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Nao por acaso este romance € considerado por muitos a mais importante narrativa jé escrita até hoje. Desde sua primeira publicagdo em 1605, ha mais de quatro séculos, sucessivas geragdes de leitores o adoraram por diferentes motivos: umas choraram de rir com as trapalhadas do fidalgo que enlouque- ceu de tanto ler livros de cavalarias, outras sorriram entre la- agrimas, comovidas pelas andancas do justo Cavaleiro da Tris~ te Figura € seu bondoso escudeiro, A parddia humanista de Cervantes continua a crescer entre nés proporcionando ambas as experiéncias — que ndo se excluem — e ainda jogando prazerosamente com as ten- ‘ses entre ficgdo e realidade, sanidade e loucura, sabedoria e = ignorancia. Classico entre os classicos, comprova sua vitalida- de ao renascer na imaginacao de cada novo leitor. CERVANTES 1 3LOXxIND ‘a 0 engenhoso fidalgo D. Quixote de La Mancha (Primeiro Livro) Tradugo € notas de Sérgio Molina Apresentacdo de Maria Augusta da Costa Vieira Edigdo de bolso com texto integral ISBN 26-457-9 ll i) editorall34 editoralll34 MIGUEL DE CERVANTES O ENGENHOSO FIDALGO D. QUIXOTE DE LA MANCHA Primeiro Livro Tradugao e notas de Sérgio Molina ‘Apresentago de Maria Augusta da Costa Vieira Edigdo de bolso com texto integral editoralll34 EDITORA 34 Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 0145-000 ‘So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 wwweditora34.com.br Copyright © Editora 34 Ltda, 2010 Traducio © Sérgio Molina, 2010 'A FOTOCOPIA DE QUALOUER FOLNA DESTE LVRO € ILEsAL € configura uma apropriagao indevida dos direitos intelectuais e patrimoniats do autor. A presente tradugao foi realizada gracas 20 apoio da Diregdo Geral do Livro, Arquivos € Bibliotecas do Edigo conforme 0 Acordo Ortografico da Lingua Portuguesa. Capa, projeto grafico e editoragao eletronica Bracher & Malta Produgdo Grafica Revisto: Alexandre Barbosa de Souza, Cide Piquet CIP - Brasil. Catalogagio-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Cervantes, Miguel de, 1547-1616 canse ‘Oengenhoso fidaigoD. Qusote de La Mancha, Primero Lito / Miguel de Cervantes; treducio e notas de Sérgio Molina; apresentagdo de Maria Augusta da Costa Vira. ~ Sfo Paulo: Ed. 24,2010. 708. “Tradugio de: El ingenioso hidalgo don Quijate de a Mancha ISBN 976-05-7326-457-9, 1. Romanee espanhol. Molina, Sérgio. 1. Vieira, Maria Augusta da Costa. I itl. (C00 - 8636 istério da Educagdo, Cultura e Desporto da Espanha. SUMARIO Apresentacao de D. Quixote Nota a presente edigao Dedicatéria Prélogo .. Versos preliminares PRIMEIRA PARTE I. Que trata da condigao e do exercicio do famoso fidalgo D. Quixote de La Mancha TI. Que trata da primeira saida que de sua terra fez 0 engenhoso D. Quixote . IML. Onde se conta a curiosa maneira como D. Quixote foi armads cavaleiro wi... IV. Do que sucedeu ao nosso cavaleiro ao sair da estalagem V. Onde se prossegue a narracao da desgraca do nosso cavaleiro ... VI. Do gracioso e grande escrutinio que o padre e o barbeiro fizeram na biblioteca do nosso engenhoso fidalgo 1 35 39 41 S1 67 76 85 93 101 108 sim, pondo a prudéncia de Vossa Exceléncia os olhos no meu bom desejo, confio que nao desdenhara da pequenez de tao humilde servigo.2 Miguel de Cervantes Saavedra> 2A coincidéncia de frases inteiras desta dedicatéria com outra de autoria do poeta Francisco de Herrera, mais 0s muitos erros tipogréficos que apresenta na digo princeps, sio considerados indicios de que este texto nao foi eserito por Cervantes, ¢ sim por seu impressor, jé na hora de compor o livto. 3.0 sobrenome Saavedra, com o qual Miguel de Cervantes passa a assinar a partir de 1590, ndo pertence @ nenhum dos seus antepassados diretos. Ao que parece, tomou-o de Gonzalo de Cervantes Saavedra, seu parente distante; 0 mo- tivo é até hoje objeto de especulagses. 