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A PERSONAGEM BETH BRAIT editoracontexto PERSONAGENS E PESSOAS E provavel que os leitores mais criticos, aqueles que tm um contato ‘menos ingnuo com a obra de ficyio, achem curioso ¢ até engragado que muitos leitores do eseritor Arthur Conan Doyle (1859/Escécia — 1930/Inglaterra) reservem um espaco de sua viagem turistica & vista a Baker Sueet, niimero 221B, na esperanca de ali encontrar os aposentos, 6 laborat6rio 0s velhos livros de Sherlock Holmes. Eses amantes da ficgio policial, que leram ¢ releram cada uma das aventuras do her, acreditam realmente na existéncia de uma pessoa chamada Sherlock Holmes, um ser humano muito especial, o detetive que viveu todas as apaixonantes peripécias relatadas por um “ougo ser humano”, 0 caro Dr. Watson. Acontece que niimero 2218 néo exist na época em que as extéras de Sherlock Holmes foram publicadas e, até o final dos anos 1980, a néo existéncia causava, de certa forma, uma decepcio no Ieitor-viajante: mas no tio forte a ponto de apagar a ilusio da existéncia de Holmes. Para os figis leitores, tudo nao passava de mais um truque genial do brilhante detetive. Desde 1990, talvez pela forca da procura ¢ da importincia cultural da personagem, no 221B Baker St, Marylebone, London NW1 6XE, Ux, esté 0 Sherlock Holmes Muscum, criado pela Sherlock Holmes Society of England. Na casa em estilo do século x1x, na porta do muscu, hd uma placa dizendo que Holmes viveu li. Eo visitante ganha até tum cartio para utilizar os servigos do detetive: 2.1B BAKER STREET LONDON Nw1 SHERLOCK HOLMES GonsuLtinG DETECTIVE ae Cartdo entregue aos vistantes pelo guarda que fica na porta do museu. Mas nao hé motivo para riso, Ao menos nao ha motivo para esse riso de des émm, caracteristico dos que nunca tiveram déwvida de que Watson e Sherlock sio apenas criagées de Conan Doyle. Curiosamente, esses mesmos leitores que acreditam separar com clareza a vida da ficgéo, mesmo que muitas vezes apreciem mais a ficgio que a vida, teriam algumas dificuldades para negar que jé se surpreenderam chorando diante da morte ée uma personagem. Nao hé distanciamento leitor-texto que possa refrear a emogdo sentida, 16 fad ca ds prea por cxemplo, quando em Grande sertio: veredas nos defrontamos com Reinaldo-Diadorim morta. Endo se trata de uma emogio superficial, provocada apenas pelo dado da surpresa: a releitura do romance no impede que a emogio seja revivida. E é precisamen- te isso que faz cessar o iso e aflorar as cismas. Afinal de contas, diante do leitor hé apenas “papel pintado com tinta’? Além disso, {que outra matéria, que outra natureza revests esses seres de ficgo, esses edificios de palavras que, por obra ¢ graca da vida ficcional, cespelham a vida c fingem téo completamentea ponto de conquistar a imortalidade? Essa questio no é simples. Nem este é o primeiro ou o tiltimo livro que busca rastrear os segredos da personagem. Na tentativa de recolocara questio da personagem de forma a recuperar a tradi¢éo do cstudo desse item da narrativa e discutir aspectos de relevancia para (0s que se interessam por teora literétia, comegaremos pela trilha mais prosaica: consultar um dicionétio. O Novo diciondrio Aurélio, impresso, de 1975, oferecia aseguinte definigao de personagem: Personagem [Do fz. personnage] Sf. em. 1. Pessoa notével, ‘eminence, importante; personalidade, pessoa. 2. Cada um dos papéis que figuram numa pega teatral e que devem ser ‘encarnados por um ator ou uma atriz; figura dramética 3. ext. Cada uma das pessoas que figuram em uma narragio, poema ou acontecimento. 4.P. ext Ser humano representado em uma obra de arce: “A crianga é um dos personagens mais bonitos do quadro" (© Diciondria Aurélio online retivoua origem da palavraetopicalizou 7 Aber 1 Pessoa ficticia de uma obra literria ou teatral 2 Papel desempenhado por um ator. 3 Pessou considerada em sua aparéncia, em seu comportamento. 4 Representagio de um ser humano numa obra de arte. 5 Personagem influente: Pessoa importance ou eélebre. {6 Personagem muda: Pessoa que,em qualquer ato, representa ‘um papel insignificante2 Esse verbete, impresso ou on-line, néo ajuda muito. Na verdade, cle mais confunde que esclarece. Para explicar a palavra persomagem, a palavra ‘pessoa(s)” foi utiizada trés vezes, na versio impress, € quatro na on-line, ¢ a expressio “ser humano” uma vez. Tratando-se de um dicionétio geral da lingua € no de um diciondtio especializado em tcorialiterdria, é plenamente justificavel o jogo explicativo em que uma palavra é tomada por outra. Mas esse jogo metalinguistico simplista aponta mais uma vez para uma confusio terminolégica que traduz.com clareza a confusto existente entre a relacio paso set vivo - € persona _gem ser fccional. Ainda que os termos “papéis”e “figuras draméticas” indiquem possiveis diferengas existentes encre pessoas e personagens, as frases “Cada uma das pessoas que figuram em uma narragéo, poema ‘ou acontecimento” e “Pessoa considerada em sua aparéncia, em seu comportamento” obrigam o leitor a encara: a narracio, 0 poema € 0 acontecimento como sendo fendmenos de uma mesma espécie, de uma ‘mesma natureza. E, textualmente, a identificar pessoas e personagens. ‘Mas, sc um dicionzrio geral da lingua nao tem nenhuma obriga- so de contribuir para a resolucio de dividas muito especializadas, passemos a um dicionatio especializado, No Diciondrio enciclopédico das ciéncias da linguagem, organiza do por Oswald Ducrot e Tevetan Todorov, ha um item que parece pertinente transcrever aqui, pois ajuda a pensar o dificil problema da relacio personagem-pessoa. 18 cde cnt ds pone Uma leicura ingénua dos livros de ficgéo confunde perso- nagens ¢ pessoas. Chegaram mesmo a escrever “biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro ("O que fia Hamlet durante seus anos de estudo) Esquece-se que o problema da personagem ¢ antes de tudo linguistico, que ndo existe fora das palavras, que a persona- gem € “um ser de papel”. Entretanto recusar toda relacéo entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens re- presentam pessoas, segundo modalidades préprias da fiogio.? Essas poucas linhas contém, agora sim, alguns elementos que permitem iniciar uma reflexio, Ao discutit a questo personagem- pessoa, os autores procuram salientar dois aspectos fundamentais: + 0 problema da personagem é, antes de tudo, um problema linguistico-artistico, pois a personagem nio existe fora das palavras; * as personagens representam pessoas, segundo modalidades proprias da Fes. Na aparente simplicidade desses dois enunciados residem os nicleos essenciais da questio. Se quisermos saber alguma coisa a respeito de personagens, teremos de encarar ¢ construgio do texto, @ maneira que 0 autor encontrou para dar forma as suas criaturas, € ai pingar a independéncia (ou nao!), a autonomia e a “vida” desses setes de ficgio, que fazem a ponte entre a arte ¢ a vida. E somente sob essa perspectiva, tentativa de deslindamento do espaco habitado pelas personagens, que poderemos, s itil e se necessério, vasculhar a existéncia da personagem enquanto representagio de uma realidade exterior a0 texto. 19 REPRODUGAO E INVENGAO Partindo da premissa de que a personagem é um habitante da realidade ficcional, de que a matéria de que é feita € 0 espago que habita sio diferentes da matéria e do espago dos seres humanos, mas reconhecendo também que essas duas realidades mantém um intimo relacionamento, cabe inicialmente perguntar: + De que forma o escritor, o criador da realidade ficcional, passa da chamada realidade para esse outro universo capaz. de sensibilizar o leitor? * Que tipo de erabalho estético requer esse processo capaz de reproduzir c inventar seres que se confundem, especialmente em nivel de recep¢ao, com a complexidade € a forca dos seres humanos? ‘Ao colocar essas quest6es, caimos necessariamente no universo da linguagem, ou seja, nas maneiras que o homem invencou para reproduzir e definir suas relagées com 0 mundo. Voltamos, portan- to, nosso olhar as formas inventadas pelo homem para representa, simular e criar a chamada realidade. Nesse jogo, em que muitas, vezes tomamos por realidade 0 que é apenas linguagem (c ha quem afirme que a linguagem e a vida so a mesma coisa), a personagem ndo encontra espaco numa dicotomia simples, entendida como ser reproduzido/ser inventado. Ela percorre as dobras ¢ 0 vids dessa relagio ¢ af situa a sua existencia, Para comegar a compreender a questéo, vamos partir de uma forma de reprodugio da realidade, alinguagem fotogréfica, normal- mente aceitae vista como uma maneira bastante “objeriva” de captar real. Tomemos como exemplo dois “gneros” de reproducéo de 20 fax dec das oon imagem através da fotografia: o retrato trés por quatro, normalmente utilizado em documentos, ¢ os retratos de estrelas consagradas pelos anos de ouro do cinema americano ou mesme por pessoas comuns que se produzem para uma fotografia A foto trés por quatro parece ser uma dis maneiras mais ob- jetivas de reproduzir a imagem de uma pessoa. Tanto é verdade que oficialmente elas garantem a identidade da pessoa retratada quando colocadas, por exemplo, num passaporte, numa carteira de motorista ou de trabalho. Elas sdo as pessoas retratadas. guém duvida. Entretanto, essa “presenga de uma auséncia”, esse testemunho indubicével de uma existéncia, no