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Re eaecns pare eM mela eeli > a Bernard Charlot < Evandro Ghedin José Carlos Libaneo José Gimeno Sacristén =e Juarez Melgaco Valadares Luiz Fernando Franco - 1 Maria do Socorro Lucena Lima ® | Maria Isabel Batista Serrdo Marineide de Oliveira Gomes Rita de Cassia M. B. Borges Selma Garrido Pimenta Silas Borges Monteiro (Ssh eee proposta do Professor reflexivo no Brasil: génese e cri- tica de um conceito é discutir criticamente o conceito do “= feaiccoels reflexivo, amplamente apropriado e generalizado = nos meios educacionais brasileiros. Para isso analisa suas raizes fundantes de modo a compreender 0 seguinte paradoxo: essa pers- fol Colo Kel al lel McNeal fols (Koei eC Mtoe stelgoheh 8 leitura, compreensdo e orientacdo do processo de formacao de pro- |w) fessores, entretanto, também tem sido apropriada por diversos ato- res pesquisadores e reformadores educacionais, com perspectivas claramente divergentes para esse processo. Diante dessa problema- ica se faz necessario avaliar, investigar, aprofundar, analisar e criti- car a fecundidade de uma perspectiva tedrica para uma formacao dos professores e professoras na contemporaneidade brasileira que ‘os yalorize como sujeitos. Esta 6 a proposta deste livro. 1840-8 Il 08408 Bull | 8524 Professor Reflexivo no Brasil génese e critica de um conceito Dados Internacionais de Cataloga¢ao na Publicago (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 1a Garrido Pimenta, Varios autores, ISBN 85-249-0840-8 1, Professores Garrido. TI. Gh Formago profissional I. Pimenta, Selma Evandro, CDD-370.71 02-2061 indices para catalogo sistematico: 1. Professor reflexivo : Formagio profissional : Educagiio 370.10 Selma Garrido Pimenta Evandro Ghedin (Orgs.) Bernard Charlot * Evandro Ghedin * José Carlos Libaneo José Gimeno Sacristan ® Juarez Melgago Valadares Luiz Fernando Franco * Maria do Socorro Lucena Lima Maria Isabel Batista Serréio * Marineide de Oliveira Gomes Rita de Cassia M. B. Borges * Selma Garrido Pimenta Silas Borges Monteiro Professor Reflexivo no Brasil génese e critica de um conceito 4 edigtio Sains PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL: génese ¢ critica de um conceito Selma Garrido Pimenta e Evandro Ghedin (orgs.) Capa: DAC Preparagao de originais: Carmen Teresa da Costa Revisdo: Jaci Dantas de Oliveira e Agnaldo Alves Composigéo: Dany Editora Ltda. Coordenagao editorial: Danilo A. Q. Morales Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorizagdo express dos autores e do editor, © 2002 by Organizadores ireitos para esta edi¢o CORTEZ EDITORA Rua Bartira, 317 — Perdizes 05009-000 — Sao Paulo - SP Tel.: (11) 3864-0111 Fax: (11) 3864-4290 E-mail: cortez@cortezeditora.com.br ‘www.cortezeditora.com.br Impresso no Brasil — outubro de 2006 Sumario Introdugio Parte I — PROFESSOR REFLEXIVO: HISTORICIDADE DO CONCEITO 1. Professor reflexivo: construindo uma critica e Selma Garrido Pimenta v7 José Carlos Libaneo 3. Tendéncias investigativas na formagao de professores José Gimeno Sacristén .. Parte Il — EPISTEMOLOGIA DA PRATICA E AUTONOMIA DA CRITICA NA FORMACAO DE PROFESSORES/AS 5, Epistemologia da pratica: 0 professor reflexivo e a pesquisa colaborativa Silas Borges Monteiro ... 6. Groner er neg eae renter ete) Evandro Ghedin... 7. Superando a racionalidade técnica na formaca noite de verao Maria Isabel Batista Serric 6 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL Parte III — PROFISSIONAIS DA EDUCAGAO E AS MEDIAGOES NA FORMACAO DO PROFESSOR REFLEXIVO 8. Redimensionando o papel dos profissionais da educacao: algumas consideracées Maria do Socorro Lucena Lima & Marineide de Oliveira Gomes .. 9. O professor diante do espelho: reflexdes sobre o coneeito de professor reflexivo Juarez Melgaco Valadares . 10. O professor reflexivo-critico como mediador do processo de inter-relacao da leitura — escritura Rita de Cassia Monteiro Barbugiani Borges .. . 201 11. Racionalidade técnica, pesquisa colaborativa e desenvolvimento - profissional de professores — Luiz, Fernando Franco ... . 219 intRooUgAO 7 Introdugéo Este livro nasce da producao coletiva dos mestrandos e doutoran- dos alunos de disciplina que ministramos nos Programas de Pés-Gra- duacdo em Educacao na Faculdade de Educacao da Universidade de Sao Paulo e da Universidade Catélica de Goids, nos anos de 2000 e 2001, como resposta a um conjunto de questionamentos nossos e que foram ampliados durante os cursos. Por oportuno, inclui textos de trés outros autores, preocupados com a mesma problemética. A proposta inicial da disciplina era discutir criticamente 0 conceito de professor reflexivo, amplamente apropriado e generalizado nos meios educacionais. Para isso, se propés uma anélise sistemdtica que permitis- se ir As suas raizes fundantes e analisar a sua génese, de modo que se compreendesse 0 seguinte paradoxo: se essa perspectiva conceitual tem se revelado extremamente importante para a leitura, compreensio e orien- tagao do processo de formacao de professores, tem também sido apro- priada por diversos atores — pesquisadores e reformadores educacio- nais — que apresentam propostas claramente divergentes para esse pro- cesso. E diante dessa problematica que se faz necessério avaliar, investi- gar, aprofundar, analisar e criticar a fecundidade de uma perspectiva ted- rica para a formago de professores(as) na contemporaneidade brasileira. Inicialmente produziu-se um conjunto de indagagées surgidas ao longo do curso, que foram amadurecendo no decorrer das discussées. A medida que o debate ia se desenvolvendo, o conceito apontava possibi- lidades de aprofundamento, mas também os seus limites na pratica formativa dos(as) novos(as) professores(as). Os textos que ora tornamos ptiblico, articulam uma reflexdo sobre esses limites e possibilidades do conceito de professor reflexivo. 8 PROFESSOR REFLEKIVO NO BRASIL A anilise critica contida nos textos aqui reunidos expressa uma vi- sao possivel sobre 0 conceito, nao sendo obviamente a tinica. Entende- mos que um conceito fértil possibilita infindas leituras e a fundacao de novos conceitos. Acreditamos que a producto deste livro é resultante dessa fertilidade. O livro tem como eixo articulador a necessidade de ler criticamente a realidade através de uma anilise sistemidtica. Nesse sentido, cada autor(a) procura articular suas questdes, expressdes das preocupagées que emer- gem de seu cotidiano de pesquisa na pés-graduacao, A problematica ge- ral. Se isso revela 0s limites do préprio trabalho, também demonstra que as possibilidades criativas de cada um(a) colocam a reflexo sobre con- ceito num novo patamar de debate. Além da questao central sobre a critica ao conceito de professor reflexivo, hé uma outra problematica umbilicalmente ligada a ela que a questao da formagao de professores. Por isso, os textos configuram um movimento que vai do conceito a possiveis propostas ou leituras de formacao que o tenham como horizonte de orientacg&o. Esse movi- mento norteou a organizacao dos textos em trés partes distintas e com- plementares. A primeira, Professor reflexivo: historicidade do conceito, apre- senta a génese sécio-histérica do conceito de reflexao e da perspectiva do professor reflexivo, analisando seus limites e suas possibilidades na formagao de professores em diferentes paises e, em especial, no Brasil. A segunda propée-se uma reflexdo sobre a Epistemologia da pratica e autonomia da critica na formacio de professores. A terceira, Profissionais da educagiio ¢ as mediacdes na formagéo do professor reflexivo, complementando as anteriores, pde em discussdo a ligacdo entre o conceito e a profissionalidade do professor. Assim, percorre-se uma caminhada que vai das reflexes propostas para a formagaio de professores &s criticas a0 conceito de professor reflexivo, e do conceito para as alternativas que nele se fundamentam. Parte | — Professor reflexivo: historicidade do conceito Professor reflexivo: construindo uma critica — Selma Garrido Pimenta Analisa as origens, os pressupostos, os fundamentos e as caracteristi- cas dos conceitos professor reflexivo e professor-pesquisador no movimento de valorizagao da formacio e da profissionalizagao de professores sur- gido em diferentes paises a partir dos anos 1990, e a sua influéncia em pesquisas e nos discursos de pesquisadores e de politicos brasileiros. muTropugio 9 Procede a uma revisio conceitual a partir das propostas do norte- americano D. Schén e dos contextos nos quais se desenvolve. Aponta seus desdobramentos na area de formagao de professores e as princi- pais criticas a partir de diferentes perspectivas tedricas e de pesquisa empirica. Analisa a apropriagao desses conceitos no Brasil, situando um breve panorama histérico do movimento e das pesquisas sobre formagao de professores anteriores a disseminacao do conceito. Apon- ta as bases politicas e ideolégicas em confronto nas politicas de forma- cdo de professores em anos recentes. Conclui pela necessidade da trans- formacao do conceito, considerando as contradicées que emergem de sua anilise. Reflexividade e formagao de professores: outra oscilagéo do pensamento peda- gégico brasileiro? — José Carlos Libaneo O texto situa a reflexividade como conceito integrante do embate mo- dernidade — pds-modernidade, referindo-se ao cardter reflexivo da ra- zo, implicando a capacidade de pensar, a auto-reflex4o, a intencionali- dade e o “empoderamento” dos sujeitos, frente a realidade. Afirma que, no caso brasileiro, a concepeao de professor reflexivo, de matiz pragmé- tico, tende a se sobrepor aos demais significados da reflexividade. Em razao disso, o texto visa explicitar outros sentidos desse conceito, situar sucintamente sua histéria no Brasil e discutir distingdes entre a reflexividade de matiz neoliberal e outras modulagées do conceito como a critica, a dialética, a hermenéutica, a comunicativa, a comunitaria, en- tre outras. Propée ao final uma concepedo mais abrangente de formacaio de professores inspirada na teoria histérico-cultural da atividade e nas teorias recentes da agao e a da cultura. Tendéncias investigativas na formacdo de professores — José Gimeno Sacristn Criticando a expansio generalizada de pesquisas no campo da for- macio de professores, indaga-se até que ponto sao titeis aos professo- res. Constréi sua andlise a partir das duas grandes tendéncias atuais: a pos-positivista e a pés-weberiana. Apresenta seis prineipios a partir dos quais se deveria elaborar um discurso mais coerente com a reali- dade pratica dos professores, partindo da idéia de um senso comum culto. Propée uma formacao de professores baseada num racionalismo moderado na direcéo da modernidade; na vontade como sentimento que abre um caminho otimista enraizado na inteligéncia; e no habitus como forma de integragao entre o mundo das instituigdes e o mundo das pessoas. 