You are on page 1of 108
OS BESTIALIZADOS José Murilo de Carvalho soe OS BESTIALIZADOS “ Ji “Tada iges is arate ds secede aia contempt ‘etiam coder en dois mein eso dn erin pc. Nos eobranetosecoupesiade ons en propos en ik jg i tanparete ses eens, (emda mean proprio em ie = ‘lpia nome de os, one ‘ides do pea ge ads jn ee cog ei egal ua ees cexspurado ‘Opera erate deo Mai de arn pebo Paraiso Peo ds ses sepia fra one aif senda sobs He exis aos credo lepament crit qi no ‘ecworaran aes paren, ut pec she papier ‘esis pe pon eng wie deli peu ds reese dame oc que ao Repco emda ees ma emit qe formas co’ Se oR eo sede dal edo pre pb equ ras a mi do gem quae ‘voice cn deserter ‘od porte de one cian Sein usa Repti sem price pba nin eran mar tm igh, qi 2s fra de centle cilee aio “tenes projet arg dee ‘ose? Fg opm pap an ‘entre pri pi ime nas psiessem ea srs de pan? ‘snk, cra ede its, ahd pois ano ern ‘Shap ina pesones abs poe Mr sess sustain do Ieper einer Aeron OS BESTIALIZADOS JOSE MURILO DE CARVALHO OS BESTIALIZADOS ORIO DE JANEIRO E A REPUBLICA QUE NAO FOL “Cnn © Ks Wao Cara sezongutadees eb “Petlpscomancen ie INDICE Abreviagoes Agradecimentos Introdusio 1: O Rio de Janeiro e a Repiblica 1: Republica e cidadanias IIL: Cidadios inativos: a abstengio eleitoral IV: Cidadios ativos: a Revolta da Vacina V: Bestializados ou bilontras? Conclusso Notas Bibliografia 40 161 165 187 ABREVIAGOES AGCRI — Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro AN — Arquivo Nacional FCRB — Arquivo Histérco, Fundaeo Casa de Rui Barbosa MAE — Ministdre des Affaires Etrangéres. Archives Diploma- tiques, Pars PRO — Public Records Office, Londres RAE — Reparticio do Arquivo e Biblioteca do Ministério dos Assuntos Estrangeros, Lisboa AGRADECIMENTOS 03 trabalhos includes neste volume no poderiam ter sido realizados sem 0 apoio financeiro da FINEP, através do Instituto Universitario de Pesquisas do Rio de ‘Taneiro,¢ da IBM do Brasil, através do Centro de Estudos, Historicos da Fundagio Casa de Rui Barbosa, ‘Agradego 0 apoio constante de Francisco de Assis Barbosa, diretor do Centro de Estudos Historicos, © tambem de Rosa Maria Barboza de Araijo, que deu int cio no Centro 20 projeto "Consolidagio da Repiblica no Rio de Janeiro”, e de Paulo Henrique Coelho, seu conti rnuador. Agradego ainda a todos os colegas ¢ estagiarios ‘do mesmo Centro, particularmente a Pedro Paulo Soares, pela cooporagio na coleta de dados, pelos comentarios © pelo ambiente de trabalho. Diferentes eapitulos benefic ramse das criticas de colegas do grupo de estudos sobre Estado e Sociedade da Associagdo Nacional de PésGra- ‘duagio e Pesquisa em Cigncias Sociais, de Jaime Benchi ‘mol, Nicolau Sevcenko e Simon Schwartzman. Anita, Beth € Turibio, do Centro, datilografaram os originals ‘Silvia Helena, de maneira nao menos real por in- ‘wansparente, contribuiu para a produgdo deste livro, {que & para Sandra, Jonas e Diogo. 7 INTRODUCAO Em frase que se tornou famosa, Aristides Lobo, © propagandista da Republica, manifesto seu desaponta- ‘mento com a maneira pela qual foi proclamado 0 novo regime. Segundo ele, 0 povo, que pelo idedrio republi- ano deveria ter sido protagonista dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se passava, julgando ver talver uma parada militar.’ Nao ros interessa aqui discutir em que medida a observa,io correspondia & realidade, isto é, em que medida 0 povo participou ou nio da proclamacio da Republica. Ha ver- s6es contraditérias & espera de uma anilise critica, a qual nio seri feita neste texto. Interessa-nos, sim, o fato de que um observador participante e interessado tenha percebido a participasio do povo dessa maneira; inte- ressanos 0 fato de que irés dias apds a proclamasio, este observador j tenha percebido e confessado 0 pe- cado original do novo regime. Aristides Lobo nfo estava 6 na percepeio do povo como alheio aos fatos politicos. Seria fécilalinhar virias citagties de outros observadores apontando na mesma diresdo. Basta-nos, no entanto, referir apenas outra frase famosa, agora de um sibio francés hé muito resi- dente no Brasil, Louis Couty. Ao analisar a situacio so- ° ciopolitica da populacio do pais, Couty coneluiu que po- deria resumila em uma frase: “O Brasil nio tem pove".? Seus olhos franceses nio conseguiam ver no Brasil aquela populacdo ativa e organizada a que estava acostumado em seu pais de origem. Aristides Lobo pode ter falado por distorgio clitista, assim como Couty pode ter feito por etnocentrismo francés. Ambos eram, todavia, pessoas esclarecidas e interessadas nas mudan- ‘ga8 sociais politicas que fermentavam a seu redor. E preciso que nos perguntemos pelo sentido de suas pa: lavras, pela realidade que lhes possa ter servido de rete Tal empreendimento € tanto mais necessério pelo fato de estarmos aqui diante do problema da natureza ‘mesma de nossa vida politica. Tratese da concepgio e da pritica da cidadania entre nés, em especial entre 0 pove. Tatas do problema do relacionamento entre o eldadio © 0 Estado, o cidadio e 0 sistema politico, o cidadao € & propria atividade politica. Tem havido recentemente tendéncia a ver tal relagio de maneira maniqucista, se undo a qual o Estado ¢ apresentado como vilio © & Sociedade como vitima indefesa. Tal visio é quase uma volta & dicotomia clissica estabelecida por Santo Agos- tinho entre um Estado governado por pecadores, basco do na repressio, ¢ a Cidade de Deus, a sociedade dos santos, sustentada no amor © na cooperagio.' Nesta perspectiva, a inexisténcia da cidadania € simplesmente atribuida ao Estado. Tal visio ¢ insatisfatdria, como todas as dicotomias aplicadas a0 fendmeno social. Teoricamente, ela sepai (© que sio lados da mesma moeda, partes do mesmo todo, O maniqueismo inviabiliza mesmo qualquer nogio de cidadania, pois ou se aceita 0 Estado como um mal 0 necessirio, & maneira agostiniana, ow se o nega total mente, a moda anarquista. Na pritica, ele acaba por revelar uma atitude paternalista em relagio ao povo. a0 consideré-lo vitima impotente diante das maquinagées ddo poder do Estado ou de grupos dominantes. Acaba por bestializar 0 povo. Parecenos ao contritio que, exceto fem casos muito excepcionais ¢ paseageiros de sistemas baseados totalmente na repressio, ¢ mais fecundo ver as relagdes entre o cidadéo e o Estado como uma via de mio dupla, embora nio necessariamente equilibrada Todo sistema de dominagio, para sobreviver, teré de desenvolver uma base qualquer de legitimidade, ainda ‘ue seja a apatia dos cidadios. © momento de transicéo do Império para a Rept blica ¢ particularmente adequado para 0 estudo desta ‘questio, Tratava-se da primeira grande mudanga de re- ime politico apés a independéncia. Mais ainda: trata. vase da implantasao de um sistema de governo que se ropunha, exatamente, trazer 0 poo para 0 proscénio 4a atividade politica. A Republica, na vor de seus pro- Pagandistas mais radicais, como Silva Jardim © Lopes Trovdo, era apresentada com a irrupgio do povo na pol. a, na melhor tradigao da Revolucao Francesa de 1789, a ‘revolugdo adorada”, como a chamava Silva Jardim. O re- ime mondrquico, vivendo & sombra do Poder Moder dor, era condenado pelo manifesto republicano de 1870 como incompativel com a soberania nacional, que $6 po- deria ser bascada na vontade popular. 0 jornal Revolu 40, publicado no Rio em 1881 por um funcionsrio de- mitido da Alfandega, Favila Nunes, conclamava povo, segundo ele roubado em seus direitos pelo governo mo. nérquico, a empunhar “o estandarte da liberdade — a bandeira da Repiblica — no meio da praga publica, 20 som da Marselhesa, proclamando a soberania popular”, u Embora proclamado sem a inictativa popular, novo regime despertatia entre os exclutdos do sistema anterior certo entusiasmo quanto as novas possbilida- des de participacio. 0 jornal Voz do Povo, também do Rio de Janeiro, cuja publicagio foi iniciada menos de dois meses apds a proclamagio da Repiblica, referiuse ‘2 uma nova era para 0 operirio brasileiro trazida pelo novo regime, compardvel & que foi aberta pela Revol ‘gio de 1789, No regime antigo, segundo o articulista do Jornal, os operdrios eram os servos da gleba, a canalha, com todos os deveres ¢ nenhum direito. Agora eram li ‘res, iguais e soberanos, viam se colocados na vanguard do progresso da patria, E terminava: “Saibamos ser ope- ririas e cidadios de uma pétria live”. Logo no comeco de 1890 houve vitlas tentativas de organizar um partido operdrio, e um dos militantes mais envolvides, Luiz da Franga e Silva, dizia em seu jornal Echo Popular: "A pas lavra — Repiiblica — foi por muito tempo o simbolo exclusive das aspiragdes democréticas, © 0 grito — viva ‘a Repiblica — tem um longo passado de sedigio ¢ irrompe naturalmente do povo quando ele se reine para eliberar".