pode ser confundido com a pessoa. Papel e gradagoes de branco e preto, resultantes de con- quistas técnicas, sio criagées que a habilidade humana inventou para representar, simular o real. A semelhanca com o real reside no registro de uma imagem, flagrada num dado momento, sob um determinado Angulo e sob determinadas condigées de luz. Esse produto diz muito pouco, ou quase naéa, da complexidade do set humano retratado. Talvez por essa razio as pessoas facam tanta forga para aparentar e passar para a fotografia a imagem que fazem de si mesmas: cabelos penteados, sorriso, eve ar de seriedade, queixo erguido e outros aspectos selecionades pela pessoa e pelo fotdgrafo para compor a imagem que seré registrada. Os resultados a reagio dos fotografados diante de suas foros demonstram que nao é facil construir a prépria imagem para fazer de conta que se € exatamente aquilo. Basta olhar alguns retratostrés por quatro, aqui ou na vitrina dos forégrafos, para pensar um pouco nos frigeis limites que separam (Ge & que esses limites existem...) a reprodugio fiel da realidade e a simulagio do real. 21 Apenonee one &2ALa Fotos do arquivo pessoal da autora, tratadas pelo fotegrafo Moracy Rodrigues de Oliveira, ‘Mas, se as fotos para documentos guardam ainda uma proximi- dade entre a pessoa retratada e a imagem resultante, tomemos outro tipo de fotografia em que o resultado evidencia uma composi¢io, um trabalho de linguagem em que o fordgrafo utiliza conscientemente os recursos oferecidos pela linguagem fotogréfica, selecionando combinando os elementos necessérios para criar uma realidade, ainda ‘que, para um receptor ingénuo, ele pareca esta: apenas reproduzindo uma realidade. “Tomemos o exemplo de duas imagens de atrizes de cinema dos anos 1930 ¢ 1940. 22 fede coe de prone Foto da atriz Marlene Dietich, Fotode Hedy Lamar, realizada por Don English para feita para a publicidade 2 publicidade do fime Expresso do do fime Um rival nas ‘Shangai [Shanghai Express), alturas (The Heavenly Boo, de 1932, drigido por Josef von de 1844, digido por ‘Stemberg e distrbuido pela ‘Nexander Hal, Paramount Pictures. produzid pela MG, sas duas fotos, ambas realizadas para a publicidade de importan- tes filmes, vo muito além de um simples e espoatineo retrato de duas pessoas. O assunto escolhido pelos fordgrafos que realizaram as imagens para publicidade—Marlene Dietrich e Hedy Lamarr—¢ trabalhado com requinte de luzes, de perspectiva, de diregao da cabega e do olhar. No jogo declaro-escuro, técnica que nesses casos contribui para dissimularo real a fim de capear uma beleza, uma presenga que extrapola o simples universo dos mortas, o forégrafo esculpe quase que uma mascara.‘ A. expressio forogréfica, que tem como ponto de partida néo as pessoas de Marlene e Hedy, mas a estrelas de cinema com toda a carga cultural e estétca que clas epresentam (veja-s o detalhe do cigaro, hoje politicamente incorteto, caxja fumaga envolveo todo esimboli ‘6tia da luz, nos elementos que o forégrafoselecionou para registrar o seu ‘assunto, um momento de captacio de um mundo maravlhoso, dos sonhos vendidos por Hollywood e avidamente consumides pelos espectadores. } glamour) encontra na combina- 23 Nos dois casos, a manipulagio dos recursos fotogréficos (prepara 0 de estiidio e mais a habilidade do fotdgrafo) impéem ao observador dois rastos misteriosos, produzidos por um filtro que acaba por registrar nao pessoas de carne ¢ osso, mas ideais de beleza, sonho ¢ glamour. Na verdade, no lugar de simplesmente registrar uma imagem, o for6grafo cria 0 assunto. Bo que se v, através io da estrela, utiliz de recursos forogrificos, éa representagio do mundo dos artistas que encantavam o piblico justamente por pertencerem a um universo que nada tinha aver com o cotidiano prosaico e endurecido pela crise que © mundo atravessava naquele momento, Portanto, para esas fotos, a expresso “registro do real” comega a assumir caracteristcasespeciais. O fotdgrafe nao registra uma imagem. Ele cria uma imagem. Seu ponto de partida e seus instrumentos sio trabalha- dos para tiara iluséo do real. Embora nfo se possa falar em personagens, no sentido de sees interamente ficicis, ¢impossivel nfo captar nessas imagens a mitologia hollywoodiana, imposta precisamente pela méscara {que o fot6grafo csculpe no lugar de um rosto mortal. E ai comega a ficar , Peo em: 100. 2016 5} O:DuciceT Today, Bicone epee der ic de lngnagem, So Paulo, Pespeciv, 1972p 26 «Roland Bute, no ro Mika (Sho Paso, Dis Europes do Live, 1972) frum eo tstaneincamt peo d om de Gra Gabo, Vala pena confer: "ro de Get Guo. 47 5 ito Ardede, “Eu sou sess.” em Psa compeefBoat de mae 4 Sto Pal, Matin 1974, 157 « Dapoilem: hap orpnonethboned palin porn tine. ‘ew oat 206, asl Pomel O Aan 5:0, SS Pao, ec, 1977, pp 124 35 NO PRINCIPIO ESTA ARISTOTELES ‘Tanto o conceito de personagem quanto a sua funglo no discurso estio diretamente vinculados nao apenas & mobilidade criativa do fazer artistico, mas especialmente & teflexio a respeito dos modos de existe € do destino desse fazer. Pensar a questéo da personagem significa, necessariamente, percorrer alguns caminhos trilhados pela critica no sentido de definir seu objeto e buscar o instrumental ade- quado & andlise ¢ fandamentacio dos jutzos acerca desse objeto. J foi dito e impresso, muitas vezes, que é impossivel iniciar uma reflexio teérica sem voltar o olhar para a Grécia antiga e para 6s pensadores que impulsionaram o conhecimento. No caso da per- sonagem de ficcio, é também nesse momento que se vai encontrar 6 inicio de uma tradigao voltada para o conkecimento e a reflexéo dessa instincia narrativa. Dos tedricos conhecidos, Aristételes &0 primeira a tocar nesse pro- blema, Ao discutir as manifestagées da poesia lirica, épica e dramética,! esse pensador grego levantou alguns aspectos importantes, que marcaram «e marcam até hoje o conceito de personagem + sua fungao na literatura. Um aspecto relevante dos estudos aristotlicos & 0 que diz respeito a semelhanga existente entre personagem ¢ pessoa, conceito centrado na discutida, eraras vezes compreendida, mimesis aristotéica. Durante ‘muito tempo, o temo mimesis Foi traduzido como sendo “imitagio do real", como referéncia direta& elaboracso de uma semelhanca ou ima- gem da natureza, Essa concepeio, até certo ponto empobrecedora das afirmagées contidas no discursoaristotélico, marcou por longo tempo as tentativas de conceituagio, caracterizagio valoragio da personagem. Naverdade, o que alguns criticos contemporineos tém procurado demonstrar é que uma leitura mais aprofuncada e menos marcada do conceito de arte, consequentemente, do conceico de mimesis contidos nna Poética,revela 0 quanto Aristételes estava preocupado nao s6 com aquilo que é “imitado” ou “refletido” num poema, mas também com a propria maneira de ser do poema ¢ com os meios utilizados pelo poeta para a elaboragio de sua obra Aristételes aponta, entre outras coisas, para dois aspectos essenciais: + a petsonagem como reflexo da pessoa humana; + apersonagem como construcéo, cujaexisténcia obedece ds leis particulares que regem o texto. Seria necessitio, portanto, reler Arst6tees para resgatar o conceito de verossimilhanga interna de uma obra, muito mais importante que imitagao do rel, mal-entendido que marcou uma longa tradigfo critica ce que até hoje assombra os estudos da personagem. A esse respeito € a titulo de exemplo, considere-se a seguinte passagem de sua Poétca: 38 A enmnagen sade tie [Nio ¢oficio do poeta narrar 0 que realmente acontece; é sim, representa o que poderiaacontecer, quer dizer: © que possivel, verossimil e necessério, Com efeito, nao diferem o historiador ‘€0 poeta, por escreverem em verso ou prosa [.J,~ diferem sim em que diz um as coisas que sucederam, €0 outro a5 coisas aque poderiam suceder. Por iso poesia € mais flosicae mais clevada do que 3 histdra, pos refere aquela principalmente 0 ‘universal ¢ esta 0 particular. Referirse ao universal, quero eu dizer: atribui um individuo de determinada natureza pensa- _mentoseagées que, pr liame de necesidade everossimilhanga, convéin a tal natureza; € 20 univers, assim entendid, visa a poesia quando pée nome &s suas pesonagens [1] (Ou ainda uma passagem anterior: Una éa fibula, mas néo por se referr a uma s6 pessoa, como creem alguns, pois hé muitos acontecimentoscinfinitamente ‘iris, espeitantes uma sé pessoa, entre 0s quais nfo € pos- sivel estabelecer unidade alguma, Muitas sio as ages que uma pessoa pode praticar, mas nem por ‘so elas constituem uma asio una. (..] Homero, assim como se distingue em tudo 0 _mais, parece bem ter visto este lado da poesia, quer fosse por arte, quer por engenho natural, pois a0 compor a Odiscia, 1ndo poctot todos os sucessos da vida de Ulises, por exemplo ‘0 ser ferido no Parnaso co simular louco no momento da cexpedigio. Porque, de haver acontecido uma dessas coisas, iio se seguia necessariamente ou verossimilmente que a ou- tra houvesse de acontecer, mas comps sobte o fundamento de uma agio una, a Odiseia, no sentido que damos a estas palavras, ede modo semelhante, 2 lida [Nessas duas passagens,evidencia-seo destaque dado por Arstételes a0 trabalho de seleséo efetuado pelo poeta diante da realidade e aos 39 modos que encontra para entrelacar possibilidade, verossimilhanga e necessidade, Portanto, nao cabe & narrativa poética