Emprego/IEFP, como se referiu no principal protocolado com a autarquia que é a
ponto 2. gestão da estrutura museológica. Por outro lado,
os afazeres proissionais dos membros mais
No campo da animação cultural, o PARM, activos da associação deixam pouca margem de
no âmbito do Museu do Ferro & da Região de tempo para os demais objectivos estatutariamente
Moncorvo e desde 1995 desenvolveu muitas previstos.
dezenas de actividades, designadamente
exposições de fotograia, pintura, artes decorativas,
sobre personalidades, arqueologia, etnograia, 299 PARM 2008a)
além de palestras e outros eventos (passeios 300 Este levantamento foi iniciado nos anos 90, com apoio do IPJ e
culturais, jornadas de campo, participação no posteriormente no âmbito do curso CPC, sob orientação da Drª. Maria
João Moita. Foi revisto e ampliado em 2008 pelo signatário e Dr. Rui
programa Ciência Viva – Geologia, Arqueologia Leonardo, tendo em vista a selecção de peças para o Museu de Arte Sacra
a instalar na Misericórdia, mediante protocolo entre o município, Diocese
298 REBANDA et al., 1996, CUSTÓDIO & CAMPOS, 2002. de Bragança e Miranda e DRCN – Cf. PARM 2008b).
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo 255

6 – Visita guiada à igreja românica de Adeganha, organizada pelo PARM.

Goradas as expectativas de criação de um Baldoeiro > igreja de Adeganha) ou uma Rota do


gabinete de arqueologia no âmbito municipal301 Ferro (escoriais > Felgueiras > forja do Felgar >
que pudesse integrar quem melhor conhecia bairro mineiro > galerias do Cabeço da Mua >
a realidade do terreno, tentou-se (sem êxito) Minas da Carvalhosa > Vale de Ferreiros). Assim
que a autarquia criasse um quadro de pessoal se daria corpo (e alma) à tal leitura das diversas
do museu com uma direcção efectiva, nem que “paisagens” que se formaram no passado e que
isso implicasse a sua municipalização integral, estruturaram a “região” até à realidade presente,
conferindo-lhe assim uma base mais proissional conforme referido no “documento fundador”.
e estável para a prossecução das funções Todavia, o máximo que se conseguiu foi a
museológicas, a saber: recolha, inventário, estudo requisição temporária do signatário (entre 2006
e publicação de materiais em reserva, assim como e 2010), alguns estágios e contratos a prazo com
recuperação e valorização de sítios arqueológicos, jovens licenciados, em que boa parte do trabalho
com vista à criação de rotas especíicas, tais como realizado incidiu na organização de eventos
uma Rota do Património Medieval (integrando temporários, de maior interesse e visibilidade
o Castelo de Torre de Moncorvo > Vila Velha > para a autarquia302, além dos trabalhos de revisão
do inventário arqueológico e inventário de arte
301 Durante algum tempo (início dos anos 90) o PARM integrou uma sacra da igreja matriz, atrás referidos.
comissão de Arte e Arqueologia municipal, sendo chamado a dar pareceres
e a intervir em algumas situações de obras particulares. Posteriormente
foi constituído um gabinete de Património (sem a componente de 302 Segundo o protocolo entre o município e o PARM para a gestão do
Arqueologia), integrado na estrutura municipal, sendo o PARM arredado Museu, é disponibilizada uma verba mensal para pagamento ao pessoal
dos processos. (funcionários da associação), funcionamento e eventos.
256 Nelson Campos

estudam o passado humano.


