You are on page 1of 99

EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

LICENCIATURA EM

História
HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA I
André Luiz Joanilho
Cláudio Denipoti

PONTA GROSSA - PARANÁ


2011
CRÉDITOS
João Carlos Gomes
Reitor

Carlos Luciano Sant’ana Vargas


Vice-Reitor

Pró-Reitoria de Assuntos Administrativos Colaboradores em Informática


Ariangelo Hauer Dias - Pró-Reitor Carlos Alberto Volpi
Carmen Silvia Simão Carneiro
Pró-Reitoria de Gradução Adilson de Oliveira Pimenta Júnior
Graciete Tozetto Góes - Pró-Reitor
Projeto Gráfico
Divisão de Educação a Distância e de Programas Especiais Anselmo Rodrigues de Andrade Júnior
Maria Etelvina Madalozzo Ramos - Chefe
Colaboradores em EAD
Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância Dênia Falcão de Bittencourt
Leide Mara Schmidt - Coordenadora Geral Jucimara Roesler
Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Pedagógica
Colaboradores de Publicação
Sistema Universidade Aberta do Brasil Maria Beatriz Ferreira – Revisão
Hermínia Regina Bugeste Marinho – Coordenadora Geral Sozângela Schemim da Matta – Revisão
Cleide Aparecida Faria Rodrigues – Coordenadora Adjunta Edson Gil Santos Júnior – Diagramação
Myriam Janet Sacchelli – Coordenadora de Curso
Roberto Edgar Lamb – Coordenador de Tutoria Colaboradores Operacionais
Carlos Alex Cavalcante
Colaboradores Financeiros Edson Luis Marchinski
Luiz Antonio Martins Wosiack Thiago Barboza Taques

Colaboradores de Planejamento
Silviane Buss Tupich

Todos os direitos reservados ao Ministério da Educação


Sistema Universidade Aberta do Brasil

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor Tratamento da Informação BICEN/UEPG.

Joanilho, André Luiz


J62h História contemporânea I / André Luiz Joanilho e Cláudio
Denipoti. Ponta Grossa : UEPG/NUTEAD, 2011.
99p. il

Licenciatura em História – Educação a distância.

1. Revolução Francesa. 2. Revolução Industrial.


3. Invenção das Nações. 4. Movimento e teorias sociais.
I. Denipoti, Cláudio. II. T.

CDD : 909.8

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE PONTA GROSSA


Núcleo de Tecnologia e Educação Aberta e a Distância - NUTEAD
Av. Gal. Carlos Cavalcanti, 4748 - CEP 84030-900 - Ponta Grossa - PR
Tel.: (42) 3220 3163
www.nutead.org
2011
APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

A Universidade Estadual de Ponta Grossa é uma instituição de ensino


superior estadual, democrática, pública e gratuita, que tem por missão responder aos
desafios contemporâneos, articulando o global com o local, a qualidade científica e
tecnológica com a qualidade social e cumprindo, assim, o seu compromisso com a
produção e difusão do conhecimento, com a educação dos cidadãos e com o pro-
gresso da coletividade.
No contexto do ensino superior brasileiro, a UEPG se destaca tanto
nas atividades de ensino, como na pesquisa e na extensão Seus cursos de graduação
presenciais primam pela qualidade, como comprovam os resultados do ENADE,
exame nacional que avalia o desempenho dos acadêmicos e a situa entre as melhores
instituições do país.
A trajetória de sucesso, iniciada há mais de 40 anos, permitiu que a
UEPG se aventurasse também na educação a distância, modalidade implantada na
instituição no ano de 2000 e que, crescendo rapidamente, vem conquistando uma
posição de destaque no cenário nacional.
Atualmente, a UEPG é parceira do MEC/CAPES/FNED na execu-
ção do programas Pró-Licenciatura e do Sistema Universidade Aberta do Brasil
e atua em 38 polos de apoio presencial, ofertando, diversos cursos de graduação,
extensão e pós-graduação a distância nos estados do Paraná, Santa Cantarina e São
Paulo.
Desse modo, a UEPG se coloca numa posição de vanguarda, assumin-
do uma proposta educacional democratizante e qualitativamente diferenciada e se
afirmando definitivamente no domínio e disseminação das tecnologias da informa-
ção e da comunicação.
Os nossos cursos e programas a distância apresentam a mesma carga
horária e o mesmo currículo dos cursos presenciais, mas se utilizam de metodolo-
gias, mídias e materiais próprios da EaD que, além de serem mais flexíveis e facilita-
rem o aprendizado, permitem constante interação entre alunos, tutores, professores
e coordenação.
Esperamos que você aproveite todos os recursos que oferecemos para
promover a sua aprendizagem e que tenha muito sucesso no curso que está reali-
zando.

