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CAPITULO a1 INVESTIGAGKO PRELIMINAR 21.1 Conceito de investigacao preliminar A expresso investigacao preliminar é redundante. Se o processo penal nao deve ser lugar destinado a procedimen- tos unilaterais, investigativo: da een deve ser anterior ao processo e, po} De todo modo, tra’ Investigacao prelimin: de infragao penal, com 0 propésit formacao e de conferir autoria er oferecimento de acao penal. A luz da teoria do dire! ser compreendida: : (1) ato: o fato bri hes inpernedntlg, mentos de informagao, constitui lidade, podendo ser explicado cot tatacdo de uma busca, needa of ee 7 @ submissio da investigagho a disposigées jurfdicas contidas no direito positivo representa fato normado, depreendido do pensamento de quem aplica a regulacgao da disciplina, inserindo normas jurfdicas no sistema. Esse triplice retrato pode ser depreendido do que leciona José Antonio Paganella Boschi, ao dizer, com énfase na nog4o de procedimento, que “o inquérito nasce com a investigac4o e se desenvolve com ela e todas as providéncias precisam ser registradas, documentadas, formalizadas, instantaneamente nos ‘autos’ do inquérito”, com o intuito de que se possa, ao seu exame, “reconstruir todos os passos percorridos”™". Tomada a investigacdo criminal pelo seu aspecto tem- poral de ato (fato), Fauzi Hassan Choukr anota que ela “é o momento da persecucao penal anterior”, dentro da qual “sao produzidos elementos informativos ou provas tendentes a em- basar a convicgao do titular da acao penal para que atue em Juizo (promova a acusacao) ou perante 0 Juizo (com o arqui- vamento)”. O autor também agrega normatividade ao con- ceito de investigacao preliminar, quando explica que ela “esta submetida a um regime de legalidade estrita e somente pode ser desencadeada diante da existéncia de um fundamento ra- zoavel”, que diga respeito ao cometimento de “conduta penal- mente relevante, que ja foi denominada por ‘tipicidade apa- rente’ desenvolvendo-se em momento anterior A formulacao da acusacdo que da origem ao processo de conhecimento”™. Investigacao preliminar é género de uma série de es- pécies, quase sempre sem forma procedimental definida na legislagao: (1) inquérito policial (arts. 4° ao 23, CPP); (2) inquérito policial militar (arts. 9° ao 28, CPPM); 681, BOSCHI, José Antonio Paganella, Agdo penal: as fases administrativa € judicial da persecugao penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p.24 682. CHOUKR, Fauzi Hassan, Inieiagdo ao processo penal. Flo Pabeinotaes (ek 96.4 ¥,C0% w procedimento investigativo do Conselho de Contro- le de Atividades Financeiras ~ COAF (art. 14, Lei n® 9.613/1998). Orol de investigagées é exemplificativo, o que tem dificul- tado o controle. Nada obstante, o cen4rio indica a necessidade de uma codificagdo especifica. Poderia ser estendida a previsio de intervencao do investigado contida, restritamente, no art. 14-A, do CPR com contraditério, malgrado mitigado por nao se assimilar, perfeitamente, a natureza do inquérito a de processo. Nos termos desse dispositivo, quando a investigagao crimi- nal envolver o uso de forca letal atribufda a profissional de segu- ranga ptiblica, 0 funcionério ptiblico, indiciado e citado, poder constituir defensor (advogado). Caso nao 0 faca, a autoridade de- verd intimar a instituicdo A qual estiver vinculado o servidor. A escolha ou designagao do responsavel pela defesa do investigado deve obedecer a ordem legal (art. 14-A, §§ 1° ao 6°, CPP): (1) primeiramente, advogado constituido pelo funciondrio; (2) ausente essa possibilidade, a defesa deve caber a De- fensoria Ptiblica, comunicada por intermédio da ins- titui¢do do funcionario; (3) nao disponivel Defensor Publico, a instituigao deve- rd indicar profissional de advocacia. A previsao legal poderia contemplar os demais investigados, € nao somente os profissionais de seguranca publica com atua- co letal, a fim de se atender o principio isonémico.Lembrando adverténcia de José Boanerges Meira, “o que nao se olvida é que, sem 0 contradit6rio, o devido processo legal inexiste, Nao se pode imaginar a validade de qualquer fase procedimental se ausente tal garantia”. Na a cone aaa do autor, “inclui-se a 21.2 Investigagées nao estatais e controles digitais Parte-se do pressuposto de que investigar ¢ buscar, pes- quisar. O sentido do termo é unilateral, inquisitério. A génese