10 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL Formacio de professores: a pesquisa e a politica educacional — Bernard Charlot O texto examina questées que 0 autor considera fundamentais para se pensar a formacao de professores: 0 fato de as pesquisas nao atingirem a sala de aula; a questao da relacao entre a teoria e a pratica; as relagdes entre as praticas dos alunos, as praticas dos docentes e as estruturas e as politicas educacionais. Afirma que os professores estao se formando mais com os outros professores dentro das escolas do que nas aulas das uni- versidades. A partir dai, faz uma ponte entre a pesquisa na drea educa- cional e a formaciio de professores, distinguindo o trabalho do professor da fungao de pesquisador. Diz que nao existe um problema de didlogo entre teoria e pratica; 0 que existe é um problema de didlogo entre dois tipos de teoria, uma enraizada na prética e outra que se desenvolve na pesquisa e nas idéias dos pesquisadores. Conclui expressando-se sobre o efeito das estruturas e das praticas educacionais do aluno e do professor. Parte Il — Epistemologia da pratica e autonomia da critica na formacao de professores Epistemologia da pratica: 0 professor reflexivo e a pesquisa colaborativa — Silas Borges Monteiro O texto tece consideragées sobre os saberes da docéncia na producao do conhecimento em educagio e explicita as dicotomias entre teoria e prati- ca, apontando para uma saida fundada na praxis. Trabalha os conceitos de pratica e de teoria, estabelecendo uma relacao intrinseca entre ambas, fundada em sua reviséo. Caminha dessa relac&o a teoria de professor re- flexivo, entendendo-a como uma “outra pratica”, 0 que coloca em ques- tao a possibilidade da pesquisa (colaborativa) da pratica. Busca no senti- do grego do labor uma fundamentagao para a pesquisa colaborativa, apon- tada como alternativa a outros modelos de producao do conhecimento no campo educacional. Propée que a reflexdo é uma forma de Jabor que se torna co-labor na acdo com os outros, fundamentando a pesquisa colaborativa neste didlogo (como pritica) coletivo. Professor reflexivo: da alienagdo da técnica & autonomia da critica — Evandro Ghedin Parte do pressuposto de que a técnica por si mesma traz. um proceso de alienacao imposto pelos meios de produgdo. A formacao profissional do professor precisa abandonar este paradigma da tecnicidade para fun- dar-se num outro modelo que seja de cardter reflexivo. Para tal, o texto faz trés movimentos, didaticamente distintos mas intimamente inter- InrRoDUGKO " relacionados. O primeiro movimento vai do prético-reflexivo & autono- da praxis. Entende que a reflexdo tem sentido como préxis, na dire- c&o marxiana. O segundo movimento vai da epistemologia da pratica A autonomia emancipadora da critica, numa critica ao conceito de profes- sor reflexivo. O terceiro movimento vai da epistemologia da pratica do- cente a pratica da epistemologia critica. O horizonte da reflexao deve ser a critica, nio como fim em si mesma, mas como meio de redimensionar e ressignificar a propria pratica. Superando a racionalidade técnica na formacao: sonho de uma noite de veréo — Maria Isabel Batista Serréo O texto parte das posigdes de Schén na sua critica a racionalidade técni- ca e propoe a reflexao como instrumento de formagio do professor. Exa- minando 0 conceito de “pratico-reflexivo” faz um contraponto com Elliot e Stenhouse, para negar que o professor, no seu processo de formacao e na sua atuac4o profissional, possa ser um artesio, como propde Schén, porque no interior do sistema capitalista os professores das escolas pu- blicas e das particulares nao sao donos de sua forca de trabalho, uma vez que esto inseridos numa relagao de produgao prépria do sistema capi- talista, em que o trabalhador vende sua forga de trabalho e, nesta condi- ¢40, ele nao é dono de sua obra. Portanto, sua aco limita-se a ser traba- Thador ptiblico ou trabalhador privado e nao um artista ou artesao. Parte Ill — Profissionais da Educacao e as Mediacdes na Formacao do Professor Reflexivo Redimensionando o papel dos profissionais da educagdo: algumas consideragées — Maria do Socorro Lucena Lima e Marineide de Oliveira Gomes As autoras propdem uma reflexo sobre a necessidade de redimensiona- mento do papel dos profissionais da educagio, questionando 0 processo de interferéncia dos novos paradigmas da ciéncia que condiciona e am- plia as atividades dos profissionais da educacao na sociedade atual. Re- fletem sobre o papel e a funcio da pedagogia e do pedagogo, inserindo-os como detentores de um conjunto de saberes que nascem da experiéncia, se constituem em saber cientifico e se transmitem como saberes pedag6- gicos, confluindo para a construgao da identidade do pedagogo. Sinteti- zam as alteragées legais sobre a formacdo dos profissionais da educagao, levantando questdes polémicas a serem enfrentadas no debate institucio- nal e propdem uma outra qualidade para a formagao docente. n PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 0 professor diante do espelho: reflex6es sobre o conceito de professor reflexivo — Juarez Melgaco Valadares Analisando aspectos da pratica reflexiva na literatura académica atual, tece um didlogo entre as idéias nela contidas e uma pratica concreta de professor reflexivo no municipio de Belo Horizonte. Traz para a discussio alguns elementos relacionados a importancia da autonomia do profes- sor na organizaco e execucao de projetos pedagégicos. Partindo do con- ceito de profissional reflexivo, passa pelas criticas ao conceito de professor reflexivo, exemplifica uma prdtica na escola e conclui numa perspectiva dialégica para a construcao da autonomia do professorado. 0 professor reflexivo-critico como mediador do processo de inter-relagdo da Jeitura — escritura — Rita de Cassia Monteiro Barbugiani Borges Discute possibilidades de aco docente na orientagao do proceso de inter- relagdo da leitura — escritura por meio de uma intertextualizacao da teoria do professor reflexivo e da relacao leitura — escritura. Apresenta uma sintese da teoria, das contradigées, dtividas e buscas do profissio- nal reflexivo como intelectual eritico e prope uma reflexdo no sentido de pensar a inter-relacdo da leitura — escritura no processo ensino — aprendizagem nos cursos de nivel superior, destacando o papel do pro- fessor na orientacao e formagdo de um leitor critico e capaz de produzir a prépria autoria textual com um discurso reflexivo, critico e criativo. Racionalidade técnica, pesquisa colaborativa e desenvolvimento profissional de professores — Luiz Fernando Franco O texto faz um movimento da critica 4 racionalidade técnica aos saberes da experiéncia como objeto de conhecimento e de reflexdo. Sintetiza as posicdes em torno dos conceitos de professor reflexivo e professor pesquisa- dor e busca demonsirar, através de pesquisa empirica, em depoimentos de professores, os componentes da racionalidade técnica presentes na prdtica cotidiana dos professores. Conclui por valorizar os saberes da experiéncia como imprescindiveis para a formago de um profissional teflexivo. O presente livro, Professor reflexivo no Brasil: génese e critica de um conceito, deseja contribuir com o debate tedrico sobre formaciio de pro- fessores. Esperamos que os textos aqui reunidos possam ser titeis aos professores em exercicio de sua profisstio e aos futuros professores no sentido de ampliarem sua compreensao de questdes que afetam 0 cotidia- no do trabalho docente nas escolas. Esperamos que contribua também Inrropugho 8B na andlise das pesquisas e das politicas na 4rea e que estimule novas andlises e investigagdes em todos aqueles que, como nés, acreditam na necessidade de que os professores tenham seu estatuto profissional e social elevados, a fim de que possam contribuir para tornar efetiva uma educag&o de qualidade para todos. Sao Paulo, outubro de 2001 Selma Garrido Pimenta Evandro Ghedin PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL PARTE | PROFESSOR REFLEXIVO: historicidade do conceito PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL w PROFESSOR REFLEXIVO: construindo uma critica* Selma Garrido Pimenta** Este texto teve sua origem no curso Anélise Critica do Conceito de Professor Reflexivo que ministrei inicialmente junto aos alunos do Dou- torado em Educacao na Universidade Catélica de Goids (2000)! ¢ junto a linha de pesquisa Didatica, Teorias do Ensino e Praticas Escolares, no Nticleo de Estudos e Pesquisas sobre Formacao de Professores, no Pro- grama de Pés-Graduacgao em Educacio da Faculdade de Educacao da USP (2001). Teve por objetivos explicitar e discutir as origens, os pressu- Postos, os fundamentos e as caracteristicas do conceito professor reflexivo, com vistas a dispor aos alunos perspectivas tedricas e dados de pesquisa empirica que lhes possibilitassem uma anillise critica desse conceito. Considerando a importancia que assumiu no processo formativo dos pés- graduandos, passou a integrar a disciplina Formagao de Professore Tendéncias Investigativas Contempordneas, sob a responsabilidade da autora e dos professores Maria Isabel de Almeida e José Cerchi Fusari, Feusp (2001). As andlises, as discussées, os debates e as criticas foram {0 texto 6 parte do Relatsrio Parcial de Pesquisa (CNPq, 2002), com o titulo A pesquisa na rea de formacio de professores t as tendéncias investigations contemporimeas teérico-epistemoldgicas- metodolégicas ¢ politicas. Agradeco a Maria Amélia Franco e Valter Soares Guimardes pela lei- tura e sugesties. “* Professora titular da Faculdade de Educagao da Universidade de Sao Paulo. sgpiment@usp.br 1. Em convénio com o Programa de Pés-Graduagio Educagio Brasileira, da Unesp/ Marilia, 18 PROFESSOR REFLEXTVO NO BRASIL significativamente ampliados com a colaboragao dos colegas e dos alu- nos e me estimularam a elaborar o presente texto, que incorpora contri- buigées a partir da pesquisa empirica Qualificagao do Ensino Ptiblico e Formaciio de Professores? ‘Sua proposta é a de analisar as origens, os pressupostos, os funda- mentos e as caracteristicas dos conceitos professor reflexivo e professor pes- quisador no movimento de valorizagio da formagio e da profissionaliza~ cdo de professores surgido em diferentes paises a partir dos anos 1990 e a sua influéncia em pesquisas e nos discursos de pesquisadores e de po- Iiticos brasileiros. Para isso procede a uma revisao conceitual do tema a partir das propostas do norte-americano D. Schén, seu principal formulador, e dos contextos nos quais se desenvolve. Aponta seus des- dobramentos conceituais na drea de formagao de professores em dife- rentes autores e paises e as principais criticas a partir de diferentes pers- pectivas tedricas e de pesquisa empirica por nés realizada. Analisa a apropriagéo desses conceitos no Brasil, situando um breve panorama histérico do movimento e das pesquisas sobre formagao de professores, anteriores A disseminacao do conceito entre nds, evidenciando a fertili- dade do didlogo que entao se estabeleceu. Criticando a apropriacao ge- neralizada dos conceitos, discute as bases politicas e ideolégicas em con- fronto nas politicas de formacao de professores no Brasil nos anos recen- tes. Por fim, aponta para a necessidade da transformacao do conceito, considerando as contradigdes que emergem de sua andlise. 