A Coordenação
SUMÁRIO
■■ PALAVRAS DOS PROFESSORES 7
■■ OBJETIVOS E EMENTA 9

O MUNDO EM CONVULSÃO
A REVOLUÇÃO FRANCESA  11
■■ SEÇÃO 1 - O FIM DO ANTIGO REGIME  14
■■ SEÇÃO 2 - PRÁTICAS E PENSAMENTOS REVOLUCIONÁRIOS  19
■■ SEÇÃO 3 - O NASCIMENTO DA POLÍTICA MODERNA  25

O MUNDO EM MARCHA
A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL  33
■■ SEÇÃO 1 - TRABALHO E SOCIEDADE 36
■■ SEÇÃO 2 - TRABALHO NA IDADE MÉDIA 42
■■ SEÇÃO 3 - O NASCIMENTO DAS FÁBRICAS 48

A INVENÇÃO DAS NAÇÕES 


■■ SEÇÃO 1 - NAÇÃO E NACIONALISMO – CONCEITOS E IDEIAS CENTRAIS 
57
58
■■ SEÇÃO 2 - OS HISTORIADORES E A CONSTRUÇÃO DAS HISTÓRIAS NACIONAIS 64

MOVIMENTOS E TEORIAS SOCIAIS


■■ SEÇÃO 1 - GENEALOGIA DA MILITÂNCIA 
 71
74
■■ SEÇÃO 2 - TEMPO E DISCIPLINA 79
■■ SEÇÃO 3 - TEORIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS 84

■■ PALAVRAS FINAIS 93
■■ REFERÊNCIAS  95
■■ NOTAS SOBRE OS AUTORES 99
PALAVRAS DOS PROFESSORES

Caro aluno, este livro sobre História Contemporânea traz algumas escolhas
que tivemos de fazer para discutir o período. Muitos acontecimentos, que mereceriam
constar em qualquer texto, foram deixados de lado, não pela sua falta de importância,
mas pelo espaço reduzido que oferece este livro. Isso quer dizer que fizemos
determinadas opções e elas partiram principalmente do ponto de vista historiográfico
que adotamos.
Entendemos, em primeiro lugar, que a história não é um campo de estudos que
pode dar conta de tudo o que aconteceu. Não nos é possível, inclusive fisicamente,
saber de todo o passado. Mas nos vem a questão: se isso não é possível, como escolher?
Em segundo lugar, a escolha é feita na possibilidade narrativa. A história tradicional,
sabendo que era impossível contar tudo o que aconteceu, buscava enquadrar todos
os seres humanos numa única narrativa, como se apenas um eixo comandasse as
ações de todos. Assim, numa corrente historiográfica, a política era central, enquanto
que em outra, a economia comandava o processo histórico.
Nos últimos anos, com os avanços da crítica historiográfica e também de novas
formas de abordar os acontecimentos, ficou patente que a narrativa unificadora era
uma criação de historiadores e que a história não era um processo em direção a um
fim inexorável. Estamos diante de possibilidades e, pensando nisso, o próprio passado
é pleno delas, somente sabemos o que veio depois e não nos é possível prever o que
acontecerá.
Se estabelecemos algumas prioridades, na realidade elas se devem mais
às convenções. Assim, Revolução Francesa, Revolução Industrial, Nacionalismo e
Nações e Movimentos Sociais são temas consagrados, mas também poderíamos
optar por “O amor na Era Contemporânea” ou ainda “Roupas e estilo de vida nos
dois últimos séculos” e muito mais. Porém, devido ao tratamento que aqueles temas
recebem, optamos por rediscuti-los dentro das nossas opções teóricas.
Assim, neste volume, procuramos incorporar as recentes discussões
historiográficas, buscando uma bibliografia atual e também dando importância para
aspectos históricos pouco discutidos.

BONS ESTUDOS
OBJETIVOS E EMENTA
Objetivo Geral
■■ Compreender os processos históricos de formação da contemporaneidade.

Objetivos Específicos
■■ Conhecer a produção historiográfica sobre a contemporaneidade.
■■ Compreender o processo de produção do conhecimento histórico a partir do
Iluminismo.
■■ Analisar as relações entre processos históricos da modernidade e a
sociedade contemporânea.

Ementa
■■ Mudanças e permanências na consolidação das sociedades
contemporâneas e seus enfoques historiográficos. As revoluções do século
XVIII e o nascimento do mundo moderno. Revolução Industrial e Revolução
Francesa. O pensamento romântico e a consolidação da sociedade burguesa.
O socialismo. A comuna de Paris. O nacionalismo no século XIX.