de um inquérito é autoritaria. De outro lado, processo deve ter, em sua esséncia, 0 contraditério, com bilateralidade. Nesse contexto, se a investigacao tradicional (estatal) j4 mereceria melhor controle, com legislago especifica, que di- zer da possibilidade de coleta de dados e de padrées comporta- mentais por intermédio das redes mundiais de computadores? Novos modos de fiscalizacéo tém surgido, a exemplo dos que decorrem da ampliagdo da realidade pelo digito. A vida digital possibilitou: (1) de um lado, a ampliagao do controle de um ntimero indeterminado de pessoas, a exemplo da identifica- cao de semelhanca facial no tempo e a criagao de sof- twares que permitem sugerir probabilidades; (2) de outro, a caréncia de controle sobre a atividade estatal ou de agéncias particulares que, pelo acesso aos dados digitais, logram armazenar dados pessoais que somente poderiam ser acessados com respeito a clausula de reserva jurisdicional (art. 5°, XI, CF). Importante passo foi dado na regulamentagao orde- nada do espago digital, como Ambito de protegao de dados e a outros direitos humanos fundamentais. Embora tenha remetido o dever de introduzir nor- mas juridicas ao legislador infraconstitucional, 0 in- ciso LXXIX, do art. 5°, da Constituigdo, introduzido pela Emenda Constitucional n° 115/2022, preconiza ser “assegurado, nos termos da lei, 0 direito & prote- cao dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. — 683. MEIRA. José Boanerges Meira. Inquérito Policial. Belo Horiong, culdade de Ciéneias Humanas; Mandamentos, 2009, p.33. co delitivo em relac&o a lugar, a pessoa, com base na observag4o realizada por sistemas via satélite, como o GPS — Global Positio- ‘ning System -, tém o papel de atalhos para imputar a pratica de um crime a alguém, as vezes até antes do infcio do iter criminis. 21.3 Policia, investigacAo defensiva e policiamento preditivo policiamento preditivo é inconstitucional por ampliar o al- cance do poder punitivo sem adequagao as fontes jurigenas esta- tais. Nao ha direito positivo sobre 0 tema, nem muito menos ade- quacdo do assunto & Lei Maior. A policia investigativa deve ser exercida ao lado da policia judiciaria, dentro dos lindes dos di- reitos constitucionais e de forma retrospectiva (art. 144, § 4°, CF). Deve ser considerada inadmissivel a apuragao das infragdes penais por particulares ou players, notadamente no ambito digi- tal. O art. 5°, inciso LXXIX, alids, realga que “é assegurado, nos termos da lei, 0 direito a protecao dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. Controles prospectivos, para o futuro, como algoritmos de precaucao, fora do Ambito sufragado constitucio- nalmente para a policia ostensiva (policia administrativa), sao formas, igualmente, incompativeis com a ordem juridica. Explicando a preditividade criminoldgica, Geraldo Pra- do pontifica que “o policiamento preditivo avanga sobre as técnicas de investigacéo nao apenas em fungao da possibilida- de de aplicacao da inteligéncia artificial”. Vai mais além, como instrumento de controle massificado de pessoas, admitindo, na pratica, por exemplo, “que a feicdo preventiva tradicional das cautelares processuais penais possa ser modificada para dar lugar ao modelo de preventividade do cometimento de de- litos, confundindo téenicas e objetivos a ponto de levar 0 pro- cesso penal A encruzilhada entre método de hipervigilaneia e técnica de garantia da liberdade”.* 684, PRADO, Geraldo. Notas sobre protegdo de dados, prova digital ¢ 0 devido ‘cesso penal, Conjur, Disponivel bit aa Acesso ame (2 eis que se cuida de procedimento que, defensiva, conquanto nfo sufragado em lei, tem teleologia conducente & ampliag&o das chances de absolvigéo. Como pondera Alexan- dre Morais da Rosa, “no campo das investigagées, com alto po- der tecnolégico, bem assim de casos de alta complexidade, a an- tecipagao defensiva constit A investigagao defensiva se funda na presungao de ino- céncia. O valor da investigacéo defensiva deve ser restrito a defesa do imputado, sem que possa ser usada reversamente para, por exemplo, atribuir culpa ao agente estatal que possa estar incurso em crime de abuso de autoridade (art. 9°, et seq, Lei n° 13.869/2019). 