* [Alem de 0 momento ser propicio, era.o também 0 local, o ambiente, em que pretendemas realizar 0 estudo =a cidade do Rio de Janeiro. As cidades foram tradi- cionalmente 0 lugar clissico do desenvolvimento da ci- dadania, O cidadio era, até etimologicamente, 0 habi: tante da cidade. Nelas se tornou possivel a libertagio do poder privado dos senhores feudais. Nelas foi que aos ‘poucos se desenvolveram a nogio ¢ a prética de um siste- ma de governo montado sobre o pertencimento individual uma coletividade. O burgués foi 0 primeiro cidadso moderno." R 0 Rio de Janciro dos primeiros anos da Replica era a maior cidade do pais, com mais de $00 mil hat tantes. Capital politica © administrativa, estava em con- digdes de ser também, pelo menos em tese, © melhor terreno para o desenvolvimento da cidadania. Desde a Independencia ¢, particularmente, desde o inicio do Se gundo Reinado, quando se deu a consolidagto do go- vverno central e da economia cafecira na provincia adja cente, a cidade passou a ser 0 centro da vida politica nacional. © comportamento politico de sua populacio tinha reflexos imediatos no resto do pais. A proclamasio da Repaiblica é a melhor demonstragio desta afirmacio, Campos Sales jé pereebia, como propagandista, que a falta de coesio do Partido Republicano na corte era 0 principal obsticulo ao desenvolvimento da idéia republi- cana." E a proclamasio, afinal, resultou de um motim de soldados com o apoio de grupos politicos da capital ‘Com esta suméria justifiativa do tempo e lugar do estudo — a ser desenvolvida no correr do trabalho — Ji fica evidente que havia algo mais na politica do que simplesmente um povo bestializado, Tentar entender que povo era este, qual seu imaginario politico e qual sua pritica politica sera a tarefa que enfrentaremos a0 longo dos capitulos deste livro. O estudo comecard por uma descrigdo da cidade do Rio de Janeiro no inicio da Rept blica, com énfase especial nas transformagées. soci politcas e culturals trazidas pelo fim de século. 0 capi. tulo seguinte examinara as varias concepgies de cidada- nia vigentes & época da mudanca do regime. Depois, tentarsed examinar © mundo dos cidadios assim como ele se verificava na capital da Republica através da par: ticipagio eleitoral. © quarto capitulo seré dedicado 20 estudo de uma agio politica exemplar — no sentido po- litico © moral — da populagio: a Revolta da Vacina, Por a fim, o capitulo quinto procurara reconstituir 0 mundo dda eidadania no Rio de Janeiro e buscar razdes para explicéo. Embora se trate de uma investigagio de natureza historica, nfo resta divida de que 0 problema da cidada nia continua no centro da preocupagio de todos nos dias de hoje, quando mais uma mudanga de regime se efetua € mais uma tentativa ¢ felta no sentido de construir a ‘comunidade politica brasileira. A historiografia é aqui, uuma ver mais, projegio do presente e instrumento de tentativa de construcdo da hist6ria, Diziam os positivis: tas que 0s mortos governavam 0s vivos, o passado o pre sente. Ao reler a histéria com os olhos de hoje talvez pudéssemos dizer que 0s vivos, ao tentar reconstruir 0 passado, tentam governar os mortos na iusto de po: derem governar a si préprios. Ou, em versio pessimist, na frustragdo de o no poderem fazer “ CAPITULO! ORIO DE JANEIRO EA REPUBLICA* [Nao seria exagero dizer que a cidade do Rio de Ja reiro passou, durante a primeira década republicana, pela fase mais turbulenta de sua existéncia. Grandes transformagées de natureza econémica, social, politica ¢ cultural, que se gestavam hi algum tempo, precipita ramse com a mudanga do regime politico ¢ langaram a capital em febril agitagdo, que 56 comegaria a ceder a0 final da década, O que se leré a seguir sera a tentativa de descrever sumariamente a natureza destas mudancas € examinar as conseqiiéncias delas advindas para a vida dos fluminenses. Atencio especial sera dada ao impacto do novo regime, que se pretendia ancorado na opinio ppdblics, na formagto de uma comunidade politica na antiga capital do Império, ‘A anilise concentrarse na fase inicial de consol dagio do novo regime, estendendose até 0 final do go- verno Rodrigues Alves, quando ja estavam nitidamente efinidos os vitoriosos e os vencidos ¢ estabelecidos os rumos e a natureza da politica republicana tanto para © pais como para a capital. No que se refere a esta, e=- tavam definidos no s6 0 papel que Ihe caberia como tam- bbém as regras para represent. 1 Versio moditicada dst capt fl publica em Revista Bra era de istrin $ (9): 138, et. abr 5 ‘Como a maior cidade e a capital econémica, politica cultural do pats, © Rio de Janeiro nao poderia deixar de sentir, em graui mais intenso do que qualquer outra cidade, as mudangas que vinham fermentando durante (5 tltimos anos do Tmpério e que culminaram na aboli: ‘io da escravidio e na proclamagéo da Republica. A mu: ddanga de regime, com todas as expectativas que trazia e também com todas as dificuldades que implicava, como que projetou luz intensa sobre as novas realidades, tor nando a vivéncia delas também mais intensa ¢ mais di fundids, De uma maneira ou de outra, para melhor ‘ou para pior, grande parte dos fluminenses foi pela pri rmeira vez envolvida nos problemas da cidade e do pais. Esta consciéncia nova e ampliada e as conseqliéncias que gerava, antes mesmo que mudangas quantitativas, carse: terizaram o Rio da primeira década republicana. Mas as alteragoes quantitativas so inescapaveis. A primeira delas foi de natureea demogrifica. Alterouse 1 populagio da capital em termos de nimero de habi tantes, de composicio étnica, de estrutura ocupacional AA aboligio langou o restante da miodeobra escrava no mercado de trabalho livre e engrossou © contingente de subempregados e desempregados. Além disso, provocou tum éxodo para a cidade proveniente da regiso cafeeira do estado do Rio e um aumento na imigragso estrangel- 1, especialmente de portugueses. Os indices de eresct ‘mento da populagio podem ser vistos na tabela 1 Vese que a década que precedeu a Republica apre- senta 0 maior crescimento populacional relativo. Em termos absolutos, tem-se que a populagio quase dobrou centre 1872 e 1890, passando de 266 mil a 522 mil. A ci dade teve ainda de absorver uns 200 mil novos habitan- tes na ultima década do século. $6 no ano de 1891, en. traram 166 321 imigrantes, tendo saido para os estados 16 Tabet ‘resciento anual da popula do ode tna, rer 108 ‘ance Creston oun (8) se721000 ase 1001090 ast 171.264, Este enorme influro populacional fazia com que, ‘em 1890, 28,7% da populagdo fosse nascida no exterior € 26% dela provieste de outras regides do Brasil. Assim, apenas 45% da populacio era nascida na cidade. ‘Outro resultado importante da intensa imigraglo era © desequilfbrio entre os sexos. Em 1890, entre os estran- ‘eiros, 0: homens eram mais que o dobro das mulheres. Na populagio total, a predominincia do sexo masculine girava em toro de 56%. O desequilibrio refletiase no Indice de nupcialidade, que era apenas de 26% entre os hhomens brancos e cain para 125% entre os negros em 1890," Em verdade, quanto a este ponto tinha havido alguma methoria em relagio a 1872, mas permanecia ‘muito alto © mimero de solteires , portanto, muito baxo o nimero de familias regularizadas ‘Uma terceira conseqiigncia do ripido crescimento populacional foi o aciimulo de pessoas em ocupagtes mal remuneradas ou sem ocupagio fixa. Domésticos, jorna leiros, trabalhadores em ocupagoes mal definidas chega: vam a mais de 100 mil pessoas em 1890 ¢ a mais de 200, sil em 1906 e viviam nas ténues fronteiras entre a lega lidade © a ilegalidade, as vezes participando simultanea- mente de ambas. Pouco antes da Republica, o embalxa: dor portugués anotava: "Esta a cidade do Rio de Janeiro 0 cheia de gatunos e malfeitores de todas as espécies". Em proposta para regulamentagio do servigo doméstco, fe ta 8 Intendéncia Municipal em 1892, Evaristo de Moraes cobservava que havia na capital “gente desocupada em srande quantidade, sendo notivel © miimero de menores abandonados”.* Esta populacio poderia ser comparada as classes pe- rigosas ou potencialmente perigosas de que se falava na primeira metade do século XIX. Eram ladrdes, prost- tutas, malandros, desertores do Exército, da Marinha € dos navios estrangeiros, ciganos, ambulantes, trapeiros, criados, serventes de reparticdes publicas, ratociros, re cebedores de bondes, engraxates, carroceiros,florstas, Dicheiros, jogadores, receptadores, pivetes (a palavra jé exists). E, é claro, a figura tipleamente carioca do cx poeira, cuja fama jé se espalhara por todo 0 pais © cujo ‘numero foi calculado em torno de 20 mil as vésperas da Repablica.