reproduzir 0 que existe, mas compor as suas possibilidades. Assim sendo, parece razodvel estender essas concepgbes, 0 conceito de personagem, enquanto ente composto pelo poeta a partir de uma selegao ciante da realidade, cuja natureza ¢ unidade s6 podem ser conseguidas a partir dos recursos izados para a criasio. SPIELBERG E ALENCAR? Considerando essa uma leitura possivel de Aristételes, podemos perceber que o conceito de verosimilhanga interna de uma obra extse- _mamente pertinentee pode serutlizado na letura de obras produzidas em outros momentos que no os estudados pelo pensador grego. Veja-se 0 caso do filme Indiana Jones #0 templo da perdigio (cur, 1984), dtigido por Steven Spielberg. Nessa narativa cinemato- erifica, como se sabe, a personagem central Indiana Jones—enfienta uma série de perigos para encontrar centenas de eriangas raptadas por fandticos religiosos e também recuperar uma peda sagrada. A aco se passa na India. ‘Quem assstu ao filme, uma sequéncia vertiginosa de ages “emo- cionantes” cm que o her6i e seus dois companheiros levam sempre a melhor sobre os poderosos inimigos, poderé entender perfeitamente © que significa verossimilhanca interna. Seo espectador quiserjulgaro filme através dos dados plausiveis que a ralidade exterior ao texto oferece,teré de admitira falta total de vveracidade, ulgando-o inteiramente absurdo, Como é possivel aceitar que, durante uma longa luta nas escarpas de um precipicio em que todos 0s inimigos sio derrotados, o her6i sai intacto, sem derrubar 40 A ovonagm emo ote sequer o chapéu que traz na cabeca? Entretanto, se essa obra-prima da industria cultural pode ser questionada por uma série de fatores, certamente néo o seré pela auséncia de verossimilhanga. A personagem Indiana Jones, vivida pelo belo ator Harrison Ford, apesar de todo 0 aparato modernoso sustentado pelos efeitos especiais, ndo deixa de ser © mesmo mocinho dos filmes de cowboy, o mesmo her6i das narrativas tradicionais, cheias de obsticulos a serem transpostos, o mesmo moci- sho romantico, cujo destino é vencer inimigos ¢ conquistar 0 coragio da mocinha, Ou sea, seu comportamento ¢ o desfecho das ag6es por cle protagonizadas apoiam-se nas necessidades do encaminhamento dda histéria, da fabula, que neste caso é suficientemente redundante, exaustivamente marcada por tragos acumulados por uma tradi¢éo narrativa despida de estranhamento. Indiana Jones é, desde o comego, reconhecido como mocinho, ‘como herdi que vai vencer o mal. Eleé bonito, éinteligente, éesperto, detéin um saber ~ é um arqueélogo e fala vias linguas—e estérevest- do além disso tudo, do mito do super-homem. Como o espectador ji assimilou todos esses tragos em outras narratives, identifica de imediato co herdi e espera que a narrativa cumpra, assim como a personagem, 0 seu conhecido destino. Dessa forma, as surpresas ficam por conta da articulagéo das agées e do desempenho coerente da personagem em suas emocionantes aventuras Como a narrativa transcorre dentro da férmula tradicional, 0 que seria absurdo, se © parimetro fosse a realidade exterior & obra, torma-se cocrente, torna-se verossimil. E, se o chapéu de Indiana néo cai da cabesa mesmo nos momentos mais cricos, isso fica por conta da verossimilhanga interna da obra. E aqui, por analogia, certamente ‘vém & mente do leitor/espectador muitos outros filmes que, desde ticulo escancaram um tipo espalhafitoso de agio: Mdguina mortifera 4 (1998), filme dtigido por Richard Donner e etrelado por Mel Gibson, 41 Danny Gloves, Cris Rock, Rene Russo, entre cutros; Duro de matar 4 (2007), ditigido por Len Wiseman, tendo no elenco Bruce Willis, Justin Long, Timothy Ophran, entre outros. De Aristételes ¢ suas consideracées sobre tragédia e a epopeia, passamos para Spielberg e sua versio moderna dos surrados heréis, provavelmente chocando alguns leitores. Agora vamos para outra personagem, desta vez da literatura brasileira, que também ajuda a entender 0 conceito de verossimilhanca interra de uma obra, Vamos «spar sob essa dticaa nossa Iracema de José de Alencar (1829-1877), procagonista do romance homénimo /racema (1865). ponto de partida do romance € um argumento histérico: a fun- dacio do Cearé. Nem por isso 0 autor deve ou vai se comportar como uum historiador. A personagem Iracema, elemento que nos interesa neste ‘momento, vai sendo esculpida no por imitagio a um indio real, com quem se pudesse tropecar nas selva brasileiras, mas com a selegio de informagdes fornecidas pelos cronistase com o tabalho de ciagio de um romancista-poeta empenhado em resgata, pela linguagem, uma criatura possfrel de um mundo selvagem ainda néo dominado pela civilizagio: Além, muito além daquela sera, que nda aula no horizonte, nnasceu Iracema. Tracema, a virgem dos libios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a.asa da graina,¢ mais longos que seu talhe de palmeira. 0 favo da ati nao era doce como seu sortiso; nem a baunilha rteacendia no bosque como seu hilta perfumado. ‘Mais répida que a ema selvagem, a morena virgem cortia 0 sertéo € as matas do Ipu, onde campeava sua guerrera tribo da grande nagio tabajara. O pé gricil e nu, mal rogando, alisava apenas a verde pelicia que vestia a terra com as smeiras éguas.? 42 Aes mearadite otce ‘A personagem Iracema, desde 0 nome ~ labios de mel, de ira, na lingua tupi, ou reverberagio de América, ou seja, Iracema € um anagrama de América — até as ilagbes possiveiscom a matriz.do Novo ‘Mundo - ela é a mae de Moacit, cujo pat é o branco Martim, cla é a selvagem penetrada pelo colonizador, ela morre e deixa um filho rmestigo como sobrevivente e primeiro de uma raca parida e marcada pelo softimento -, deve ser lida como verossimil. José de Alencar recorre para a construcéo dessa personagem, © de todo o romance, a um processo tradutor da lenda, do argumento histrico, que aponta néo para o aportuguesamento do indio, para sua diluigio através de uma érica ocidentalizada, mas, a0 contririo, para co quese poderia chamar de “tupinizagio” da literatura. Todas as com- paragées, todas as metéforas, todas as imagens que véo dando forma personagem, sé podem ser decodificadas a partir da cultura indigena recuperada e reinventada pelo escritor. Assim sendo, a consisténcia, a poesia ¢ a beleza da personagem Iracema s6 podem ser julgadas (se & que alguma personagem pode ser julgala...) por meio de uma compreensio dessa atitude pottica radical, desses recursos tradutores ‘de um mundo recriado por Alencar e articulado de forma a estabelecer uum didlogo entre a Hist6ria e suas possibilidides. Invertendo a méo, 0 esctitor brasileiro faz.0 texto falar a lingua indigena numa dicgio de ‘um mundo possfvel, que s6 a literatura pode recuperat. PERSEGUINDO A PERSONAGEM Os estudos empreendidos por Aristétels serviram de modelo, num certo sentido, & concepeio de personagem que vigorou até meados do século xvm, momento em que 0 conceite de mimesis flagrado no pensador grego e manipulado por seus interpretadores comega a ser Es) combatido. Durante esse longo periodo, todosos teéricos que trataram, de questées ligadas & arte, incluindo-se aio problema da personagem, foram influenciados pela visio aristorélica e mais particularmente pela tese ético-representativa encerrada em sua teoria No inicio desse percurso situa-se Horécio (65-8 a.C.), 0 poeta latino que em sua Ars poetica divulga as ideias aristotéicas e reitera as suas proposi s. No que diz respeito & personagem, Horacio associa ‘o aspecto de entretenimento, contido na literacura,& sua fungio pe- dagégica, ¢ consegue com isso enfatizar o aspecto moral desses seres ficticios. De certo modo, a concepcio de personagem divulgada pelo pensador latino contribui de forma significaiva para que se acentue 0 conceito de imitagio propiciado pelo termo mimesis para a reins- tauragio da finalidade usilicarsta da arte, entrevista em Aristétees. “Apegado as relagbes existentes entre a arte ea ética, Horicio con- cebe a personagem nio apenas como reproduséo dos seres vivos, mas como modelos a serem imitados, identificando personagem-homem c virtude ¢ advogando para esses seres 0 estaruto de moralidade hu- ‘mana que supée imitasio, Ao dar énfase a esse aspecto moralizante, ainda que suas reflexées tenham chamado a arengio para o caricer de adequacio ¢ invengio dos seres icticios, Hordcio contribuiu de- cisivamente para uma tradigio empenhada em conceber e avaliar a personagem a partir dos modelos humanos. Seguindo 0 percurso, vamos encontrar tanto na dade Média quan- ‘ona Renascen¢a o florescimento da concepsie de personagem herdada dos dois pensadores. A natureza da literatura produrida na Idade Média ‘¢0 imperialismo dos principios cristios propiciam a identificacio da personagem com fonte de aprimoramento moral. A cangio de gesta, ‘como se sabe, ocupa-se das facanhas de um heréi que personifica uma asio coletiva, enraizada na meméria coletivz. © romance medieval, por sua vez, esté profundamente ligado & historiografia, espelhando a 44 A peomapm ea rai toe vivencia cortés © 0 idealismo guerrero. Em fungéo dessas narrativas © das constantes formulagbes acerca da moralidade da arte, apersonagem conserva na Idade Média o cariter de forea representativa, de modelo humano motalizante, servindo inteiramente acs ideais crstios. O compromisso estabelecido entre personagem e pessoa perdura, sob novos auspicios, na Renascenga nos séculos que a ela se seguem. E Aristételes e Horicio sio os modelos literalmente retomados para fundamentar essa concepcio e garantir a perpetuagio critica desse ponto de vista. No século xv, o poeta inglés Philip Sidney (1554-1586), au- tor, entre outras obras, de A defisa da poesia (A Defence of Poetry).