40 Pr6Loco Desocupado leitor: sem meu juramento podes crer que eu quise- ra que este livro, como filho do entendimento, fosse 0 mais for- ‘moso, 0 mais galhardo e mais discreto! que se pudesse imaginar. ‘Mas nao pude eu contrariar a ordem da natureza, que nelacada coisa engendra sua semelhante. E assim, que poderé engendrar 0 estéril e malcultivado engenho meu, senao a histéria de um filho seco, mirrado, caprichoso e cheio de pensamentos varios e nun- ca imaginados por outro alguém, tal como quem foi engendrado num cArcere,? onde todo o desconforto tem asserito e onde todo © triste rufdo faz sua morada? O sossego, o lugar aprazivel, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus, 0 murmurar das fontes, a quietude do espirito dio bom azo para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e oferecam ao mundo partos que o cumulem de maravilha e de contento. Nao raro tem um pai um filho feio e sem graca alguma, mas o amor que tem por ele poe-lhe uma venda nos olhos para que nao veja suas falhas, an- tes as toma por gracas e discrigdes e as conta aos amigos como agudezas e donaires. Mas eu, que, se bem pareca pai, sou padras- 1A palavra é usada aqui € em todo o livro no sentido de “sensato, inteli- gente e agudo", n8o no de “reservado, circunspecto”, hoje mais corrente, tanto em castelhano quanto em portugués. 2 Provavel referéncia 20 encarceramento de Cervantes durante alguns me- ses de 1597, por dividas, na priséio de Sevilha, onde teria concebido argumento inicial do tivo, 4“ to de D. Quixote, nfo quero seguir a corrente do uso suplican- do-te, quase com légrimas nos olhos, como outros fazem, leitor carissimo, que perdoes ou dissimules as falhas que neste meu fi- Iho vires, pois nao és seu parente nem seu amigo, e tens a alma em teu corpo € teu livre-arbitrio no justo ponto, e estés na tua casa, onde és senhor dela, como o rei dos seus cobros, e sabes 0 que comumente se diz, que “debaixo do meu manto, o rei eu ma- 10”, todo 0 qual te isenta ¢ livra de todo respeito e obrigacéo, assim podes dizer da hist6ria tudo o que te parecer, sem temer que te caluniem pelo mal nem te premiem pelo bem que dela disseres. Eu s6 quisera dar-ta enxuta e nua, sem 0 ornamento do pré- logo nem da infinidade e catdlogo dos costumados sonetos, epi- gramas e elogios que no inicio dos livros soem por. Pois sei dizer que, conquanto me tenha custado algum trabalho compé-la, ne- nhum foi maior que fazer esta prefacao que vais lendo. Muitas vezes tomei da pena para o escrever, muitas a deixei, por nio saber 0 que escreveria; ¢ estando numa delas suspenso, com 0 papel diante, a pena a orelha, 0 cotovelo na mesa ¢ a mao no queixo, pensando no que diria, entrou de improviso um amigo ‘meu, espirituoso e avisado, O qual vendo-me tao cismativo, me perguntou a causa, e no ocultando-tha eu, respondi que estava pensando no prélogo que tinha de fazer 3 histéria de D. Quixote, € que isto me punha de tal sorte que eu nem o queria fazer, nem trazer a luz as facanhas de tao nobre cavaleiro. — Como quereis que nao me tenha confuso 0 que diré 0 velho legislador chamado vulgo quando vir que, ao cabo de tan- tos anos dormindo no silencio do esquecimento, saio agora, com todos meus anos nas costas, trazendo por leitura uma legenda seca como um esparto, alheia de invengao, parca de estilo, pobre de conceitos e falta de toda erudigao e doutrina, sem rubricas as ‘margens nem notas ao fim, como vejo que tém outros livros, ain- a da que sejam fabulosos e profanos, tao cheios de sentencas de Arist6teles, de Plato e de toda a caterva de fildsofos, que se ad- miram os ledores e reputam os seus autores por homens lidos, eruditos ¢ eloquentes? E quando citam a Divina Escritura, entao? Dirdo quando menos que sdo uns Santos Tomases ¢ outros dou- tores da Igreja, guardando nisso tao engenhoso decoro, que aqui pintam um enamorado licencioso para ali fazerem um sermao- zinho cristo, que é um contento e um regalo ouvir ou ler. De tudo isto ha de carecer 0 meu livro, pois