Plano de Estudo
UNIDADE I
O mundo em convulsão
A Revolução Francesa

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender as mudanças ocorridas no final do século XVIII e sua relação com
a criação da modernidade.
■■ Compreender os processos históricos geradores dessas mudanças.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - O fim do antigo regime

■■ SEÇÃO 2 - Práticas e pensamentos revolucionários

■■ SEÇÃO 3 - O nascimento da política moderna


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


A Revolução Francesa marcou a ascensão de novas formas de
organização social e política. Podemos dizer que existe uma divisão entre
o mundo antes e depois da Revolução. Isso não quer dizer que esse
acontecimento teve a capacidade de mudar tudo. Ao contrário, essas
mudanças já aconteciam na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos.
Podemos encontrar práticas sociais do estilo democráticas na sociedade
francesa por volta de 1780. Ou, ainda, tentativas do Estado monárquico em
taxar toda a população, inclusive a nobreza. Porém, o que a Revolução marcou
foi a possibilidade de essas práticas se tornarem comuns a toda população e
a vários países.
No entanto, a historiografia tem tratado esse acontecimento como
“natural”, quer dizer, estaria inscrito na natureza humana, sendo, portanto,
compreendido como causal. Dessa forma, sendo “natural”, a grande
questão é saber “por que” aconteceu. Ora, a naturalização de eventos ou
da própria história não deixa de ser um modo de compreender a história e,
assim, projetar no futuro acontecimentos passados, ou melhor, estipular que
os acontecimentos são resultados da evolução humana, portanto, são
“naturais”. Nessa perspectiva, o que aconteceu deveria invariavelmente
acontecer. Há certa dose de fatalismo e teleologia. O passado explica o
presente e este projeta o futuro.

Teleologia em história significa que o processo histórico caminha para deter-


minada finalidade. Por exemplo, para os católicos a história humana tende para a
Parusia, enquanto que para os marxistas a tendência é o próprio fim da história
com o estabelecimento da sociedade comunista. Dessa forma, os acontecimentos
se encadeariam e explicariam o Telos, ou seja, a direção que a história teria nesse
tipo de interpretação.

A história humana estaria explicada de acordo com a sua própria


finalidade, eliminando automaticamente aquilo que não se encaixa
nessa projeção do que viria. Portanto, a Revolução Francesa, nessa
concepção, viria a cumprir um papel específico: o de dar continuidade
ao cumprimento do Telos.
Esse foi o caso da historiografia marxista, que, desde o fim do século
XIX, entende este evento como uma etapa necessária da História humana:

12
UNIDADE 1
História Contemporânea I
o preâmbulo da Revolução Russa de 1917. Esta, por sua vez, seria o início do
fim da história. Após o período da ditadura do proletariado, o Estado deixaria
de existir, pois a sociedade comunista o aboliria simplesmente, mesmo porque
não haveria mais a luta de classes implicando o término do processo histórico
devido ao fim daquilo que o movia, ou seja, a própria luta de classes.
Essa posição da historiografia marxista é amplamente conhecida,
estando, inclusive, majoritariamente presente nos livros didáticos. É
essa visão que domina o aprendizado da história. Mas já é tempo de
desinvestir a Revolução Francesa de toda essa interpretação. Ao invés
de lançarmos a pergunta por que ela aconteceu?, talvez devêssemos
fazer outra: como ela foi possível?
Esse tipo de pergunta altera profundamente o questionário, pois do
horizonte familiar, aquele da Revolução como etapa necessária, passamos
a ver o que ela provocou naqueles que a testemunharam, o seu ineditismo.
Antes de ser fatal, sempre há no evento histórico, isto é, em qualquer
evento, uma dose de inesperado, de inaudito.
Normalmente é o presente que “naturaliza” o passado, colocando-o
numa ordem causal, explicando o próprio presente. Porém, se tomarmos
os acontecimentos como inéditos, teremos outra dimensão deles.
Trataremos, nesta unidade, do caráter inédito da Revolução; veremos,
portanto, que esse acontecimento foi único e não pode ser naturalizado. Não
se pode considerá-lo simplesmente como uma etapa de um processo histórico
alheio ao que os próprios seres humanos criaram em torno de si mesmos.
Desse modo, a Revolução pode ser compreendida, antes de tudo, como um
evento que não estava inscrito em lugar algum. Não havia, para as pessoas
envolvidas, nenhum roteiro prévio, nenhuma fórmula dizendo: “quando os
governos são tirânicos, eles devem ser mudados por outras formas”.
A Revolução americana estava longe demais para que se pudesse
sentir o seu peso na Europa. Assim, nada prescrevia o acontecimento de
1789 antes dele próprio. Os atores tiveram de “inventar” no calor dos
acontecimentos o sentido do que faziam. Isto é, ao fazerem a Revolução,
os revolucionários tiveram de nomeá-la, pois não havia nenhum escrito,
nenhum prenúncio de que ela aconteceria.
É desse fato inédito que devemos tratar quando falamos sobre a
Revolução Francesa, ao contrário do que a historiografia vem tratando há
muito tempo. E é isso que você estudará nesta unidade.