DIFICULDADES E CONSTRANGIMENTOS
Conclui-se também que uma cada vez

S
obre as diiculdades e constrangimentos maior exigência (e incerteza) proissional dos
veriicados ao longo destes 30 anos muito colaboradores seniores, para além da vida
haveria a dizer, embora alguns sejam familiar, deixa cada vez menos tempo livre para
idênticos aos de outras organizações do chamado a “carolice” e para o voluntariado ou participação
Terceiro Sector, mormente associações sem ins em actividades, sobretudo quando os membros
lucrativos. mais activos estão condenados a trabalhar fora da
região.
Em termos gerais, a linha de rumo deinida à
partida, de independência e autonomia face ao Vemos assim com séria apreensão o futuro
poder político não ajudou, sobretudo tratando-se associativo, até pelo seu carácter temático bastante
de uma entidade que por vezes tinha de intervir especializado. A menos que se transforme numa
civicamente em prol do património (cultural e estrutura proissionalizante, de tipo empresarial, o
natural), de que resultaram conlitos indutores de que induziria a alteração do pacto social. Todavia
uma certa marginalização da entidade e dos seus essa solução também não se aigura a melhor num
dirigentes303. cenário de crise sem im à vista e tendo como
pano de fundo um neoliberalismo que preconiza
Entre os problemas mais correntes, noutros uma autossustentabilidade irrealizável no campo
tempos, situaram-se os inanceiros e logísticos, da Cultura. Para mais numa região deprimida
com várias mudanças de sede304 e consequente do interior em que a progressiva desertiicação
transferência de mobiliário, equipamentos e espólio humana é facto sem retorno.
resultante de prospecções e escavações para vários
depósitos (alguns sem condições), obrigando a Talvez o PARM represente o im de um tempo,
bastante trabalho de encaixotamento, transporte, que foi o do voluntarismo, do chamado “amor à
estiva, e reorganização, o principal do qual ocorreu camisola”; mas também o tempo dos “antiquários”
antes e depois das obras no edifício do museu. e dos “amadores”, no sentido “de aqueles que
amam” as “antiguidades”, se bem que com outras
Hoje em dia, resolvidos alguns desses aspectos, preocupações cientíicas e uma visão aggiornata.
o problema principal reside na falta de novos Quiçá o tempo de uma maior autenticidade na luta
colaboradores empenhados, o que decorre da em prol do património, face a novos proissionais
desertiicação humana e inerente ausência de da arte que trabalham, sem rebuço, a soldo de
massa crítica. O decréscimo populacional, as grandes obras públicas e privadas305. Talvez o
transformações sociais e maior diversidade da tempo do im da inocência...
oferta em termos de lazer (novas tecnologias,
desporto, música, etc.) não favorecem a adesão Mas, em jeito de conclusão, uma coisa nos
dos jovens a causas ou interesses patrimoniais ou parece certa (se bem que estejamos a ser juiz
ambientais, assim como as saídas proissionais em causa própria): o contributo directo (e
limitadíssimas neste campo também não indirecto), do PARM para a Arqueologia e para o
aconselham opções futuras pelas ciências que Património regional e até nacional, parece-nos ser
incontornável. Pelo que, apesar das vicissitudes,
303 Referimo-nos a posições críticas da associação face a demolições (ou terá valido a pena esta aventura.
tentativas de) de edifícios antigos no Centro Histórico da vila de Moncorvo
– p. ex. actual Biblioteca Municipal e Casa Leopoldo Henriques.
304 Logo após a constituição a associação foi desalojada de uma sede
provisória que tinha no mercado municipal, icando cerca de um ano
à espera de se conseguir uma nova sede, na que viria a ser a Casa das
Associações, obtida em acção concertada com outras associações. Aí viria
o PARM a inspirar e a integrar também um projecto de Rádio Local (1988- 305 Para não causar mais problemas com o poder local, a associação
89), que está na base da estação emissora ainda hoje existente. Depois de decidiu, em assembleia geral realizada em 28.02.2004, não se pronunciar
muitas vicissitudes e mudanças de sede, só em 25.04.2013 passámos a oicialmente sobre uma grande barragem em construção no concelho, e
dispor de um espaço mais deinitivo, através de contrato de comodato com que se sabia que iria afectar um imenso património natural, arqueológico
o município por período de 20 anos, no r/c da Casa Leopoldo Henriques, e etnológico. Todavia não participou de modo algum nesse crime de lesa-
na rua Tomás Ribeiro, em Torre de Moncorvo. património, demarcando-se do processo.
Projecto Arqueológico na Região de Moncorvo 257

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260
Arquivo de Memória
2010-2013
Entre o Coa, o Águeda e o Douro Internacional
texto: Alexandra Cerveira Lima
ACOA — Associação de Amigos do Parque e Museu do Coa

(acerveiraplima@sapo.pt)