* Morando, agindo © trabalhando, na maior parte, nas ruas centrais da Cidade Velha, tais pessoas fram as que mais compareciam nas estatisticas criminals da época, especialmente as referentes as contravengoes 4o tipo desordem, vadiagem, embriaguez, jogo. Em 1890, estas contravengdes eram responséveis por 60% das pri ses de pessoas recolhidas a Casa de Detencio. ‘Anote-se ainda o impacto do crescimento popula: cional acelerado sobre as condigies de vida, com as conseqiientes pressdes sobre a administragio munici- pal. Agravaram-se muito os problemas de habitaco, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade. A “absoluta falta” de casas, especialmente para os pobres, foi salientada em 1892 pela Sociedade Unido dos Pro. prietérios © Arrendatérios de Prédios, que a atribuia a imigragio, A Sociedade solicitava & Inspetoria de Ht iene que fosse mais cautelosa ao mandar fechar habita- 6 8es, pelas conseqiiéncias que medida poderia acarre tar Os velhos problemas de abastecimento de agua, de saneamento e de higiene viram-se agravados de mancira dramatica no inicio da Replica com o mais violento surto de epidemias da historia da cidade. O ano de 1891 foi particularmente trigico, pois nele coincidiram epide- mias de variola e febre amarela, que vieram juntar-se as tradicionais matadoras, a maléria e a tuberculose. Nesse ano, a taxa de mortalidade atingiu seu mais alto nivel ‘matando 52 pessoas em cada mil habitantes. Até 1896, 1 mortalidade permaneceu acima de 38 por mil, com 3 a nica excegio de 1893. A cidade tornara-se, sobretudo tno verio, um lugar perigoso para viver, tanto para na- cionals quanto para estrangeiros, Nos meses de maior calor, 0 corpo diplomética fugia em bloco para Petré- polis a fim de escapar As epidemias, nem sempre com axito. O governo inglés concedia a seus diplomatas um adicional de insalubridade pelo risco que corriam repre- sentando Sua Majestade. Nao terminavam aj as atribulagées por que passava 1 capital. Pelo lado econdmico e financeiro, os tempos também foram de grandes agitagSes. Novamente a ori ‘gem de tudo remontava a abolicio da escravidio. Néo & necessério repetir em pormenores uma historia j& bem sabida. Basta lembrar que, devido & necessidade de apls car 05 cafeicultores, especialmente do estado do Rio, © de atender a uma demanda real de moeda para o paga- mento de salérios, 0 governo imperial comecou a emitir inkelro, no que foi seguido com entusiasmo pelo go- vverno provisério, este preocupado também em conquis- tar simpatias para © novo regime. Concedido o direito de emitir a virios bancos, a praca do Rio de Janeiro foi fnundada de dinheiro sem nenhum astro, seguindo-se a ‘conhecida febre especulativa, bem deserita no romance B de Taunay, O Encithamento, Segundo um jormal da épo- ca, "todos Jogaram, o negeciante, 0 médico, 0 juriscon- sulto, 0 funcionério pablica, © corretor, 0 zangio; com ouco pectlio préprio, com muito pecilio-alheio, com as diferengas do gio, ¢ quase todos com a caugio dos pro prios instramentos do jogo”.* Falta acrescentar & lista de especuladores 05 fazendeiros do estado do Rio de Janeiro, que afluiram a capital para jogar na especulacio © dinheiro dos empréstimos. Os anos de 1890 e 1891 fo. ram de loucura, segundo a expressio de um observador estrangeiro, 0 qual acrescenta ter havido corretores que obtinham luctos didrios de 50 a 100 contos e que uma ‘scilagio do cimbio fazia e desfaria milionrios.® Por dois anos, o novo regime parecen uma auténtice repi- blica de bangueiros, onde a lei era enriquecer a todo ‘custo com dinheiro de especulasio. ‘As conseqlncias ndo se fizeram esperar. Desde logo, hhouve enorme encarecimento dos produtos importados devido a0 aumento da demanda e a0 consumo conspicuo dos novos ricos. A seguir, a inflagdo generalizada e a du plicagio dos pregos jé em 1892. Ao mesmo tempo, co: rmeyou a queda do cimbio, encarecendo mais ainda os Produtos de importagdo, que na época abrangiam quase tudo. Em 1892, jé era necessério 0 dobro de mil réis para comprar uma libra esterlina; em 1897, 0 triplo. Por cima, © governo aumentou os impostos de importacio e ppassou a cobré-los em ouro, o que contribuiu ainda mais para o agravamento do custo de vida. Até o embaixador inglés sofreu as consegiiéncias quando um Funcionério dda embaixada pediu aumento de salério, demonstrando com listas de presos que seus 704000 mensais do eram ‘ais suficientes para sobreviver. 0 embaixador encami: hou favoravelmente o pedido ao Foreign Office, dizendo {que 0s salérios nio tinham acompanhado 0 aumento dos » pregos, € terminou seu oficio com uma tirads de orador popular: “[...] até quando podemos esperar que 0 povo brasileiro aceite carregar tal peso?”. Com efeito, segundo alguns céleulos, no primeiro qlingiénio republicano hhouve aumento de 100% nos salérios para um aumento dde mais de 300% nos pregos.? [Artur Azevedo reflete a situagio em O Tribofe, es crito em 1892: ‘Das algbciras some-se 0 cobre, {Como levado por um tutto: ‘Game de vaca no come © pobre Gualguer din no come plo Plstoror, velas, couve,qulabos, YVinho.aguardente, miho, fio, ruta, conserva, cenouras,aabos ‘Tudo se vende prism dinbeirdo!® (© aumento no custo de vida era agravado pela imi gragio, que ampliava a oferta de miodeobra e acirrava a lata pelos escassos empregos disponiveis. Tal situagio Constituiu 0 combustivel para o movimento jacobino, {que principiow ao governo Floriano © perdurou até fim da presidéncia de Prudente de Morais (1898). 0 jar cobinismo elegeu como principal alvo de suas iras os portugueses, considerados usurpadores de empregos exploradores dos brasileros através do controle que fexerciam sobre grande parte do comércio e das casas de aluguel.? Pelo meio da década, a queda dos precos do café contribuiu para agravar a crise e 0 pais entrou em fase de deflacio e recessio econdmica, de que s6 come- {ou a sair a0 final do governo Campos Sales, no inicio do novo século. 1H foram mencionados alguns fatos politicos. Foi a politica outro aspecto,e talvez 0 mais saliente, das trans formacoes e abalos sofrides pela capital federal. A pro- 2 lamagio da Republica trouxe grandes expectativas de renovagao politica, de maior participagéo no poder por parte nao 56 de contraclites mas também de camadas antes excluidas do jogo politico. O fato de ter sido 0 novo regime proclamado por movimento que se desenro- lara totalmente na capital, para surpresa de quase todas 4s provincias, velo contribuir ainda mais para as expecta tivas da populagio. Por quase uma década, 0 Rio seria @ arena em que os destinos nacionais se decidiriam Depois da independéncia, era o momento de maior glé- ria de maior visibilidade para a capital, transformada fem foro das atengies de todo o pais. Acontecimentos, por banais que fossem, assumiam importincia desme. dlida em fungio da ressondincia produzida pela situago Privilegiada em que se achava a cidade. Uma tentativa de assassinato, um empastelamento de jornal, uma gre- ve, uma revolta de quartel ou de navio, que abalassem a capital, reverberavam pelo pais inteir. Pela expectativa despertada, pelas Iutas a que deram inicio e mesmo por razées diretamente vinculadas & po- Iitica, 0s primeiros anos da Republica foram de repet- das agitagoes © de quase permanente excitagio para os fluminenses. Os militares tinham provado o poder que desde o inicio da Regéncia thes fugira das mios. Dai em diante julgaram-se donos e salvadores da Repablica, com © direito de intervir assim que Ihes parecesse convenien: te. Rebelavamse quarttis, regimentos, fortalezas, na: vios, a Escola Militar, a esquadra nacional em peso. Ge nerais brigavam entre si, ou com almirantes, o Exército brigava com a Armada, a policia brigava com o Exército. Por seis meses, a esquadra rebelada bloqueou © porto € bombardeou partes da cidade, causando painico, deslocs rmentos macigos de populagio para os subsirbios, amea- Gas de saques. Os operirios, ou parte deles, acreditaram 2 nas promessas do novo regime, tentaram organizar-se fem partidos, promoveram greves, seja por motivos poli: ticos, seja em defesa de seu poder aquisitivo erodido pela inflacio, ® Ferrovidrios, maritimos, estivadores, co: Ccheiros ¢ condutores de bondes fizeram sua entrada no cenéio politic, promovendo as primeiras paralisagées, da capital, que dependia do funcionamento da rede fer- rovidria e do porto, pois dai provinha todo o seu abas- tecimento, Pequenos proprietirios, empregados, funcio- nérios pablicos também se mobilizaram pela primeira ver no bojo da xenofobia florianista, organizando clubes jacobinos e batalhdes patriticos. Os jacobinos mantive am um elima generalizado de tensio politica, especial mente durante a campanha de Canudos no governo de Prudente de Morais. Quebravam jornais, promoviam arruagas, vaiavam congressistas, espancavam © matavam portugueses, perseguiam monarquistas, assassinavam ini mmigos. Em 1997 tentaram matar o presidente da Rept bilica, depois de terem feito © mesmo com o simo pre: sidente do conselho de ministros da Monarquis. Politicos republicanos e monarguistas assinavam manifestos, en volviamse em conspiragées, planejavam golpes. TTalver o nico setor da populagio a ter sua atuagio ‘comprimida pela Repiblica tenha sido 0 dos capoeira. Logo no inicio do governo provisério foram perseguidos: pelo chefe de policia, presos © deportados em grande mnimero para Fernando de Noronha. Sampaio Ferraz Vingava-se deste modo das hostilidades sofridas pelos propagandistas da Repiblica, entre os quals figurara, por parte dos capociras incorporados & Guarda Negra. Nio conseguiu destrutlos, mas domesticus criando condigdes para sua reincorporagao 20 novo sistema em termos mais diseretos. Também no houve tolerincia al gama para com 03 anarquistas estrangeiros que pela pri a meira vez aportaram s pralas fluminenses, Para eles, 9 Repiiblica mostrou logo sua face violenta, expulsando-os sem maiores delongas. Durante o governo de Florian Peixoto foram expulsos 76 estrangeiros. Desses, 36 por crimes politicos, 19 expressamente sob acusago de anar- ‘quismo. As deportagies faziamse por simples deereto presidencial, precedendo solicitacdo do chefe de police. © primeiro decreto data de 14 de agosto de 1893," Por ultimo, ¢ preciso mencionar também a movi mentagio que se deu no mundo das idéias das menta- lidades. A Republica no produziu