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Solidéo 6 o caminho para o qual o destino quer atrair os homens. Solidao é 0 caminho que o homem mais teme. La esto todos os terrores, as serpentes e sapos, La nos espreita o terrivel. Nao corre, a res- peito de todos os solitarios, os peregrinos no deser- to da solidao, a lenda de que estao num descami- nho, esto doentes ou sdo perversos? Nao se con- tam todas as grandes facanhas dos herdis como se tivessem sido cometidas por criminosos: porque é bom cuidar para nao entrar no caminho que leva a tais agdes? Nao se diz também de Zaratustra que sucum- biu & loucura, e que no fundo tudo o que fez e dis- se também era loucura? E vocés, quando ouvem dizer isso, também no sentiram um certo pudor? Como se fosse mais nobre, mais digno, escutar aque- le louco, mas nao tivessem coragem para tanto, e se envergonhassem? Ah, meus caros, gostaria de cantar-Ihes can- des sobre a solidao, Sem ela nao ha sofrimento nem heroismo. Mas nao falo na solidao dos belos escrito- res, e do teatro, onde ha fontes murmurando tao doces junto 4 caverna de algum eremita! Da infancia 4 idade adulta ha um unico passo, um sé corte. Tornar-se sé, tornar-se eu-mesmo, afastar-se de pai e mae, esse é o passo da crianga ao adulto, e ninguém o da inteiramente. Todos, mesmo o mais santo eremita e solitario na mais nua mon- tanha carrega consigo um fio, puxa atras de si um fio que o liga a pai e mae, a todo o querido e calido parentesco, e as coisas 4s quais pertence. Se vocés, amigos, falam tao ardentemente de povo e patria, vejo preso em vocés aquele fio, e por isso sorrio. Quando seus grandes homens falam de sua “missio” e de suas responsabilidades, pende-lhes da boca um longo fio. Seus grandes homens, lideres 101 Scanned with CamScanner € oradores, jamais falam de tarefas para consigo mesmos, jamais falam de responsabilidade para com o destino! Estaéo pendurados no fio que leva de vol- ta & mae, ao que é célido e aconchegante, aquilo de que nos lembram os poetas quando cantam com sensibilidade a infancia e suas puras alegrias. Nin- guém rompe inteiramente esse fio, a nao ser na morte, se conseguir morrer a sua propria morte, A maioria dos homens, todos os que fazem parte do rebanho, nunca saborearam @ solidao, Afastam-se um dia de pai e m&e, mas apenas para se arrastarem até uma esposa, enfiando-se depres- sa num novo calor, numa nova familia a que per- tengam. Jamais est&o sozinhos, jamais falam consi- go mesmos. Mas 0 solitario, quando se Ihes atraves- sa no caminho, é temido e odiado como a peste, jogam-lhe pedras, e ndo sossegam enquanto nao esto longe dele. Pois rodeia-o um ar que cheira a estrelas e ao frio dos espacos estelares, ah, falta-lhe aquele aroma doce e calido de lar e ninho. Zaratustra tem em si algo desse cheiro de estrelas, e desse frio gélido. Zaratustra andou um bom pedago desse caminho da solidao. Sentou-se nos bancos da escola do sofrimento. Viu a forja do destino, e foi nela forjado. Ah, meus amigos, nao sei se devo lhes falar mais da soliddo. Gostaria de leva-los a esse cami- nho, de cantar-Ihes uma cang&o das geladas ale- grias do Cosmos. Mas sei que poucos andam por esse caminho sem prejuizos. E duro viver sem mae, meus caros, é duro viver sem patria, sem lar, sem povo e sem fama, sem todas as docuras da comunidade. duro viver no frio, e a maior parte dos que come¢a- ram esse caminho sucumbiram. E preciso ser indi- ferente ao sucumbir, quando se quer saborear a soli- dao e interrogar o seu préprio destino. & mais facil, 102 Scanned with CamScanner mais doce, andar com um povo, com muita gente, embora seja por um caminho de miséria. E mais facil e mais consolador dedicar-se as “tarefas” que o momento presente e 0 povo oferecem. Vejam como as pessoas gostam de estar em suas ruas repletas! Disparam tiros, a vida esta em jogo, cada um prefe- re estar