* um dos primeiros ensaios de apreciagio critica da literatura inglesa, cujo cariter polémico vem justamente da exaltagfo da fungio do poeta na sociedade, procura deixar claro, rastreando Arist6teles e Hordcio, que as artes t8m valor na medida em que conduzem a uma agéo virtuosa, ‘eque a personagem deve sera reprodugio do melhor do ser humano, Essa concep, extraida das consideragées que o autor faz da pocsia edos poetas de sua época, que virtualiza a personagem como um ente semelhante mas ainda melhor que seu modelo humano, encontra eco ‘em outros teéricos. No século xv, 0 poeta e autor dramético inglés John Dryden (1631-1700), considerado 0 primeiro grande critico da Inglaterra, deixa entrever em seus preficios e principalmente na obra Ensaio sobre a poesia dramética (An Exay of Dramatick Poesie), de 1668, uma concepgéo antropomérfica de personagem, baseada também nos conceitos aristotélicos ¢ horacianos. E dle nio € 0 tinico. Seria possivel elencar aqui vérios outros conceituados autores que, durante os séculos xvt e xvi, legaram & posteridade curiosos estudos da personagem como imagem de pessoa, revestida da moralizante condigio de verdadeito retrato do melhor do ser humano. E ¢ essa concepgio que vai continuar vigorando até meados do século xvi, 45 OS NOVOS ARES DOS SECULOS XVIII E XIX ‘A partir da segunda metade do século xvm, a concepgio de per- sonagem herdada de Aristételes e Horicio entra em declinio, sendo substieuida por uma visio psicologizante que entende personagem como a representacio do universo psicolégico de seu criador. Essa mudanga de perspectiva se dé a partir de uma série de circunstincias, que cercam 0 final do século xvute praticamente todo o século xx. nnesse momento que o sistema de valores da estética clissica comeca a declinar, perdendo a sua homogeneidade ¢ a sua rigidez. E também reste momento que o romance se desenvelve e se modifica, coin dindo com a afirmagio de um novo piiblico — 0 piiblico burgués caracterizado, entre outras coisas, por um gosto artstico particular. Especialmente no século xvi, o romance entrega-se &anilise das ppaix6es e dos sentimentos humanos, a sétia sociale politica c também as narrativas de intengées filoséficas. Com cadvento do romantismo, chega a vez do romance psicolégico, da confissio e da “anilise de almas”, do romance histérico, romance de eritica ¢ andlise da reali- dade social. E é durante a segunda metade ¢o século xx que o género alcanga seu apogeu, refinando-se enquanto escriturae articulando as cexperiéncias humanas mais diversificadas. Aos realistas e naturalistas, coube perseguit a exatiddo monogrifica dos estudos cientificos dos temperamentos ¢ dos meios s Coincidindo com o apogeu da narrativa romanesca, aumentam as pesquisas teéricas que procuram encontrar na génese da obra de arte, nas circunstincias psicolégicas e sociais que cercam 0 artista, os istérios da criacio e, consequentemente, 1 natureza e a fungéo da petsonagem. Nesse sentido, os seres ficticios no mais sao vistos como imitagéo do mundo exterior, mas como projegéo da maneira de ser do csctitor, E€ por meio do estudo dessas criaturas produzidas por seres 46 A penonagen eatin ptivilegiados que é possivel detectare estudaralgumas particularidades do ser humano ainda nfo sistematizadas pela Psicologia, pela Psicandlise pela Sociologia, para citar algumas das ciécias humanas nascentes, ‘Assim, a personagem continua sendo vista como ser antropo- meérfico cuja medida de avaliagio ainda é o ser humano, Néo existe 1 rigor, até esse momento, uma teoria da prosa de ficcéo que possa estudar e entender a personagem em sua especificidade. Os estudos desenvolvidos durante esse longo perfodo nada mais fazem que re- produzir por prismas diversos a visio antropomérfica da personagem. Essa tradicao s6 vai ser alterada nas primeiras décadas do século xx ‘coma sistematizacio da critica liveréria, em suas diversas tendéncias, com a reabercura do dislogo acerca das especificidades da narrativa «ede seus componentes. ‘A PERSONAGEM SOB AS LUZES DO SECULO XX AA prosa de ficgio sofre, no século x, grande metamorfose, se comparada aos modelos narrativos que se tornaram clissicos no século xtx, Ao lado das profundas andlises empreendidas por escritores| do porte de Marcel Proust (1871-1922), Virginia Woolf 1882-1941), Pranz Kafka (1883-1924), Thomas Mann (1875-1955) e James Joyce (1882-1941), opera-se uma significativa modificagio na concepgio da cscritura narrativa, desenvolvida por esses e outros grandes escritores. Essas transformagées, que correm paralelas 8s grandes transforma- bes do texto poético, coincidem com uma violenta reagéo contra 0 factualismo das indagagées biogrificas ¢ das pesquisas de fonte. ‘Sistematizada por virias tendéncias e objetivando um conhecimento das especificidades da obra literdria como um ser de linguagem, a ccitica respira novos ares. 47 Apenoceon No que diz respeito especificamente ao romance e & persona- gem de ficgao, & somente com a obra Teoria do romance (1920), de Gyérgy Lukics (1885-1971), que essas questées sio retomadas em novas bases. Lukes, relacionando 0 romance com a concepcio de ® uthiggaeenasasiatendemeesnies ena ~ confronto entre o heréi problemético eo mundo do conformismo. « € das convengées, © herdi problemético, também denominado demoniaco, esté a0 mesmo tempo em comunhao e em oposigio ao mundo, encarnando-se num género literdrio, o romance, situado entre a tragédiae a poesia lirica, de um lado, ea epopeia eo conto, de outro. Nesse sentido, a forma interior do romance nao ¢ senéo A nova concepefo de personagem instaurada por Lukics, apesar de reavivar 0 didlogo a respeito da questio e de fugie as repetigées do legado aristorélico ¢ horaciano, submetea estrutura do romance, econ- sequentemente a personagem, influéncia determinante das estruturas sociais. Com isso, apesar da nova ética, a pe:sonagem continua sujeita 20 modelo humano, nao obstante as teoriasa respeito da poesia ji te- tem avangado quilémetros na direcio da especificidade da linguagem. ‘Ainda na fértil década de 1920, outros criticos, pensadores,rebricos da literatura efil6sofos da linguagem, de diferentes partes do mundo, empenham-se em esclarecer importantes aspectos diretamente ligados ao género romance e & personagem de ficgio. Em 1927, aparece o livro Aspectos do romance do inglés E. M. Forster (1879-1970), que, apesar de sua vasa obra como romancista, contista, critic, ensaista, dentre outros géneros por ele praticados, imortalizou-se pela clasificagio de personagens em flat— plana, tipi- ficada, sem profindidade psicolégica ~ e muund ~ redonda, esfética, complexa, multidimensional. 48 Aposmagn a mais ces A publicagio de Aspectos do romance acontece num contexto povoado por obras marcantes, que abalavam as velhas estruturas do romance, como era o caso das de Marcel Proust (Fim busca do tempo perdido, publicada em sete partes, entre 1913 e 1927), Virginia Woolf (Mrs, Dalloway ¢ de 1925 e Ao farol é de 1927), James Joyce (Uses é de 1922 © Pomas, um tostio cada € de 1927), dentre outras. Ao ‘mesmo tempo, o barulho da critica fazia-se ouvir sonoro pela dicgio da estlistica Linguistica, do formalismo russo e da neocritica ou nova rita, que eclode um pouco depois. Todas como uma espécie de teagio contra os métodos da histéria literdtia positivista. Sensfvel 4 producio literdria do momento ¢ tocado possivelmente pelo posicionamento florescente de uma critica voltada mais para 0 texto que para 0 autor, Forster encara a intriga, a histéria e a perso- nagem como os trés elementos estruturais essenci a0 romance € trabalha o ser ficticio como sendo um entre os componentes bisicos da narrativa, Essa concepsio, que encara a obra como um sistema e | Segundo Forster, as personagens, flagradas no sistema que é «obra, podem ser classificadas em planas e redondas/esféricas. As personagens planas sio construfdas a0 redor de uma tinica ideia ‘ou qualidade. Geralmente, sfo definidas em poucas palavras, estio imunes & evolugso no transcorrer da narrativa, de forma que as suas ag6es apenas confirmem a impressio de personagens estiticas, nio reservando qualquer surpresa 20 leitor. Essa espécie de personagem pode ainda ser subdividida em tipo ¢ caricatura, dependendo da dimensio arquitetada pelo eseritor. Sio classificadas como tipo aquelas personagens que alcan- ‘sam o auge da peculiaridade sem atingir a deformacio. O grande cexemplo de tipo, citado por todos os manuais de literatura, € 0 Conselheiro Acicio, da obra O primo Basilio (1878), de Eca de Queirds (1845-1900). Quando a qualidade ow ideia dinica élevada_ "a0 extremo, provocando uma distorgéo propositada, geralmente a servigo da sétira, a personagem passa a ser uma caricatura. Se a literatura esté repleta dessas duas espécies ¢ se a classificacéo pode ser discutivel do ponto de vista das grandes obras literdrias, servindo apenas como orientacéo didética, temos que reconhecer que é uma classificacéo pertinente, especialmente se voltarmos os olhos para as personagens padronizadas da maioria das novelas de televisio (a boazinha e a malévola), ou para os filmes atuais de agio, que impedem o espectador de pensar, deixando espago somente para a pipoca. ‘As personagens classificadas como redondas, por sua vez, sio aquelas definidas por sua complexidade, apresentando vérias qua- lidades ou tendéncias, surpreendendo convincentemente o Ieitor. Sao dindmicas, sio multifacetadas, constituindo imagens totais ¢, a0 ‘mesmo tempo, muito particulares do ser humano. Para exemy poderfamos recorrer ao elenco das personagens criadas pelos bons escritores, antigos e contemporneos, que permanecem como janelas abertas para a averiguagio da complexidade do ser humano e poténcia da escritura dos grandes narradores. ‘Mas a esta altura, 0 leitor poderia perguntar: “Apesar da contti- buigéo e das inovagées apresentadas por Forster no que diz respeito ao estudo da personagem, ele ainda nao estria pautado na ligagio ‘entre ficcional-pessoa humana?” Ou de outra maneira: “Serd que existe realmente alguma forma de escavar a materialidade dos seres fcticios abstraindo inteiramente sua relagio com o ser humano?” 