13
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

SEÇÃO 1
O FIM DO ANTIGO REGIME

Tradicionalmente a historiografia costuma colocar acento na grave crise econômica


que enfrentava o Estado monárquico francês perto da Revolução e também na estrutura
de classes do período. Podemos dizer que os dois elementos tiveram um peso significa-
tivo, no entanto é preciso considerar outras questões quando se trata da decadência do
Antigo Regime.

O período que precede a Revolução Francesa ficou conhecido como Antigo Regime, em
francês Ancien Régime, que também pode ser estendido a outros países. A expressão foi toma-
da por Alexis de Tocqueville na sua obra clássica, O Antigo Regime e a Revolução, tornando
comum o seu uso.

A Revolução não pode ser reduzida a algumas causas, como se


todos os seres humanos, todos os eventos coubessem nelas; ou, ainda,
como se aqueles que não perceberam o acontecimento vivessem como
sonâmbulos, e somente aqueles conscientes do que acontecia pudessem
participar ativamente da história. Podemos dizer que a Revolução teve
tantas causas quanto o número de seres humanos que existiram antes
dela. Porém, cabe-nos traçar linhas de acontecimentos não por ordem
de importância (esta questão deixou de ser séria há muito tempo em
história), mas conforme a capacidade de explicar.
A Revolução tem causas, sim, no entanto não são necessárias nem
fatais. Assim, passamos da explicação econômica e política com pitadas
de estrutura social, como tradicionalmente se faz, para aquela que trata
das representações e práticas sociais. Quer dizer, daquilo que os homens
acreditavam e praticavam no seu cotidiano, ou melhor, daquilo que dava
sustentação ao que existia.
Ora, para um determinado regime político existir é preciso que haja
um “investimento” social nele, isto é, as pessoas precisam acreditar que
ele é necessário e tem uma função a exercer. O que aconteceu com o
Antigo Regime foi a descrença de parte da sociedade na capacidade da
monarquia em governar e existir. Muitas pessoas deixaram de acreditar
na necessidade da existência de um tipo de governo ou, então, passaram
a ver que ele não cumpria o seu dever de governo, o que é quase a
mesma coisa, pois a sociedade havia mudado e as formas, até então, de

14
UNIDADE 1
História Contemporânea I
administrar do Estado estavam ultrapassadas para essa sociedade.
Durante todo o século XVIII, a sociedade francesa modificou
profundamente a sua relação com o poder e também se modificou. A forma
tradicional, a famosa pirâmide onde a figura no topo era representada
pelo rei, deixou de ter funcionalidade ou, ainda, funcionava muito mal.
Podemos seguir a análise de François Furet (1989) acerca dessas
mudanças. Em primeiro lugar (não é por ordem de importância, mas de
conveniência textual), surge uma figura nova no cenário político, social e
filosófico: o indivíduo. Bem, a novidade não está exatamente em se pensar
no indivíduo particularmente, mas numa nova posição dele perante
a sociedade. A grande questão que atravessou o século XVIII é saber
exatamente por que estaríamos juntos, ou melhor, por que os indivíduos
preferem viver em sociedade no lugar de viverem isolados e livres?
Vários pensadores tentaram responder a essa questão e de várias
maneiras. Devemos compreender que no século XVIII havia outra
compreensão do que éramos, portanto a questão não foi respondida da
mesma forma que responderíamos. Assim, o modo mais comum foi partir
de um hipotético “estado de natureza” para explicar a sociedade. Nesse
estado os homens viviam isolados, porém por vários motivos decidiram
ficar juntos. Essa é a ideia básica do Contrato Social, isto é, cansados da
vida na natureza e buscando algum tipo de conforto, os seres humanos
acordaram um contrato, estipulando o governo e as leis como formas de
controle e segurança.
Dessa forma, os indivíduos cedem sua soberania ao Estado como
meio de garantir as suas existências e a possibilidade de adquirir bens.
Essa teoria do direito jusnaturalista – quer dizer, as leis eram feitas com
base na natureza, pelo menos esta era a crença – determinaria que as
formas de governo e o próprio Estado também teriam sua origem nessas
leis “naturais”.
Tais proposições afrontavam as tradicionais teorias de direito
pautadas na religião. O rei retira a sua soberania diretamente de Deus, isto
é, acreditava-se que o poder real era sancionado pela própria divindade.
Sendo assim, o jusnaturalismo se mostrava uma teoria contrária aos
interesses da monarquia, pois o depositário da soberania era o povo,
já que foi ele, o povo, quem acordou o contrato, sendo, portanto, este a
origem do poder.