no meio da massa e sucumbir nela a andar 14 fora, sozinho, na noite escura e no frio. Mas como poderia lev-los a isso, meus jovens! A solidio nao se escolhe, assim como no se escolhe o destino. A solidao nos assalta quando temos em nés a pedra magica, que atrai o destino. Muitos, demasiados, foram para o deserto e levaram, junto & bela fonte e na bela ermida, uma vida de homens de rebanho, Mas outros estéo na multidéo de mil pessoas, e nas suas testas paira um ar de estrelas. Feliz daquele que encontrou a sua solidao, nao uma solidéo pintada e poetizada, mas a sua, a tni- ca, que o determinou. Feliz do que sabe sofrer! Feliz do que traz no coracao a pedra magica! O destino vird ter com ele, e dele vird a a¢&o. Spartaco Querem saber minha opiniao sobre os que sé designam conforme Spartaco. De todos aqueles que na sua patria desejam tao intensamente o bem, e imaginam construir 0 futuro, sao esses escravos rebeldes os que mais me divertem. Como sao decididas, essas pessoas, como escolhem depressa e com seguranga o seu caminho, como sabem andar reto para a frente! Na verdade, se seus cidaddos tivessem uma parcela minima des- sa forca para empregarem em outros talentos, 4 patria estaria salva. Mas na verdade ela sera destruida por esses “sp4rtacos”. Nao é mesmo singular, nao é fatal, que 103 Scanned with CamScanner essa gente use tal nome? Eles, os ignorantes, com mos calosas de trabalhar, que desprezam os lati- nistas e os sAbios, assumiram de um de seus ante- passados um nome que cheira mal, cheira a Histé- ria e erudic&io. E esse nome que pescaram de longe, de antigos tempos, nao significara também destino? Pois uma coisa é boa nesse novo nome, nesse nome tao antigo; que ele lembra a quem sabe, uma mudanga de tempo e uma maturidade que prenun- cia o fim. Assim como terminou aquele velho mun- do, o atual tem de acabar, 6 isso 0 que esse nome quer dizer, e com razao, Esse mundo precisa sucum- bir, com todas as coisas belas e amadas que nos prendem a ele. Mas como foi entao Spartaco que um dia destruiu 0 mundo antigo? Nao. foi aquele Jesus de Nazaré, ndo foram os barbaros, nao foi a Jouca invasdo dos mercendrios? Nao. Spartaco foi um excelente herdi da Histéria, sacudiu valente- mente as correntes, brandiu bravamente a faca. Mas nao fez dos escravos homens, e apenas partici- pou daquela queda da escravidio como um instru- mento. Mas no desprezem essa gente de maos rudes nem o nome que nos aborrece pelo que lembra. Eles estao a postos, pressentem o destino, nao resistem ao seu destino! Respeitem ao espirito que vive nes- sa decisio. O desespero nao é heroismo. Nao viram isso na guerra? Mas desespero é melhor do que 0 medo obscuro do burgués, que sé apela para o heroismo quando vé ameagado seu saco de dinheiro! O que chamam de “comunismo”, sabemos bem, é uma receita muito velha, hoje um pouco cémica, de empoeiradas cozinhas de fabricantes de ouro. N&o déem ateng&o ao que dizem! Mas déem aten- co ao que estao fazendo. Essas pessoas sao real- 104 Scanned with CamScanner mente capazes de agir, porque, embora por cami- nhos suspeitos, estao préximos de amadurecerem para o destino. Vocés tém mais possibilidades do que aqueles, tém possibilidades mais nobres, mas ainda est4o no inicio do caminho, Eles estao no fim, e sao superiores a vocés amigos, naquela maneira elogiiente na qual os que esto dispostos a sucum- bir sao superiores aos hesitantes e aos que ficam para tras. A pdtria e os inimigos Amigos, vocés se queixam demais da morte de sua patria. Se ela tiver de morrer, seria mais digno e viril que acontecesse em siléncio, sem lamentagao. Mas onde esta esse fim? Ou chamam “patria” ainda ao seu saco de dinheiro, e aos seus navios? Seu imperador? Sua pompa de épera de anteontem? Se chamarem patria Aquilo que os melhores de vocés amam como sendo o melhor no seu povo, aquilo com que o povo enriqueceu