correntes ideoligicas Préprias ou novas visies estéticas. Mas, por um momen: to, houve um abrir de janelas, por onde circularam mais livremente idéias que antes se continham no recatado ‘mundo imperial. Criou-se um ambiente que Evaristo de Moraes chamou com felicidade de porre ideoligico, © que poderiamos também chamar, sob a inspiragio de Sérgio Porto, de maxixe do republican doido, Nesse porte, ou nesse maxixe, misturavamse, sem muita preo- cupaio logica ou substantiva, varias vertentes do pen: samento curopeu. Algumas delas i tinham sido incor- Poradas durante 0 Império, como o liberalismo © 0 po: sitivismo; outras foram impulsionadas, como 0 socialis- ‘mo; outras ainda foram somente entéo importadas, como 0 anarquismo. Entre os republicanos historicos, havia os que se ligavam & corrente liberal spenceriana ce federalista, 8 mods de Alberto Sales e dos paulistas em geral, © 0s que se inspiravam antes na tradigéo da Revo: lugéo Francesa, que favorecia uma visio mais rousseat niana do pacto social, mais popular e centralista, ao es: tilo de Silva Jardim, Lopes Trovio, Joaquim Serra. E hhavia ainda os positivistas, que exultaram com 0 advento do novo regime, julgando ter chegado a hora, a que se consideravam destinados, de exercerem a tutela intelec- mu tual sobre a naglo. Mas mesmo entre eles houve divi- ses — entre a ortodoxia da Igreja Positivista e as va riantes civil e militar, que da doutrina retiravam apenas ‘os aspects que mais interessavam a agio politica Descendo um pouco na escala social, intelectuats de classe média ¢ artesios qualificados, como os grificos, viram sua possibilidade de intervir na politica através de propostas de natureza socialista. Langaram jornais de propaganda e tentaram formar organizagdes que pudes sem traduzit em agdo concreta seus principios. Acredi- tavam na possibilidade de democratizar a Repiblica indo além das propostas liberal e positvista que predo- ‘minavam entre os histéricos. Finalmente, um pouco mals tarde, j4 no bojo do desencanto com @ pouca ou ne nhuma sensibilidade do novo regime para reformas de- mocratizantes, surgiram as propostas anarquistas, tra zendo alternativas radicais para a organizagio politica do pais, A frente dos novos propagandistas estariam in telectuais de classe média e lideres operirios, estrang ros e brasileros, O capitulo seguinte desenvolver& me- Ihor este t6pico. Mais importante que a circulacdo de idéias talvez tenha sido a nova atitude dos intelectuais em relagéo & politica. Da invaséo da Camara Municipal a 15 de nove bro de 1889, antes mesmo de proclamada a Repiblica, particparam varios inteleetuals. Alguns, por certo, anti+ 08 militantes do movimento abolicionista, como José do Patrocinio, mas outros pela primeira vez movidos & agS0 politica concreta, como Olavo Bilac, Luis Murat, Pardal Mallet, Um més depois, intelectuais do Rio envisram um manifesto de entusiéstico apoio a0 governo provisério, fem que ee referiam & allanga entre os homens de letra © 0 povo. A patria, dizia © manifesto, abrira as asas ume ao progresso, “a literatura vai desprender tam 2 bbém 0 vo para acompanhisla de perto”.¥ O entusiasmo durou até o governo Floriano, quando se dew um cisma entre os intelectuas, ¢ alguns dos antigos entusiastas da Repiiblica tiveram de Fugir da capital para evitar a prisio. Como exemplo de perseveranca © de fé, jd agora obce- cada, nos ideais de um republicanismo jacobino, restarie apenas Raul Pompéia. Seu suicidio em dezembro de 1895, alguns meses aps a morte de Floriano, foi o trigico simbolo do fracasso de uma alternativa politica, assim como a fuga de Bilac, Guimaries Passos e outros indi ‘cava que nio seria tio facil estabelecer os parimetros de uma convivéncia pacifica entre a Republica da pol tica e a Republica das letras. A convivéncia se daria mais tarde em termos algo distintos dos imaginados inicial- Mais dificil de avaliar € © impacto da proclamagdo do novo regime a nivel das mentalidades. Entre as eli- tes, houve sem duivida a sensacao geral de libertacio, que atingiu nao s6 o mundo das idéias mas também dos sen- timentos e das atitudes. Nao ha estudos sobre este ponto, ‘mas no seria exagerado dizer que a saida da figura austera ¢ patriarcal do velho imperador, que imprimia forte marca em toda a elite politica e mesmo em setores ‘mais amplos da populacio, significou a emancipagio ddos que seriam simbolicamente seus filhos. A mudanga parece ter sido importante sobretudo no que se refere a padres de moral de honestidade. A comegar por esta lltima, vimos que o encilhamento trouxe uma febre de cenriquecimento a todo custo, escandalizando velhos mo- narquistas, como 0 visconde de Taunay, que via no fen’- ‘meno uma degradagio da alma nacional. Como diriam 0s jornais da época, "a Republica ¢ a riqueza!”.” Pode riamos dizer que se deu uma vitoria do espirito do capi talismo desacompanhado da ética protestante. Desabro- % chou 0 espirito aquistivo solto de qualquer peia de va: lores éticos, out mesmo de cileulo racional que garan- tisee a sustentagdo do Iucro a médio prazo, Era um capi talismo predatério, fruto tipico do espirto bandeirante za conceppio que Ihe deu Viana Moog. O que antes era feito com diserigio, ou mesmo as escondidas, para fugit A vigilancia dos olhos imperial, agora podia ser gritado das janelas ou dos coches, era quase motivo de orgu- Iho pessoal e de prestigio pibico. Os herdis do dia eram (grandes especuladores da bolsa A quebra de valores antigos foi também acelerada nno campo da moral e dos costumes. Certamente, © Rio hha muito deixara de ser exemplo de vida morigerada, se 6 que alguma ver o fol. Os altos indices de populasao ‘marginal e de imigracéo, 0 desequilfbrio entre os sexos, a baixa nupcialidade, a alta taxa de nascimentos ilegiti- ‘mos slo testemunhos seguros de costumes mais soltes Aponta na mesma diresio o romance de Manuel AntOnio de Almeida, Memérias de wm Sargento de Milicias, es: crito em 1853. Mas, novamente, pareceme que o que an tes era semiclandestino, sussurrado, adquiriu com a Re: pblica, se excetuarmos o governo de Floriano, foros de Iegitimagdo piblica. O pecado popularizouse, personif couse, Na revista do ano de Artur Azevedo, O Rio em 1877, domina a temética politica © os personagens sSo todos simbélicos, como © Boato, a Politica, o Zé Povi- nho ete. J4 em O Tribofe, revista apresentada no inicio de 1892, o engano, a sedusdo, a exploragio, a mut tribofe, enfim, aparecem encarnados em pessoas muito reais e possuem até mesmo certo charme. Entre jogado- res, cocotes, bons vivants, fraudadores de corridas, pro: prietérios exploradores, perdese a virtude da familia in- teriorana, Primeiro, some a empregada, seduzida por um ppersonagem que se diz lancador de mulheres, ou seja, a formador de prostitutas; a seguir, vai o préprio iazen- deiro nos bragos de uma cocote; finalmente, desaparece © filho em agitagies estudantis. Todos pegam 0 "micr bio da pindega”, Se do ar da cidade medieval se dizia 4que tornava livre social e politicamente, do ar do Rio podese dizer que libertava moralmente, Ou, como diz em 0 Tribofe Quinota, a filha do fazendeiro, referindose ao pai: "Respirou 0 ar desta terra, e perdeu a cabeca” © completa: "Aqui hé muita liberdade e pouco escripulo, faze ostentagio do vicio e das grandezas [...] Nao se respelta ninguém”. Nao por acaso, A Cidade do Rio, jor nal de Patrocinio, representava-se como uma mulher nua, assim aparecia em desenhos dialogando com Deodoro, para a suprema irritacdo do austero soldado (ver caderno de fotos) Tal liberagdo se deu a despeito da ago moralista de ccertas autoridades republicanas. O chefe de policia ‘de Deodoro perseguiu os capociras, e todo © governo Flo- iano teve uma cara repressora. O jogo, as apostas foram reprimidos, ¢ tentou-se acabar com 0 entrudo, Porém a Jogatina da bolsa, favorecida pelo governo provisério, tinha dado o tom. Apesar da agio das autoridades, quan. do havia tal agio, abriramse cassinos, casas de corrida, frontdes, belédromos, que vieram juntar-se ao tradicio- nal jogo do bicho, ou dos bichos, como se dizia na épo- ca, © casas clandestinas de jogo. A confiansa na sorte, Ro enriquecimento sem esforco em contraposigdo 20 ‘ganho da vida pelo trabalho honesto parece ter sido in- centivada pelo surgimento do novo regime. E 0 que re- vela 0 testemunho insuspeito de Raul Pompéia: “Desa. rendeuse a arte honesta de fazer a vida com o natural e firme concurso do tempo, do trabalho, Era preciso me- lhorar, mas de pronto: ac jogo pois!”, publicado no Jor- ral do Commercio, a 4 de janeiro de 1892. E pedia, para a 2 salvasao da Repiblica, o fim da “epidemia de jogatina” ‘Mas ha um ponto que € preciso salientar. O fato de a Repiiblica ter favorecido © grande jogo da bolsa e per: seguido capoeiras e 0 pequeno jogo dos bicheiros sugere uma recepgao diferente do novo regime por parte do que poderia ser chamado de proletariado da capital. A eufo- ria inicial, a sensagio de que se abriam caminhos novos de participasio parecem nio ter atingido este setor da populacio. Eu diria mesmo que a Monarquia caiu quan do atingia seu ponto mais alto de popularidade entre festa gente, em parte como consegiigncia da abolicio da ceseravidio, A aboligdo deu ensejo a imensos festejos po- plares que duraram uma semana e se repetiram no ano seguinte, cinco meses antes da proclamagio da Repabli- ca, A simpatia popular se dirigia no s6 a princesa Tsa- bel, mas também a Pedro II, como ficou evidenciado por ‘ocasito da comemoragio do aniversério do velho impe- rador, a 2 de dezembro de 1888. Segundo o testemunho o republicano Raul Pompéia, © Pago Imperial foi in vadido por “turba imensa de populares, homens de cor ‘2 maior parte", A policia teve de intervir para convencet ‘alguns dos manifestantes de que pelo menos vestissem ‘camisa para se apresentarem ao imperador. No meio da multiddo, salientava-se a imponente figura do principe Obs, um negro que se dizia rei africano, Principe Obi adornara de penas sua farda de alferes honorério.