21.4 Caracteristicas do inquérito policial A identificagao de caracteristicas permite melhor definir o instituto. No entanto, apesar da auséncia de nota conceitual em lei, alguns aspectos alvitrados viabilizam ampliacdo do ar- bitrio nas investigacées preliminares em geral e, no particu- lar, nos inquéritos polici Caracteristica é o trago fundante, elemento distintivo ou propriedade peculiar de um objeto do conhecimento. Somen- te deveria ser designada como caracteristica 0 que fosse ne- cessario e suficiente A definigao do inquérito policial. Afirma- se, no entanto, ser ele: (1) regido pelo sigilo: a publicidade do art. 93, IX, da CE, nao deve se aplicar a ele ou a qualquer investigagao preliminar, O sigilo é garantia do imputado contra exposicao de sua imagem e de sua identidade. A pu- blicidade é direito do imputado contra perseeugao ~ penal secreta; 685. ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme @ 08, 6, ed. Florianopolis: EMais, 2020. p.360-361, 2 sede do inquérito policial, ao lado da érbita material registrada em papel. Trata-se de ampliagdo de realida- de (virtual) que depende de melhor regulamentag4o , diante da dicgao do inciso LXXIX, do art. 5°, da Consti- tuigdo, que assegura, “nos termos da lei, o direito 4 pro- tegao dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais’ (3) caracterizado pela discricionariedade: essa 6 uma das marcas mais questiondveis do inquérito policial ou de qualquer outro procedimento do sistema de investigacao preliminar. Nao ha, na legislagdo, pre- visao de critérios de oportunidade e conveniéncia, para instaurac ao de qualquer investigacao. Se per- mitido tamanho poder, ele esbarraria no dever, da autoridade policial, de agir jungida a lei. O adminis- trador — inserido, neste conceito, o delegado de poli- cia — somente deve fazer o que a lei autoriza, na licao de Hely Lopes Meirelles. Entrementes, tem sido dito que apenas alguns atos sao regidos pela legalidade estrita, a exemplo das providéncias necessérias a: (a) isolar o local do delito (art. 6°, I, CPP); (b) determinar 0 exame de corpo de delito, inclusive assegurando a cadeia de custédia do vestigio (arts. 6°, VII; 158-B, CPP). (4) regrado pela dispensabilidade: trata-se de um dos problemas centrais da investigagao preliminar, Dizer que o inquérito policial é dispensavel é liberar, sem rédeas, toda forma de procedimento investigativo, — 686, MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrative brasileira. 25. Malheiros, 2000, p.82-83, 6 quer pegas de informagio que contenham autoria e materialidade da infragéo penal, Cuida-se de mais uma caracteristica sem estrita previsdo legal e que conflita com o fito democratico de contornar o poder punitivo estatal. dotado de oficialidade: 0 inquérito 6 conduzido por autoridade estatal, oficial, investida em cargo pabli- co. Mesmo a investigagao criminal diversa, como a de- sempenhada pelo detetive profissional, necessita de respeito a legislacao para o seu exercicio regular (Lei n° 13.432/2017). Nao ha previsao legal para investiga- go defensiva, embora o imputado esteja amparado para aparelhar sua defesa de maneira mais ampla, dentro dos lindes do prinefpio da proporcionalidade; disciplinado pela indisponibilidade: deve haver controle para o encerramento da investigacdo pre- liminar. O direito positivo profbe que o delegado de policia arquive autos do inquérito policial (art. 17, CPP). O procedimento de seu arquivamento é des- crito, meticulosamente, no art. 28, do CPR e art. 28,57 §§ 1° e 2°, do mesmo Codigo, com redagao da Lei n° 13.964/2019. E indispensavel, de todo modo, a inicia- tiva do titular da agdo penal. O raciocinio é idéntico para qualquer tipo de providéncia conduzida por au- toridade policial, a exemplo da verificagao prelimi- nar de inquérito ou de procedéncia de informagées (VPI’s). Afranio Silva Jardim e Pierre Souto Maior avivam que da mesma forma que se impée a figura do promotor legal (com atribuig’o), “para o ofereci- mento da denuncia, também se 0 exige para o reque= rimento de arquivamento, que pressupo impossi- bilidade de exercitar a agao penal”. Tocam no pento 687. Dispositivo com eficdeia suspensa, consoante decisio monoeratica (STP 6298/DF 5 ‘Medida Cautelar ~ Rel, Min. Luiz Fux ~ 22 jan, 2020), 0 central, quando PIT GE a rtecigns (nto eoepetaclst seer cidir pelo arquivamento, a qual ficaria subtrafda se o Procurador-Geral pudesse arquivar o inquérito ou pegas de informagao interna corporis, de oficio”. normado pela obrigatoriedade ou oficiosidade: cien- te de uma infragéo penal de ago penal ptiblica incon- dicionada (notfcia do fato ou notitia criminis de cog- nicao imediata), o delegado de polfcia deve instaurar o inquérito policial, independentemente de provoca- cao (ex officio, por portaria ~ art. 5°, I, CPP). Também deve exercer seu mister se for instado a investigar: (a) por delagao de qualquer do povo, diante de crime de ago de iniciativa publica incondicionada, quan- do podera instaurar verificagao de procedéncia de informagées — VPI’s (art. 5°, § 3°, CPP). No direito lusitano, Manuel Valente menciona caso similar de noticia do crime, por meio de comunicagao feita pelo cidadao que, a sua vez, pode ser titular ou nao titular do direito atingido;*” (b) por delacdo apécrifa (noticia anénima, que deve ser objeto de acautelamento prévio para a aferi- cao da verdade, denominada de delatio criminis inqualificada); (c) por qualquer interessado nos delitos de agao pe- nal publica condicionada ou de ag’o penal privada (noticia-crime de cognigaéo mediata postulatéria, por requisicao do Parquet, por representagao ou por re- querimento do ofendido ou de quem tiver a qualida- de para representa-lo — art. 5°, II, § 1°, CPP), Nessas 688. JARDIM, Alrdnio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito processual penal: estudos, pareceres ¢ erdnieas, Salvador: Juspodivm, 2018, P8025 | 689. VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Teoria geral do dine Coimbra: Almedina, 2017, p.398-259, gis policial néo guarda consonAncia com a Constituigéo, bem como nfo se coaduna com a estrutura acusaté- ria a indicag&o de suposto delito ao Ministério Pabli- co (art. 40, CPP); permeado pela autoritariedade ou imperatividade: as deliberagées do delegado de policia, no contorno de suas atribuigées, sio aptas A produgao de efeitos. Por exemplo: as comunicagées e chamados a testemu- nhas a serem ouvidas em um inquérito policial nao se submetem & clausula de reserva jurisdicional. No en- tanto, havendo interse¢do com direitos inseridos nes- sa esfera, o juiz deve ser comunicado ou a ele pedida a providéncia, para que exerca a competéncia de sal- vaguarda de garantias individuais (art. 3°-B,™ CPP). As consequéncias que decorrem da atipicidade procedi- mental no curso de investigacao preliminar sao, todavia, em regra, de espectro menor. A natureza juridica da investigacao preliminar e, notadamente, a definicdo do inquérito policial a partir de suas caracteristicas delineadas doutrinariamente sao os pilares que determinam uma limitagéo maior de efeitos juridicos diante de vicio. No entanto, o fato de ser o inquérito policial uma etapa da persecucéo penal menos ofensiva ao status dignitatis do investigado nao deve significar auséncia no sistema juridico de tutela invalidadora sobre irritualidades prejudiciais aos di- reitos individuais da pessoa indiciada. Certo que as caracteristicas da discricionariedade e da dispensabilidade do inquérito policial tornam tal instrumen- to refratario a declaragao de nulidades e de contaminagao do processo penal correlato. Porém, a limitagao de consequéncia Disponitivo com efiedcia suspensa, consoante decisio monoeraitica (S ‘ato viciado Frveatguiie peekaiar Sale 0000 IMIR ONIS cta Sata So que, propriaacis, da ecole G6 tutela acerca de ilicitudes que ferem direitos fundamentais. 21.5 Atribuicdo para conducaéo do inquérito policial A regra atributiva de poder de instauragdo do inquérito policial é deferida ao delegado de policia. O controle de nu- lidade nesse campo é pouco visivel, apesar da relevancia da questao. Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhaes Gomes Filho e Antonio Scarance Fernandes ponderam que a falta de atribuigdo da autoridade policial nao se insere no art. 564, in- ciso I, do CPR™ Realmente, as nulidades arroladas no Cédigo de 1941 sao atinentes ao processo-crime. Nao ha referéncia a inquérito policial, salvo quanto aos elementos que j4 implicavam, an- tes da Constituicado de 1988, a instauragao da acao penal, por meio do processo judicialiforme. 