e contentou 0 mundo, entéo nao entendo como podem falar em final e aniquilamento. Perderam muito em dinhei- ro e provincias, navios e poderio mundial. Se nao puderem suportar isso, entaéo morram pela sua pré- pria mo, ao pé de alguma estdtua do imperador. Ecantarei uma cang4o finebre nos seus timulos. Mas nao fiquem af clamando por misericérdia da Histéria Universal, vocés que ha pouco ainda can- tavam o hino alem4o, no qual o mundo ficaria cura- do. Nao fiquem parados no caminho como colegiais punidos, suplicando a compaixéo dos que passam. Se nao puderem tolerar a pobreza, morram! Se nao puderem governar sem imperador e generais vito- riosos, deixem-se comandar por gente estranha! Mas por favor, nao esquecam totalmente a ver- gonha, 105 Scanned with CamScanner _ Como, dizem que nossos inimigos nao so cruéis? Nao sao rudes e perversos na sua vitéria, que foi a vitéria de uma poténcia muito superior? Mas nao falam de justiga e cometem violéncias? N&o escrevem sobre justiga significando exploragao e roubo? Vocés tém razao. Nao defendo os inimigos. Nao Os amo. Eles, como vocés, sio maus na vitéria e cheios de truques e desculpas. Mas, amigos, jamais foi diferente? E sera nosso interesse exprimir eter- namente o irrevogavel em altos lamentos? Parece-me que nosso dever € sucumbir como homens, ou viver como homens, mas nao berrar como criangas. Nosso dever é reconhecer o destino, é apossar-nos da nossa dor, transformando seu amargor em docura, é amadurecermos com esse sofrimento. Nosso objetivo nao é voltarmos a ser grandes, ricos e poderosos, termos frotas e exérci- tos. Nosso objetivo nao é uma loucura infantil — nao vimos acaso 0 que aconteceu com os navios e exércitos, poder e dinheiro? J& esquecemos tudo isso? 5 Nosso objetivo, jovens alem&es, nao é dizer nomes e cifras. Mas, como o objetivo de qualquer criatura, é tornar-se um com seu destino. Se fizer- mos isso, naéo importa se somos pequenos ou gran- des, ricos ou pobres, temidos ou ridicularizados, nada disso importa. Deixem que os conselhos mili- tares e os trabalhadores intelectuais fagam discur- sos! Se na guerra e na dor vocés nao se encontra- ram consigo mesmos, nao se tornaram sua prépria esséncia, continuaréo, hoje como antes, querendo mudar o destino, fugir ao sofrimento, desprezando a maturidade, e se for assim, entao sucumbam! Mas vejo em seus olhos que me entendem. Adivinham consolacio nas amargas palavras do 106 Scanned with CamScanner yelho da montanha, do velho malvado, Lembrem- se das palavras que lhes disse sobre a dor, o destino, a solidao. Nao sentem, nessa dor que os atingiu, um sopro de solidao? Seu ouvido nao se tornou mais receptivo para a voz suave do destino? Nao sentem sua dor tornar-se fecunda? Nao sentem que seu sofrimento pode significar uma distingao, um con- vite para coisas sublimes? Mas nao ponham seus objetivos onde tiverem diante de si o infinito! Nao se entreguem a finali- dades, agora que o destino transformou em escom- bros todas as suas belas finalidades de anteontem! Tenham vergonha, eu lhes imploro, mas nao daqui- lo que Deus falou em vocés. Considerem-se distin- guidos, chamados, escolhidos. Mas nao para isso e aquilo, para poder mundial ou comércio, democra- cia ou socialismo. Foram escolhidos para tornarem- se vocés mesmos no sofrimento, para reconquista- rem na dor sua propria respiracao e o pulsar do coracao, que haviam perdido. Sao escolhidos para respirarem o ar das estrelas, e, de criancas, trans- formarem-se em homens. Parem com seus lamentos, meus jovens. Parem com as lagrimas infantis e as despedidas da mie ou do pao doce. Aprendam a comer pao amargo, 0 pao dos homens, o pao do destino. E, vejam bem, ent&o a “patria” Ihes aparecerd de novo, aquela que seus antepassados mais nobres pressentiram e amaram. Entdo voltarao da solidaéo para a comunidade, que nao sera mais curral ou ninho, mas uma comunidade de homens, um impé- To sem fronteiras, o reino de Deus, como diziant Seus pais. La ha lugar para todas as virtudes, mes- ae fe as fronteiras dos paises forem estreitas. La a lugar para todas as valentias, ainda que nao haja mais generais! 