* cena foi sem divida motivo de riso e chacota,e principe (Obi acabou sendo preso pela policia. Mas revelava pro- fundo simbolismo: um rel negro, um rei das ruas ¢ becos dda cidade, vai paramentado, combinando a farda do ‘mundo oficial com as penas de suas origens africanas, © acolitado pela multidao dos miseraveis saudar o impera- dor de olhos azul. [A reagio negativa da populagdo negra & Republica 2 manifestouse antes mesmo da proclamagio, através da Guarda Negra organizada por José do Patrocinio, Varios incidentes verificaramse entre os propagandistas ¢ a Guarda, O mais sério de todos se deu com a interrupeéo, ‘que resultou em mortos e feridos, de uma conferéncia de Silva Jardim, em dezembro de 1888, na Sociedade Fran- cesa de Gindstica, Dizer que se tratava apenas de capoci ras baderneiros manipulados pela policia, como 0 fize ‘ram os republicanos e até mesmo Rui Barbosa, no bas ta. Permanece o fato de que os republicanos no conse- guiram a adesio do setor pobre da populagéo, sobretudo ddos negros. O proprio Silva Jardim, a0 acompanhar o conde d’Eu em sua viagem ao norte do pais em 1889, experimentaria mais uma ver, em Salvador, a ira da po- pulagio negra. Por ele e pela Repiiblica manifestaramse apenas os estudantes da Faculdade de Medicina local. A simpatia dos negros pela Monarquia reflete-se na conhe- ida ojeriza que Lima Barreto, o mais popular roman- cista do Rio, alimentava pela Republica. Neto de escra- 0s, filho de um protegido do visconde de Ouro Preto, © romancista assistia, emocionado, aos sete anos, as co- memoragdes da abolicio € as festas promovidas. por ‘casiio do regresso do imperador de sta viagem & Eu: ropa, também em 1888. Em contraste, vira no ano se: fuinte seu pai, operério da Tipografia Nacional, ser de- ‘mitido pela politica republicana. Irritava-o, particular mente, a postura do bario do Riv Branco, a quem acusa va de renegar a parcela negra da populagao brasileira, ® Em termos concretos, 2 prevengio republican com tra pobres e negros manifestou-se na perseguicto movida or Sampaio Ferraz contra os capociras, na luta contra (0 bicheiros, na destruigto, pelo prefeito Mlorianista Ba rata Ribeiro, do mais famoso cortigo do Rio, a Cabesa de 0 Porco, em 1892. Nao por acaso, Barata Ribeiro também comparecera & conferéncia dissolvida de Silva Jardim. io seria, a meu ver, exagerado supor que a reagio po. pular a certas medidas da administragso republicana, mesmo que teoricamente benéficas, como a vacina obri gatoria, tenha sido em parte alicergada na antipatia pelo novo regime. Mais ow menos & época da Revolta da Va cina, por exemplo, Joao do Rio verficou, 20 visitar a Casa de Detengio, que “Com rarissimas excesses, que talvez no existam, todos os presos so radicalmente monarquistas. Passadores de moedas falss, incendiarios, assassines, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, sio fer- ventes apéstolos da restauracdo”."” Eram monarquistas ¢ liam romances de cavalaria, Esta extraordinria revela- ‘so confirma o abismo existente entre os pobres € a Repablica abre fecundas pistas de investigagdo sobre um mundo de valores ¢ idéias radicalmente distinto do mun- ddo das elites ¢ do mundo dos setores intermediérios. Apontadas rapidamente as transformacoes sofridas pela capital, cabe agora perguntar pelas consequéncias dai advindas para @ populagto da cidade e seu governo & para a relacio entre ambos. © problema central a ser resolvido pelo novo regime era a organizacio de outro pacto de poder, que pudesse substituir © arranjo impe- rial com grau suficiente de estabilidade. Durante quase dex anos de Repiblica, as agitagdes se sucediam na ca- pital, havia guerra civil nos estados do Sul, pereebiamse riscos de fragmentacio do pais, a economia estava amea sada pela crise do mercado do café e pelas dificuldades de administrar a divida externa. Para os que controls vam 0 setor mais poderoso da economia (exportagio) © para os que se preocupavam em manter 0 pais unido, tor nava-se ungente acabar com a instabilidade politica, ‘A natureza da tarefa que se impunha pode ser des- 3 crita como a necessidade de eliminar, ou pelo menos neutralizar, a influéncia da capital na politica nacional Isto significava pelo menos duas coisas: tirar os mil tares do governo e reduzir 0 nivel de participacio popu: lar. Os dois fendmenos eram relacionados, pois © grosso do Exército e da Marinha estava localizado no Rio de Janeiro, e muitos militares de ambas as corporagées en: volviain-te freqlientemente nas agitagses politicas, até ‘mesmo em greves operdrias. Nas greves, tumultos, revot tas, tentativas de golpes, havia sempre militares ao lado de elementos civis. A alianga foi mais nitida durante 0 perfodo jacobino, mas até mesmo em 1904 houve ainda 0 desenvolvimento paralelo, com intersegdes, de uma re- volta popular e uma revolta militar. Militares © setores populares no representavam interesses compativels com 6s do grande comércio e da grande agricultura, Porém, ppor outro lado, néo tinham condigées de impor um go- verno que extrapolasse os limites do Distrito Federal ‘A mancira indireta de neuts a capital e as for ‘25 que nela se agitavam era fortalecer os estados, pact ficando e cooptando suas oligarquias. Era reunir as olf sgarquias em torno de um arranjo que garantisse seu do- ‘minio local e sua participagio no poder nacional de acordo com 0 cacife politico de cada uma. Como ¢ ss- bido, esta fol a obra de Campos Sales, que, além do mais, precisava desesperadamente de paz interna para negociar a divida externa com os bangueiros ingleses. 0 acordo foi consagrado em 1900, durante © reconhecimento de poderes da nova legislatura. Por ele, presumis-se a leg ‘imidade dos diplomas dos deputados eleitos pelas pol ticas dominantes nos estados, conseguindose assim 0 apoio dessas politcas para a acio do governo federal Se 0s partides nso funcionavam como instrumentos de governo, se se dividiam em facgdes, se ficavam presos a 2 ccaudilhos, a solugdo, para Campos Sales, era formar fentio um grande partido de governo com sustent nas oligarquias estaduais. O proprio presidente resumiu claramente seu objetivo: “E de li [dos estados] que se governa a Repaiblica, por cima das multidGes que turmul- tuam, agitadas, nas ruas da capital da Unido”. E prosse- sguindo: “A politica dos estados (...] & a politica nacio- nal” (grifo de Campos Sales).* © resumo € perfeito: governar o pals por cima do tumulto das multidées agitadas da capital. © Rio podia ser caixa de ressonincia, mas ndo tinha forca politica pro- Pria porque uma populagio urbana mobilizada politica ‘mente, socialmente heterogénea, indisciplinada, dividida por conflitos internos no podia dar sustentagéo a um governo que tivesse de representar as forcas dominantes ddo Brasil agririo. A perceppio do perigo representado por uma cidade deliberante, com um minimo que fosse de vontade propria, fezse sentir logo no inicio da Rept- blica. O decreto do governo provisério que dissolveu a antiga Camara dos Vereadores e eriou um Conselho de Intendéncia dava a este, em coeréncia com a filosofia descentralizante do novo regime, certa autonomia de ‘gio, Os intendentes acreditaram em seu novo papel ¢ Jogo decretaram um Cédigo de Posturas, que desagradou profundamente aos proprietérios e arrendatarios de pre: dios de aluguel, A Sociedade que representava estes pro- prietérios recorreu de imediato ndo ao Conselho, mas 0 ‘governo federal, e este, voltando atrés em seus propési {os inicias, suspendeu a execugio do Cédigo e baixou ‘outro decreto, reduzindo a autonoria do Conselho e sub: ‘etendo suas deliberagdes & apreciagio do ministro do Interior. Demonstrando alguma dignidade, os intenden: tes demitiramse em protesto. A teoria rapidamente se revelara outra na pritica. A experigncia de autonomi 3B durou apenas dois meses e meio. Apesar da curta dure ‘go e do carater limitado que tivera, fora suficiente para que © tradicional érgio republicano O Paiz, dirigido por Quintino Bocaidiva, a ela se referisse como sinal do pe igo de surgir no Rio uma pequena comuna, uma con: ‘vengdo municipal, despética e tirinica como a convensio francesa (grifo meu). A desproporeio gritante entre a ddimensio real do fato © @ que The pretendeu dar o jor- nal, conjurando fantasmas da Paris revoluciondvia de 1789 1871, € um indicador precioso da preocupagso dos republicanos com o perigo da mobilizaglo popular na capital. ‘A situagio do governo municipal no mudou muito ‘com a decretagéo da lei orginica do Distrito Federal, em 1892, ja em regime constitucional. A lei previa a eleigto dos intendentes pelo voto popular, mas o prefeito, cargo entio criado, seria nomeado pelo presidente ds. Rept bilica com aprovagéo do Senado Federal. As coisas assim permaneceram até o final da Primeira Repiblica. Na verdade, 0 Rio republicano foi governado 0 tempo todo por interventores, que mais nio eram os prefeitos no- meados. (0 governa municipal ficou limitado & agdo adminis. trativa e, mesmo assim, dependendo do apoio politico © financeiro do governo federal para iniciativas de maior vulto. © Conselho de Intendentes, mesmo eleito, tinka ppoucas condigdes de se opor ao prefeito nomeado. No governo de Rodrigues Alves, Pereira Passos governou a cidade por seis meses com a Camara suspensa, ditato- rialmente, como o fizera na época florianista Barata Ri beiro, com 0 Conselho funcionando. © complemento ine- el da despolitizagio do governo municipal foi o fal- seamento do processo eleitoral e da representatividade politica, O niimero de eleitores foi mantido sempre em a niveis baixissimos, e © processo eleitoral foi totalmente falseado pela intimidasdo, pela violéncia e pela fraude, ‘como seri demonsirado no capftulo 3, Dissociava-se o governo municipal da representagso dos cidadios. 