50 Apenenagn 6 miei, Defato a questio nio ¢ simples. O caminho que estamos rentando perseguir neste capitulo, entrecortado por atalhos e veredas, por labirin- tos criticos que de forma alguma apontam para uma estrada principal (Ge € que ea existe..), parece se aproximar cada vez mais da concepgéo da narrativa como um universo organizado, coerente e I6gico, como ‘uma maneira particular de formalizar a realidade. Se em Forster essa concepsio pode ser entrevista, outorgando & personagem um estatuto «specifico ainda que nao inteiramente despido das injungbes humanas, fato idntico vai acontecer com outros erticos da mesma época, como é © caso de Edwin Muir (1887-1959), poeta, romancistaeerftico escocés ‘que publicou, em 1928, A estrutura do romance Nessa obra, Muir analisa diversos aspectos da estrutura romanesca, procurando separar a fic¢i0, o romance, da vida. Perseguindo os. + Principios estruturais do romance, apresenta apersonagem nao como __ Fepresentacio do homem, mas como produto do enredo e da estructura “espectfica do romance. Ao estudar, por exemplo, O morro dos ventos suivante, publicado em 1847, de autoria de Emiy Bronté (1818-1848), que classifica como um romance dramético, Muir demonstra que © tempo esté encarnado ¢ articulado nas personagens, assim como 0 ritmo psicolégico ests determinado pela rapider das acbes. A essa classificagio ~ romance dramiético — 0 crtico opée narrativas do tipo Guerra e paz, de L. Tolst6i (1828-1910), escrito entre 1863 ¢ 1869, fem que 0 ritmo nao mais determinado pels intensidade da acio, cexistindo, 20 contrétio, uma regularidade fra, exterior as personagens, de forma que sua transformagio nao mais obedece aos movimentos inerentes & acéo. Nos romances draméticos, os her6is morrem num dado momento predeterminado pelo destino. Nos outros, mortem acidentalmente, ¢ 0 tempo continua a correr. ‘J bem proximos da especificidade da personagem, ainda nio sio Forster ¢ Muir que vio se desvencilhar da relasio ser ficticio-pessoa, 51 ‘que marca essa longa tradigio. A radicalizacéo para uma concepgo da petsonagem como ser de linguagem s6 vai acontecer com os Formalistas russos, que iniciam, por volta de 1916, um movimento de reacio a0 estudo naturalista-biol6gico ou religioso-metafsico da literatura Filiado ao faturismo russo ¢ & Linguistica estrurural, o formalismo surpreende na década de 1930 por sua oposicio ao didatismo predo- ‘minante na critica russa ¢ por sua reagio ao materialismo histérico ‘marxista, prescrito pelo partido. s escudos desenvolvidos pelos formalistas, que s6 serio co- nhecidos no Ocidente por volta de 1955 com a publicacio do livro Formalismo russo, de Victor Erlich, constituem, num certo sentido, uma verdadeira ciéncia da literatura, contribuindo decisivamente para que a obra seja encarada como a soma de todos os recursos nela cempregados, como um sistema de signos organizados de modo a imprimir a conformagio ¢ a significacéo dessa obra. Essa nova concepgio da obra literiria procura na organizacio intrinseca de seu objeto 0 material ¢0 procedimento construtivo que conferem & obra seu estatuto de sistema particular. Nesse sentido, 20 cestudar as particularidades da narrativa, os formalistas preocupam-se com os elementos que concorrem para a composigao do texto ¢ com 6s procedimentos que organizam esse material, denominando fibula 6 conjunco de eventos que participam da obra de ficgao ¢ trama o modo como os eventos se interligam. De acordo com essa teoria, a personagem passa a ser vista como um dos componentes da fibula, e sé adquire sua especificidade de ser ficticio na medida em que esté submetida aos movimentos, is regras préprias da trama. Finalmente, no século xx e através da perspectiva dlos formalist, a concepcio de personagem se desprende das muletas de suas relagées com o ser humano e passa a ser encarada como um ser de linguagem, ganhando uma fisi 52 A pemeapm esa tis A contribuigéo decisiva para esse estudo da personagem desvincu- Jada das relagbes com o ser humano aparece com a publicagio da obra Morfologia do conto maravilhoso, em 1928, na qual o formalista russo ‘Wladimir Y. Propp (1895-1970) dedica um longo estudo 20 conto fantéstico russo, explicitando a dimensio da personagem sob o éngulo de sua funcionalidade no sistema verbal compreendido pela narrativa. Como explica Lafeté, “Propp demonstrou que os contos populares se constituem sempre em torno de um niicleo simples. O her6i sofre um dano ou tem uma caréncia, eas tentativas de recuperacéo do dano ou de superacio da caréncia constituem o corpo da natrativa’.? A partir dessa ruptura com a visio tradicional da obra literdria, elemento que coloca o formalismo como um verdadeiro divisor de guas dentro da teoria da literatura, os tebricos comesam a explorar, ampliar, repensar, desde a década de 1950 os caminhos abertos pelos formalistas russos na década de 1920. Roman Jakobson (1896-1982), ‘grande linguista etambém teérico da linguagem poética; Claude Lévi- Strauss (1908-2009), ancropélogo ¢ etnélogo cujos trabalhos foram fundamentais para a teoria estrururalista: Tavetan Todorov (1939-2017), filésofo, ensafsta, crcico literirio, com importantes obras que vio do estrucuralismo & historia e a uma perspectiva contemporinea dos cestudos literdtios ¢ das ciéncias humanas; Claude Bremond (1929-) semidlogo estruturalista que, dentre vérias reflexes, propds uma ‘gramética narrativa; Roland Barthes (1915-1980), grande pensador ‘que, dentre outras importantes produgées ligadés literatura, & critica literdtia, As mitologias cotidianas de sua época, levou adiante o projeto semiol6gico, a Semiologia proposta por Ferdinand de Saussure; Julien Greimas (1917-1992), criador da “semidtica de Paris” ou “semidtica greimasiana’, além de muitos outros nomes que exploram as teses oferecidas pelos formalistas e encaminham os estudos da narrativa na diregio exploratéria de suas possibilidades estruturais. 53 desenvolvimento desses estudos aporta, sob nomenclaturas e teorias diversficadas, numa concepgio semiolégica da personagem. A. esse respeito, ea titulo de exemplo, vale a pena conferir o texto Pour 1m Para o autor, falar de personagens como se fossem seres vivos € uma postura banal ¢ incoerente. Sob essa perspectiva, afirma que a existén- cia de uma teoria literéria rigorosa, entendida aqui como funcional ¢ imanente ~ de acordo com os termos impostos pelos formalistas -, implica fazer proceder toda exegese, todo comentirio, dentro de um estado descritivo que se coloca no interior de uma problemética estri- tamente semiolégica ou semiética. Isso significa considerar, a priori, a © definida como um “composts” designoslingufsticos. Tal procedimento, segundo autor, tem a vantagem de néo aceitar a personagem como dada por uma tradigio critica e por uma cultura centrada na nogio de “pessoa humana” ¢, a0 mesmo tempo, tome. andlise homogénea a um projeto que accita todas as consequéncias merodolégicas nel implicadas. ‘Tomando como ponto de partida trés grandes tipos de signos, visio pautada na divisio semantica, sintaxe e pragmética preconizada pelos semiélogos e semioticistas em geral, Philippe Hamon define tués tipos de personagens: 54 ‘A peumagn es mde tics * Personagens “referenciais”: sio aquelas que remetem a um_ _ exterior, comumente chamadas de personagens histéricas, ~ que apontam para um tempo e um espago determinados. Essa cespécie de personagem esté, por assim dizer, situada em uma cculeura, em um dado momento social, e sua apreensio integral (Ge € que isso € possivel!) depende do grau de participagio do leitor nessa cultura, ainda que por meio de informagbes a respeito do que caracteriza a situacio, 0 contexto que Ihe dew origem. Tal condiglo assegura o efeito do real e contribui para que as personagens consideradas participantes dessa categoria, sejam designadas, num certo sentido, como herd, protagonis- tas de uma histéria maior e nao apenas da histéria de ficedo. Hé exemplos marcantes. Considerem-se as personagens de A ordem do dia (1983), do escritor, jornalista, contista ¢ drama- turgo amazonense Mércio Souza (194¢-). E também as de Erico Verissimo (1905-1975), especialmente em O tempo e 0 vento, considerada em suas trés partes: O