Resumo: Abstract:
O Arquivo de Memória promove encontros entre he project Arquivo de Memória  promotes
gerações, regista testemunhos, digitaliza e conserva communication between young and old people,
makes records of life stories, scans and preserves small
pequenos arquivos familiares. Recorrendo às novas
family archives. Using new technologies and from the
tecnologias e a partir das recolhas de informação e collections of information and documentation,  the
documentação realizadas, o projeto contribui para a project contributes to the promotion of knowledge and
dinamização do conhecimento e da investigação, es- research, encouraging intergenerational ties within the
timulando os laços intergeracionais e a ligação da co- community and a greater attachment to its heritage.
munidade ao património. São objetivos: Goals:
-Improve the life quality of seniors, particular-
- Melhorar a qualidade de vida dos idosos, particu-
ly of the ones integrated at nursing homes
larmente dos idosos integrados nos lares -Promote intergenerational relationships
- Dinamizar relações intergeracionais em torno da around the joint construction of Regional History
construção da História Regional -Promote the training and the use of new tech-
- Promover a utilização de novas tecnologias nologies
- Promover a investigação -Promote research
-Promote community approach to cultural and
- Promover a aproximação das comunidades natural heritage
ao património 2010/2011 - he pilot project took place at Vila
2010/2011 - projeto-piloto, Vila Nova de Foz Côa Nova de Foz Coa.
2011/2012 - Parque Natural do Douro Internacio- In 2011/2012, it was extended to the International
nal (no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo) e al- Douro Natural Park, in the county of Figueira de Cas-
deia de Serranillo (Ciudad Rodrigo). telo Rodrigo, and to the village of Serranillo (Ciudad
Rodrigo).
2013 - Alargamento ao Vale do Coa e Douro Supe-
2013 - extension to the Coa Valley and the Upper
rior (apoio PROVERE do COA). Douro region.

Palavras-chave: Arquivo de Memória; Intergera- Key-words: Memory File; Intergenerational; His-


cional; História tory
262 Alexandra Cerveira Lima

N
o painel História, Património e ação local/
regional, optámos por apresentar o proje-
to Arquivo de Memória que tem vindo a
ser desenvolvido pela ACOA – Associação de Amigos
do Parque e Museu do Coa, através do Clube UNES-
CO Entre Gerações.

O projeto iniciou-se em 2010 com o apoio da Fun-


dação Calouste Gulbenkian. Da memória descritiva
que integrou a candidatura apresentada ao PROVERE
do COA, entretanto publicada306 retiraremos descrição
do projeto piloto que decorreu em Vila Nova de Foz
Coa ao longo do ano letivo de 2010/2011.

1. O Projeto-piloto307
Foi candidatado o projeto Arquivo de Memória do
Vale do Côa ao programa Entre Gerações, no âmbito
do Programa Gulbenkian de Desenvolvimento Huma-
no308, cujo principal propósito era «promover a coesão
social e diminuir o isolamento dos idosos, através do
estreitamento das relações entre os diferentes grupos
etários». Concorrendo com mais de 300 projetos, a can-
didatura realizada em nome da ACÔA foi aprovada.

1.1. Ficha Técnica do projeto-piloto


Duração do pro- Dezembro 2010 – Dezembro 2011
jeto
Montante atribuí- 30,000.00€
do
Equipa do projeto Ideia original: Alexandra Cerveira Lima
Coordenação geral: Alexandra Cerveira Lima e Mafalda Nicolau de Almeida
Coordenação executiva: Bárbara Carvalho
Antropologia: Inês Melhorado
Atividades, divulgação e novas tecnologias: Maria Sottomayor
Disseminação do projeto em F. C. Rodrigo: Ondina Monteiro/ Alexandra Cerveira Lima
Logótipo do pro-
jeto

306 LIMA et al., 2013: 9-18.


307 CARVALHO & SOTTOMAYOR, 2011: 57-68.
308 FCG (2009) —  Entre Gerações, «PG Desenvolvimento Humano».
Disponível em <http://www.gulbenkian.pt/section154artId2196langId1.
html>. [Consulta realizada em 15/10/2013].
Arquivo e Memória 263

Parceiros Jovens e idosos:


- Santa Casa da Misericórdia – Lar N.ª Sra. da Veiga
por temáticas - Escola Secundária de Vila Nova de Foz Coa
Logística e articulação com a comunidade:
- Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Coa
- Junta de Freguesia de Vila Nova de Foz Coa
Património cultural:
- Parque e Museu do Coa
- Comissão Nacional da UNESCO
Gestão da informação e documental:
- Arquivo Nacional da Torre do Tombo
- Sistemas de Futuro
- ACDR de Freixo de Numão
Disseminação do projeto:
- ICNB (DGACN/Parque Natural do Douro Internacional)
- Lares e Centros de Dia de Figueira de C. Rodrigo
- Junta de Castela e Leão, Fundação Duques de Sória e Associação Civitas
Sinopse Através da articulação entre escolas, lares e centros de dia, o Arquivo de Memória promove encontros
entre jovens e idosos, regista histórias de vida, digitaliza e conserva pequenos arquivos familiares. Re-
correndo às novas tecnologias e a partir das recolhas realizadas, cria-se um arquivo que deverá contri-
buir para a dinamização do conhecimento e investigação na região, criando laços entre a comunidade.