nem tenho o que rubricar as ‘margens, nem 0 que anotar ao final, nem menos sei que autores sigo nele para pér no inicio, como fazem todos, pela ordem do -abecé, comecando por Aristételes e acabando em Xenofonte e Zoilo ou Zéuxis, ainda que sejam maledicente o primeiro e pin- tor 0 segundo.3 Também de sonetos no inicio hé de carecer 0 meu _ livro, ao menos de sonetos cujos autores sejam duques, marque- ses, condes, bispos, damas ou poetas celebérrimos; bem que, se eu 08 pedisse a dois ou trés oficiais* meus amigos, sei que mos da- _riam, e seriam tais que os nao igualariam os daqueles que mais ‘nome tém em nossa Espanha, Enfim, senhor ¢ amigo meu — pros- _ segui —, eu determino que o senhor D. Quixote ha de permane- cer sepultado nos seus arquivos de La Mancha até que 0 céu pro- porcione quem o adorne de tantas coisas que Ihe faltam, pois eu me acho incapaz de as remediar, por minha insuficiéncia ¢ pou- cas letras, e por ser de natureza poltrao e preguicoso no andar a 3 Zoilo (WV a.C): sofista € eritico grego, detrator de Homero, Platao e Is6- crates. Zéuxis (IV-V 2.C): um dos principais pintores gregos de seu tempo. Reco- nhece-se neste trecho uma aluséo & lista de nomes histéricos que Lope de Vega incluiu em varios de seus livros. * Oficial: arteso com status entre aprendiz e mestre, mas também no sen- tido mais amplo, e entdo mais usual, de conhecedor do oficio. B cata de autores que digam o que eu bem sei dizer sem eles. Dai nasce, amigo, a suspensao e o arrebato em que me achastes, sen- do causa bastante para me pér nela a que de mim ouvistes. Ouvindo 0 qual meu amigo, dando uma palmada na testa e disparando uma salva de risadas, me disse: — Por Deus, irméo, que agora acabo de me desenganar do engano em que vivi todo o muito tempo que vos conhego, no qual sempre vos tive por discreto e prudente em todas as vossas ages. ‘Mas vejo agora que estais to longe de sé-lo como 0 céu esté da terra, Como é possivel que coisas de to pouca monta e fécil re- ‘médio possam ter forca para suspender e abismar um engenho tio maduro como 0 vosso, € tao afeito a vencer ¢ atropelar outras dificuldades maiores? A fé que isto nao nasce de falta de habili dade, e sim de sobra de preguica e pentiria de discurso.5 Quereis, ‘ver como é verdade o que digo? Prestai atencao, e vereis como num abrir e fechar de olhos eu desfago todas as vossas dificulda- des e remedeio todas as faltas que dizeis que vos suspendem e acovardam para deixar de dar 4 luz do mundo a hist6ria do vosso_ famoso D. Quixote, luz e espelho de toda a cavalaria andante. —Dizei — repliquei, em ouvindo o que me dizia — de que modo pensais preencher o vazio do meu temor e reduzir a clari- dade 0 caos da minha confusio? Ao que ele disse: —O primeiro em que reparais, dos sonetos, epigramas ou clogios que vos faltam para o principio, ¢ que sejam de figuras graves e de titulo, pode ser remediado com que vés mesmo vos deis ao trabalho de os fazer, e depois os podeis batizar com o no- me que quiserdes, afilhando-os ao Preste Joao das Indias ou ao 5.0 termo aparece aqui e em todo o livro na sua acepgdo de “raciocinio, discernimento, tino, também corrente no portugues cléssico. “4 Imperador da Trebizonda,® dos quais sei haver noticia de que foram famosos poetas; e se acaso o nao foram e houver alguns pedantes e bacharéis que pelas costas vos mordam e murmurem dessa verdade, nao se vos dé uma minima, pois ainda que vos descubram a mentira, ndo vos haverdo de cortar a mao com que a escrevestes. Quanto A citacao dos livros e autores donde tirardes as sentengas e ditos que puserdes na vossa hist6ria, bastard fazer de jeito que venham a calhar algumas sentencas ou latins que sai- bais de cor, ou pelo menos que vos custem pouco trabalho lem- brar, como sera pér, em tratando de liberdade e cativeiro: Non bene pro toto libertas venditur auro.7 Para em seguida, 4 margem,

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