21.6 Investidura e controle da atribuigao investigativa A investidura do funcionério publico com atribuicao para condugéo da investigacdo preliminar oficial € classificada como elemento estrutural ao reconhecimento do instrumento de persecucao penal pelo sistema. Se ausente ou viciado, des- sa constatacao deve decorrer nulidade. Dentre os exemplos possiveis, haverd nulidade-fato com a instauragéo e conducao de inquérito policial por pessoa di- versa do delegado de policia. Tanto o inquérito policial presi- dido por particular ou delegado de policia aposentado, como o inquérito policial dirigido por membro do Ministério Puiblico nao chegam a ser revestidos de juridicidade. aplicdvel aos supostos processuais, a investidura do delegado de policia 6 é elemento estrutural para que se tenha, juridicamente, a ins- taurag&o de inquérito policial. De tal modo, 0 vicio desse porte deve ser classificado como inexisténcia juridica. N&o hi, a rigor, inquérito policial nesses casos. No entanto, fato é que o poder de investigar infragées penais nao é exclusivo da polfcia. O art. 4° do CPP tem redac4o antiga que permite abertura demasiada, tornando indeterminada, em alguma medida, a forma de definicao da atribuigao investigativa. Consoante dispée aquela redacao, “a polfcia judicidria sera exercida pelas autoridades policiais no territério de suas res- pectivas circunscricées e tera por fim a apuragao das infracdes penais e da sua autoria”. O parégrafo tinico, do citado disposi- tivo, prevé, com pouca técnica legislativa, que “a competéncia definida neste artigo nao excluira a de autoridades administra- tivas, a quem por lei seja cometida a mesma func4o”. A seu turno, a Lei n° 12.830/2013, que veio a lume com o antincio de dispor sobre a investigagao criminal conduzida pelo delegado de policia, introduziu poucos dispositivos nesse sentido, nao agregando regulamenta¢ao procedimental, nem defini¢ao de atribuigées, ressalvada a melhor disciplina do indiciamento. Diante desse quadro de indefinicao, o reconhecimento do vicio de atribuigao legal se choca com dificuldades de limita- cao de efeitos juridicos de elementos de informacao coligidos indevidamente. No entanto, o desvio de finalidade torna in- compativel, logicamente, a manutengao do produto investiga~ tivo viciado, por violar, por exemplo, o principio do terceiro excluido, eis que afeta a integridade dos elementos de infor- macao, por resvalar em composigao normativa hibrida nao autorizada pelo ordenamento juridico. Vale dizer, a prova colhida com vicio de fonte (a exemplo da pericia requisitada por autoridade policial sem atribuigao | legal ~ art 2°, Lei n® 13,830/2013) mitiga sua fiabilidac ofusca a cadeia de custédia da prova (art, 158-A, CPP (1) decorre da auséncia de elemento estrutural (regra de atribuigaéo); (2) néo carece de impugnagao ou instrumento especifi- co (nao se sujeita A preclusio). Conquanto pegas de informacéo possam, subsidiaria- mente, servir para lastrear aco penal, por esta se bastar com suporte probatério minimo, o fato é que a ilegalidade na con- dugao do inquérito policial nao deve ser tolerada pelo sistema. Daf que o juiz pode declarar a atipicidade estrutural de investigagaéo preliminar conduzida por sujeito ndo oficial quando, por exemple, tiver sido intitulada de inquérito po- licial. O érgao judicial, caso assim delibere, produzira norma declaratéria de atipicidade. Nao ha necessidade de provocagao para que o juiz decida questao que requeira tutela de garantia fundamental do inves- tigado, ainda que na fase do inquérito policial, ante o dever do Judiciario de fazer cessar constrangimento que afete indevida- mente o circulo humano central do acusado. Alias, esta expres- samente colorido, no direito positivo, o papel do juiz das garan- tias de salvaguardar direitos individuais (art. 3°-A," CPP). 21.7 Nulidade no inquérito policial Tal como no processo penal, durante o inquérito policial podem ser praticados atos procedimentais sem respaldo ju- ridico. As demais formas de persecugao penal fora do juizo ciocinio. A relagao entre nor » do ato reconhecido como ual tem estrutura similar as pode ser aplicado 0 mesmo r: mas de ilicitude e de invalide defeituoso na fase pré-proce 692. Dispositivo com eficdcia suspensa, consoante de 6298/DF - Medida Cautelar - Rel. Min. Luiz Fux = : ma x penal inseridas no sistema de nulidades processuais penais. Doutrinéria e jurisprudencialmente, contudo, prevalece 0 entendimento de que nao h4 nulidade no inquérito policial, bem como que os vicios deste instrumento de investigacdo preliminar ndo s4o capazes de macular o processo penal. 