continente (1949), O retrato (1951) e O arguipélago (1962). + Personagens “embrayeurs": sio as que funcionam como ele- _ mento de conexio e que sé ganham sentido na relagio com os. + outenselenaensagsla namasiverdadiscuna, pois nkocemetemn, ‘sanenhum signo exterior, Seria 0 caso, por exemplo, de Watson ao lado de Sherlock Holmes; do Coringa, em relagio a Batman; tia May e tio Ben em relagéo a0 Homem Aranha. * Personagens “andforas”: sio aquelas que «6 podem ser apreen- davobra, As grandes personagens, aquelss bens construidas, que marcam o leitor para sempre, na verdade séo todas assim, Podemos pensar em Diadorim (ou serie Reinaldo?), criagio ‘maravilhosae perturbadora do escritor mineio Joéo Guimaries 55 Atenonsge, Rosa (1908-1967), que habita um universo intitulado Grande sertéo: veredas (primeira edigio de 1956): ela caberia perfei- tamente nessa categoria. Mas poderfamos nomear as cantas outras que vém A mente quando olhamos, como leitores, para © mundo, Deixo ao leitor as escolhas. Essa clasificagio, num certo sentido bastante didétia, ¢ por isso reducora, permite ainda enfrentar a personagem como participante das tués categorias a0 mesmo tempo. Fica dificil sufocar uma boa persona- gem na categoria histérica, referencia, sem apontar suas Faces facilmente identificéveis com as demais categorias. Certamente o leitor tem, na ponta da lingua (ou no fio de sua meméria) muitos exemplos. Aqui, «essa classificacio que tem seus métitos, foi utilizada como um exemplo da radicalizagio da teoria da personagem, tomada como matéria do discurso e analisada sob os crtérios fornecidos pela Linguistica, pela Semiologia, pela Semiética de Paris, ramos do conhecimento especial- -mente subjugados aos estruturalismos, formalismos que dominaram as décadas de 1960 ¢ 1970 e que, num certo sentido, repercutem até hoje. Atinulo também de exemplo do alcance ¢ dos produtos teéricos dessa produgio reérica de cunho dominantemente estruturalista formalista, seria pertinente conhecer a ptica de A. J. Greimas.” Especialmente nas obras Semintica estrusural, de 1966, ¢ Sobre 0 sentido (publicado em dois volumes, em 1970 e em 1983), Greimas substitu‘ a designacéo personagem por ato, referindo com esse termo a “unidade lexical do discurso”, cujo contetido semantico minimo & definido pelos semas (unidades de significacio): entidade figurativa, animada, suscetivel de individualizagao. Além disso, Greimas dist gue ator de actante, uma espécie de arguiator, conceito situado num nivel superior de abstragio e que, por essa razio, pode expressar-se em varios atores numa mesma narrativa. Para Greimas, existem seis 56 Asem 8 a ce actantes sujeito, objeto, destinador, destinatério, opositoreadjuvante. E as relagdes estabelecidas entre os actantes, numa dada narrativa, constituem 0 seu modelo actancial Esta segio, “A personagem sob as luzes do século xx”, que nio pretende esgotar todas as frentes teéricas e criticas que enfrentaram 1 produtiva questo da personagem, nao seria ccerente se néo fizesse ‘mengfo a uma vertente do conhecimento iniciada nos anos 1920, ‘ais conhecida no Ocidente a partir dos anos 1970, que se afasta radicalmente do tratamento estrutural, formalsta da personagem. Na verdade, trata-se de uma reflexdo que desenvolve uma polémica aberta com essas perspectivas especialmente no que se refeze & con- cepcio de inguagem, tanto artstica como nao atistica, Refiro-me ao pensamento que se conhece hoje como sendo de Bakhtin eo Circulo. ‘No hoje denominado Circulo, incluem-se além de Mikhail Bakhtin, ‘Valentin N. Volochinov (1895-1936), vel N. Meivigdey (1891-1938), Matvei I. Kagan (1889-1937), Liev. V. Pumpiénd (1891-1940), Ivan 1. Sollertinski (1902-1944), Maria Yadina (1899-1970); K. Vaguinov (1899-1934), Boris Zubdkin (1894-1937), I. Karaev (1893-1983). Os trabalhos de tés dele, Bakhtin, Volochinov ¢ Medviédey, se interligam, dialogam entre si, desenhando uma concepgao de linguagem, assim como as possibilidades de seu enfientamento a partir da busca de um método sociolégico singular e/ou de uma poética da prosa, de mancira 4 construir conhecimento linguistico lreriro,filoséfico,sinalizando as fronteiras que permeiam existéncia ¢ cultura, ideologia do cotidiano ideologia sistematizada, vivénciaecincia, vida carte, elegendo odidlogo (ideias e pontos de vista entre ao menos duas consciéncias em tenséo) como sustentéculo dessa perspectiva No que diz respeito especificamente & concepcio de personagem/ her, seria necessério enfrentar ao menos trés estudas de Mikhail Bakhtin, profundamente significativos: “O autor 0 heréi personagem] na ati- 57 Apemnagem vidade estética’, escrito por Bakhtin provavelmente entre 1920 e anos seguintes, mas s6 publicado em russoem 1979,na coletinea Fittica da criagdo verbal (no Brasil em edigéo de 1992, a partir do francés, eem 2003, diretamente do russo);!? Problemas da poctica de Dostoiévski(1.ed em 1929 [Problemas da obra de Dostoieviski] ¢ 2. ed em 1963, modifi- cada e aumentada; no Brasil 1. ed em 1981") e O discurso no romance {escrito em 1934-1935, publicado em 1975 na coletinea Questées de literatura e de estética: a teoria do romance, no Brasil 1. ed, em 1988"). De fundo filoséficolitertio, esses trabalhos ndo visam clasificagio de personagens no sentido apresentado nas tendéacias anteriores. Tratam. da questio das especifcidades da prosalterria,afinclufda a questéo da personagem/heréi, com profundidade, permitindo, entre outras coisas, discutir o género polifénico, a maneira como um autor-tiador dé vor as suas criaturas, indo em busca de uma poética da prosa. ‘Com o objetivo de mobilizar a perspectiva dialégica de persona- gemJher6i, ou 20 menos aproximar oleitor desse enfoque, escolhi a figura militar, que se impés, voluntaria ¢ ferreamente, como sujeito que se apropriou, sem qualquer legitimidade, dos destinos nacionais desde os anos 1960 até meados de 1980 do século xx, como exemplo a ser enfrentado pelas lentes bakhtinianas. Para dar conta do universo social e humano envolvido nessa histé- ria, a esfera lteréria produziu um conjunto de obras em que 0 sueito militar, passando & condigio de protagonista/herdi, éentrevisto tanto na proximidade dos acontecimentos, caso de textos produzidos nas déca- das de 1960-1970, como na distancia de algumas décadas, como esto fazendo alguns autores no século xx1. Nessas criagées, a figura militar, figura das autoridade, flgura autoritéria, her6i e metonimia dos anos de chumbo, é construida, muitas vezes, ancoradaem fontes documentais ¢ jornalistcas, mas afastando-se delas para, estticae eticamente, refle- tir ¢ refratar esse momento da histéria do Brasil. Escolhi trés obras licerérias em que essa personagem aparece para melhor mobilizar 58 A pong a malities 4 teoria: “O general esté pintando” (1973), conto de Hermilo Borba Filho:" um excerto do romance A festa (1976), ce Ivan Angelo,'*e um dos contos/fragmento do romance K. (2012), de Bernardo Kucinski.” ‘A maneira de construir um herdi, de acordo com as reflexdes bakhtinianas, fz parte de uma questio maior, queé“a ética da respon- sabilidade”, baseada na primazia do outro. E nesse sentido, embora 0 herbiagy eaté empirica, sio as construgées diferenciadas, muitas vezes em torno ircunscrito possa ser confrontado com a realidade histérica de uma mesma entidade histrica, digamos assim, que nos levarn 20 “embate entre consciéncias", entre ideologias, como diz Bakhtin, e a ‘uma certa percepsio e compreensio da realidade, por meio justamente do processo de sua encarnagdo nos discursos em geral e nos discursos artisticoslliterérios em particular. Assim sendo, no ensaio “O autor e a personagem na atividade estética’, é possivel descacar um texto que ausilia, pela forma como a reflexdo nele contida, a compreensio do herdi, da figura militar ou militarizada, que vai sendo construida em cada texto: [A personagem no pode ser criada do inicio ao fim a partie de elementos puramente estéticos, nao se pode “fazer” a personagem, esta no seria viva, nic irfamos “sent” a sua significacio estética. O autor nio pode inventar uma perso- nagem desprovida de toda independéncia em relagio 20 ato criador do autor, ato esse que aaficma e enforma [..] é claro ‘que temos em vista uma personagem possvel, ou sea, ainda rio tornada heréi, ainda nao enformada esteticamente(.. Por cris dos elementos transgredientes da forma artstca edo acabamento devemos sentir vivaments a consciéncia humana ppossvel A qual esses elementos séo transgredients(..] sentir isso significa sentie a forma, seu poder salvador, seu peso axiolégico ~ a beleza.