107 Scanned with CamScanner Na verdade, Zaratustra comeca a sorrir nova- mente, quando tem de consolar criangas como vocés! Um mundo melhor Ha uma palavra, meus jovens, que me aborrece um pouco em seus labios, se é que nao me faz rir! & o mundo melhor. Gostam de cantar essa cangao em suas reunides e rebanhos, seu imperador e pro- fetas gostavam muito de canta-la, e o estribilho des- sa cancéo é o verso que falava na Alemanha, sua natureza e beleza *. Amigos, deviamos aprender a nao fazer julga- mentos sobre isso, se o mundo é bom ou mau, e de- sistir da singular pretensfo de tentar melhoré-lo. Muitas vezes o mundo foi insultado como sendo mau, porque aquele que o insultava dormira mal ou comera demais. Muitas vezes 0 mundo foi louva- do porque aquele que o louvava acabara de beijar uma bela moga. Mas o mundo nfo existe para ser melhorado. Nem vocés existem para serem melhorados. Estao ai para serem vocés mesmos. Existem para que 0 mundo se enriqueca com esse tom, esse som, essa sombra. Seja vocé mesmo, e 0 mundo sera mais rico e mais belo. Mas se vocé nfo for isso, se for menti- roso e covarde, o mundo ser pobre, e entao neces- sitaré de uma melhoria. Logo agora, nessa época singular, se canta e grita novamente com tanta forga a cangao do mun- do melhor. Mas néo ouvem como soa mal, uma voz de bébados? Como lhe falta delicadeza, felicidade, * © autor faz uma rima impossivel de reproduzir em portugués ao pé da letra, com Wesen (esséncia, natureza) e Genesen (conva- lescenga, recuperacao da satide). (N. da T.) 108 Scanned with CamScanner sabedoria e inteligéncia? E essa canc&o é como uma moldura em que se pode meter qualquer quadro. Servia para o imperador e o policial, servia para os seus famosos professores alem@es, servia para os velhos amigos de Zaratustra! Essa cangaéo de mau gosto serve para democracia e socialismo, Liga de Nagdes e paz mundial, fim do nacionalismo e novo nacionalismo. Sera cantada por seus inimigos, num coro em que um canta contra os outros, um gostaria de matar o outro com essa cangéo, Nao notam que por toda parte em que se canta isso os punhos estdo cerrados nos bolsos, tudo gira em torno de egofsmo e amor-préprio. Ah, nado aquele amor-prdprio do ho- mem nobre, que busca elevar e fortalecer o seu “eu”, mas aquele que se interessa pelo dinheiro e pela carteira, por vaidades e convencimento. La onde o hhomem comega a envergonhar-se do seu amor-pré- prio, ali 6 que comeca a falar em melhorar o mundo, escondendo-se atrdés dessas palavras. Nao sei, amigos, se o mundo jamais foi melho- rado, se nao foi sempre igualmente e eternamente bom ou mau. Nao sei, n&o sou filésofo, tenho muito pouca curiosidade nesse sentido. Mas sei de uma coisa: se acaso jamais o mundo foi melhorado por homens, se foi por eles enriquecido, se por eles se tornou mais vivo, alegre, perigoso, divertido, nao aconteceu por uma acao dos que querem melhora-lo, mas por aqueles que tém amor-proprio, entre os quais eu gostaria de incluir vocés. Aqueles que se amam realmente, com seriedade, que nao conhecem objetivo nem finalidades, pois basta-lhes estarem vivos, e serem eles mesmos. Sofrem muito, mas com alegria. Adoecem com alegria quando a doenga é sua, essa que devem sofrer, a que lhes é propria, intima. E morrem com alegria se for sua a morte que devem Morrer, sua propria e intima. 