0 fato era agravado pela freqlente no- meagao de prefeltos e chefes de policia totalmente alheios & vida da cidade, muitas vezes traridos dos es- tados pelos presidentes da Repiblica, Abriase entio, do lado do governo, o caminho para © autoritarismo, que nna melhor das hipéteses poderia ser um autoritarismo ilustrado, baseado na competéncia, real ou presumida, de téenicos. Nao por acaso, muitos dos chefes do go- vverno municipal no periodo em foco foram médicos ou engenhe lum engenheiro militar e apenas um tinha a formasio tradicional da elite politica brasileira, a juridica. O ‘exemplo mais ébvio é naturalmente o do engenheiro Pe- reira Passos. Muitos destes técnicos eram republicanos de primeira gua, como Barata Ribeiro. Mas, chegados a0 poder, do espirito de repiblica guardavam no maxi ‘mo alguma preocupasdo com 0 bem piblico, desde que © pilblico, 0 povo, no participasse do processo de deci so. 0 postivismo, ou certa leitura positivista da Rept blica, que enfatizava, de um lado, a idéia do progresso pela cigneia e, de outro, o conceito de ditadura republi: ccana, contributa poderosamente para o reforgo da pot tra tecnocritica € autoritéria. © primeiro exemplo de tal mentalidade foi o Cédigo de Posturas Municipals de 1890. Dois meses apés a posse, 05 sete intendentes ja tinham revisto um esboco de Cé- digo legado pela Monarquia e 0 colocado em vigor. O novo cédigo regulava em pormenores varias atividades, especialmente as referentes a casas de aluguel e de pasto os seis primeiros, quatro foram médicos, 35 Nao hé divida de que grande parte das medidas era bbemintencionada e buscava beneficiar a populacio em termos de maior conforto e maior higiene, 20 mesmo tempo que criava dificuldades aos proprietérios. Mas as ‘medidas eram inteiramente irrealistas para a época. Mu tas delas, como a cxigtncia de caiar as paredes duas veres por ano, azulejar cozinhas © bankeiros, arejar ‘quartos com aparelhos de ventilacio, limitar © nimero de héspedes, envolviam melhoramentos até hoje inexis- tentes em muitas residéncias, Além disso, o Cédigo dei- xava transparecer_ a preocupagio republicana com ‘controle da populaso marginal da cidade. Se executado, poderia ter provocado uma primeira versio da Revolia da Vacina. Para justificar a afirmativa, basta dizer que incluia a proibigio de que hottis, hospedarias e estala- gens recebessem pessoas suspeitas, dbrios, vagabundos, ‘capociras, desordeiros em geral. Exigia-se ainda o regis tro de todos os héspedes, com anotagio de nomes, em- Dregos € outras caracteristicas. As listas deviam ser en- tregues & policia no dia seguinte até as nove horas da ‘manhi. As penalidades pelo descumprimento dos dispo- sitivos iam desde multas até prisio por 30 dias.» Pode- se imaginar o impacto dessas medidas, especialmente no velho centro. O Rio possula, em 1888, 1331 estalagens 18866 quartos de aluguel, em que moravam 46680 pes- sons, incluinds todo 0 vasto contingente do mundo da desordem. De uma hora para outra, todos teriam regis- to na policia, ou ficariam sem onde morar, caso os pro- prietérios cumprissem rigorosamente a lei. Como se v8, fra uma lei que ou nso se aplicava, ou se aplicava pela violencia. No caso, cla foi suspensa. Em 1904, a let da vacinagdo obrigatéria teve exatamente 0 mesmo espfrito de despotismo ilustrado, apesar de votada pelo Congres- 0. Desta vez, a interferéncia do poder publico foi levada 6 para dentro da casa dos cidadios, seu iltimo e sagrado Feduto de privacidade, Na percepcio da populasio po- bre, a Jet ameacava a prépria honra do lar ao permitir aque estranhos vissem e tocassem 05 braces € as coxas. de suas mulheres e filhas. A populacdo reagiu pela vio- lincia e forgou a interrupeso da acdo dos agentes do governo, como se vera no capitulo 4. ‘A expectativa inical, despertada pela Republica, de maior participagio, foi sendo assim sistematicamente frustrada, Desapontaramse os intelectuais com as per- sequigdes do governo Floriano; desapontaram-se 0s ope rérios, sobretudo sua lideranga socialista, com as dificul- dades de se organizarem em partidos e de participarem do. processo leitoral; os jacobinos foram climinados ‘Todos esses grupos tiveram de aprender novas formas de insergio no sistema, mais féceis para alguns, mais dificels para outros. Os intelectuais desistiram da pol tica militante e se concentraram na literatura, acetando postos decoratives na burocracia, especialmente no Ita- maraty de Rio Branco. Os operérios cindiramse em duas vertentes principals, a dos anarquistas, que rejeltava ra- icalmente o sistema que 0s rejeitava, ea dos que pro- ‘curavam integrar-se através dos mecanismos de coopta- go do Estado. Os jacobinos desaparcceram de cena. Quanto ao grosso da populaglo, quase nenhum meio The restava de fazer ouvir sua vor, exceto 0 veteulo limitado da imprensa, No que se refere & representaco municipal, cla fi cava solta, sem ter de prestar contas a um eleitorado auténtico. A conseqiigncia foi que se abriu por este modo ‘0 campo para os arranjos particularistas, para as bar gzanhas pessoais, para o tribofe, para a corrupgio. E. a entio fechousse 0 circulo: a preocupagio em limitar a participagéo, em controlar o mundo da desordem acabou por levar & absorgdo perversa desse mundo na politica. ‘ho Indo de funcionarios publicos, passaram a envolverse nas eleigdes e na politica municipais, por iniciativa dos politicos, os bandos de criminosos e contraventores do estilo de Totonho e Lucrécio Barba de Bode, deseritos por Lima Barreto, os donos das casas de prostituigio € de jogo. Eram estes malandros, no sentido que tinha a palavra na época, os empresirios da politica, os fazedo res de eleigdes, 08 promotores de manifestagées, até ‘mesmo a nivel da politica federal. A ordem aliavase & esordem, com a exclusio da massa, dos cidadios que ficava sem espago politico. O marginal virava cidadio ¢ © cidadio era marginalizado. ® No entanto, havia no Rio de Janeiro um vasto mundo de participacio popular. Sé que este mundo passava ‘a0 largo do mundo oficial da politica. A cidade no era uma comunidade no sentido politico, nao havia © sentimento de pertencer a uma entidade coletiva, A participagio que existia era de natureza antes religio- sa e social e era fragmentada. Podia ser encontrada rnas grandes festas populares, como as da Penha © dda Gloria, e no entrudo; concretizavase em pequenas comunidades étnicas, locais ou mesmo habitacionais; lum pouco mais tarde apareceria nas associagées operd- rias anarquistas, Era a colénia portuguesa, a inglesa: ceram as colénias compostas por imigrantes dos varios es tados; era a Pequena Africa da Satde, formada por ne ‘gros da Bahia, onde, sob a matriarcal protesao de Tia Cita, se gestava o samba carioca e o moderno carnaval. Eram as estalagens cuja populacéo podia chegar a mais ‘de mil pessoas. O cortigo de Botafogo, descrito por Alu slo Azevedo, possufa no final mais de 400 casas e consti- 38 tuia uma pequena repiiblica com vida prépria, eis pré- prias, detentora da inabalével lealdade de seus cidadéos, apesar do autoritarismo do proprietario. Aluiso, als, fa la expressamente na “repablica do cortigo”. Ali se traba lava, se divertia, se festejava, se fornicava e, principal mente, se falava da vida alheiae se brigava. Porém, & me- nor ameaga vinda de fora, todos esqueciam as brigas in- termas e cerravam fileiras contra o inimigo externo. Este inimigo era outro cortigo , principalmente, a polic Frente & policia, dono e moradores se uniam, pois estava em jogo a soberania e a honra da pequena repiblica. Cor- tigo em que entrava policia era cortigo desmoralizado® E profundamente irdnico e significativo que a repablica popular do corto se julgava violada, derrotada, quando i entrava o representante da repibica oficial. No roman- ce, 0 cortigo consegue evitar a entrada da policia, mas na vida real, dois anos apés « publicagao do livro, © cortigo Cabeca de Porco seria destruido em auténtica operacéo militar por ordem do republicano histérico Barata RibeF 10.0 governo da Repaiblica destrufa as republicas sem in- tegré-las numa repablica maior que abrangesse todos os cidadios da cidade. Domesticada politicamente, reduzido seu peso polit co pela consolidagso do sistema oligarquico de domins ‘io, & cidade pode ser dado o papel de cartio-postal da Republica, Entrouse de cheio no espirito francés da belle 4époque, que teve seu auge na primeira década do século. 