Esquema de ação:

1.2. Ações realizadas e resultados


Idosos 64 idosos envolvidos
21 visitas dos alunos ao Lar N.ª Sr.ª da Veiga
51 entrevistas
221 documentos cedidos para acondicionamento
8 atividades intergeracionais complementares
264 Alexandra Cerveira Lima

 Esquema: Mafalda Nicolau de Almeida

Jovens Aulas inseridas na disciplina de Área de Projeto


Frequência: semanal
12º ano - 3 alunos - 79h30m
7º ano - 21 alunos - 46h30m
Total ano lectivo: 126h

1º Período – Formação: recolha de histórias de vida; vídeo e som; fotograia; acondicionamento de


arquivos familiares; design e comunicação
Total de horas de formação : 21 horas

2º Período – Recolhas: realização de entrevistas junto dos idosos


Total 12º ano: 10
Total 7º ano: 9
Acondicionamento de espólios familiares
Total 12º e 7º anos: 79 documentos

3º Período – manipulação de dados


7º ano – animações e elaboração de um «livro do passado»
12º ano – realização de uma exposição no Centro Cultural em V.N.de Foz Coa
Arquivo e Memória 265

Ações comple- - Visita intergeracional ao Museu do Coa


mentares - Participação na exposição da Feira do Livro de Vila Nova de Foz Coa
- Participação no desile alegórico da amendoeira em lor
- Plantação de árvores no Museu do Côa
- Tarde de jogos tradicionais no Orgal
- Workshop de desenho com a artista Maria Lino
- Visita à capela de Nª Sr.ª da Veiga e lanche
- Atividades intergeracionais semanais no lar: jogos e navegação na internet
Envolvimento da Sessão de apresentação pública do projeto
comunidade Prémio “Associação do Ano 2011” atribuído à ACOA pela Associação Juvenil Gustavo Filipe
Recolha e acondicionamento de arquivos familiares
37 entrevistados realizadas
Total de recolhas 19 entrevistas realizadas pelos jovens
32 entrevistas realizadas pela equipa técnica
Total: 51 entrevistas

79 documentos acondicionados pelos jovens


142 documentos acondicionados pela equipa técnica
Total: 221 entrevistas
Divulgação Imprensa: 2 artigos no site «Café Portugal», 4 artigos «Jornal Fozcoense», 2 artigos «Jornal da Guarda»,
1 artigo na «Sic Notícias» on-line, 2 artigos na Revista «Visão» e «Visão Júnior», 1 artigo na Revista
«Coavisão»
Facebook - 1410 amigos
Blog - 42 entradas
Disseminação Figueira de Castelo Rodrigo
§ Parceria com ICNB/DGACN/Parque Natural do Douro Internacional: Agosto a Outubro
2011
§ Estágio curricular de Maria Ondina Monteiro. Orientação de Alexandra Cerveira Lima em
articulação com a restante equipa do projeto
§ Realização de 53 inquéritos em 4 lares
Castela e Leão
§ No âmbito da classiicação de Siega Verde como Património Mundial enquanto extensão do
Vale do Côa é desenvolvida uma parceria entre a ACÔA/CLUBE UNESCO e a Fundación
Duques de Soria, em articulação com a Asociación Cultural Cívitas de Ciudad Rodrigo, entre
Outubro a Dezembro 2011 (com continuidade em 2012).
§ Contemplou: ação junto dos lares, recolha (inquéritos) e atividades intergeracionais articu-
lando idosos e jovens.
Clube UNESCO Assinatura de protocolo entre a Comissão Nacional da UNESCO e a ACOA para a criação do Clube
UNESCO Entre Gerações - 28 de Maio 2011
266 Alexandra Cerveira Lima

1 - Aluno do 7º ano de escolaridade da Escola Tenente Coronel Adão Carrapatoso entrevista Adelaide G. no Lar Nª Sra da Veiga, em
Vila Nova de Foz Coa, durante o projeto piloto (2010/11).

1.4. Objectivos alcançados

§ Combate ao isolamento e solidão — melhoria § Envolvimento da comunidade no desenvolvi-


da qualidade de vida dos idosos integrados em lares e mento do projeto.
centros de dia.
§ Criação do Clube UNESCO Entre Gerações.
§ Dinamização de relações intergeracionais en-
tre jovens e idosos com base no património cultural.

