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SOBRE O “ZARATHUSTRAS WIEDERKEHR” (“VOLTA DE ZARATHUSTRA”) Sob o impacto dos acontecimentos mundiais, escrevi, em dois dias e duas noites, ao findar de janeiro, o optsculo “Za- rathustras Wiederkehr” (“Volta de Zarathustra”), que logo apareceu em impresso anédnimo e foi por mim enviado a meus amigos. Entre as dividas surgidas da parte dos leitores em torno dessa profissio de fé de um autor apolitico, duas me parecem mais insistentes. Quase todos os que descobriram quem era 0 autor de “Zarathustras Wiederkehr” — o que, alids, no era dificil adivinhar — lhe enderegaram as seguintes perguntas: Por que nao assinas esse escrito com teu nome? Por que usas a mascara de Zarathustra e o tom nietzschiano? Por que imi- tas o seu estilo? A primeira e pior objecio a mim feita em relagéo ao ano- nimato de meu optisculo — a acusagéo de medo — desaparece por completo desde que publicamente reconhego aquele escrito como meu. O fato de que essa acusag&o seja repetida com insisténcia, atribui-o 4 mentalidade reinante durante a guerra. Com efeito, mesmo a homens de carter pareceu possivel ¢ até provavel que o autor se esquivaria a toda sorte de conse- qiiéncias desagrad4veis, se omitisse o préprio nome no que es- crevia. E, de fato, a partir de 1914, todo alem&o que se de- clarou publicamente a favor da idéia de uma humanidade su- pranacional foi punido de maneira téo barbara e se viu tio absolutamente sem defesa, que era necesséria certa dose de coragem para alguém ousar opor-se a tal ordem de coisas. Eu, pessoalmente, sinto-me orgulhoso dos insultos que sofri por 106 Scanned with CamScanner parte da imprensa chauvinista, desde o verio de 1914. E nao posso querer, de modo algum, recuperar a amizade daqueles senhores e¢ daqueles jornais que, desde novembro de 1918, pas- sarama apoiar exatamente as mesmas idéias pelas quais até entio nos apedrejavam. Mas por que preferi que aparecesse anénimo o meu opts- culo, se nao estava com medo? Para dizer a verdade, até me admiro de nao terem atinado com o motivo. Quem tenha lido ainda que um s6 dos manifestos dos jovens intelectuais mais recentes — os “expressionistas” — conhece bem a repulsa, o desprezo, o édio mais figadal desses jovens a tudo o que até entéo, até ontem, fosse impressionista, Pareceu-me indubité- vel me reconhecessem nesse grupo. E certo também me pare- eu que um escrito assinado com o meu nome préprio nao se- ria de modo algum lido pela melhor parcela da juventude. Essa a razio por que preferi usar o anonimato. Vamos agora 4 outra pergunta: Por que me voltei para Nietzsche? Por que imitei o tom de Zarathustra? A mim me parece que o leitor dotado de agudo senso lin- giifstico lembrar-se-4 de Zarathustra ao ler meu opisculo. Mas logo se aperceber4 de que na verdade nio se procura fazer ali nenhuma imitago do estilo nietzschiano. Meu optsculo lem- bra-o, sim. Evoca-o. Mas nao o imita. Um imitador dé Zara- thustra ter-se-ia utilizado de uma série de tragos estilisticos que omiti por completo. Além disso, devo confessar que, des- de ha quase dez anos, nunca mais folheei o Zarathustra de Nietzsche. Nao. Nem o titulo nem o estilo de minha obra nasceram da necessidade de me servir de uma mascara. Nem tampouco de um caprichoso exercicio de imitacio do estilo de outro au- tor. Até quem rejeite o contetido doutrindrio de meu escrito — ao que me parece — deverd perceber a forte impressio sob a qual teve ele origem. Que aquilo lembrava Nietzsche ¢ refletia o espirito de seu Zarathustra, s6 o vim a notar no momento em que procedia & sua redagio, aliés de maneira quase inconsciente ¢, por assim dizer, inteiramente explosiva. Mas havia meses — minto, ha- via anos — formara-se em mim uma idéia bem diversa a res- peito de Nietzsche. Nao em relacdo a seu pensamento nem a sua poesia, Sim, em relacZo ao proprio Nietzsche como pessoa, como homem. Cada dia mais, desde o lamentdvel naufrdgio da cultura lem& na guerra, parecia-me ele o ultimo e