15
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

Compreender a sociedade dessa forma levava muitos a pensar que o


governo deveria buscar sua legitimidade nas vontades individuais, o que,
de certa maneira, fez muitos pensadores se voltarem para a Grécia Antiga
e para a República Romana, vendo ali modelos de governo e Estado que
deveriam ser seguidos.
Assim, durante o século XVIII se gesta uma ideia de sociedade
que é totalmente diferente daquela estabelecida desde o Renascimento,
com o surgimento dos Estados monárquicos, que teriam no poder real a
origem de sua soberania. No caso da França, isso é mais sintomático, pois
as duas teorias convivem conflituosamente, sem, no entanto, provocarem
uma ruptura até a Revolução.
Dos pensadores jusnaturalistas, o mais rigoroso foi, sem dúvida,
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Seu livro O Contrato Social, apesar
de ter sido um fracasso de vendas na época, trazia como principal
formulação a ideia de que se um indivíduo entregasse a sua soberania ao
todo, isto é, à maioria, estaria obedecendo a si mesmo, pois o interesse da
maioria era o interesse do indivíduo. No entanto, a dificuldade reside na
fórmula que Rousseau inventou para chegar a isso.

Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra (1712-1778) e era filho de um


relojoeiro calvinista. Aprendeu a ler e escrever cedo. Com a morte do pai, quando
ele tinha dez anos, foi trabalhar. Adolescente, resolveu sair da cidade natal. Após
vagar foi recebido por uma rica senhora, madame de Warens, tornando-se amante
dela. Assim empreendeu os seus estudos. Já adulto chega à Paris e logo faz ami-
zades no círculo dos letrados.
Diderot o convidou para escrever sobre música na Enciclopédie. Participou de
concursos de academias e ganhou vários prêmios, o que lhe deu fama e o tornou
parte integrante da República das Letras.

Numa visão burguesa, a maioria se constitui por uma simples


somatória. Somando-se as opiniões individuais, chega-se à opinião da
maioria, isto é, cinquenta por cento mais um. Já a fórmula de Rousseau não
previa uma somatória, mas uma resultante, a chamada Vontade Geral. O
que exatamente ele entendia por isso não foi possível estabelecer até hoje,
mas acredita-se que ele imaginava algo parecido com uma consciência
coletiva. Obedecendo-a, o homem obedece a si mesmo, portanto é livre.
A complicada fórmula de Rousseau lhe deu fama posterior, sendo

16
UNIDADE 1
História Contemporânea I
considerado precursor do espírito revolucionário, apesar de ele próprio
nunca ter pensado nesses termos. Rousseau possivelmente consideraria
que a Revolução invertia os valores nos quais ele acreditava. Para ele uma
massa inculta estaria tomando o poder e não aqueles mais iluminados
pelo conhecimento.
Tal postura condiz com a da maioria dos pensadores que fizeram
parte do Iluminismo (como você viu na disciplina de História Moderna
II). Eles desejavam, antes de tudo, conduzir a população a um Estado de
felicidade, isto é, a partir de um liberalismo político, pretendiam implantar
uma sociedade baseada no indivíduo livre.

O Iluminismo foi um movimento filosófico e científico que questionou os valores vigentes,


inclusive da própria Igreja Católica. Para nós, o seu maior legado foi político, pois estudamos
até hoje muitos daqueles que fizeram parte dele. Nomes como Rousseau, Voltaire, Diderot,
D’Alambert, entre outros, sempre são lembrados quando se discute o século XVIII.

Como foi dito, essas ideias iam contra a ideologia monárquica,


segundo a qual o rei retirava a sua soberania diretamente de Deus.
Evidentemente, essas teorias não alimentaram os revolucionários,
muito pelo contrário. Elas eram cultivadas nos círculos mais restritos
da sociedade francesa, quer dizer, entre a nobreza. Alguns burgueses
próximos à nobreza e pessoas letradas podiam também compartilhar
de tais ideias. No entanto, elas circulavam livremente nos salões da
aristocracia. Por isso é um grande engano dizer que o Iluminismo era
uma ideologia burguesa. De modo algum. Ele fazia parte do repertório
da nobreza, que desejava, cada vez mais, adquirir formas de distinção
social. Ou seja, a nobreza considerava a filosofia, a ciência, as belas
letras (como chamavam a literatura) bens que podiam ser tomados
como privativos e exclusivos dela própria. Daí o patrocínio de
encontros em salões da alta nobreza e o fomento de círculos restritos
de aquisição de bens culturais, como a maçonaria.
Porém, a importância do Iluminismo não estava na sua capacidade
de alimentar ideologicamente revolucionários, e sim no diagnóstico
de uma sociedade que estava se afastando das formas tradicionais
de poder e de compreensão de si mesma. Costumava-se considerar
o reino como um conjunto de súditos, não importando suas origens,