109 Scanned with CamScanner Talvez o mundo tenha sido realmente melhora- do por essa gente — assim como um dia de outono melhora com uma nuvenzinha, uma pequena som- bra marrom, um rapido véo de ave. Nao acreditem que o mundo precise de mais melhoramentos do que, vez por outra, algumas pessoas andando por ele. Nem animais nem rebanhos, mas pessoas, algumas dessas raras que nos tornam felizes, assim como um yoo de passaros e uma arvore no mar nos tornam felizes, simplesmente por existir, e por haver coisas assim. Se quiserem ser ambiciosos, meus jovens, am- bicionem essa honra. Mas ela é perigosa, leva através da solid&o, e facilmente nos custa a vida. Das coisas alemas Nunca refletiram de onde vem o fato de que o alemao seja tao pouco amado, seja tao profunda- mente odiado, tio apaixonadamente evitado? Nao acharam singular ver que nessa guerra, que vocés comegaram com tantos soldados e tao boas perspec- tivas, lentamente, bem lentamente, mas irrevogavel- mente, um povo apés 0 outro passou para, o lado ini- migo, abandonando-os, e dizendo que vocés nao ti- nham razao? Sim, sei que perceberam, com profundo desgos- to, orgulhosos de ficarem tao abandonados, sozi- nhos, incompreendidos. Mas, ougam bem, nao esta- vam sendo incompreendidos! Foram vocés que nao compreenderam nada, e cometeram erros. Vocés, jovens alemaes, sempre se jactaram da- quelas virtudes que nao tinham, e acusaram, 0s ini- migos especialmente daqueles vicios que haviam aprendido com vocés. Falavam sempre das virtudes “alemas”, fidelidade e outras que consideravam 110 Scanned with CamScanner quase uma invengaéo do seu Imperador ou do seu povo. Mas nao foram fiéis. Foram infiéis a vocés mesmos, e é isso que Ihes trouxe o édio do mundo. Dizem que nao, aquilo era o nosso dinheiro, os nos- sos sucessos, E talvez o inimigo pensasse assim tam- bém, com a mesma ldégica de comerciante com que yocés calculam tudo. Mas o fundo é sempre abaixo * da nossa opiniao, principalmente duma superficial e rapida opinido de fabricante. E possivel que os inimigos os invejem pelo seu dinheiro. Mas ha su- cessos que nado causam inveja, que provocam os aplausos do mundo. Por que nunca tiveram esse tipo de sucesso, e sempre, apenas, os do outro tipo? Porque foram infiéis a si mesmos. Desempe- nharam um papel que nao era o seu. Tinham criado, com as “virtudes alemas”, e a ajuda do seu Impera- dor e de Richard Wagner, uma criatura de dpera que ninguém no mundo levava a sério senao vocés. E atras da bela cintilagao dessa pompa de épera, deixaram crescer e agir todos os seus instintos obs- curos, escravizantes, megalomaniacos. Sempre ti- nham Deus na boca, mas a m4o no saco de dinheiro. Falavam em ordem, virtude, organizacao, e signifi- cavam lucro financeiro. E traiam-se exatamente porque imaginavam ver sempre no inimigo 0 mesmo logro! Escutem sé, diziam, escutem sé como falam de virtude e justica, mas na verdade pensam em bem outra coisa! E entreolhavam-se, piscando um olho quando um inglés ou americano fazia um belo dis- curso, e nesse piscar de olhos sabiam o que costuma estar por tras de tais discursos. E como o sabiam tao bem, a nao ser porque o mesmo acontecia em seus coragoes? _ Podem me censurar porque os estou magoando! N&o estao nem acostumados a que alguém os ofen- 111 Scanned with CamScanner da, tanto se acostumaram a se darem razao uns aos outros. Para as injusticas, as mas palavras, a des- carga de maus instintos, havia o inimigo,/ Mas eu Thes digo: é preciso poder sofrer e fazer sofrer, quan- do se quer estar do lado da vida, manter-se neste mundo. O mundo é frio, nao é um ninho maternal, em que se pode ficar numa eterna infancia, num célido abrigo. O mundo é cruel, é imprevisivel, ama apenas aos fortes e 4geis, ama aqueles que sao fiéis a si mesmos. Todo o resto pode ter apenas efémeros sucessos no mundo — sucessos como os que vocés ti- veram com seus produtos e organizagdes depois da derrocada espiritual da Alemanha. E onde estao agora? Mas talvez ainda haja tempo. Talvez a des- graca seja bastante grande para fortalecer sua von- tade, nado para novo fingimento ou nova fuga do secreto sentido da vida, mas