0 entusiasmo pelas coisas americanas limitarase as for ‘ulas politicas. O brilho republicano expressouse em formulas européias, especialmente parisienses. Mais que nunca, 0 mundo literério voltou-se para Paris, 0s poctas sonhavam viver em Parise, sobretudo, morrer em Paris. Com poucas excesses, como o mulato Lima Barreto © 0 ccaboclo Euclides da Cunha, os literatos se dedicaram a » produzir para 0 sorriso da elite carioca, com as antenas ‘estéticas voltadas para a Europa ‘Quando as finangas da Repiblica foram recuperadas pela politica deflacionista de Campos Sales, sobraram re ‘cursos para as obras hé muito planejadas de saneamento fe embelezamento da cidade. Tudo fi feito com a eficien: cia € rapider permitidas pelo estilo autoritario e tecnocré- tico inaugurado pela Repiiblica, O engenheiro-prefeito pe diu a suspensio do funcionamento da Camara dos Verea dores por seis meses para poder agir livremente e decre- tar a legislacao necessiria para 0 ripido encaminhamen- to das reformas. Um médico sanitarista foi encarregado das medidas de higiene pibliea. Tendo Paris como mode- lo, 0 centro da cidade foi depressa modificado, a avenida Beira-Mar foi aberta, jardins foram criados e reformados, ‘os bondes ganharam tragio elétrica, sem esquecer a cons: trugio do novo porto. Ao visitar a cidade pouco depois, uma poetisa francesa, entusiasmada, escreveria um livro de poemas com o titulo La Ville Mervelleuse. Vindo de ‘uma francesa, era a gléria, e compensava 0 epiteto depre ciativo de rastagileras que em Paris era dado aos bras: Ieiros. ‘As reformas tiveram como um dos efeitos a redusio da promiscuidade social em que vivia a populacio da et dade, especialmente no centro. A populacdo que se com- primia nas éreas afetadas pelo bota-abaixo de Pereira Pas- s0s teve ou de apertar-se mais no que ficou intocado, ou de subir os morros adjacentes, ou de deslocarse para @ Cidade Nova ¢ para os subirbios da Central. Abriuse es- ago para o mundo elegante que anteriormente se limita: ‘va 20s bairros chiques, como Botafogo, e se espremia na rua do Ouvidor. O footing pastou a ser feito nos 33 me tros de largura da avenida Central, quando no se prefe- Fla um passeio de carro pela avenida BeiraMar. No Rio 0 reformado circulava 0 mundo belle-époque fascinado com Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Bra- sil pobre e do Brasil negro, Era 0 mundo do bario do Rio Branco, ministro das Relagies Exteriores do prest dente que promoveu as reformas. O mesmo bario que na juventude tinha sido capoeira e que agora se esforgava fem oferecer & visio do estrangeiro um Brasil branco, ceuropeizado, civilizado. ‘Mas, se 0 novo Rio eriado pela Repablica aumentava 4 segmentagao social e 0 distanciamento espacial entre setores da populacio, as republicas do Rio, vindas do Im- pério, continuaram a viver, a renovarse, « forjar novas realidades sociais eculturais mais ricas e mais brasileiras ue os versos parnasianos e simbolistas. Em certos mo- ‘mentos, elas podiam manifestar-se politicamente e de ‘modo violento, como nas barricadas de Porto Artur. To- davia, na maloria das vezes elas cresciam em movimentos Ientos e subterrdneos. Assim, a festa portuguesa da Penba foi aos poucos sendo tomada por negros e por toda a populacio dos subirbios, fazendose ouvir o samba 20 lado dos fador das modinhas. Na Pequena Africa da Saide, a cultura dos negros musulmanos vindos da Ba- hia, sua musica e sua religii fertlizaramse no novo am- Diente, eriando os ranchos carnavalescas ¢ inventando o ‘samba moderno2 Um pouco depois, o futebol, esporte de elite, foi também apropriado pelos marginalizados e se transformou em esporte de massa. Assim, © mundo subterrineo da cultura popular en: sgoliu aos poucos © mundo sobreterraneo da cultura das elites, Das repablicas renegadas pela Republica foram surgindo os elementos que constituitiam uma primeira identidade coletiva da cidade, materializada nas grandes celebragses do camaval e do futebol. a CAPITULO I REPUBLICA E CIDADANIAS* J ficou registrado que o fim do Império e o inicio 4da Repiblica foi uma época caracterizada por grande mo- vimentagdo de idéias, em geral- importadas da Buropa. Na maioria das vezes, eram idéias mal absorvidas ou ab- sorvidas de modo parcial e seletivo, resultando em gran de confusto ideolégica. Liberalism, positivism, socalis- ‘mo, anarquismo misturavam-se e combinavam-se das ma- neiras mais esdriiulas na boca e na pena das pessoas ‘mais inesperadas. Contudo, seria enganoso descartar as ldeias da época como simples desorientacio. Tudo era, sem divida, um pouco louco. Mas havia légica na loucu- ra, como poderemos verificar no exame do problema da ‘idadania, Vimos também que o perfodo foi marcado, especial- mente no Rio de Janeiro, pelo ripido avango de valores Durgueses. Velhos monarquistas, como Taunay, expressa- ram seu escindalo frente & febre de enriquecimento, 20 dominio absoluto de valores materiais, 4 ansia de acum Jar riquezas a qualquer prego, que tinham dominado a capital da Replica. Mesmo republicanos ardorosos, co- mo Raul Pompéia, no deixaram de estranhar o novo + Verto lgeramente moditends deste cptun fot police em Dados ~ Revista de Cicer Soi, 28) G61, 155, 2 espirito que dominava as pessoas. Segundo Pompéia, lon ge jam os dias do romantismo abolicionista e do danto- nismo da propaganda. “O que hd agora é pio, pio, queij, queijo. Dinheiro € dinheiro.” Todos se ocupam de ne. ‘nocios até a politica ¢ dominada pelas finangas: “A Repablica discute-se consubstanciada no Banco da Re: pblica”! ‘Mas foi mudanca no campo da mentalidade cotetiva No que se refere aos prineiplos ordenadores da ordem social e politica, 0 liberalismo jé havia sido implantado ppelo regime imperial em quase toda a sua extensio. A liberara a propriedade rural na ‘medida em que regulara sew registro promovera sua \enda como mecanismo de levantamento de recursos pa ra a Importagio de mio-deobra. A Lal de-Sociedades ‘Anonimas de 1882 Wberara’-o-capital, eliminando restr es & incorporacio de empresas. A aboligio da escravi dao liberara 0 trabalho. A lberdade de manifestagio de pensamento, de reunigo, de profissio, a garantia da pro- priedade, tudo isso era parte da Constituicéo de 1824. No que se refere aos direitos civis, pouco fol acrescentado pela Constituigho de 1891. 0 mesmo se pode dizer dos direitos politicos. AS-inovagbes-republicanas-referentep: franquia eleitoral resumiram-se em climinar @ exigéncia de renda, mantendo a de alfabetizacio. 0 espitito das mudaneas eleitorais republicanas era © mesmo de 1881, quando foi introduzida a elelgio dire- ta, AU esta altima data, © processo indireto permitia razoével nivel de participaczo no processo eleitoral, em tomo de 10% da populagio total. A eleigdo direta reduiu este numero para menos de 1%. Com a Repablica houve aumento pouco significativo para 2% da populaglo (cle ‘io presidencial de 1894)? Percebera-se que, no caso bra- a sileiro, a exigéncia de alfabetizaczo, introduzida em 1881 cera barreira suficiente para impedir a expansio do ele torado. O Congresso Liberal de maio de 1889 ja o dissera abertamente ao aceitar como indicador de renda legal 0 saber ler e eserever. O liberal Rui Barbosa, um dos reds tores do projeto da Constituigio de 1891, fora um dos principals propugnadores da reforma de 1881 Por tris desta concepelo restritiva da participagio estava o postulado de uma distinginitida entre sacie: dade civil e-sociedade politica: © ponto ja fora exposto ‘com clareza por Pimenta Bueno em sua andlise da Cons tituisdo de 1824. Pimenta Bueno buscou na Constituicio francesa de 1791 a distingio, aliés incluida na prépria Constituigio brasileira, entre éidadios ativos'e cidadios Inativos ou cidadios simples. Os primeiros possuem, além dos direitos civs, os direitos politicos. Os ihimos 6 pos- ‘suem 0s direitos civis da cidadania, S6 os primeiros si cidadios plenos, possuidores do jus civitatis do diceito romano, © direito politico, nesta conceps3o, no € um direito natural: & concedido pela sociedade aqueles que la julga merecedores dele, © voto, antes de ser direto, 6 uma fngdo social, é um dever. Era esta, aliés, a pos: ‘do de John Stuart Mil, talvez o autor que maior influén cia teve sobre os proponentes da reforma de 1881. Como se sabe, Mill era também contra 0 voto do analfabeto. Exigia como condicéo para o exercicio do voto até mes- mo a capacidade de fazer as operacies bisicas da ait mética? Sendo fungio social antes que direito, © voto era concedido aqueles a quem a sociedade julgava poder con- fiar sua preservagi0. No Império como na Republica, foram excluidos os pobres (seja pela renda, seja pela exigencia da alfabetizacdo), os mendigos, as mulheres, os ‘menores de idade, as pragas de pré, os membros de or- “ dens religiosas. Ficava fora da sociedade politica a grande maioria da populacio, A-exclusto- dos analfabetos pela Constituicio republicana éra particularmente diserimina. ‘ria, pois ao mesmo tempo se retirava a obrigagio do governo de fornecer instrugio primitia, que constava do texto imperial. Exigiase para a cidadania politica uma qualidade que s6 0 direlto social da educagio poderia fornecer e, simultaneamente, desconhecia-se este direito, Era uma ordem liberal, mas profundamente antidemo- critica e resistente a esforgos de democratizagio. [A Constituigdo de 1891 também retirou um disposi tivo da anterior que se referia & obrigagio do Estado de ‘Promover" 05 socorros puiblicos, em outra indicacéo de enrijecimento da ortodoxia liberal em detrimento dos di- reitos sociais. © Cédigo Criminal de 1890 teve a mesma inspiragio. Tentou proibir as greves e coligagdes opers: ras, em descompasso com as correyies que j4 se faziam ‘na Europa interpretagso rigida do principio da liber dade de contrato de trabalho, Foi a ameaga de greve por parte de alguns setores do operariado do Rio que forcou © governo a reformar logo ot artigos que continham 2 disposigao antiopersria (205 206). ‘A Republica, ou os vitoriosos da Republica, fizeram ‘muito pouco em termos de expansio de direitos civis € politicos. 