* 59 Com essa rpidas consideragdes teéricas, vamos ver como esse heréi aparece nas trés obras aqui escolhidas. No conto “O general esté pintando”, do pernambucano Hermilo Borba Filho (1917-1976), o recurso utilizado para a construgéo de uma implacével figura militar, seu exército e seu poder de vida e de morte, a metaférica ¢ alegérica aticulagio entre discurso literério, discurso pictdrico e o discurso de guerra. Trata-se de uma narrativa altamente poética, profundamente pictérica, na qual, num cendtio bucélico, calmo e colorido, tendo ao fundo ama igreja, um convento © povoado por fradinhos,freirinhas e senhoras nas janelas,é invadido por soldados “verde-papagaios” que, portando latas de tinta e pincéis, instalam e preparam o fundo amarelo, azul e branco de uma grande tela sobre um enorme cavalete, & espera do pintor. O vocabuliio, tanto do narrador como dos soldados, encrelaga guerra e pincura, contrastando ¢ alternando siléncio e ruido, inundando o espago das cores da bandeira brasileira, por meio de movimentos que criam uma grande tensio, Esses elementos vio constrtindo sentido, ainda que enigmético, a partir de express6es ¢ag6es proprias de um exército em asio: “Pelotio, sentido!”;” de cores advindas de expressées e de ages desses soldados: “os verde-papagaios se movimentam’”* da mistura livre entre a linguagem da arte, mais especificamente da pintura, e da guerra: “Pelotéo, calar pincéis!”;" “Pelotdo, atacar em azul o alto da tela!” “Atacar em amarelo um pouco abaixo do azul!”) “Atacar 0 fundo da tela em brancol”;* de express6es delimitando espacos, fron- teiras, entre as agbes desse exército e os habitantes do lugar: “enxotar intrusos para 0 lugar de onde vieram” “Afastar multidio” 2* E nesse cenério de ataque, de invasio pela forga bruta, que surge a figura impecavel de um general que toma seu lugar diante da tela: ele € 0 artista para quem tudo foi preparado, sustentado pelas aces desse disciplinado exército. Os contrastes discursivos 60 Apnoea en ia continuam: “Finalmente, o General empunhou o pincel que, em sua mao adquiriu a graca de um florete (..); “Assobiando a valsa Canto dos bosques de Viena, ele aguarda o por do sol para dar o toque de mestee em seu trabalho”. Os contrastes vio criando e anunciando uma bivocalidade, uma frontcira surreal, fantéstica, entre arte e guerra entre artista e militar. ‘Ao final, o siléncio da espera do por do sol pelo General ¢ interrom- pido: uma crianga rompe a barteira, leva um tiro ¢ 0 sangue chega & tela: “O General voltara a concentrat-se e, com uma pincelada, apro- veitou aquele vermelho inesperado para 0 seu crepisculo, o sortiso abrindo-se, ausente do corpo ¢ do brado".” ssa figura do gencral-pincor estabelece uma l6gica chocante: a materialidade artistica que simboliza o trabalho do general ostenca um fundo amarelo, azul e branco, salpicado do verde-papagaio, € completa-se com sangue, numa franca demonstragio da arte da guerra, Esse recurso & arte, pela linguagem, pelo ritmo, pelos movi- ‘mentos dos dois grupos opostos, oferece a construcio dessa figura, ddesse herd talvex uma das mais terriveis de todo conjunto das obras que desenham militares e seus seguidores. Um herdi que se revela pela violéncia de sua obra, pela sua tranquilidade diante da morte que é0 alimento de sua agio. E é por meio do discurso da arte e da figura militar, 0 polémica discursiva af instalada que se constr6i herdi, a meméria daquele momento violent. A festa, de Wan Angelo (1936-), oferece excertos em que a figura de um delegado do vors vai sendo composta a partir de diferentes discursos colhidos na sociedade. Primeiramente, 0 discurso jornalist- 0, feito por meio da insergéo de um trecho de reportagem do jornal O Estado de Minas Gerais, de 12 de abril de 1970, no qual aparece a fala do delegado, que se encontra na primeira parte da obra, intitulada “Documentério” * O segundo discurso é uma espécie de depoimento 61 A poner ‘em primeira pessoa, localizado no bloco da obra intitulado “Preocu- pagdes (angtistias 1968)", que estd subdividido em duas partes: a) de uma senhora mie de um rapaz" ¢ b) de um delegado de policia social.” O tlkimo discurso a compor essa figura é informacio sobre ‘sua morte, feita pelo narrador em terceira pessoa, na parte intitulada “‘Depois da festa (indice dos destinos)”: “Morteu de rir, literalmente, ‘em 1982 [..]. Motreu rindo fragilmente sua gargalhada tertivel” *" ‘No segundo trecho indicado, o leitor encontra a voz do herdi, em primeira pessoa, numa espécie de reflexo sobre sua responsabilidade cm relagio a0 povo que foi tirado “do mundo magico em que vivia’, © qual foi substituido, e ainda esté sendo, pelo controle necessitio ¢ inteligente dos que detém o poder eo saber, entre os quais se inclui «esse delegado, que assim explica: “Por que eu? eu sou um intelectual. Leio Cicero no original ..J. Por que néo eu noprincipio, principe”. ‘Assim como na primeira narrativa, embors com recursos bastan- te diversos,a figura do poder é mostrada como uma consciéncia que seacha superior, dotada de uma inteligéncia superior, que Ihe confere naturalmente 0 poder em relagéo a0 povo. Se no escritor pernam- bucano Hermilo Borba Filho o general se coloca como um artista, aqui, no mineiro Ivan Angelo, o delegado se designa intelectual. Essa afirmacio, assim como 0 trecho, é composta a partir da mescla de duas epigrafes das quatro que aparecem na primeira edigéo: uma extraida da obra O Principe, de Maquiavel e cutra da obra Herodes, de W. H, Auden (1907-1973, poeta anglo-americano, politico de esquerda, que na década de 1930 denunciava os males da sociedade capitalista ¢ alertava para a ascensio do totalitarismo). Nelas so articuladas as caracteristicas do principe, com quem o delegado se identifica e para quem nao deve importar a qualificagio de cruel, na ‘medida em que isso é necessério para manter seus stiditos unidos. E, também, da obra de Auden a postura irdnica do “ditador” que diz 62 A nage td ot lutar, em vio, contra a ignorancia do povo, batalhando para que as -massas sejam sensatas: “Tentei tudo [..]. Como posso esperar que as massas sejam sensatas [..]”2? Nesses dois desenhos de figuras ditatoriais, observa-se que por ccaminhos diferentes, um a partir da radicalizagio da linguagem esté- tica e outro a partir de discursos jornalisticos e iloséficos, hé alguns tragos que sio reiterados em relago & consciénca dessa personagem: de um lado, a crenga, por parte do her6i, de que ¢ superior a todos, principalmente ao povo a quem domina pela forga; a crueldade, como necesséria para realizacéo dessa obra civilizatéria em que “os fins jus- tificam os meios”; a fora, como instrumento necessirio & submissio das massas ignorantes e o movimento em direcio A sua necessitia 9; € a loucura, como traco exposto nos dois desenhos. Na terceira narrativa escolhids, K., do jorralistae escritor pau- listano Bernardo Kucinski, para (re)construir a meméria da ditadura militar, a partir de uma perspectiva presente, ou seja, em pleno século xxt, ele vai envolver virias esferas, induindo a familiar, a académica, a clinica psicanalitica, a clandestinidade, dentre varias outras, para expor a dor eo horror em torno de um dos que foram desaparecidos. A instauragao dessa expressio (foram desaparecides ¢ nio simplesmente desaparecidos), personifica a ideie bakhtiniana de que a meméria est na palavra. E é ela que implica um sujeito na agio de desaparecer, que & um sujeito diferente do desaparecido. E é essa expressio que confere 0 tom 20 conjunto, cuja vor dominante é a cde um pai cuja fila, professora de Quimica da Universidade de Sio Paulo (use), foi desaparecida. E ele sai em busca do corpo insepulto, ‘Nesse conjunto em que horror e compaixio se misturam como nas grandes tragédias, aparecem sete contos/fragmentos, em que a figura de um conhecido delegado da policia social de Sao Paulo e de seus sequazes vai sendo composta por diferentes vozes. No primeiro, 63 “Acadela?,* trata-se de um subalterno que vai fazendo referéncias & smaneira de ser do “chefe”, como ele édesignado, que se importa com tum animal de presos desaparecidos, mas que “s6 vem aqui quando aparece um preso novo. Carne nova ~ ele fala — arranca 0 que quer, ‘manda liquidar e vai embora”. Em “A abertura’,”* hi doze blocos em que o leitor esté diance da vor do delegado, de suas formas de torturar psicologicamente os parentes dos desaperecidos, de forjar provas € de se preocupar diante da intervengéo da cia ¢ da possibilidade de documentos comprometedores cairem nas méos da imprensa. Em “Paixdo, compaixio”, subdividido em onze trechos,% é a vor da amante do delegado, apaixonada, que vai desfiando caracteristicas que demonstram a bipolaridade desse her6i. Em “A terapia’,” hé tum relato em terceira pessoa em que o didlogo entre uma terapeuta ¢ uma paciente/faxincira vai revelando aexisténcia de uma casa em Petrdpolis para torturar c climinar presos politicos, montada em forma de matadouro, com instrumentos medonhos, comandada pelo delegado Fleury. Em “O livro da vida militar”,* um general cassado, apesar de ter colaborado com « ditadura, vai desfiando 0 ‘Almanaque do Exército, que mostra a nova doutrina militar, sua ‘guerra psicoldgica e suas formas de tortura aos considerados subver- sivos. Em “Os extorsiondrios”,®’ 0 narrador K. apresenta um falso general, que na verdade era um simples sargento, especializado em extorquir os parentes dos desaparecidos. Em “As ruas e os nomes”,“* 0 objeto de reflexio do narrador € a toponimia das cidades, que vai mostrando estradas, avenidas, pontes, ruas designadas com nomes de representantes de ditaduras milicares. Essas designacbes acabam revelando uma estranha relacio entre meméria e histéria ou esque- cimento e histéria: “[.] esse estranho costume de brasileiros de homenagear bandidos ¢ torturadores ¢ golpistas como se fossem her6is ou bem feitores da humanidade” 64 A pevona ea wale tes (Os textos aqui escolhidos expéem as relagoesentre ficgio realida- de, histSriaeficgéo, por meio de um hers, personagem-metonimia da histéria militar brasileira, construida, nas trés narativas, a partir de uma “éxica da responsabilidade”, fundada na primazia do ousre, Sio formas de fazer emergit, pela linguagem que faz emergit 0 herdi, a meméria de acontecimentos, de vivéncias, de eventos dz ordem da vida que foram sufocados, submetidos oficialmente ao plano da ndo existéncia. Enquanto discursos de ressténcia, portanto, eles dio voz a sujeitos ¢ eventos que, 20 ganharem existéncia, movimento, se exprimizem em tons ¢ ritimos diferentes daqueles que a dominante oficial enuncia. Por essa condigéo de discurso polemicamente responsivo, sa- turado pela tonalidade que expée 0 coro des coninérios, ele participa ificativamente do que poderfamos chamar, juntamente com Bakhtin, da pequena temporalidade representada, no caso aqui escolhido, pela ditadura militar brasileira. E, 20 mesmo tempo, por ‘meio das formas que encontra para se constitur ¢, consequentemente, cxistt, descola-se dessa pequena temporalidade para projetar-se numa grande temporalidade. Isso significa que esses ciscursos possibilitam um futuro préximo, ou distante, a recepedo ativa de uma meméria que, sendo discursiva, atua de forma viva, iluminando 0 passado ¢ oferecendo ao presente testemunhos ¢ clementos de reflexio, em especial sobre os totalitarismos e suas nefastas consequéncias. PERSONAGEM: INVENCAO DO AUTOR E DA CRITICA, ‘Ao chegarmos ao final deste capitulo, vemos de reconhecer que as posturas alinhavadas nesse percurso estio relacionadas ndo apenas ‘com as tentativas constantes de encontrar novosmétodos para analisar 65 A pose ¢ interpretar a obra literria, mas também com a especificidade dos textos produzidos em decerminadas épocas eque tem a ver com amo- bilidade das diversas endéncias que circunscrevem esse fazer artistico, Nesse sentido, uma abordagem atual da personagem de ficcéo indo pode descartar as contribuigées oferecidas por vétias vertentes do conhecimento, dentre elas Filosofia, Psicandlise, Sociologia, diferentes Semiéticas, Teoria Literéria, Andlises do Discurso, que, centradas, za construgio do texto, permitem vos 2o redor dos discursos que atravessam esses textos ¢ permitem pensar o objeto real da literatura, que éa condigéo humana. Assim sendo, a essa altura, o analista deve considerar a longa tradigio dos estudos da personagem e, sem superestimar ou mini. mizar a funcéo desse componente em relacio aos outros que dio forma & narrativa, encontrar a sua especificidade na intima relagio existente entre essa e as demais instincias do discurso literdrio. Na cobra Liunivers du roman,® R. Bourneuf e R. Ouellet situam a per- sonagem por meio da rede de relagées que contribuem para a sua cxisténcia, incorporando elementos pertencentes a virias tendéncias criticas a fim de chegar a uma postura didética, mas nao simplifi- cadora do problema. O enfrentamento da questéo se dé através do destaque das relacées existentes entre as personagens, os lugares ¢ os objetos ¢ as relagées existentes entre cada uma das personagens de um romance. Demonstrando que as personagens de um romance agem umas sobre as outras ¢ revelam-se umas pelas outras, os autores apontam ‘quatro fungées possiveis desempenhadas pela personagem no universo ficticio criado pelo romancista: elemento decorative, agente da agéo, ‘porta-voz do autor, ser flticio com forma propria de exit, sentir e perceber 0s outros € 0 mundo. 66 A peonapm nal A personagem com fuuncio decoratioa, mas nem por isso dispensivel, seria aquela considerada inttil & ago, aquela que nao tem nenhuma significagao particular, a que inexiste do ponto de vista psicol6gico. Apesar da expressio “elemento decorative” estar carregada de sentido pejorativo e aparentemente descaracteriaador, nio é assim que deve ser entendida nesse contexto. Mesmo como elemento decorative, a __ personagem, se est no romance, desempenha uma fungio. Ela pode | constituir um trago de cor local ou um miimero indispensivel A apre- + sentagio de uma cena em grupo, por exemplo._ No capftulo i da obra O cortico (1890), 20 construir a cena do despertar do niicleo habitacional dominado por Joo Roméo, perso- rnagem talhada a partir dos tragos marcantes de um imigrante portu- sgués em busca de ascensio, o escritor maranhense Alufsio Azevedo (1857-1913) descarta qualquer possibilidade de individualizacio de uma personagem, para compor um quadto coletivo, formado por um Conjunto harménico dos tragos comuns das vérias personagens que formam esse niicleo. J das portas surgiam cabecas congestionadas de sono; ‘ouviam-se amplos bocejos (J trocavam-se de janela para janela as primeiras palavras, os bons-dias [..] destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam [... De alguns quartos safam mulheres que vinham pendurar cf fora, na parede, a saiola do papagai [..1. Dai a pouco, em volta das bicas era ‘um mum-zum crescente; uma aglomeragio tumuleuasa de machos e fémeas[.].As mulheres precisavam jé prender as saias entre as coxas para ndo as molhar; vi-se-lhes a tostada inudez dos bragos e do peseogo (J. Nessa passagem, & possivel perceber a fungio das personagens denominadas decorativas. Elas contribuem aqui para a caracterizagio 67 de um dos nticleos de personagens do romance: acoletividade repre- sentada por brasieiros que, pouco a pouco, 6 narrador vai descorti- nando como dominados, sem consciéncia de sua existéncia miserével, biologicamente acomodados. A compreensio das caracteristicas desse nticleo s6 pode ser conseguida por oposigio a outro, formado pelos portugueses que chegavam 2o Brasil com o objetivo de entiquecer, ¢ também pela tentativa de Aluisio Azevedo realizar, através dessa obra, jum minucioso estudo das relagées sociais implicadas no actimulo de capital de um grupo ambicioso em franca oposigio & pobreza e & ociosidade do outro. (Outra fungio passivel de ser desempenhada pela personagem é, segundo Bourneufe Ouellet, que se apoiam em varios outros criticos, a de agente da ago. Inicialmente, para desfazer as controvérsias em torno do termo “agio", Bourneuf e Ouellett definem ess: instincia da narrativa como sendo o jogo de forcas opostas ou convergentes que estéo em presenga numa obra. Ou seja, cada momento da ago representa uma situagio de conflito em que as personagens perseguem-se, aliam-se ou defrontam-se. Esse jogo de forcas ¢ as fungées suscetiveis de serem combinadas fem uma obra estéo classificados a partir dos estudos desenvolvidos pelo filésofo francés Etienne Souriau (1892-1979) ¢ Wladimir Y. Propp, que permitem subdividir 0 agente da acéo em seis categorias, ‘nem sempre necessariamente encaradas em uma personagem: + condutor da agéo: personagem que dé 0 primeiro impulso & ago; 6 0 que representa a forga temitica: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de uma caréncia; *+ sopomente: personagem que possibilitaazxisténcia do conflito; for- ‘saantagonista que tenta impedira forga tematica de se deslocar; 68 A esimasen ea lo ries *+ objeto desejado: orca de atracio, fim visado, objeto de caréncia; elemento que representa o valor a ser atingido; + \destinatdri: personagem beneficiério da acio; aquele que ob- tém o objeto desejado ¢ que nao é necessariamente o condutor da agios + sadjuvante: personagem auxiliar; ajuda ov impulsiona uma das outras forgass +» drbitro, juizx personagem que intervém em uma agéo conflicual a fim de resolvé-la. ‘Sem menosprezar os estudos de Souriau e Propp, devemos encarar cessas seis fungdes como uma possibilidade de enfrentar a questio da personagem em certas narrativas. A fotonovela, a telenovela e outras espécies de narrativa centradas em férmulas traicionais comportam perfeitamente essa abordagem. © mesmo reducionismo néo se apli- caria a um conto de Clarice Lispector (1920-1977), a menos que 0 analista estivesse empenhado em aplicar essa teoria desprezando a cespecificidade e as particularidades do texto em questio. Porta-voz do autor seria outra funcio passivel de ser desempenhada pela personagem. Essa visio, também discutivel, baseia-se numa longa tradigéo, empenhada em enfrentar essa instincia narrativa como a soma das experiéncias vividas e projetadas por um autor em sua obra Nesse sentido, a personagem seria um amélgama das observagbes ¢ das virtualidades de seu criador. Entretanto, nenhum romance, nenhuma obra de fieglo, se con- fande com uma reportagem jornalistica, com um tratado cientifico. Ela, quando muito, uma biografia ou uma autobiografia do possivel (que, por mais que se baseie em documentos e na meméria do vivido, sempre ganha a criatividade propiciada pela linguagem que a presen- tifica na distincia dos eventos...). Nesse sentido, assume significativa autonomia com relagéo a seu autor empirico para ancorar-se no 69 autor-ctiador, Por essa razéo, a0 classificara personagem como porta- vvor do autor, é necessério, segundo observam de forma pertinente os autores de Liunivers du roman, ultrapassar a reconstituigdo anedérica da biografia, a descoberta das fontesliterdrias ou histéricas ea anise superficial das ideias para atingir os niveis de apreensio invisiveis a ‘essa primeira abordagem. ‘Ao encarar a personagem como ser fctcio, com forma pripria de existir, os autores situam essa instincia da narrativa dentro da especi- ficidade do texto, considerando a sua complexidade e o alcance dos métodos utilizados para apreendé-a NOTAS Arne, Pi teal, Eo de Sour, Lio. 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