17
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

línguas, costumes e história, pois estavam submetidos ao soberano,


sendo este, portanto, o corpo e a alma da nação.
Contudo, se a sociedade é composta por indivíduos e estes
acordaram viver juntos, então o governo deve retirar a sua soberania
do próprio povo e este, por sua vez, deve ter sua própria especificidade.
Não é um povo qualquer, mas o francês, o inglês, o holandês e assim
por diante, isto é, o povo é uma comunidade de interesses com língua,
história, cultura e costumes comuns.
A nobreza estava mais propensa a admitir essa concepção porque
atendia aos seus interesses. Ela desejava, como sempre, ter poder
sobre o próprio Estado, mas desde Luís XIV, havia perdido espaço em
favor do poder real. A ideia de que a soberania do rei era tácita, ou
melhor, foi outorgada pela sociedade, servia muito bem à nobreza, que
desejava assumir um papel ativo na condução do Estado e, portanto,
usufruir de maiores privilégios.
Ora, numa sociedade extremamente hierarquizada como a do
Antigo Regime, o exemplo sempre parte de cima. Se a própria nobreza
se rebelou contra o rei, as outras classes não precisavam continuar
caladas e submissas ao poder real. Há um sintoma generalizado, no
final do Antigo Regime, de que o rei não impõe mais a sua vontade.
Chegou 1789, e o rei detém somente o poder nominal. Reinava,
mas não governava. Não conseguia mais reunir na sua pessoa o poder,
pois só era obedecido na fachada. A nobreza se rebelou e não aceitava
mais a sua autoridade como primus inter pares; a burguesia, por sua
vez, se via às voltas com a burocracia, o emaranhado de impostos
e o descontentamento; já os trabalhadores em geral, desgostosos,
famintos e sediciosos, não viam utilidade alguma na hierarquia social,
na existência da nobreza e na diferença de sangue entre as pessoas.
Havia uma descrença generalizada na monarquia e na sociedade
hierárquica. Um clamor por mudanças era sentido.
Porém, o Antigo Regime resistia. Tentava manter o status quo a
despeito da própria sociedade. Fechava-se cada vez mais nas tradições
que se esvaziaram ao longo do século. Tentava manter a primazia do
sangue em detrimento da elevação das massas populares. O preço
seria alto.

18
UNIDADE 1
História Contemporânea I
SEÇÃO 2
PRÁTICAS E PENSAMENTOS REVOLUCIONÁRIOS

Quando se fala de Revolução Francesa geralmente se esquece de


falar dos revolucionários. Ora, se a tradição quer que a Revolução seja
um acontecimento “natural”, como vimos acima, ou seja, como algo
que faz parte do espírito humano, logicamente os seus agentes serão
essencialmente “naturais”. Quer dizer, revolucionários existem como
planetas, estrelas, árvores, animais etc., bem como revoluções.
A naturalização da história nos leva a enganos acerca dos
acontecimentos. Assim, o que seria inédito num determinado
acontecimento, deixa de ser, aparecendo-nos como fruto de uma evolução
natural. Afinal, a História é a história da evolução humana, assim como a
História Natural trata da evolução das espécies.
Porém, se atentarmos para o evento Revolução Francesa, é possível
perceber o quanto nos revela de ineditismo, pois antes que ela acontecesse
nada a prenunciava, quer dizer, nenhum escrito, nenhum aviso, nenhum
acontecimento prévio indicava que tal evento, um verdadeiro terremoto
político, estava para acontecer alguns meses antes. Até hoje, não foi
encontrado nenhum livro, panfleto, carta, bilhete, frase que, um mês
antes de o conflito eclodir, dissesse: “Façamos uma Revolução”.
No entanto, a Revolução aconteceu e a historiografia a trata como um
evento natural, fruto do descontentamento humano com relação a governos
perversos ou incompetentes. Logo, trata-se de algo que deve acontecer
invariavelmente. A história seria, então, uma sucessão de banalidades?
Ou o inédito viria a se instalar entre os homens e eles procurariam dar-lhe
sentido, entendendo-o como normal? Podemos ter uma dimensão do que
sentiam aqueles que vivenciaram os acontecimentos revolucionários?
Em primeiro lugar, como vimos na seção anterior, havia uma
sensação generalizada de que o rei só tinha o poder nominalmente. O rei
só era respeitado superficialmente. A aristocracia da corte percebera a
fraqueza de Luís XVI e procurava, ao máximo, extrair vantagens para si.
Ora, numa sociedade extremamente hierarquizada como a sociedade
francesa do Antigo Regime, essa situação era claramente percebida pelos
extratos mais baixos. A monarquia perdia, cada vez mais, a sua aura de