para virilidade, fé em si mesmos, verdade e fidelidade a si proprios. Pois isso, amigos, é algo que ha de Ihes ter soado e reluzido através de todas as minhas acusagOes e palavras duras: que eu os amo. Que tenho certa confianga em vocés, que pressinto algum futuro para todos. E, acreditem, tenho um faro agucado, muitas yezes comprovado, eu, velho eremita e rabugento. Sim, creio em vocés, creio em algo dentro de vocés que é alem&o, que amo profundamente e ha muito tempo. Acredito em algo em vocés que ainda nao se vé, um futuro, uma possibilidade, um “talvez” que encanta e reluz atrés de cem nuvens, Exatamente por isso acredito, porque nao passam de criangas, e fazem tantas criancices porque carregam consigo essa infancia téo prolongada. Ah, que ela se torne de uma vez idade adulta! Que essa credulidade facil se torne um dia confianga, essa ternura bondade, essa singularidade e sensibilidade se transformem em carater e amor-préprio de homem! 112 Scanned with CamScanner Vocés sio0 o mais devoto povo do mundo. Mas que deuses inventaram essa devocdo! Imperador e suboficiais! E em seu lugar, agora, esses novos fabri- cantes de felicidade! Desejo que aprendam a procurar Deus em si mesmos! Que sintam tanto respeito desse secreto algo, desse futuro em si préprios, como sentiram res- peito de seus principes e bandeiras! Que sua devocao um dia nao se arraste mais de joelhos, mas fique de pé, ereta, sobre pés fortes, viris e resistentes! Vocés e 0 seu povo Amigos, ainda estao desconfiados e muitas vezes me olham de lado, e sei o que Jhes desagrada em mim e os intimida: temem que Zaratustra, 0 apa- nhador de ratos, os afaste de seu povo, a quem amam e que lhes é sagrado! Nao é assim? Adivinhei cor- retamente? Seus professores e livros tém dois ensinamen- tos: um diz que o povo é tudo, mas o individuo nada; outro diz exatamente o contrario. Mas Zaratustra nunca foi professor, quando muito acha graga nesses seus mestres. Queridos amigos, néo podem escolher entre serem povo ou individuo! J& foi providenciado, e bem providencia- do, que as rvores nao entrassem pelo céu adentro! Ninguém jamais chegou ao céu da solid&o, ao céu da virilidade, apenas porque leu um livro e decidiu fazer isso, : Mas se eu lhes pergunto, meus jovens: o que é que seu povo tanto deseja? De que precisa? Me res- Ponderiam: Nosso povo precisa de agdes, homens que no apenas falem mas saibam realizar coisas! Pois bem, amigos, se 0 querem fazer pelo povo ou por si mesmos, nao esquecam de onde vém as 113 Scanned with CamScanner agoes, o frio, alegre e viril sentido de si proprio e do seu amanha, do qual provém as acédes como raios da nuvem. Jé o esqueceram? Ou Ihes ocorre nova- mente? Amigos, 0 que seu povo e cada povo precisa, é de homens que aprenderam a serem eles mesmos, e que reconheceram seu destino. Sd eles se tornarao © destino do seu povo. Sé eles nao estao satisfeitos com os discursos e decretos, e toda essa burocracia amedrontada e irresponsdvel. S6 eles tém coragem, entusiasmo, boa e sadia e alegre disposi¢ao, essa de onde nascem as agoes. Vocés, alemies, estféo mais acostumados a obe- decer do que qualquer outro povo no mundo. Seu povo obedeceu sempre com tal facilidade, tanta boa vontade e alegria, nao deu um passo sem sentir a satisfagio de saber que estava sendo dado para cumprir uma ordem, um preceito. Seu belo pais esta- va coberto de cartazes com leis, isto é, de proibi¢ao, como por uma floresta. E como teria de obedecer esse povo, quando, depois de longo, longo intervalo, e cansativa espera, escutasse de novo vozes de homens! Quando um dia em vez de decretos e preceitos escutasse 0 som da forca e da convic¢aio. Quando novamente visse agoes que nao foram benevolamente ordenadas e devota- mente realizadas, mas que nascem, alegres e sauda- veis, da cabeca de seu pai, como aquela deusa grega? * Pensem sempre nisso, amigos, e