0 que foi feito jé era demanda do liberalismo Imperial. Podese dizer que houve até retrocesso no que se refere a direitos socials. Algumas mudancas, como a liminagio do Poder Moderador, do Senado vitalicio € do Conselho de Estado e a introdugio do federalismo, tinham sem divida inspiragdo demoeratizante na medida fem que buscavam desconcentrar 0 exercicio do_ poder. “Mas, nio vindo acompanhadas por expansto significativa da cidadania politica, resultaram em entregar o governo mais diretamente nas mos dos setores dominantes, tanto “6 rurais quanto urbanos. 0 Tmpério tornarase um empeci Iho a0 dinamismo destes setores, sobretudo 0s de Séo Paulo. © Estado republicano passou a nio impedir a ‘atuagdo das foreas sociais, ou, antes, a favorecer as mais ‘fortes, no melhor estilo spenceriano. Fora, aliés, Spencer um dos inspiradores de Alberto Sales, o mais respeitado ‘deotogo da Repiblica* Mas a propaganda republicana prometera mais do ‘que isso. O entusiasmo e as expectativas despertadas em certas camadas da populagio pelo advento do novo regi me provinham de promessas democratizantes feitas not ‘com(cios, nas conferéncias publicas, na imprensa radical. Quem methor caracterizou este lado da campanha foi Silva Jardim, ao lado de seu antigo mestre Lu's Gama e de Lopes Trovio. Silva Jardim © Lopes TTrovao, particu- larmente, eram grandes agitadores populares. Trovio fora tum dos principals instigadores da Revolta do Vintém de 1880, que trouxe de volta o povo do Rio ao primeiro pla: no da politica apés auséncia de muitos anos. Silva Jar foi protagonista de varias demonstragées republicanas, algumas terminadas em tiroteio, como a de dezembro de 1888. Qual a inspiragio de Silva Jardim? Era basicamente a retOrica da Revolugio Francesa Contra os chefes evo- lucionistas do Partido Republicano, queria a transforma- ‘fo feita revolucionariamente nas ruas com apoio ¢ part cipagio do povo. Porém munca expés ‘sistematicamente suas idéias sobre como seria a participacéo popular no ‘novo regime. Falava apenas na necessidade inicial de uma ditadura republicans, que Ihe poderia ter sido inspirada tanto por Robespierre quanto pelo positivismo, a ser depois legitimada por sufrigio universal* © radicalismo de Silva Jardim incomodava o groseo do partido e levou-o 20 rompimento com a diregéo part daria. Foidhe até ocultada a data da revolta e ele dela “6 participou por acaso. Mas o fez dentro de sua especiali- dade: Benjamin Constant, temeroso de que falhasse © ‘golpe, pedira a Anibal Faledo, amigo de Silva Jardim, que agitasse 0 povo. Nisso apareceu Silva Jardim, que de bom ‘grado cumpriu a tarefa, iderando o coro da Marselhesa pelas ruas. Todavia, logo apés a proclamacio, fol siste- ‘maticamente boicotado. Nas eleigGes de 1890 para a Cons: tituinte, nfo conseguiu eleger-se no Rio de Janeiro, princi pal palco de sua atuaséo. Desiludido, como outros radi cals, com a Repiblica, que nto era a de seus sonhos, foi para a Europa, onde morreu em 1891, caindo no Vestivi, ‘Mais pela simbologia da agSo do que pelas idéias, Silva Jardim introduzira uma concepedo de cidadania que se aproximava do modelo rousseauniano: a visso do povo como entidade abstrata © homogénea, falando com uma 6 vor, defendendo os mesmos interesses comuns. Apesar de ser também contratual, esta concepcdo difere do com tratualismo lockeano, pois sua inspiragdo platénica sa- lienta antes os aspectos comunitirios de integragio de todos na vontade geral da soberania. O todo & mais do que a soma dos individuos que o formam, podendo por Isso ditar o que seja a verdadeira vontade destes. A idéia de ditadura republicana adequava-se bem a esta concep- ‘80, Segundo ela, o ditador era a encamasio da vontade coletiva e o instrumento de sua agio, sem que fosse ne- cesséria eleigdo formal, bastando a sancio implicita, co- ‘mo expressamente admitia 0 manifesto do Partido Re: publicano de Pernambuco de 1888, com a concordancia de Silva Jardim, Outros temas dos republicanos radicais que reforcavam a idéia comunitéria eram os da patria e fraternidade, ambos também inspirados na Revolusio Francesa. O tema de pétria, em especial, éfreqiiente em Silva Jardim, destoando do discurso dos republicanos conservadores que insistiam antes na federacio. Estes a ‘dkimos, ao falarem de patria, referiam-se a suas provin cias, como foi o caso de Alberto Sales, que pregou aber- tamente o separatismo paulista em livro a que deu o su- gestivo titulo A Patria Paulista escrito em 1887. Silva Jar: ddim achava um erro a separagio, apesar de compartilhar ‘com os positivistas a idéia de que a tendéncia de todas as sociedades era formar pequenas pstrias* As raz6es da adogio desta visto integradora, com nitéria, orginica das relagées dos cidadios com a socie- ‘dade politica poderiam ter sido de natureza apenas tatica. (0 movimento republicano era constituido de uma frente ampla de interesses, que abrangia excravocratas e aboli- cionistas, militares e civis, fazendeiros, estudantes, pro- fissionais liberais, pequenos comerciantes. A idéia de po- vo, de pétria tinha o mérito de unir a todos, evitando em- Daragos. Mas o importante aqui ¢ apontar sua existéncia 0 fato de ter sido dil na instrumentalizagio da atuagio politica de certos setores que lutavam por uma ampliaglo a cidadania. Veremos como tal visto se relacionava com ‘outras, particularmente com o positivismo. ‘Além dos propagandistas civis, conservadores e radi- «ais, outro grupo que se salientou na propaganda do novo regime foi o dos militares. Desde a metade do século, segundo 0 estudo de Schultz, havia entre os oficiais do Exéreito insatisfacko quanto a0 que consideravam limi- tages de seus direitos de cidadania. Mas foi certamente nna ultima década da Monarquia que a insatisfacto se tomou mais ruidosa e se expressou através da idéia do soldadocidadio. Havia neste movimento varias inspire: ses, algumas de natureza ideolégica, outras organizacio. nais, outras poitieas, que no é necessério explorar aqui? Basta dizer que a inspiragio ideoldgica mais forte foi 0 positivismo transmitido aos jovens oficials por Benjamin Constant. A visdo profundamente antimilitarista de Com- “a te levava os militares a se sentirem pouco a vontade den- ‘ro dos uniformes e a procurar eliminar a0 méximo @ distancia que os separava do mundo civil através da rei vindieagio da condigio de plenos cidadios, cidadios ati- vos na terminologia de Pimenta Bueno. Na pritica, as reivindicagdes centravam-se no dircito de reunigo ¢ de livre manifestagdo da opinigo politica. Howe mesmo um cesforgo eleitoral no sentido de levar a0 Congresso candi datos militares. No fundo, © que se queria era maior ‘peso nas decisdes politicas para a corporagdo militar. A relagio entre cidadio e soldado foi e continua sen- do complicada. Na luta contra o absolutismo, um ponto importante era tirar da nobreza © monopélio das armas, cera dar a0 cidadio o direito de armar-se para a defesa de seus interesses. A Constituigio americana incorporou em seu texto este direito como garantia do cidadio contra © Estado. A Franca revolucionéria, além de abrir o Exér- cito, isto é, 0 corpo de oficias, & burguesia, eriou também a Guarda Nacional, 0 que equivalia a entregar as armas os cidadtos, a criar 0 cidadio-soldado, A Guarda Nacio- nal brasileira de 1831 inspirouse no modelo francés © fem patte cumpriu a missio de colocar nas mBos dos ci- dadéos de posses a tarefa de manter a ordem. A milicia cidada, como era chamada, constitula sem divida um instrumento liberal e, pelo menos em sua concepcio ori inal, democratizante 0 problema do Exéreito no final do Império era o oposto: tratavase de eriar nao 0 cida ‘io-soldado mas o soldadocidadio. Eram os benefici ios do monopélio de portar armas, componentes da bu- rocracia estatal, que desejavam para si a plenitude dos direitos de cidadania, Para isso nfo s6 no renunciavam ‘ condigio de integrantes do Estado, como se utilizavam da forga que esta condigdo Thes dava. Lutavam de dentro para fora, nfo eram parte de um movimento da socieda *

You might also like