21.8 Inafastabilidade da jurisdicao no controle das investigacées O sistema de preclusées no seria aplicdvel para imunizar a investigagao contra exame de sua higidez legal, agregando a esse argumento 0 contetido do principio da inafastabilidade da jurisdicao (art. 5°, XXXV, CF). A regularidade da investigacdo preliminar cristaliza imperativo de tutela dos interesses do im- putado, razo pela qual o juiz deve conduzir o processo de forma aaferir se, no seu curso, nao houye cometimento de nulidade. Consoante leciona Aury Lopes e Ricardo Gloeckner, sen- do constatada a atipicidade, 0 ato viciado do inquérito “devera ser repetido e excluida a respectiva peca que o materializa, sob pena de contaminacdo dos atos que dele derivem”. Nao sendo o ato inquisitorial repetido, “ainda que por impossibilidade, sua valoracao na sentenga ensejara a nulidade do processo”. A nulidade deve recair sobre o ato que valorou o elemen- to que deveria ter sido inadmitido na origem. 21.9 Arquivamento por ilicitude do inquérito policial (trancamento) Malgrado reconhecendo que o sistema de nulidades dis- ciplinado no CPP nao foi concebido para o reconhecimento de nulidades no inquérito policial, fato é que é possivel, uma vez presentes a situacao de fato ilicito, construir: 693, LOPES JR, Aury; GLOECKNER, Ri no processo penal, 5. ed. Sio Paulo: S investigativo, cuja zes, é reconhecida como ilegal e corno ameaga inde- vida ao direito de liberdade; e norma consequente de desfazimento dos efeitos, de saneamento ou de declaragao de convalidagao do ato procedimental ou do préprio procedimento adminis- trativo de investigagao. Alias, é nesses casos que se costuma usar a express4o trancar o inquérito policial que, impropriamente, visa a retra- tar o encerramento precoce da investigagdo preliminar, com seu arquivamento, em virtude do reconhecimento de caracte- rizagao de constrangimento ilegal. A rigor, a expressao corre- ta é arquivar. Nas palavras de Afranio Silva Jardim, “o prin- cipal efeito do arquivamento € o de cessar as investigacdes”, ainda que rebus sic stantibus.® Todavia, oart.3°-B, do CPR inserido pela Lein® 13.964/2019, estatui, em seu inciso IX, ser competéncia do juiz das garan- tias ordenar “o trancamento do inquérito policial quando nao houver fundamento razoavel para sua instauracdo ou prosse- guimento”. A previsdo deve observar a regra de competéncia do 6rgao judicial: (1) se a autoridade responsdvel pelo inquérito policial for, isoladamente, o delegado de policia, a determi- nagao caberd ao juiz de primeiro grau; (2) seo Ministério Publico tiver anufdo com prorrogacao do inquérito policial, ele seré a autoridade responsa- vel e, por conseguinte, ao tribunal cabera ordenar o seu arquivamento (trancamento). 694. JARDIM, Alrinio Silva. Arquivamento e desarquivamento do inquérite poli- ial, Ln: Temas atuais de direito, Associagao do Ministério Publico do Rio de janeiro (org,). Rio de janeiro: Liber Juris, 1986, p.2, 695, Dispositivo com eficdcia suspensa, consoante decisio mon 6208/DF » Medida Cautelar - Rel. Min. Luiz Fux ~ 0 Tp ps 7 iat As ilegalidades da investigagao preliminar n4o devem fi- car imunes A apreciagéo do Poder Judici4rio. Até porque, nos termos do inciso XXXvV, do art. 5°, da CE, “a lei nao excluir4 da apreciagao do Poder Judiciério lesio ou ameaga a direito” (prinefpio da inafastabilidade da jurisdig4o). No entanto, é de ver que a investigacao preliminar, mor- mente 0 inquérito policial, é informado, segundo entendimen- to tradicionalmente reconhecido, pelas caracteristicas, aludi- das acima, da discricionariedade e da dispensabilidade. De certo modo, essa forma de atuacao da autoridade poli- cial se avizinha do arbitrio. A relevancia da forma dos atos pro- cedimentais do inquérito policial ou das investigacées crimi- nais em geral, é compreendida de maneira mais restritamente. A possibilidade de exigéncia da legalidade estrita é re- conhecida apenas naqueles casos de imposigéo cogente de garantias ou de determinada forma legal (art. 158, CPP). Por outro lado, a quantidade de atos investigativos, sem previsao legislativa, é grande. Por exemplo, nao é incomum 0 uso de modos descritos em diplomas infralegais ou sem previsdo no direito positivo, com potencial para ferir gravemente a esfera de garantias dos investigados, tais como: (1) a criagao de Forga-Tarefa de Inteligéncia para o en- frentamento do crime organizado (task forces), com lastro no Decreto n° 9.527/2018, com o uso do poder regulamentar aut6nomo (e excessivamente aberto) da Presidéncia da Republica (art. 84, VI, “a”, CF); o desenvolvimento de inyestigagdes, sob o rétulo do vocdbulo operagao, sem prazo Pare, encerramento, com ASPa DBS, de foes s dita de inquérito policial, caso néo firam outras regras espect- ficas impeditivas de tal finalidade. Ao lidar com essas alterna- tivas, que carecem de precisa delimitagéo para a produgdo de efeitos futuros, o papel do juiz assume papel pragmatico. 