19
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

sacralidade e nas ruas de Paris a decadência da aristocracia e dos reis era


especialmente sentida.
Podemos situar a perda da sacralidade quando Luís XV, avô de Luís
XVI, deixou de fazer o toque das escrófulas, pois se recusava a confessar
pelo fato de manter como amante a Madame du Barry. Quer dizer: se
estava em estado de pecado, não poderia fazer a cerimônia. Por isso o rei
recebeu enormes críticas, além de ser alvo de chacota.
Le Roy Ladurie nos leva a perceber a importância das cerimônias
de sagração:

Um primeiro traço ‘central’ põe em relevo o caráter sagrado da instituição monárquica.


As cerimônias de sagração (...) e o toque régio das escrófulas, com seu efeito curativo
ou miraculoso, são-lhe a expressão conhecida (...) A essência sagrada da monarquia
se inscreve, por outro lado, no interior de um sistema de entidades simbólicas e de
funções. A Renascença as aclara: elas incluem as noções de dignidade real e de
justiça, esta fundamental em relação à instituição soberana em seu conjunto. Essa
justiça e essa dignidade são imortais ou, pelo menos, sobrevivem à pessoa efêmera
dos reis sucessivos. (LADURIE, 1994, p. 9-10).

A cerimônia de sagração era importante para a credibilidade


da monarquia, pois esta se fazia essencialmente pela visibilidade. O
tempo todo o rei devia ser visto, através de suas representações (vide as
estátuas equestres de Luís XIV que ainda existem em toda a França), ou
pessoalmente. As suas aparições públicas aconteciam sempre na forma
de espetáculo. A entrada real nas cidades, os brasões, os decretos, as
cerimônias em que o rei era figura central, inclusive a do toque real,
mostravam que a ordem social iniciava-se com o próprio rei.
A partir do momento em que ele deixou de ter um papel
preponderante e visível, foi perdendo, paulatinamente, a aura de
sacralidade, quer dizer, a instituição real deixava de ter a mesma
importância, produzindo questionamentos em relação à sua utilidade.
Aos poucos, os monarcas perdiam essa aura e, cada vez mais, eram
motivo de chacota por parte de panfletistas e escritores do submundo
parisiense.
Luís XVI, por exemplo, demorou muito para gerar herdeiros, o
que levantou suspeita sobre a sua virilidade e a fidelidade da rainha.
Panfletos satíricos circulavam com certa facilidade. Charges associando
o rei a animais não eram raras, como pode ser observado a seguir:

20
UNIDADE 1
História Contemporânea I
Figura 01: (O rei representado como uma mistura de animais, cada um fazendo parte do imaginário popular. Ao representar
assim o rei, mostrava-se uma não naturalidade, quer dizer, o rei não era natural, portanto, era uma monstruosidade. Fonte:
http://chnm.gmu.edu/revolution/)

A monarquia e a aristocracia perderam a sua importância social


e eram percebidos como pesos pelo restante da sociedade. As antigas
funções aristocráticas, aplicar justiça, fornecer proteção e, em tempos
de penúria, providenciar alguma provisão aos camponeses, perderam o
sentido numa sociedade centralizada. Restava apenas o enorme peso dos
impostos para financiar uma nobreza perdulária e inútil, principalmente
a alta nobreza abrigada em Versalhes.
Esse sentimento ainda não era revolucionário, mas permitiu e
animou muito o sentimento antiaristocracia na sociedade francesa em
finais do século XVIII. Um caso sintomático foi a questão dos escritores a
partir de meados daquele século.
Atraídos pelas obras de Voltaire, Rousseau, Diderot, entre outros,
muitos jovens deslocavam-se do campo para Paris na esperança de se
tornarem também escritores e participarem da chamada “República das
Letras”, como Voltaire havia cunhado o pequeno círculo de “filósofos”
consagrados. A esperança deles se esvaía quando percebiam que lhes