§ Formação dos jovens no âmbito das novas tec- Com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
nologias para a realização de recolhas do património foi testado um projeto intergeracional centrado num
imaterial e História oral e sensibilizando-os para as problema — o isolamento dos idosos nos lares e cen-
questões relacionadas com a intergeracionalidade, o tros de dia e o distanciamento relativamente aos mais
envelhecimento e o abandono social. jovens — e numa oportunidade — o potencial de me-
mória que os idosos guardam. O projeto foi muito
§ Criação das bases de uma recolha documen- bem acolhido pelos intervenientes e instituições par-
tal, um Arquivo de Memória (realização de entrevistas, ceiras e a sua avaliação, por parte da Fundação Calous-
inventariação e acondicionamento de documentos). te Gulbenkian309, foi positiva. Neste contexto o Clube
309 A Fundação Calouste Gulbenkian, para avaliar o desempenho dos
projetos que apoiou no âmbito deste programa, realizou uma parceria com
Arquivo e Memória 267

2 - Formação vídeo dos alunos do 7º ano (com Tiago Pereira em Vila Nova de Foz Coa)

UNESCO tomou o nome do programa da Fundação


Calouste Gulbenkian que apoiou o Arquivo de Memó-
ria: passou a designar-se Clube UNESCO Entre Gera-
ções, tendo resultado da celebração de um protocolo
entre a ACOA e a Comissão Nacional da UNESCO.
Procurava-se assim ampliar o leque de parcerias e, no
futuro, dispor de um modo de atingir as comunida-
des imigrantes presentes nestes concelhos do interior,
através da ligação a outros Clubes UNESCO dos países
de origem.

O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou


diversas ações intergeracionais, como uma visita con-
junta de alunos e seniores ao Museu do Coa.

3 - Os alunos, com a equipa técnica do projeto, digitalizam e ac-


o Oxford Institute for Aging. ondicionam, para que perdurem, os pequenos arquivos familiares.
268 Alexandra Cerveira Lima

4 - O projeto piloto Arquivo de Memória contemplou diversas ações intergeracionais,


como uma visita conjunta de alunos e seniores ao Museu do Coa.

2. DESENVOLVIMENTO ATUAL DO PROJETO sa, testemunho áudio ou vídeo, as memórias dos uten-
tes dos lares e centros de dia, mas também de quem

A
través de uma candidatura aprovada ao vive nas aldeias e nas sedes concelhias. As recolhas são
PROVERE do Coa, o projeto Arquivo de feitas, através de uma empresa da área do patrimó-
Memória está numa fase de consolidação e nio312, por alunos, por estagiários, por jovens oriundos
crescimento, vital para o futuro. da região — que agora vivem noutras geograias, e que
Foram estabelecidos os seguintes objetivos para passaram dias ou semanas recolhendo testemunhos
esta fase: nas aldeias de onde as família são originárias —, por
1. Criação de uma rede virtual, através da base de interessados de várias formas no projeto, mas também
dados e sistema de gestão da informação In Patrimo- por alguns proissionais de som e vídeo a quem se en-
nium310, é possível colocar em rede e on-line, incluin- comendou trabalho no âmbito deste projeto.
do o interface proporcionado por um website, toda a 3. Um evento intergeracional — Memória em Festa
informação recolhida e produzida, inventariada e in- — que passa por um dia ou um im de semana numa
dexada. Sejam testemunhos vídeo ou áudio, sejam do- aldeia, a forma encontrada de se comunicar o projeto
cumentos digitalizados, sejam inventários de coleções junto das comunidades locais. Com a colaboração de
públicas ou privadas311. uma empresa a quem se entregou a comunicação do
2. Edição virtual contribuindo para o que designá- projeto313, uma equipa faz recolha de testemunhos, di-
mos «A História Regional Recente do Vale do Coa». vulgação, digitalização de documentos, inventariação,
Trata-se de registar, sob a forma de inquérito, conver- acondicionamento, ao longo de um ou dois dias dia-