1. Professor reflexivo — adjetivo ou conceito? Todo ser humano reflete. Alids, é isso que o diferencia dos demais animais. A reflexo € atributo dos seres humanos. Ora, 0s professores, como seres humanos, refletem. Entao, por que essa moda de “professor reflexi- vo"? De fato, desde os inicios dos anos 1990 do século XX, a expressao “professor reflexivo” tomou conta do cenario educacional, confundindo a reflexdo enquanto adjetivo, como atributo préprio do ser humano, com um movimento tedrico de compreensao do trabalho docente. Para escla- recer a diferenca entre a reflexdo como atributo dos professores (adjetivo) 2. Trata-se de pesquisa colaborativa coordenada pela autora, com a participacao de Manoel Oriosvaldo de Moura, Elsa Garrido e Heloisa Penteado, foi realizada em uma escola ptblica estadual de Séo Paulo junto a 24 professores, responsdveis pela formagao de professores para as séries iniciais do ensino fundamental. Feusp-Fapesp, 1996-2000. PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 19 eo movimento que se denominou professor reflexivo (conceito), procedere- mos a uma génese contextualizada desse movimento. Como professor de Estudos Urbanos no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, EUA) até 1998, Donald Schén realizou atividades re- lacionadas com reformas curriculares nos cursos de formagio de profis- sionais. Observando a prética de profissionais e valendo-se de seus estu- dos de filosofia, especialmente sobre John Dewey, propée que a forma- cao dos profissionais nao mais se dé nos moldes de um curriculo normativo que primeiro apresenta a ciéncia, depois a sua aplicacao e por Ultimo um estégio que supée a aplicacao pelos alunos dos conhecimen- tos técnico-profissionais. O profissional assim formado, conforme a ané- lise de Schén, nao consegue dar respostas as situagdes que emergem no dia-a-dia profissional, porque estas ultrapassam os conhecimentos ela- borados pela ciéncia e as respostas técnicas que esta poderia oferecer ainda nao estado formuladas. Assim, valorizando a experiéncia e a reflexito na experiéncia, conforme Dewey, e 0 conhecimento técito, conforme Luria e Polanyi, Schén pro- pée uma formacio profissional baseada numa epistemologia da prdtica, ou seja, na valorizacdo da pratica profissional como momento de constru- cdo de conhecimento, através da reflexao, andlise e problematizagio desta, 0 reconhecimento do conhecimento tacito, presente nas solucées que 08 profissionais encontram em ato. Esse conhecimento na acao é 0 conheci- 3, Em sua tese de doutorado (1983), Schén estuda Dewey, além de Polanyi, Wittgenstein, Luria e Kuhn. Autores que Ihe dao base para configurar uma pedagogia de formacio profis- sional. De Luria, quando estuda o desenvolvimento cognitivo de camponeses propondo-lhes problemas e observando seus processos de compreensao ¢ de resolucao e extrai a importancia de seus conhecimentos tdcitos (cf. Michael Polanyi). De Dewey, 0 conceito de experiéncia com- preendida como mais do que a simples atividade, envolvendo os elementos ativo (tentativas, experimentos, mudanga) e passivo, quando experimentamos, passamos, sofremos 2s conse- qiiéncias da mudanga. Nesse sentido, “a experiéncia é uma acao activo-passiva; nao € prima- Hamente, cognitiva. Mas a medida do valor da experiéncia reside na percepcao das zelacdes ou continuidades a que nos conduz” (p. 192). Portanto, “sem algum elemento intelectual [a zeflexo] no é possivel nenhuma experiéncia significativa”...“O pensamento ou reflex (...) € 0 discernimento da relacao entre aquilo que tentamos fazer ¢ o que sucede em conseqiién- cia’ (p. 199). Também “pelo pensamento nés prevemos [hipstese] as conseqiiéncias (...) 0 que significa uma solugdo proposta ou tentada (p. 208). Para que a hipétese seja aperfeigoada € necessézio que se analise cuidadosamente “as condigGes existentes e o contetido da hipstese adotada — acto que se chama raciocinio. Entio, a solucao sugerida —a idéia ou teoria— tem que ser posta em prova, procedendo-se de acordo com ela. Se acarretar certas conseqiéncias, determinadas mudangas no mundo, admite-se como valiosa, Se tal nao se der, modificamo-la e fazemos novas experiéncias” (p. 208). (Dewey, John. Democracia e educagio. Trad. de Godofredo Rangel e Anisio Teixeira. Sao Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1952). 20 PROFESSOR REFLEXWO NO BRASIL mento técito, implicito, interiorizado, que estd na ago e que, portanto, n&o a precede. E mobilizado pelos profissionais no seu dia-a-dia, confi- gurando um hébito. No entanto, esse conhecimento nao é suficiente. Fren- tea situagSes novas que extrapolam a rotina, os profissionais criam, cons- troem novas solugées, novos caminhos, o que se da por um processo de reflexio na agdo. A partir dai, constroem um repertério de experiéncias que mobilizam em situagées similares (repeti¢ao), configurando um co- nhecimento pratico. Estes, por sua vez, ndo dao conta de novas situa- ges, que colocam problemas que superam o repertério criado, exigindo uma busca, uma andlise, uma contextualizacao, possiveis explicagées, uma compreensao de suas origens, uma problematizagao, um didlogo com outras perspectivas, uma apropriacao de teorias sobre o problema, uma investigacao, entim. A esse movimento, o autor denomina de refle- xiio sobre a reflexdo na acéo. Com isso, abre perspectivas para a valorizagao da pesquisa na acao dos profissionais, colocando as bases para 0 que se convencionou denominar 0 professor pesquisador de sua pratica Assim, encontramos em Schén uma forte valorizagao da prética na formacdo dos profissionais; mas uma pritica refletida, que lhes possibi- lite responder as situacdes novas, nas situacées de incerteza e indefinicao. Portanto, os curriculos de formacao de profissionais deveriam propiciar o desenvolvimento da capacidade de refletir. Para isso, tomar a pratica existente (de outros profissionais e dos préprios professores) é um bom caminho a ser percorrido desde o inicio da formaco, e nao apenas ao final, como tem ocorrido com 0 estagio! 2. A fertilidade das contribuigées de Schén no campo da formacio de professores As idéias de Schén rapidamente foram apropriadas e ampliadas em diferentes paises, além de seu proprio, num contexto de reformas 4, Dentre os autores que inicialmente colocam as questées de professor pesquisador para a drea de formacio destes esto Elliot (1993) e Stenhouse (1984 e 1987). 5, Aos interessados em aprofundar a andlise das propostas de Schén e suas teorias, con- sultar, especialmente, Schiin, D. The Reflective Practitioner — how professionals think in action. Londres: Temple Smith, 1983, e Educating the Reflective Practitioner — toward a new design for teaching and learning in the professions. San Francisco: Jossey Bass, 1987. Este também em espa- hol: La formacién de profesionales reflexivos — hacia un nuevo diseno de la enseiianza y el aprendizaje en las profesiones. Madrid: Paidés, 1992. Ver também Névoa, Antonio (coord.). Os professores ¢ sua formacio. Lisboa: Ed. Dom Quixote, 1992, obra que retine textos de varios autores em torno da perspectiva de professor reflexivo, inclusive um texto de Schén. PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL a curriculares nas quais se questionava a formagdo de professores numa perspectiva técnica e a necessidade de se formar profissionais capazes de ensinar em situagdes singulares, instaveis, incertas, carregadas de conflitos e de dilemas, que caracteriza o ensino como pratica social em contextos historicamente situados. Por outro lado, também se indagava sobre 0 papel dos professores nas reformas curriculares. Seriam estes meros executores das decisdes tomadas em outras instancias? Pesquisas j4 vinham apontando a importancia da participacao destes e da incorpo- rac&o de suas idéias, seus conhecimentos, suas representacdes, na elabo- racio das propostas a serem implantadas. O reconhecimento destes como sujeitos participantes das propostas se constituia em requisito impres- cindivel no sucesso da implantacio de mudancas. E 0 conceito de profes- sor reflexivo apontava possibilidades nessa direcao. A ampliacao e a andlise critica das idéias de Schén (¢ a partir delas) favoreceram um amplo campo de pesquisas sobre uma série de temas pertinentes e decorrentes para a 4rea de formacao de professores, temas inclusive ausentes nas preocupagdes de Schén. Uma das primeiras questées tematizadas dizia respeito aos curri- culos necessdrios para a formacio de professores reflexivos e pesquisa- dores, ao local dessa formagao e, sobretudo, as condigées de exercicio de uma pratica profissional reflexiva nas escolas. O que pés novamente em pauta de discussao as questées organizacionais, 0 projeto pedagégico das escolas, a importancia do trabalho coletivo, as questées referentes & autonomia dos professores e das escolas; as condicées de trabalho, de carreira, de saldrio, de profissionalizagao de professores; a identidade epistemolégica (quais saberes lhes sio prdprios?); os processos de for- maco dessa identidade, incluindo a vida, a histéria, a trajetdria pessoal ¢ profissional; as novas (e complexas) necessidades colocadas as escolas (e aos professores) pela sociedade contemporanea das novas tecnologias, da informagao e do conhecimento, do esgarcamento das relagdes sociais e afetivas, da violéncia, da indisciplina, do desinteresse pelo conheci- mento, gerado pelo reconhecimento das formas de enriquecimento que independem do trabalho; das novas configuragGes do trabalho e do de- semprego, requerendo que os trabalhadores busquem constantemente re-qualificagao através de cursos de formacao continua etc. Nesse contexto, no que se refere aos professores, ganhou forca a ‘formacao continua na escola, uma vez que ai se explicitam as demandas da pratica, as necessidades dos professores para fazerem frente aos confli- tos e dilemas de sua atividade de ensinar. Portanto, a formag¢ao continua 2 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL nao se reduz a treinamento ou capacitacao e ultrapassa a compreensio que se tinha de educacaio permanente.‘ A partir da valorizacao da pes- quisa e da pratica no processo de formacao de professores, propée-se que esta se configure como um projeto de formacdo inicial e continua articulado entre as instancias formadoras (universidade e escolas’). 