21.11 Extensao da inexisténcia juridica do inquérito policial A falta de elemento estrutural ou de ato estrutural do in- quérito policial deve implicar a subtragéo dos efeitos jurfdicos dos elementos de informagao. Por exemplo, o juiz deve consi- derar que os atos privativos de delegado de polfcia nao podem ser substitufdos por 6rgaos diversos ou por outros entes nao oficiais, explicitando o desatendimento do que preconiza o § 1°, do art. 2°, da Lei 12.830/2013. E importante que seja definido o alcance da inexisténcia juridica do inquérito policial ao processo penal. Ha objecdo tradicional a aplicacao do efeito extensivo daquela ilicitude, mormente porque: (1) a investigacao preliminar é procedimento distinto, que nao integra o processo penal, apesar da funcao de proporcionar base para inferir a existéncia de jus- ta causa A instaurag’o da persecucdo penal em juizo (arts. 41; 395, IM, CPP); (2) € sedimentada a concepgao de que o inquérito po- licial nao tem a ver, sob os aspectos espacial e tem- poral, com o processo penal correlato, Por exempl exigem-se, nao raramente, instrumentos de mandato a a fase da investigagao preliminan conquanto a persecugdo penal estatal poss cebida, holisticamente, como um do peso de ceriménias degradantes e da violagio do estado de dignidade do imputado. Cuida-se de cultura que dificulta o controle. O fato da in- vestigacao preliminar nao ser fungao exclusiva da polfcia ten- de a permitir argumentos como o do aproveitamento dos ele- mentos viciados como pegas de informagao. Estes elementos devem ser reputados ilfcitos, na origem, com efeito ex tunc. Em suma, diante de um vicio grave, apesar de nao existir juridicamente inquérito policial, tem sido admitido o uso das pecas de informagao como suporte probatério minimo para su- pedanear noticia do fato, embora sem valor ou com baixo valor probatorio, Isso significa dizer que a inexisténcia juridica do in- quérito policial nao tem sido suficiente para alijar por completo © que se reuniu acerca de uma suposta infracdo penal. Por exemplo, em acao penal originaria, 0 STJ assentou varias premissas para rejeitar todas as nulidades esgrimidas pela defesa do imputado, dentre as quais: (1) ainda que se admitisse que a origem da informacao fosse andnima, esse fato de pouca relevancia em ra- zao da existéncia de averiguacao prévia de dados; (2) nao seria importante que a fonte de informagdo ti- vesse origem desconhecida, quando as cireunstan- cias apontassem para a ocorréncia atual de crime”; (3) no que toca a noticia anénima sobre flagrante delito, a formalizagao dos informes advindos de fonte hu- mana seria desnecessaria e nao se coadunaria “com a sistematica vigente, de informagées recebidas pelo — ‘disque-denuncia’ ou por outros meios de coleta de elementos informais”; a forma de chegada da informagao & autorid licial seria desinfluente, eis que ei c Sr Ghcnghs do Righista’ set one RAGE BRGSSdGF as exazse ca Vordsldade da’ AStotL inclusive para evitar a perda da oportunidade”. Veja-se que, pela diccao do julgado, tudo seria permitido quando em disputa a suposicéo de verdade. Mesmo a impro- priamente denominada dentincia anénima seria admitida, eis que sufragada na Lei n° 13.608/2018, com recompensa fi- nanceira para a pessoa que comunicar a ocorréncia de infra- ¢4o penal contra a administragao publica (art. 4°, paragrafo nico), inserindo figura similar ao whistleblower norte-ameri- cano (reportante ou “informante do bem”). Nao se nega a necessidade de controlar novas formas de criminalidade, mais sofisticadas. Contudo, o enfrentamento de delitos como os crimes financeiros, tributarios e contra a administracao publica, deve ser canalizado por trilhos regula- dores do exercicio do jus puniendi estatal, evitando-se recaida na vala do tudo vale. O amplo cardapio de técnicas investigati- vas, com sucessivas tentativas de insergao de providéncias in- vasivas, agiganta o poder investigativo do Estado, prejudican- do, gravemente, o seu controle e a sua compatibilidade com 0 sistema de garantias fundamentais. 