solitario represen- 107 Scanned with CamScanner tante do génio alemao, da coragem alema, da hombridade ale- ma que parecia estar morta precisamente entre os intelectuais. Nao tinha, acaso, seu isolamento entre colegas eivados de um arrivismo irresponsdvel mostrado a Nietzsche a seriedade de sua “missio”? Nao se tornara afinal um antialemao, por sua raiva a vista da tremenda ruina de nossa cultura na época de Guilherme II? Nao era ele — o solitério Nietzsche — 0 jrado desprezador do culto ao Kaiser alemao, o dltimo e in- flamado sacerdote do visivelmente agonizante espirito alemao? Naofoi ele o inconformado, o solitario cuja voz mais do que a de qualquer outro filésofo se fazia ouvir no seio da juventude? Podiam nao entendé-lo. Podiam interpreté-lo mal. Toda- via, sabiam todos que o amor a Nietzsche, a paixdo pelo poeta de Zarathustra era o que de mais fascinante e sagrado pode- iam sentir em sua alma de jovens. Que poeta, que mestre, que lider espiritual alem&o, desde 1870, gozou tanto quanto Nietzsche da confianga da mocidade ou soube como ele apon- tar 4 juventude os rumos da grandeza do espfrito? Nenhum outro, sem diivida. Eu queria, era meu dever, chamar a atencio do mundo para esse espirito de que considero Nietzsche o ultimo profe- ta, Se existisse ainda a Alemanha espiritual — bem poderia, por certo, ser colocado sob esse signo. E das ardentes e sa- gradas noites de leitura da época de minha mocidade veio-me o tom peculiar em que quis redigido o meu apelo, Jangado aos jovens. Nao veio do raciocinio, nem de uma esmerada pro- cura. Brotou esponténeo e sem esforgo. Dispenso-me, por desnecessdrio, de justificar meu optis- culo em face dos ataques recebidos ou de defendé-lo ante as falsas interpretacdes. Minha obrazinha sobre Zarathustra vem encimada de uma palavra do préprio Nietzsche. Se, escrevendo aquelas linhas, tiver conseguido que milhares ou centenas de jovens, em meio ao caos atual da Alemanha, assimilem de novo, com toda a alma, essas palavras de Nietzsche, terei atingido de cheio o objetivo a que aspirei com aquele trabalho. Sao as seguintes as palavras de Nietzsche que me serviram de Iema: “Aquela coisa oculta e imperiosa, para a qual nao temos nome, até que enfim se imponha como nossa missaio; aquela espécie de tirano assume em nés uma 108 Scanned with CamScanner terrivel desforra ante toda e qualquer tentativa que fizermos de a ela nos subtrair ou dela escapar; ante toda decisio precipitada; ante toda entrega de nés mesmos a coisas que nao nos dizem respeito; ante toda a atividade, por mais nobre que seja, que, .aca- so nos venha afastar de nossa missao principal. — Sim. Somos punidos por nés mesmos, sempre que usamos de qualquer subterfigio — mesmo o da vir- tude! — para nos esquivarmos a dureza de nossa res- ponsabilidade propria. Dizemos que estamos doentes — eis o pretexto a que com freqiiéncia recorremos, quando queremos atenuar a obrigacdo de cumpri mos nossa tarefa. Ou quando comegamos a torné-la de certo modo uma tarefa mais suave. Coisa estra- nha e, ao mesmo tempo, terrivel: — é, por nossa ten- déncia as acomodagées que temos de, com o maximo rigor, nos punir! E se, apés a doenca da covardia, quisermos retornar ao estado de satide da coragem, nao nos resta outra alternativa: temos de arcar com um peso maior ainda do que o que antes nos onerava”... (1919/20) 109 Scanned with CamScanner HERMANN HESSE OBSTINAGAO (Escritos autobiograficos) Tradugéo de BELCHIOR CORNELIO DA SILVA 32 EDICAO EDITORA RECORD Scanned with CamScanner Titulo original aleméo: EIGENSINN Copyright © 1971 by Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main Todos os direitos reservados Direitos de publicagdo exclusiva em lingua portuguesa no Brasil adquiridos pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA S.A- Rua Argentina 171 — 20921 Rio de Janeiro, RJ que se reserva a propriedade literdria desta tradugao Impresso no Brasil Scanned with CamScanner

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