3. Primeiras criticas: mercado de conceitos Oensino como pratica reflexiva tem se estabelecido como uma ten- déncia significativa nas pesquisas em educagao, apontando para a valo- rizagao dos processos de producio do saber docente a partir da pratica e situando a pesquisa como um instrumento de formacao de professores, em que 0 ensino é tomado como ponto de partida e de chegada da pes- quisa. Concordando com a fertilidade dessa perspectiva, cabe, no entanto, indagar: que tipo de reflexo tem sido realizada pelos professores? As reflexdes incorporam um processo de consciéncia das implicaces so- ciais, econémicas e politicas da atividade de ensinar? Que condigGes tém os professores para refletir? Sem dtivida, ao colocar em destaque o protagonismo do sujeito pro- fessor nos processos de mudangas ¢ inovacées, essa perspectiva pode gerar a supervalorizacdo do professor como individuo. Nesse sentido, diversos autores tém apresentado preocupagées quanto ao desenvolvi- mento de um possivel “praticismo” dai decorrente, para o qual bastaria a pratica para a construcao do saber docente; de um possfvel “individua- lismo”, fruto de uma reflexdo em torno de si prépria; de uma possivel hegemonia autoritaria, se se considera que a perspectiva da reflexao 6 suficiente para a resolugao dos problemas da pratica; além de um possi- vel modismo, com uma apropriacdo indiscriminada e sem criticas, sem compreensao das origens e dos contextos que a gerou, 0 que pode levar a banalizagao da perspectiva da reflexao. Esses riscos sdo apontados por varios autores. Para Liston & Zeichner (1993), no entender de Rocha (1999), “a re- flexdo desenvolvida por Schén aplica-se a profissionais individuais, cujas 6. Sobre as diferencas entre educago permanente e formagao continua, ver a tese de Maria Socorro Lucena Lima, A formagto continua de professores nos cantinhas e descaminhos do desenvolvimento profissional. Faculdade de Educagéo — Universidade de Séo Paulo, 2001. 7, Sobre a relacdo universidades e escolas, ver Fiorentini et al. (1998); Pimenta, Garrido & ‘Moura (2000); Zeichner (1998). PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL B mudangas que conseguem operar so imediatas: eles ndo conseguem al- terar as situagdes além das salas de aula. Esses autores acreditam que Schén tinha a consciéncia dessa limitacdo dos profissionais reflexivos. Para eles Schén nao especifica as reflexdes sobre a linguagem, os siste- mas de valores, os processos de compreensao e a forma com que defi- nem 0 conhecimento, quatro elementos fundamentais, sem os quais os professores no conseguem mudar a producéo do ensino, de forma a faz8-lo segundo ideais de igualdade e justica. E mais, sé a reflexdo nao basta, é necessario que o professor seja capaz de tomar posig6es concre- tas para reduzir tais problemas. Os professores nao conseguem refletir concretamente sobre mudangas porque sao eles prdprios condicionados ao contexto em que atuam”. Nesse sentido, Liston & Zeichner “conside- ram que o enfoque de Schén é reducionista e limitante por ignorar o contexto institucional e pressupor a pratica reflexiva de modo indi dual. Afirmam que isto ocorreu porque 0 autor nao se colocou por obje- tivo elaborar um processo de mudanca institucional e social, mas so- mente centrar-se nas praticas individuais. Afirmam que Schén concede aos profissionais a misséo de mediacao publica, facilitadores do didlogo ptiblico nos problemas sociais, mas nao inclui qual deveria ser 0 com- promisso e a responsabilidade publica dos professores” (Freitas, 1999). Zeichner (1992) “entende que a concepeao de intervengao reflexiva proposta por Schén, a partir de Dewey, é uma forma de sustentar a inco- eréncia em se identificar 0 conceito de professor reflexivo com praticas ou treinamentos que possam ser consumidos por um pacote a ser aplica- do tecnicamente. E é isso que, a seu ver, vem ocorrendo com 0 conceito: um oferecimento de treinamento para que o professor torne-se reflexivo. A nosso ver, esse ‘mercado’ do conceito entende a reflexdo como supera- ao dos problemas cotidianos vividos na pratica docente, tendo em con- ta suas diversas dimensGes. Essa massificagao do termo tem dificultado © engajamento de professores em praticas mais criticas, reduzindo-as a um fazer técnico. Contraditoriamente, esse fazer foi 0 objeto de critica do conceito professor reflexivo, como vimos. O esvaziamento do sentido também se da na identificagao do conceito com a adjetivagao da reflexao entendida como atributo do humano e do professor, portanto” (Castro et al., 2000). 8. Rocha, Celina Abadia da é& Freitas, Raquel A. M. M. foram alunas do doutorado da UCG em 1999, Os trechos citados referem-se a seus trabalhos de sinteses do curso. 9. Castro et al. Foram alunos do curso ministrado em 2000, na FE-USP. Os trechos citados referem-se a seus trabalhos de sinteses do curso. 4 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL Discorrendo sobre o tema, aponto (Pimenta, 2000) que o saber do- cente nao é formado apenas da pratica, sendo também nutrido pelas teo- rias da educag4o. Dessa forma, a teoria tem importancia fundamental na formacio dos docentes, pois dota os sujeitos de variados pontos de vista para uma aco contextualizada, oferecendo perspectivas de andlise para que os professores compreendam os contextos histéricos, sociais, cultu- rais, organizacionais e de si préprios como profissionais. Pérez-Gémez (1992), referindo-se a Habermas, pontua que a refle- x4o nao é apenas um processo psicoldgico individual, uma vez que im- plica a imersao do homem no mundo da sua existéncia, um mundo car- regado de valores, intercambios simbdlicos, correspondéncias afetivas, interesses sociais e cendrios politicos. Nesse sentido, quanto 4 aborda- gem da pratica reflexiva, torna-se necessario estabelecer os limites poli- ticos, institucionais e teérico-metodoldgicos relacionados a esta, para que no se incorra numa individualizagao do professor, advinda da descon- sideragdo do contexto em que ele esté inserido. A transformacio da pré- tica dos professores deve se dar, pois, numa perspectiva critica. Assim, deve ser adotada uma postura cautelosa na abordagem da pratica refle- xiva, evitando que a énfase no professor nao venha a operar, estranha- mente, a separagao de sua pratica do contexto organizacional no qual ocorre. Fica, portanto, evidenciada a necessidade da realizagao de uma articulacdo, no ambito das investigages sobre pratica docente reflexiva, entre praticas cotidianas e contextos mais amplos, considerando 0 ensi- no como pratica social concreta. Contreras (1997) se destaca dentre os autores que realizam uma anilise critica da epistemologia da pratica, decorrente da perspectiva da reflexo, para também apontar suas possibilidades. No livro La autonomia del profesorado realiza uma sistematizagao dessa critica a partir de dife- rentes autores. Quanto & concepcio do professor como investigador desenvolvida por Stenhouse, os varios autores concordam que este nao inclui a critica a0 contexto social em que se dé a acdo educativa. Assim, reduz a investi- gacdo sobre a pratica aos problemas pedagdgicos que geram acées parti- culares em aula. Para Kemmis (1985), por exemplo, a centralidade na aula como lugar de experimentacao e de investigacao e no professor como © que se dedica, individualmente, a reflexao e 4 melhoria dos problemas 6 uma perspectiva restrita, pois desconsidera a influéncia da realidade social sobre aces e pensamentos e sobre o conhecimento como produto PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL Pe de contextos sociais e histéricos. Nesse sentido, hé que se aceitar a afir- macdo de Giroux (1990) de que a mera reflexao sobre o trabalho docente de sala de aula € insuficiente para uma compreensio tedrica dos elemen- tos que condicionam a pratica profissional. Também Lawn (1988) anali- sa que uma coisa é identificar 0 lugar onde o professor realiza sua fun- 40; outra é reduzir o problema a esse lugar. Por isso, 0 processo de eman- cipagio a que se refere Stenhouse é mais 0 de liberacdo de amarras psico- l6gicas individuais do que 0 de uma emancipacdo social. Concordando com a critica desses autores, entendo que a supera- cdo desses limites se dard a partir de teoria(s), que permita(m) aos pro- fessores entenderem as restrig6es impostas pela pratica institucional e histérico-social ao ensino, de modo que se identifique o potencial trans- formador das praticas. Na mesma direcdo, Libaneo (1998a) destaca a importancia da apropriagao e produgao de teorias como marco para a melhoria das praticas de ensino e dos resultados. Contreras (1997) cha- ma a atencao para o fato de que a pratica dos professores precisa ser analisada, considerando que a sociedade é plural, no sentido da pluralidade de saberes, mas também desigual, no sentido das desigual- dades sociais, econémicas, culturais e politicas. Assim, concorda com Carr (1995) ao apontar sobre o cardter transitério e contingente da pré- tica dos professores e da necessidade da transformacao da mesma numa perspectiva critica. 4. De criticas e de possibilidades Ao colocar o papel da teoria como possibilidade para a superacdo do praticismo, ou seja, da critica coletiva e ampliada para além dos contextos de aula e da instituigao escolar, incluindo as esferas sociais mais amplas e ao evidenciar o significado politico da atividade docen- te, esses autores apresentam, no reverso da critica ao professor reflexi- vo e pesquisador da pratica, a fertilidade desses conceitos para novas possibilidades. Esse movimento, que coloca a direcdo de sentido da atuacao docente numa perspectiva emancipatéria e de diminuicao das desigualdades sociais, através do processo de escolarizacao, € interes- sante porque impede uma apropriacdo generalizada e banalizada e mesmo técnica da perspectiva da reflexao. O que se faz presente, por exemplo, no discurso sobre as competéncias, que, como se verd, nada mais significa do que uma tecnicizacao do trabalho dos professores e de sua formacao. 2% PROFESSOR REFLEXNO NO BRASIL 4.1. Da reflexao individual a coletiva Para compreender esse movimento, duas questées so fundamen- tais: 0 que se entende por teoria e seu papel na reflexao e a compreensio de que a reflexdo é necessariamente um processo coletivo. A) O papel da teoria Para Gimeno (1999), a fertilidade dessa epistemologia da pratica ocorrerd se se considerar inseparaveis teoria e pratica no plano da subje- tividade do sujeito (professor), pois sempre ha um didlogo do conheci- mento pessoal com a acao. Esse conhecimento nao é formado apenas na experiéncia concreta do sujeito em particular, podendo ser nutrido pela “cultura objetiva” (as teorias da educa¢a0, no caso), possibilitando ao professor criar seus “esquemas” que mobiliza em suas situagdes concre- tas, configurando seu acervo de experiéncia “tedrico-pratico” em cons- tante processo de re-elaboracio. Assim, a teoria como cultura objetivada é importante na formacao docente, uma vez que, além de seu poder formativo, dota os sujeitos de pontos de vista variados para uma aco contextualizada. Os saberes teéri- cos propositivos se articulam, pois, aos saberes da pratica, ao mesmo tem- po ressignificando-os e sendo por eles ressignificados. O papel da teoria é oferecer aos professores perspectivas de andlise para compreenderem os contextos hist6ricos, sociais, culturais, organizacionais e de si mesmos como ptofissionais, nos quais se da sua atividade docente, para neles intervir, transformando-os. Dai, é fundamental o permanente exercicio da critica das condicées materiais nas quais o ensino ocorre e de como nessas mes- mas condigées so produzidos os fatores de negagéo da aprendizagem. B) A reflexdo coletiva Para superar esses problemas Zeichner (1992), a partir de pesquisas que desenvolve junto as escolas e aos professores, formula trés perspec- tivas a serem acionadas conjuntamente: a) pratica reflexiva deve centrar- se tanto no exercicio profissional dos professores por eles mesmos, quanto nas condigées sociais em que esta ocorre; b) 0 reconhecimento pelos professores de que seus atos s4o fundamentalmente politicos e que, portanto, podem se direcionar a objetivos democraticos emancipatérios; c)a pratica reflexiva, enquanto pratica social, s6 pode se realizar em cole- tivos, 0 que leva 4 necessidade de transformar as escolas em comunidades de aprendizagem nas quais os professores se apoiem e se estimulem mutua- mente. Esse compromisso tem importante valor estratégico para se criar as condigdes que permitam a mudanga institucional e social. PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 2 4.2. Da reflexéo a reflexdo critica. Ou: do professor reflexivo ao intelectual critico Giroux (1990), apontando os limites da proposta de Schén, desen- volve a concepgao do professor como intelectual critico, ou seja, cuja re- flexio é coletiva no sentido de incorporar a andlise dos contextos escola- res no contexto mais amplo e colocar clara diregdo de sentido a reflexao: um compromisso emancipatério de transformagao das desigualdades sociais. Se essa perspectiva, de um lado, retira dos professores a capaci- dade de serem autores isolados de transformagées, de outro, confere- lhes autoridade publica para realizd-las. Com efeito, a capacidade eman- cipatéria e transformadora dos professores e das escolas como esferas democraticas 86 é possivel se considerar os grupos e setores da comuni- dade que tém algo a dizer sobre os problemas educativos. Portanto, ha que se abrir a pratica educativa aos grupos (incluindo as universidades) e praticas sociais comprometidas com a contestagio popular ativa. Para Contreras, Giroux expressa claramente 0 conterido da tarefa docente, mas nao aponta como os mesmos podem realizar a transi¢éo de técnicos reprodutores e mesmo reflexivos individualmente, para inte- lectuais criticos e transformadores. Dai, abre-se a perspectiva de pautar intimeros temas sobre o trabalho docente, as organizages escolares e os sistemas de ensino e de formacio inicial e continua dos professores. 6 nesse contexto que temas como a gest4o, o tempo de ensinar, os curricu- los, 0 projeto politico pedagégico, o trabalho coletivo, a identidade dos professores, sua autonomia relativa foram colocados em pauta. O que efetivamente ocorreu no cendrio educacional dos anos 1980 ¢ 90 em dife- rentes paises. Prosseguindo a andlise da perspectiva critica de Giroux, Contreras (1997) aponta o risco de esta nao ultrapassar o nivel de discurso, uma vez que nao esta sustentada na andlise das condig6es concretas das esco- las, nao oferecendo, portanto, uma andlise das mediagées possiveis para sua efetivacio. Ha que se entender que a escola ndo é homogénea e os professores no sdio passivos. Por isso se faz necessdrio analisar como estes podem manejar processos de interagdo entre seus interesses e os valores e conflitos que a escola representa, para melhor entender que possibilidades a reflexdo critica pode ter no contexto escolar. Por um lado, as finalidades educativas apresentam um discurso de preparar para a vida adulta com capacidade critica em uma sociedade plural. Por ou- tro, o trabalho docente e a vida da escola se estruturam para negar estas finalidades. E nesse patadoxo que os professores, para resistir as pres- ses que 0 contexto social e institucional exercem sobre eles, acabam re- 28 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL duzindo suas preocupagées e suas perspectivas de andlise aos proble- mas internos da aula. A compreensao dos fatores sociais e institucionais que condicionam a prética educativa e a emancipacio das formas de dominacao que afetam nosso pensamento e nossa agao nao sao esponta- neas e nem se produzem naturalmente. Sao processos continuos de desco- berta, de transformagao das diferencas de nossas praticas cotidianas. 5. As pesquisas sobre formacao de professores no Brasil Nos inicios dos anos 1990, especialmente com a difusao do livro Os professores e sua formacdo, coordenado pelo professor portugués Antonio Névoa, trazendo textos de autores da Espanha, Portugal, Franca, Esta- dos Unidos e Inglaterra, com referéncias & expansio dessa perspectiva conceitual também para a Austrélia e o Canada, e com a participacao de significativo grupo de pesquisadores brasileiros no I Congresso sobre Formacao de Professores nos Pafses de Lingua e Expressao Portuguesas, realizado em Aveiro, 1993, sob a coordenacao da professora Isabel Alarcao, o conceito de professor reflexivo e tantos outros rapidamente se disseminaram pelo pais afora. Os dois colegas portugueses passaram a vir ao Brasil com grande freqiiéncia, a partir de convites das universida- des, depois das associacées cientificas, depois dos governos e das esco- las particulares. Considerando a riqueza da colaboracao de ambos e suas qualidades como intelectuais e pesquisadores, nos perguntamos o por- qué da admiracao dos educadores brasileiros por eles. Ou, de outro modo, por que suas pesquisas e suas experiéncias no campo da formacdo de professores, a partir das contribuicdes de Schén, foram tao ampla e rapi- damente disseminadas? Certamente porque aqui encontraram um terre- no fértil. Como se configurava, entao, 0 contexto da formagao de profes- sores no Brasil? Alguns antecedentes A formacao de professores é um antigo e caro tema em nossa histé- ria.“ Muitas pesquisas jé haviam sido produzidas sobre o assunto, antes das influéncias citadas. 10. No Ambito deste texto me deterei ao periodo a partir dos anos 1960. Para examinar a questo desde as suas origens, bem como para ampliar a andlise, consultar Brezinski (1987); Fusari & Cortese (1989); Goncalves & Pimenta (1990); Pimenta (1994), entre outras, PROFESSOR REFLEXTVO NO BRASIL 29 Nos idos dos anos 1960, Aparecida Joly Gouveia e outros autores da Area de Sociologia da Educa¢ao na USP jé vinham inaugurando a pesquisa em educacao no pais. Dentre eles, Luiz Pereira, utilizando da- dos do Censo Escolar do Brasil, Inep, 1965, em sua pesquisa denomina- da Magistério primdrio numa sociedade de classes (1969), constatava que a caracteristica mais marcante do magistério primdrio estava no fato de ser uma ocupago quase exclusivamente feminina, apontando como um fator da desvalorizacdo relativa da profissionalizagao docente, uma vez que pautada em caracteristicas missiondrias, de instinto maternal, pa- ciéncia e abnegacao e de baixos salarios, poucas horas diérias de traba- lho e prestigio ocupacional insatisfatério. Fatores esses aceitéveis para 0 trabalho de uma mulher de classe média alta, em uma sociedade e uma cultura essencialmente baseadas no trabalho masculino, suporte da fa- milia. A sociedade brasileira, no entanto, serd profundamente alterada a partir dos anos 1960, com o desenvolvimento do capitalismo urbano, apontando para uma desqualificacdo do trabalhador em geral, o que poe em pauta a necessidade do trabalho da mulher para o sustento da fami- lia, especialmente da professora que podia conciliar trabalho e afazeres domésticos. Por outro lado, o trabalho urbano vai ampliar a demanda social por escolarizacao basica. Também o Instituto Nacional de Pesquisas Pedagégicas (INEP),** 6rgao do governo federal criado e dirigido por Anisio Teixeira, realiza- 14 importantes e significativas pesquisas sobre a formacao de professo- res realizada ent&o nas Escolas Normais de Ensino Médio. Essas pes- quisas colocaram em evidéncia o distanciamento e a impropriedade dessa formagao em confronto com as necessidades de uma escolarida- de basica de qualidade, para uma populacio significativamente amplia- da e que trouxe para os bancos escolares as criancas dos segmentos 11. O Inep, criado no infcio dos anos 1940, iniciou em julho de 1944 a publicagao da Revista Brasileira de Estudos Pedagégicos (RBEP), responsdvel pela divulgagio do pensamento educacional brasileiro e das pesquisas sobre formacao de professores, até meados dos anos 1980. Além disso, foi um dos principais promotores para a organizagao das Conferéncias Na- cionais de Educagao (CNEs) 1965/6/7, e que foram inviabilizadas pela ditadura militar. Pos- teriormente, nos anos 1980, entidades de educadores da sociedade civil (Ande, ANPEA, Ce- des), reeditaram sob a sigla de Conferéncias Brasileiras da Educag3o (CBEs), responsdveis, pela divulgacio do pensamento e das pesquisas jé entio produzidas nas Faculdades de Edu- cacao e nos Programas de Pés-Graduacao em Educagao, criados em 1969, a partir do amplo movimento de anélise critica da realidade educacional brasileira, que colocou em pauta a importancia da educagio no processo de democratizacio politica, social, econémica e cultu- ral, trazendo propostas de politicas publicas compromissadas com justiga e igualdade social. 30 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL sociais até entao excluidos. Além de insuficientes numericamente — “44% dos professores primérios que ensinam em nossas escolas séio improvisados e sem formacaio” (Censo Escolar do Brasil, Inep, 1965) —, com formagao nao além da 2° série priméria, as Escolas Normais pade- ciam de uma tradicao elitista em seu curriculo, distanciado das neces- sidades da pratica, que colocavam desafios que as professoras nao es- tavam preparadas para enfrentar, ou mesmo no se dispunham a fazé- lo (cf. Pinheiro, 1967). Essas pesquisas mostravam que o Curso Normal nao partia da and- lise da realidade (na linguagem de hoje poderiamos dizer que no reali- zava pesquisa da pratica, nio possibilitava a reflexio dos professores), néo preparando os futuros professores para enfrenta-la. O distanciamento entre os cursos de formacao e a realidade da escola priméria foi assim diagnosticado na pesquisa de Pinheiro (1967: 160): “(...) embora os alu- nos estudem Psicologia e Sociologia, n3o adquirem atitude psicolégica e sociolégica adequadas para enfrentar, no futuro, problemas concretos (..) Ao altno nao é dada a oportunidade de refletir sobre os problemas relacionados com a escola primaria e que estao a exigir solugées.” As pesquisas sobre a Escola Normal prosseguiram, especialmente depois que esta foi significativamente modificada pela Lei 5692/71, que tornou obrigat6ria a profissionalizacéo no Ensino Médio.” O Ensino Normal passou a ser, a partir de ento, apenas uma das habilitagdes profissionalizantes, tendo sofrido significativas transformacées em seu curriculo, com reduco de sua carga horaria especifica. A Habilitagdo Magistério (HEM) assumiu, assim, um cardter difuso no Ensino Médio, perdendo, contraditoriamente, quase totalmente sua dimensao pro- fissionalizante” e distanciando-se da realidade das escolas priméarias. As praticas decorrentes dessa medida legal caminharam, pois, na con- tramao do que apontavam as pesquisas realizadas pelo Inep (cf. Pi- menta, 1994). As pesquisas desse periodo subsidiaram os debates ¢ as novas pro- postas amplamente discutidas nas Conferéncias Brasileiras de Educagao (CBEs), nos anos 1980. De modo geral, apontavam para a necessidade de se proceder a uma transformacao paulatina da formagao dos professores para a escolaridade basica a ser realizada no ensino superior. Para isso, 12, Diante de intimeras presses, a profissionalizagao foi tornada opcional a partir de 1982. 