21.12 Intervencao do Membro do Ministério Pablico sem atribuigao legal no inquérito policial (prin- cipio do promotor legal) E necessario fazer uma autocritica de que também a dou- trina tem contribuido para a consolidacao do parco controle do inquérito policial e das demais investigacées preliminares. O tema da auséncia de atribuicao legal da autoridade encar- regada, que deyeria ensejar inexisténcia juridiea ou nulidade absoluta, é suayizado por renomados autores, quando cuidam: da falta de atribuigdo do membro do Parquet destinatario e responsayel pela fiscalizagéo externa da atividade policial” Corte Especial - APn 843/D¥ - Rel. Min, Herman Nesse Sérgio Demoro Hamilton conclui que “6 neces- sério registrar que a falta de atribuigéo”, do membro do Mi- nistério Publico, “na fase do inquérito policial nao importa em qualquer nulidade. Reveste-se de car4ter de mera irregulari- dade que n&o deve projetar-se sobre o processo”. Exemplifica 0 jurista, inclusive, com a designagao de promotor de justiga para acompanhar inquérito policial, enquanto um outro mem- bro do Ministério Pablico, sem se dar conta, “vem a oficiar no procedimento, através da requisigao de diligéncias”. Explica ser “evidente que os atos realizados em fungao da requisigéo do promotor despido de atribuicdo sdo validos, podendo, in- clusive, servir de base para o oferecimento da dentincia”.* E verdade que o principio do promotor natural foi tardia- mente chancelado pelo STE, com restrigdo de seus efeitos, dian- te da sua conjugacao com o principio da unidade, com o princi- pio da indivisibilidade do Ministério Piblico e com o principio da independéncia funcional (art. 127, CF). Para a Corte Supre- ma, o principio do promotor legal somente pode ser invocado para vedar, por exemplo, designagées arbitrarias.” Todavia, calha ponderar que a argumentagéo tende a dar menor importancia 4 regra fundante que delimita a atri- de um 6rgao publico, reduzindo o controle da per- 0 penal. A atribuicao é regra abstrata que da base a disposic6es concretas. O Ministério Publico e a policia se situam na estrutura do Poder Executivo. Compoem a administracao publica. Nao é de- mais lembrar a classica licao de Hely Lopes Meireles de que 0 a suspensa, consoante d ar ~ Rel, Min. Luiz Fux 697, Dispositivo com efi 6298/DF ~ Medida Caut 698, HAMIL gio Demoro, Reflexos da falta de atribuigio na instaneia pe- nal, Revista Forense comemorativa ~ 100 anos, tomo VII [direito processual penal], Afranio Silva Jardim (org.), Rio de Janeiro: Forense, p23, 2006. 3 Pleno ~ ADI 5505 ~ Rel, Min. Luiz Fux ~ publicado er 40 monocratica (STF - ADE 1020), ME es fer o gus a al scloeee et feik Wa Hotties dever impllcar cogdnc! cogéncia: em vez de “pode fazer assim”, leia-se “deve fazer assim”.™ Vigora o principio da le- galidade estrita, com muito mais raz4o, em matéria criminal. 21.13 Instrumentalidade do direito material na inves- tigacao preliminar Entrementes, na linha do raciocinio prevalecente, nao havera, sob o aspecto processual, qualquer vicio em investiga- So preliminar capaz de contaminar a instancia penal, eis que se trata de mera irregularidade, sem repercussao na relacdo processual penal. Sob certo prisma, essas conclusées se assemelham com os fundamentos do principio da instrumentalidade do pro- cesso. Quando levado As tiltimas consequéncias, esse enone justifica 0 aleance de resultados de direito material, sem dar énfase ao direito processual. No entanto, é 0 processo a con- digdo indispensavel para que haja concrecao da juridicidade das decisdes tomadas, com a aplicacao do direito material. Tal visao é tomada da concepgao de processo como ins- tituicaéo juridica, de Jaime Guasp. O processo é entendido como relacao juridica disciplinada normativamente, isto é, essa corrente inclui as teorias da norma juridica e da relacao juridica. Em compasso com 0 jurista espanhol, 0 processo nao é instrumento do direito material, mas o inverso: é 0 direito material que viabiliza os instrumentos necessarios ao proces- so, apesar de nao significar que o direito material nao exista por si préprio.”! 700, MEIN Malheir Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 25, ed, Sao Paulo: 1000. p.82-83 01. ROSA, Alexandre Morais da; ALENCAR; Rosmar Rodrigues. No processo pes nal, a instrumentalidade é do direito material. Conjur, 23 sl Di ae hutps:/oit Jy 2MrT7DE_

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