nao esquecam 0 que seu povo deseja com tanta sede. E nao esquecam que acao e virilidade nao crescem em livros nem em discursos populares. Crescem nas montanhas, e 0 * Na mitologia grega, a deusa Minerva nasceu da cabega de Juipi- ter, seu pai, rei dos deuses. (N. da T.) 114 Scanned with CamScanner “y” caminho até 14 leva através de sofrimento e solidao, de dor aceita, de isolamento voluntario. E contrariando todos os seus oradores popula: res, eu grito: Nao tenham tanta pressa assim! Todos esses os estao chamando de todos os cantos, dizendo: “Depressa, corram! Decidam-se neste minuto! O mundo esté em chamas! A patria esté em perigo!” Mas acreditem em mim: a pdtria nfo sofrera se tomarem tempo, se deixarem amadurecer sua von- tade, seu destino, sua ag&o. A pressa, bem como aalegria de obedecer foram daquelas virtudes ale- mas que nem sao virtudes. Filhos, ndo deixem cair assim a cabeca. Nao facam rir o velho Zaratustra! Acaso sera uma infelicidade terem nascido nes- te tempo jovem, tempestuoso e efervescente? Isso nao sera a felicidade que desejam? A despedida Agora, amigos, despego-me de vocés. Jé sabem que quando Zaratustra se despede de seus ouvintes, nao costuma pedir que lhe sejam fiéis ou que per- manecam como seus discipulos comportados. N&o quero que adorem Zaratustra. Nem que 0 imitem. Nem que desejem tornar-se Zaratustra! Em cada um de vocés hé uma imagem oculta que ainda dorme o profundo sono de uma crianga. Deixem-na viver. Em cada um de vocés ha um chamado, ou desejo da natureza, um arremessar-se para o futuro, para o novo e mais sublime. Deixem que isso ama- durega, deixem que ressoe, cuidem dele. Seu futuro nao é isto ou aquilo, nem dinheiro nem poder, sabe- doria ou alegria de conquistas — seu futuro e seu caminho muito perigoso é este: amadurecer e encon- trar Deus dentro de si mesmo. Nada lhes seré mais 115 Scanned with CamScanner dificil jovens alemaes. Sempre andaram em busca de Deus, mas nunca em si mesmos. E ele nio est4 em nenhum outro lugar. Nao ha um Deus senao aquele dentro de vocés. Se alguma vez eu regressar, amigos, falaremos de outras coisas, mais belas e alegres. Espero que en- tao nos possamos sentar juntos e andar juntos, como homens, cada um forte e ele mesmo ao lado do outro, cada um nao confiando em nada no mundo senao em si mesmo, e na felicidade que é concedida ao forte e ao audacioso. Vao agora, voltem 4s suas ruas com todos aque- les oradores. Esquegam o que o velho da montanha lhes disse. Zaratustra nunca foi um sabio. Foi sem- pre um gozador, e um andarilho cheio de manias. Mas nao deixem que nenhum discursador ou mestre lhes ponha tolices na cabeca, nao importa que nome tenham. Em cada um de vocés hé apenas uma verdade, a sua propria, e é & sua voz que devem escutar. Eis o que Ihes digo em despedida: escutem essa voz que vem de dentro de si préprios! Se ela se calar, saberao que algo esté mal, algo anda errado, e que estado no caminho falso. Mas se essa voz, esse passaro, falar e cantar, ent&o sigam-no, sigam-no em todos os encantos que promete, e em mesmo na mais longiqua e fria soli- d&o, e pelo mais escuro destino! O senhor me escreve que est4 desesperado e nao sabe o que fazer, nao sabe em que acreditar, nem 0 116 Scanned with CamScanner Titulo ‘original alemfo KRIEG UND FRIEDEN Copyright © 1946 by Fretz & Wasmuth AG, Zurique. Copyright 1974 by Heiner Hesse, Reservados todos os direitos por Suhrkamp Verlag Frankfurt Am Main Direitos de publicacao exclusiva em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVICOS DE IMPRENSA S.A. ‘Av. Erasmo Braga, 255 — 8° andar — Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literdria desta traducéo Impresso no Brasil Scanned with CamScanner HERMANN HESSE - SOBRE A GUERRA E A PAZ Tradug&o de LYA LUFT €DITORA RECORD Scanned with CamScanner

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