13. Ver a propésito Brezinski (1987); Candau (1986); Cysneitos (1980); Farias (1983); Gatti & Rovai (1977); Lelis (1983); Mediano (1987); Piconez (1988); Pimenta (1994), entre outros. PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 3 também concorria a intensa discussao sobre os cursos de pedagogia e a especificidade dos pedagogos, muitas vezes identificados também como professores, pois comportavam, dentre suas habilitagdes, a Habilitagao Magistério, que certificava os pedagogos como professores das discipli- nas pedagégicas dos cursos de formagao de professores em nivel de 2° grau (antigo Curso Normal). Ora, se poderia formar professores que atua- riam nas séries iniciais, também poderia (e mesmo deveria) formar pro- fessores para o magistério nessas séries."* E importante, sobre o assunto, destacar as experiéncias que passaram a ser realizadas por diferentes universidades que em convénio com sistemas ptiblicos passaram a for- mar, nos cursos de pedagogia, professores habilitados para as séries ini- ciais, inclusive se propondo e, eventualmente, realizando pesquisa como parte do processo formativo. Esses cursos passaram a assumir um caré- ter de formagio inicial e continua, ao mesmo tempo, na medida em que se destinavam a professores que jé atuavam, mas sem a formagéo em nivel superior.” A produgio académica na 4rea de educacao foi significativamente impulsionada com a criacao dos cursos de pés-graduacao na area.” Al- guns programas tiveram expressiva contribuicao na andlise critica da educagao brasileira.” Privilegiando um referencial marxista e gramsciniano na anilise dos problemas educacionais e da escolaridade no pais, confi- guravam um espaco de resisténcia a entdo ditadura militar. Incorporan- do as contribuicées das varias disciplinas que se ocupavam da educagao como a Sociologia, a Antropologia, a Filosofia, a Economia, além da pré- pria Pedagogia, produzindo as primeiras dissertacdes e teses, esses pro- gramas foram determinantes para a andlise critica da escola e da educa- cdo bem como para o reconhecimento da importancia (relativa e nao exclu- siva) da educaco escolar nos processos de democratizagao da socieda- de. Valorizago essa que caminhava na perspectiva de superagao das anélises reprodutivistas, sem negar 0 cardter ideolégico da educacao, mas compreendendo-a como um espago de contradicées. 14, Sobre os problemas, embates ¢ discussées a respeito dessas questées, ver 0s Docu- mentos da Anfope (1994 em diante); Goncalves & Pimenta (1990); Libaneo (1998b); Libaneo & Pimenta (1999); Brezinski (1996 e 1999). 15. Importantes experiéncias foram entZo desenvolvidas como a da Universidade Fede- ral do Mato Grosso. Ver Almeida (1996); Monteiro & Speller (1999). 16. A pés-graduacdo foi institucionalizada com a Lei da Reforma Universitaria, 5540/68 17. Destaque-se o de Filosofia da Educacao, da PUC-SP, sob a coordenacao do prof. Dermeval Saviani, em Sao Paulo, ¢ os Programas da PUC-RJ, Unicamp, UFMG, dentre outros. 32 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL Estava, assim, aberto 0 caminho para se colocar a educagio e a es- cola em questéo."* Inclusive a formacao de professores, ndo apenas para a escola basica, mas para as demais séries, formacdo essa entao realizada nos cursos de licenciatura. As andlises produzidas evidenciavam a au- séncia de projeto formativo conjunto entre as disciplinas cientificas e as pedagégicas, o formalismo destas, o distanciamento daquelas da reali- dade escolar, além do desprestigio do exercicio profissional da docéncia no ambito da sociedade e das politicas governamentais prejudicando seriamente a formagao de professores.”* Essas pesquisas foram produzi- das também no ambito do movimento de revisao dos curriculos do cur- so de pedagogia, que depois se ampliou para a revisio dos cursos de formacao de educadores, incluindo as licenciaturas, originando a Asso- ciagéo Nacional de Formagao dos Profissionais da Educagao (Anfope). A par da produc&o académica e das experiéncias de formagao de professores para as séries iniciais que vinham sendo realizadas no ambi- to de universidades, durante os anos 1980, apds a redemocratizagao po- litica com a retomada das eleigdes diretas, governos democraticamen- te eleitos incorporaram, em seus programas educacionais, muitas das contribuigdes produzidas nos anos das CBEs. No que se refere forma- do de professores, intimeras foram as transformacdes ocorridas na en- to Habilitagdo Magistério, tendo surgido alternativas que caminhavam na diregao de tornar a formagio mais diretamente voltada aos proble- mas que as praticas das escolas apontavam.” Entendia-se que era neces- sdrio que os professores tivessem sdlida formacdo teérica para que pu- dessem ler, problematizar, analisar, interpretar e propor alternativas aos problemas que o ensino, enquanto pratica social, apresentava nas esco- las (cf. Pimenta, 1994; André & Fazenda, 1991; Fusari & Pimenta, 1989). Essa compreensao suscitou novas propostas curriculares tanto nas legis- lagdes estaduais quanto nas praticas nas escolas, possibilitadas por am- plos Programas de Formacao Continua, promovidos por Secretarias de Educagcao com assessoria de universidades. Uma andlise dessas propos- tas permite que nelas se identifique a importancia que colocavam na pes- quisa da pritica como proposta formativa, especialmente quando se refe- riam aos estagios. 18. Ilustrativo desse movimento foi o semindrio “A didatica em questo”, realizado na PUC do Rio de Janeiro, em 1983, coordenado pela profa. Vera Candau, que gerou livro homénimo. 19, Ver as pesquisas realizadas por Favero (1987 e 1992). 20, Exemplo destas foi o Projeto Cefam (Cavalcante, 1994). PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 33 Para a elaboracao dessas propostas foi muito significativa a contri- buicio das pesquisas qualitativas e de andlise do cotidiano escolar. Ao expor a importdncia da andlise das praticas dos professores em seus con- textos, colocava em evidéncia a escola como espaco institucional de pré- ticas coletivas. A compreensiio dos processos de constituicao do saber fazer docente no local de trabalho abria caminhos para o estudo da esco- la nos cursos de formacao e para novas possibilidades de se articular a formacio inicial e a continua, através especialmente dos estdgios.” Ao mesmo tempo, crescia o entendimento da importancia de se ele- var a formagao dos professores das séries iniciais ao ensino superior, 0 que acabou tomando corpo na Proposta para o texto legal da nova LDBEN, que foi aprovada em decorréncia da Carta Constitucional de 1988.” O texto que passou a integrar a LBDEN/96, resultado de intime- ras pressdes, apenas em parte contemplou as demandas dos educadores no que se refere a formaco de professores para as séries iniciais. Mante- ve-a no nivel médio, por mais dez anos. Para realizd-la no nivel superior, no entanto, em vez de se valer das intimeras pesquisas e experiéncias que vinham sendo realizadas pelos governos estaduais e pelas universi- dades que j4 apontavam para a importancia do fortalecimento destas na realizacio dessa formagio, criou-se uma nova instituicdo, os Institutos Superiores de Educacio (ISE), fora da universidade e cujo modelo jé vi- nha sendo amplamente questionado em diferentes paises que haviam optado por esse caminho, como por exemplo, Argentina, Portugal, Espanha, dentre outros. Essa institui¢go nao desenvolverd pesquisa, mas 21. Ver André (1995). 22. Ver Pimenta (1994), 23. © capitulo sobre Educagdo que consta da Constituicéo aprovada em 1988 foi elabora- do pelos educadores brasileiros, a partir da ampla mobilizaco promovida pelas entidades entio promotoras das CBEs, e que culminou no texto aprovado na Assembléia Final da IV Conferéncia Brasileira de Educacao, realizada em Goiania, em setembro de 1986 (ver Casta de Goifinia, in: Cunha, 1998). Nessa mesina Assembléia foi constituido o Férum Nacional em Defesa da Escola Puiblica, envolvendo outras entidades ¢ sindicatos de educadores (Andes € CNTE) e da sociedade civil (ABI, OAB, entre outras). Esse Forum deu prosseguimento & atua- ‘40 politica junto aos érgios representativos (executivo, legislativo e judicidrio), pois na se- qiiéncia da Carta Constitucional iniciou-se o movimento pela elaboracao das Leis Organicas, dentre as quais a da Educagao (LDBEN). Novamente as CBEs, especialmente a de Brasilia (2988), foi 0 espaco privilegiado para o qual convergiram as vozes dos educadores e da qual saiu a proposta dos mesmos para a nova LDB. 24, Ver Menezes (1996), produto de seminério realizado em Sao Paulo para uma avalia- do das reformas no campo da formacao de professores, empreendidas pela Franca, Argenti- na, Portugal, Inglaterra, Tailandia e Brasil. 34 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL téo-somente ensino, comprometendo significativamente 0 conceito e a identidade do profissional a ser formado. No espaco de tempo entre a aprovacao da Constituigio de 1988 ea da LDBEN de 1996, 0 ent&o Ministério de Educa¢ao,¥ com a colaboragao de varias entidades e féruns de educadores de todo o pais, realizou a Conferéncia Nacional de Educacao para Todos (1993), precedida de en- contros regionais, que consolidou e aprovou o Plano Decenal de Educa- So para Todos (1993 — 2003), que seria nas palavras do entao ministro implementado “(...) Com os recursos constitucionais [acrescentados de outros, como Banco Mundial], mas fundamentalmente os que existem e esto assegurados pela Constituigao” (Anais da Conferéncia Nacional de Educacao, 1993: 11). Desse Plano consta, fato inédito, um amplo acor- do, negociado c assumido entre os sindicatos e os governos estaduais e municipais, para a clevagao salarial dos professores de todo 0 territério. nacional, definida num piso salarial minimo.* Pela primeira vez, nos anos recentes, se colocava em pauta, no ambito governamental, a indissociabilidade entre qualidade de formacao e condigées de trabalho e de exercicio profissional (especialmente saldrios). Contribuiu para isso a intensa movimentacao dos sindicatos de professores empreendida nos anos 1980. Com a assessoria de intelectuais das universidades, os sindi- catos foram incorporando e produzindo conhecimento que lhes permi- tia avancar, a partir das tradicionais lutas por melhores salarios, para a importéncia de melhor se explicitar as demais condigdes necessarias ao exercicio profissional, com vistas a uma melhoria da qualidade das esco- las. Af foi se colocando em pauta as questdes sobre profissionalizacao e desenvolvimento profissional dos professores. No entanto, a valorizagio profissional, incluindo salarios e condi- gGes de trabalho, foi totalmente abolida dos discursos, das propostas e das politicas do governo subseqiiente, que passou a normatizar exausti- vamente a formacdo inicial de professores e a financiat amplos progra- mas de formacdo continua. A partir dessa breve retrospectiva sobre a formagio de professores em nosso pais, pode-se perceber as preocupacées tematicas que configu- 25, Tendo por Ministro o prof. Murilio Hingel. 