310 Empresa Sistema de Futuro 312 Histórias & Tempus


311 Brevemente no domínio www.acoa.pt 313 Setepés
Arquivo e Memória 269

loga com pessoas da comunidade, instala uma câmara ver: o projeto-piloto assentou no par escola/lar, par vir-
de vídeo, entrevista, procura memórias da aldeia, mú- tuoso que vivia em grande medida da designada Área
sicas, documentos, danças... de Projeto. Sem ela o Arquivo de Memória procura
A uma outra empresa314 foi entregue a comunica- um espaço, um canal, onde emergir na escola, sem que
ção do projeto junto de parceiros institucionais e de seja um entrave ao regular curso do ensino curricular,
entidades que importa envolver agora e no futuro. sem que se transforme numa impossibilidade.
Conhecer realmente o vale do Coa, para lá de este- Outras linhas procuramos desenvolver entretanto:
riótipos nascidos das histórias recentes do território, alargar a geograia, alargar o impacto. A ida regular
é uma descoberta que importa promover. Entre o Coa, aos lares de um só concelho mobiliza várias pessoas
o Águeda e o Douro Internacional, um território de por muitos dias... e, para quem está num lar, embora
áreas classiicadas, um território que se quer de refe- pareça dispor de tempo, realmente sabemos que o tem-
rência. po se esvai, corre muito mais rápido do que deveria...
4. Finalmente um seminário — a que se chamou inexoravelmente. O projeto nasceu por não nos con-
Imaterialidades — procurando levar, uma vez prepara- formarmos com uma visão de uma tarde numa aldeia
da a base de dados, a rede virtual, o sistema de gestão do baixo Coa: um conjunto de pessoas silenciosas, na
da informação recolhida, o projeto e o que foi entre- sala de um lar, a olhar para uma parede branca e va-
tanto produzido até junto da Academia. Importa que zia. Num território em que a História recente está tão
haja diversos olhares académicos, perspetivas enqua- pouco trabalhada, em que a documentação é escassa,
dradoras, desenvolvimentos em duas frentes: a inves- façamos deste propósito comum — contruir a Histó-
tigação e a criação artística. Importa levar o projeto e ria em conjunto, produzir conhecimento e promover a
as recolhas junto de distintos públicos para que o apro- criatividade — um estímulo poderoso para as diferen-
priem como seu, como matéria-prima que podem tra- tes gerações envolvidas... E se a partir dos testemunhos
tar, cuidar, investigar, analisar. Ou simplesmente fruir. e documentos procuramos divulgar conteúdos que in-
teressam às comunidades emigrantes, emigração de
ontem e de hoje, é nosso propósito produzir conteú-
3. O FUTURO DO ARQUIVO DE MEMÓRIA dos que importem também aos residentes, turistas e
visitantes dos vales do Coa, Águeda e Douro.

E
stamos neste momento no ponto que pre-
cede o seminário. E há uma tensão interes-
sante que atravessa todo o projeto: por um BIBLIOGRAFIA
lado o caráter intergeracional, que é a componente que
à Fundação Calouste Gulbenkian importa, e por isso CARVALHO, Bárbara; SOTTOMAYOR, Ma-
o apoia, em que os espaços lúdicos, as conversas sem ria (2011): Arquivo de memória do Vale do Coa.
io deinido ou atividades diversas são o traço forte. «Côavisão», vol. 13. Vila Nova de Foz Coa: Câmara
Alunos, com pouca mestria ainda de câmaras e gra- Municipal, p. 57-68.
vadores, captam o som de quem, com olhar pater-
nalista, saudoso ou divertido, entrevistam. Por outro LIMA, Alexandra Cerveira — Coa, um território de
lado a qualidade necessária à comunicação do projeto, referência. «Côavisão», vol. 12. Vila Nova de Foz Coa:
que exige ilmagens proissionais, captação de som em Câmara Municipal, p. 51-54.
condições exigentes, proissionalismo que aos entre-
vistados por vezes incomoda, perturba... Teremos que LIMA, Alexandra Cerveira; CARVALHO, Bárba-
balancear habilmente estes dois distintos rumos de re- ra; MURALHA, João; ALMEIDA, Mafalda Nicolau
colha de testemunhos315. (2013) —  O projeto Arquivo de Memória do Vale do
Um outro desaio procuramos, de momento, resol- Coa candidatado ao PROVERE do Coa. «Côavisão»,
vol. 15. Vila Nova de Foz Coa: Câmara Municipal, p.
314 Milles Away 9-18.
315 Foi atribuído ao Arquivo de Memória o Prémio Distinção Cinecoa
2013, durante o festival de Cinema que decorreu em outubro. Ficou patente
a força dos testemunhos recolhidos e a fraqueza que decorre da captação
amadora de som, mesmo com formação ministrada às equipas.
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