26. Ver, a propésito, o capitulo XIII dos Anais, intitulado “Educador: formacéo, profis- sionalizagao e compromisso”, no qual participaram, como relatores dos documentos elabora- dos pelas entidades envolvidas, os professores José C. Fusari, Selma Garrido Pimenta e Carlos Abicalil, dentre outros (pp. 841-848). PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 35 raram 0 solo que acolheu as colaboragdes dos pesquisadores estrangei- ros. Numa tentativa de sintese, pode-se apontar os seguintes: a valoriza- cao da escola e de seus profissionais nos processos de democratizacao da sociedade brasileira; a contribuigao do saber escolar na formagao da ci- dadania; sua apropriagao como processo de maior igualdade social e in- setgao critica no mundo (e daf: que saberes? que escola?); a organizagao da escola, 0s curriculos, os espacos e os tempos de ensinar e aprender; © projeto politico e pedagégico; a democratizac4o interna da escola; 0 trabalho coletivo; as condigdes de trabalho e de estudo (de reflexio), de planejamento; a jornada remunerada, os salarios, a importancia dos pro- fessores nesse processo, as responsabilidades da universidade, dos sin- dicatos, dos governos nesse proceso; a escola como espaco de formacao continua, os alunos: quem sao? de onde vém? 0 que querem da escola? (de suas representacdes); dos professores: quem so? como se véem na profissdo? Da profissao: profisséio? E as transformagées sociais, politi- cas, econédmicas, do mundo do trabalho e da sociedade da informacao: como ficam a escola ¢ os professores? Foi nesse solo profundamente revolvido que as contribuicées de Névoa, Alarcéo, Schén e outros foram bem-vindas. Ao menos para que pudéssemos olhar para outras experiéncias, considerando-as como um dos possiveis critérios para analisar as nossas questdes, caminhos e propostas. 6. A centralidade nos professores como fundamento de politicas educacionais: de possibilidades e de criticas Nos pajses que adentraram por um processo de democratizacao social e politica, nos anos 1980, saindo de longos periodos de ditadura como Espanha e Portugal, identifica-se o reconhecimento da escola e dos professores como protagonistas fundamentais nesse processo. O que le- vou esses paises a realizarem significativas alteracdes nos seus sistemas de ensino, elevando a formacéo dos professores da escola basica para o nivel superior (fenémeno que ainda se encontra em proceso), investin- do na formagao inicial e continua, no desenvolvimento das instituigdes escolares e elevando o estatuto de profissionalizacao dos professores, incluindo a reestruturagio do quadro de carreira, das condicées de tra- balho e dos salarios. Nesses paises, os temas acima referidos ganharam espaco nas universidades e nas pesquisas, colaborando para a proposi- c&o das politicas educacionais e de formagao de professores, 0 que ocor- 36 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL reu também nos sindicatos, as vezes em colaboracao com as universida- des e com os sistemas piiblicos.” Do ponto de vista conceitual, as questées levantadas em torno e a partir do professor reflexivo, investindo na valorizagao e no desenvolvi- mento dos saberes dos professores e na consideracio destes como sujei- tos e intelectuais, capazes de produzir conhecimento, de participar de decisdes e da gestao da escola e dos sistemas, trazem perspectivas para a re-invenciio da escola democratica. O que é 0 contraposto da concepgao de professores na racionalidade técnica, caracteristica dos anos 1970, que resultou em controle cada vez mais burocratico do trabalho destes, evi- denciando uma politica ineficaz para a democratizacao do ensino, sem resolver a exclusao social no processo de escolarizagao. A bibliografia produzida nesses paises foi amplamente difundida no Brasil, a partir dos anos 1990, especialmente com a obra de divulga- co coordenada por Anténio Névoa, Os professores e sua formaciio, 1992. Esse livro contempla textos de autores de paises como Portugal, Espanha, Estados Unidos, Franca, Inglaterra, o que evidencia a répida apropria- co e expanso dessa perspectiva conceitual. Também nesses paises, es- pecialmente Espanha, se produzird, nas universidades, importante criti- ca as teorias de Schén e de Stenhouse, o que pode ser analisado nas obras de Gimeno Sacristan, (1992, 1994 e 1999); Pérez-Gémez (1991, 1992 e 1995) e Contreras Domingo (1997), dentre outros, como vimos. A centralida- de colocada nos professores traduziu-se na valorizacao do seu pensar, do seu sentir, de suas crencas e seus valores como aspectos importantes para se compreender o seu fazer, no apenas de sala de aula, pois os professores no se limitam a executar curriculos, sendo que também os elaboram, os definem, os re-interpretam. Dai a prioridade de se realizar pesquisas para se compreender 0 exercicio da docéncia, os processos de construgao da identidade docente, de sua profissionalidade, 0 desenvol- vimento da profissionalizagao, as condigdes em que trabalham, de status e de lideranga. Em decorréncia também de extenso e significativo intercambio en- tre seus pesquisadores e os colegas estrangeiros, assistimos a uma répi- 27. Ver, a propésito, a tese de Almeida, Maria Isabel de. O sindicato como instancia forma- dora dos professores: novas contribuigées ao desenvolvimento profissional. S40 Paulo: Faculdade de Educagao, USP, 1999. 28, Em outros pafses também pode se verificar o desenvolvimento dessas cxiticas: Ingla- terra — Kemmis, S. (1985, 1987 e 1989) — e EUA — Zeichner (1991); Liston & Zeichner (1993) e Giroux (1990). PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 37 da apropriagio e expansao dessa perspectiva conceitual no Brasil. O que explicaria essa apropriacao? Por que essas idéias foram férteis em nosso meio académico e politico? Qual 0 cendrio das pesquisas sobre formacao de professores em nosso pais? O que jé haviamos produzido? Quais ce- narios sociais e politicos tinhamos sobre formagao de professores, esco- laridade, democratizacao escolar e social? Quais as demandas que esta- vam colocadas aos pesquisadores e as politicas de formacio? Como se configuravam essas politicas? Mas essa perspectiva conceitual também tem sido rechacada, as ‘vezes, com excessiva veeméncia no meio académico. Talvez por certo temor (ou xenofobia), uma vez que questiona os limites do ideario de formagao de professores predominante entre nés. Além do desprestigio que sofrem na prépria academia e nas agéncias de financiamento de pes- quisas, os cursos de formacao de professores permanecem numa ldgica curricular que nem sempre consegue tomar a profissdo e a profissio- nalidade docente como tema e como objetivo de formacdo. Muitas vezes seus professores desconhecem o campo educacional, valendo-se do aporte das ciéncias da educagaio e mesmo das areas de conhecimentos especifi- cos desvinculados da problematica e da importancia do ensino, campo de atuacio dos futuros professores.” Apropriado répida e excessivamente, de um lado, e descartado tam- bém rapidamente, por outro, parece-nos oportuna a empreitada de ana- lise critica do conceito professor reflexivo no Brasil 6.1. A centralidade nos professores nas politicas neoliberais® A educagéo é um fenémeno complexo, porque histérico. Ou seja, € produto do trabalho de seres humanos e, como tal, responde aos desafios 29. Intimeras pesquisas tém sido produ7 tas denunciando essas questées, contribuindo para um: melhor compreensio dessa formacao « partir de estudos criticos e analiticos das préticas ae formacio desenvolvidas nas universidades, mas também trazendo contribuigSes significativas do campo pratico dos cursos de licenciatura e do camy —e6rico para novos encaminhamentos aos cursos de formagao. F importante destacar que essas pesquisas tém. ‘orkwo, como unanimidade, que + universidade é 0 espaco formativo por exceléncia da Aocéncia, uma vez que ndo é simples formar para o exercicio da docéncia de qualidade e que a pesquisa ¢ 0 caminho metodolégico para essa formagao. Ver, a propésito, Guimardes .2061) e Rios (2001). 80. Nos limites deste texto, faremos apenas um breve comentério sobre esse assunto, com vistas a colocar bases para a tese que exporemos a seguir sobre os projetos em confronto no 38 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL que diferentes contextos politicos e sociais Ihe colocam. A educagio re- trata e reproduz a sociedade; mas também projeta a sociedade que se quer. Por isso, vincula-se profundamente ao proceso civilizatério e hu- mano. Enquanto pratica histérica tem o desafio de responder as deman- das que os contextos Ihe colocam. Quais seriam estes desafios hoje? Pelo menos dois: a) sociedade da informagio e sociedade do conhecimento; b) sociedade do nao-emprego e das novas configuragées do trabalho. No que se refere & sociedade da informacao e do conhecimento, é necessério distinguir os dois termos. Hoje a informagao chega em gran- de quantidade e rapidamente a qualquer ponto do planeta. Identificada como uma instituigio que transmite informacées, a escola, na Stica neo- liberal, tenderia a desaparecer, porque no apresenta a eficdcia dos meios de comunicagao nesse processo. Nessa perspectiva, a educagio se resol- veria colocando os jovens e as criancas diante das informacées televisivas einternéticas. Portanto, o professor poderia também ser dispensado. Um exemplo dessa ldgica é a politica que vem sendo implantada em diferen- tes estados, com a instalagao do tele-ensino, no qual as escolas so equi- padas com redes de televisao que transmitem os programas das discipli- nas, gerados por uma central e que coloca 0s professores como monitores. Essa politica permite uma grande economia aos sistemas, pois em cada sala de aula hé um monitor no lugar de cinco professores em uma 5* série, por exemplo. A tarefa destes é proceder a mediacao entre os pro- gramas de todas as dreas do curriculo e os alunos. Essa politica ilustra claramente a légica do estado minimo, caracteristica do neoliberalismo. Algumas pesquisas sobre esse sistema” tém revelado que os resultados dessa pratica empobrecem significativamente a qualidade da aprendi- zagem, operando uma nova forma de exclusao social pela incluso quan- Brasil. Em outros textos deste livro pode-se encontrar um aprofundamento dessa andlise, as~ sim como em Torres, Rosa M. “Tendéncias da formagao docente nos ano 1990". In: Novas Politicas Educacionais: criticas e perspectivas. S40 Paulo: PUC-SP, 1998; e Fonseca, Marilia. “Os financiamentos do Banco Mundial como referéncia para a formacao do professor”. In: Bicudo & Silva Jr. Formagdo do educador e avatiagéo educacional: formagao inicial e continua. Sao Paulo: Ed. Unesp, 1999. 31. Ver Bodiio, Idebaldo S. Sobre o cotidiano das classes de tele-ensino de uma escola da rede pitblica estadual do Ceard. Tese de doutorado. Sao Paulo: Feusp, 1999; Braga, Katia Regina, A universalizagio do tele-ensino nas escolas priblicas estaduais de 1° grau ea democratizacio do saber: 0 caso de Camocin. 1997. Dissertacdo de mestrado. Fortaleza: UECE, 1997; Cavalcante, Maria Marina Dias. A pritica do orientador de aprendizagem na TVE-CE. Urn estuido comparation das décadas de 1980 e 1990: caso de Boa Viagem. Fortaleza: UFC, 1998 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL 39 titativa no processo de escolaridade. No mercado competitivo, por exem- plo, esses alunos terao reduzidas oportunidades de insercao. Reconhecendo, no entanto, a quantidade e a velocidade das infor- macées na sociedade de hoje, cabe estabelecer a diferenca entre informa- cdo e conhecimento. Conhecer é mais do que obter as informagdes. Co- nhecer significa trabalhar as informac6es. Ou seja, analisar, organizar, identificar suas fontes, estabelecer as diferencas destas na producao da informacéio, contextualizar, relacionar as informagées e a organizacio da sociedade, como sao utilizadas para perpetuar a desigualdade social. Trabalhar as informaces na perspectiva de transformé-las em conheci- mento é uma tarefa primordialmente da escola. Realizar o trabalho de andlise critica da informaco relacionada A constitui¢do da sociedade e seus valores, é trabalho para professor e nao pata monitor. Ou seja, para um profissional preparado cientifica, técnica, tecnolégica, pedagégica, cultural e humanamente. Um profissional que reflete sobre 0 seu fazer, pesquisando-o nos contextos nos quais ocorre. 6.2. Dos saberes as competéncias: reduzindo a docéncia a técnicas No que se refere ao tema das novas configuragées do trabalho, 0 ndo-emprego é uma das caracteristicas da sociedade globalizada das in- formagées. Nesta o trabalho auténomo descarta as conquistas trabalhis- tas, que stio dispendiosas para os empregadores, incluindo o Estado. Para conseguir trabalho e sobreviver, o trabalhador desempregado necessita buscar, por sua conta, requalificag6es. E af pode-se compreender a imen- sa valorizacao hoje conferida aos programas de formacao continua trans- formando a educacao em um grande mercado. No que se refere aos pro- fessores, por exemplo, nos anos 1980 na América Latina, seus j4 baixos saldrios foram corroidos por uma inflacdo galopante, levando-os ao multiemprego ou ao abandono da profissao. A conseqiiéncia foi um au- mento de professores nao diplomados, leigos, com preciria estabilidade e em precdrias condig6es para ensinar. Os programas econdmicos adotados para conter a inflacdo, por sua vez, aumentaram os problemas sociais gerando maior pobreza e trazendo para a escola e seus professo- res novas demandas de atendimento, o que gerou 0 investimento de gran- des recursos em programas de formacao continua, por parte do estado, cujos resultados se perdem por nao terem continuidade e néo se confi- gurarem como uma politica de formagao que a articula a formagio ini- cial e ao desenvolvimento das escolas. Nesse quadro, “sao ilusérias as 40 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL propostas de baratear a formacio (...) em licenciaturas répidas ou curtas, que sdo apenas um verniz que da titulos; a educac&o superior [nas uni- versidades, acrescento] deve ser requisito para formar professores” (Sandoval, 1996: 10-11). No entanto, no que se refere aos professores, o trabalho ainda se realiza, em sua maioria, sob a forma de emprego, apesar de jé se anuncia- rem novas formas, como 0 trabalho aut6énomo e terceirizado (ha escolas que contratam os servicos de professores de Educagao Fisica, por exem- plo, através de academias). E outras, como a monitoria, que altera a iden- tidade dos professores em termos dos saberes necessdrios e do significa- do destes na formagao dos alunos. Quais as conseqiiéncias das mudancas na empregabilidade para a organizacao e o funcionamento da escola? Ha alguns anos nos debatiamos com a questo da divisdo do traba- lho no interior da escola, apontando as graves conseqiiéncias que o tra- balho fragmentado com os conhecimentos trazia & qualidade da escolarizacao. A critica a esse modelo é a de que o ensino por fragmentos das dreas do saber dificulta, e por vezes inviabiliza, pensar a relacio co- nhecimento — sociedade e a contribuicao que os saberes disciplinares podem oferecer as problematicas humanas e sociais. O projeto coletivo e interdisciplinar da escola aponta possibilidade para a superacao dessa fragmentacao. Ora, terceirizar e despojar os professores de suas especia- lizag6es nas reas do conhecimento torna impossivel o projeto de escola coletivamente construido, a partir da reflexao sobre os problemas da educacao escolar. E nessa reflexéo conjunta que se confere o significado as dreas de conhecimento. Assim, por exemplo, na area de Educacaio Fi- sica, trabalhar 0 corpo como desenvolvimento fisico, emocional, comunicacional na escola é muito diferente de trabalhd-lo como consu- mo, 0 que ocorre nas academias. Sao perspectivas educacionais muito diferentes. A partir desse breve panorama da sociedade neoliberal, 6 possivel perceber que a centralidade nos professores posta pelas demandas de democratizac3o nas sociedades que haviam saido de periodos de dita- dura e que buscavam a implantacio de um modelo da social-democra- cia que propiciasse uma maior e mais efetiva justica e eqiiidade social, econémica, politica, cultural, na qual a escolarizacao (e os professores) teriam contribuig&0 fundamental, também se faz presente, com outra diregio de sentido. Nas propostas do governo brasileiro para a forma- cdo de professores, percebe-se a incorporagao dos discursos e a apro- PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL a priacao de certos conceitos, que na maioria das vezes permanecem como ret6rica. E 0 caso, por exemplo, do conceito de professor reflexivo, que suporia significativa alteragao nas condicdes de trabalho dos professo- Tes nas escolas com tempo e estabilidade, ao menos, para que a reflexiio ea pesquisa da prética viessem a se realizar. Ou sao efetivamente implan- tados, como as politicas de formagao continua, mas fragmentadas como vimos. Ou ainda as reformas na formacéo inicial que estéo configurando um aligeiramento geral, acompanhadas de explicitas e as vezes sutis desqualificacées das universidades para realizar essa formacao, e mes- mo da desqualificagao e da falta de incentivos para as pesquisas sobre formagao de professores que estas tém realizado em escolas publicas, gerando significativo conhecimento sobre as necessidades para as politi- cas de formagao e de desenvolvimento profissional dos professores, das escolas e mesmo dos sistemas de ensino. No contexto dessas politicas importa menos a democratizagio eo acesso ao conhecimento e a apropriagéo dos instrumentos necessétios para um desenvolvimento intelectual e humano da totalidade das crian- cas e dos jovens e mais efetivar a expansdo quantitativa da escolaridade, mesmo que seus resultados sejam de uma qualidade empobrecida. Ou por isso mesmo. E, quando esses resultados sao questionados pela socie- dade, responsabilizam-se os professores, esquecendo-se que eles 30 tam- bém produto de uma formacao desqualificada historicamente, via de regra, através de um ensino superior, quantitativamente ampliado nos anos 1970, em universidades-empresas. Por outro lado, sob a ameaca de perda do emprego real ou mesmo simbolicamente através do desprestigio social de seu trabalho, e tam- bém frente as novas demandas que estdo postas pela sociedade contem- poranea a escola e aos professores, so eles instados a uma busca cons- tante de cursos de formacao continua, muitas vezes as suas expensas. Nessas politicas os professores também adquiriram centralidade, o que se constata pelo refinamento dos mecanismos de controle sobre suas ati- vidades, amplamenie preestabelecidas em intimeras competéncias, con- ceito esse que estd substituindo o de saberes e conhecimentos (no caso da educacio) e o de qualificagio (no caso do trabalho). Nao se trata de mera questao conceitual. Essa substituigéo acarreta 6nus para os professores, uma vez que o expropria de sua condicao de sujeito do seu conhecimen- to, como se pode perceber a partir da citac4o a seguir: Na Franga, até 0 inicio dos anos 1980, a drea de recursos humanos utilizava-se da nogdo de qualificagao (...) a tematica da qualificagéo construiu-se e desen- 2 PROFESSOR REFLEXIVO NO BRASIL volveu-se em universos sociais com organizacées aparentemente estdveis, onde as pessoas adquiriam os saberes que lhes permitiam assumir postos de traba- Iho estaveis. Aos poucos, com as recentes mudancas ocorridas no setor produ- tivo, esta situacdo se alterou, originando uma distancia entre o conjunto de saberes que o trabalhador detém e 0 conjunto de disposiges necessérias para manter um posto de trabalho. (...) A nogao de competéncia emerge nesse con- texto. (Silva, 1999: 94, sobre Dugué, 1996, Dugué, Le Botef, Minvielle, 1996) Nesse sentido, o discurso das competéncias poderia estar anuncian- do um novo (neo)tecnicismo, entendido como um aperfeigoamento do positivismo (controle /avaliagao) e, portanto, do capitalismo. “O capital estd exigindo, para sua reproduc, novas qualificagées do trabalhador” (Gilva, 1999:87). O termo competéncia, polissémico, aberto a varias inter- pretacées, fluido, é mais adequado do que o de saberes / qualificacao para uma desvalorizacio profissional dos trabalhadores em geral e dos pro- fessores. Competéncias, no lugar de saberes profissionais, desloca do tra- balhador para o local de trabalho a sua identidade, ficando este vulnera- vel & avaliacao e controle de suas competéncias, definidas pelo “posto de trabalho”. Se estas ndo se ajustam ao esperado, facilmente poderd ser descartado. Serd assim que podemos identificar um professor? Nao esta- riam os professores, nessa légica, sendo preparados para a execucao de suas tarefas conforme as necessidades definidas pelas escolas, estas, por sua vez, também com um modelo tinico, preestabelecido? Onde estaria o reconhecimento de que os professores nao se limitam a executar curri- culos, senao que também os elaboram, os definem e os reinterpretam, a partir do que pensam, créem, valorizam, conforme as conclusdes das pesquisas? (cf. Hargreaves, 1996). Por outro lado, o termo também significa teoria e pratica para fazer algo; conhecimento em situacdo. O que é necessério para qualquer tra- balhador (e também para o professor). Mas ter competéncia é diferente de ter conhecimento e informacao sobre o trabalho, sobre aquilo que se faz (visdo de totalidade; consciéncia ampla das raizes, dos desdobramen- tos e implicagdes do que se faz para além da situacao; das origens; dos porqués e dos para qué). Portanto, competéncia pode significar agdo imediata, refinamento do individual e auséncia do politico, diferente- mente da valorizacéo do conhecimento em situa¢ao, a partir do qual o professor constréi conhecimento. O que s6 é possivel se, partindo de co- nhecimentos e saberes anteriores, tomar as prdticas (as suas e as das es- colas), coletivamente consideradas e contextualizadas, como objeto de andlise, problematizando-as em confronto com o que se sabe sobre elas e

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