21
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

faltavam as qualidades fundamentais, descritas por Robert Darnton,


para penetrarem nesse círculo: “boa aparência, boas maneiras e um
tio parisiense” (DARNTON, 1987, p. 15). Quer dizer, sem alguém para
apresentar à boa sociedade, nada feito! Um escritor talentoso certamente
estaria excluído do mundo das letras ou, como era chamado naquele
período, Grand Monde, o Grande Mundo.
Apeado para fora do círculo fechado das sinecuras e pensões
garantidas aos escritores consagrados, o pretendente a escritor se via
forçado a procurar o seu sustento em trabalhos menores ou, ainda, a tentar
viver da pena executando obras não bem qualificadas. Ou seja, muitas
vezes, se via obrigado a escrever pornografias, obras apócrifas, vender
livros proibidos ou panfletos difamatórios para conseguir sobreviver. Esse
foi o caso, por exemplo, de Marat, que antes de se tornar revolucionário
levou uma vida errática típica de um escritor da sarjeta, isto é, de alguém
que vivia de escritos de baixo tom e de expedientes. Segundo o relatório
da polícia de Paris pré-revolucionária, ele era um “charlatão atrevido. M.
Vicq d’Azir pede, em nome da Société Royale de Médicine, sua expulsão
de Paris. É de Neuchâtel, na Suiça. Muitos doentes morreram em suas
mãos, mas tem diploma de médico, sem dúvida comprado” (DARNTON,
1987, p. 37).
Marat não era único, os exemplos se multiplicam, como Louis-
Sébastien Mercier, autor do livro Tableau de Paris, agora famoso entre
os historiadores, no qual mostra o cotidiano da cidade. Nas palavras da
polícia de Paris:

advogado, homem feroz e bizarro; não pleiteia na corte nem dá consultas. Não foi
admitido na Ordem, mas usa o título de advogado. Escreveu o Tableau de Paris em
quatro volumes, e outras coisas. Temente à Bastilha, andou sumido por uns tempos,
mais tarde reaparecendo; mostra-se desejoso de trabalhar para a polícia. (DARNTON,
1987, p. 36).

A esperança de ganhar a vida através de seus escritos evanesceu


rapidamente para muitos jovens escritores. Forçados à vida da sarjeta,
isto é, da boemia literária, como a chamou Darnton, viram-se obrigados
a destilar o seu ódio ao Grand Monde que os havia rejeitado através de
escritos difamatórios.
Com a monarquia já enfraquecida pela falta de autoridade, os

22
UNIDADE 1
História Contemporânea I
panfletos produzidos por esses escritores deram golpes eficazes na
imagem de sacralidade do rei e, além disso, contribuíram decisivamente
para fabricar a imagem de inutilidade, de frivolidade e de arrogância da
nobreza.
Por exemplo, Charles Théveneau de Morande, um libelista
conhecido,

dosava calúnias específicas e arengas gerais em parágrafos breves e confusos,


numa antecipação do estilo dos colunistas de mexericos da moderna imprensa
marrom. Prometia revelar ‘segredos de bastidores’, na melhor tradição da chronique
scandaleuse (crônica escandalosa). Mas servia aos leitores mais que escândalo: A
devotada esposa de um certo marechal de França (o qual sofre de imaginária moléstia
pulmonar), considerado um marido dessa espécie demasiado delicado, julga seu
dever religioso poupá-lo, mortificando-se com os carinhos mais crus de seu mordomo,
que ainda seria mero lacaio se não houvesse dado provas de invejável robustez.
(DARNTON, 1987, p. 40).

O tom do panfleto ou libelles, como eram chamados esses escritos,


não podia ser mais claro. Um nobre senil impotente deixa a jovem esposa
se satisfazer sexualmente nas mãos de um mordomo, quer dizer, alguém
do povo. Dessa forma, a “sobrevivência” da aristocracia estaria nas mãos
do próprio povo, que providenciaria a própria descendência dos nobres.
Morande também atacava a realeza:

Zombando da ideia de origem divina da soberania real, Morande reduzia o rei


ao nível de sua corte ignorante e devassa. Fazia de Luís XV uma figura ridícula,
trivial até em seu despotismo: ‘Publicou-se um anúncio: procura-se o cetro de um
dos maiores reis da Europa. Depois de longa e minuciosa busca, foi encontrado
na toilette de uma bela condessa, que o usa para fazer cócegas na barriga de seu
gato. (DARNTON, 1987, p. 42).

Pode-se dizer que imagens e textos não eram exatamente


revolucionários. Não tratavam diretamente do problema do governo ou
do regime político. Denegriam, certamente, a nobreza e a monarquia,
mas em momento algum clamavam por mudanças revolucionárias, pelo
contrário. Geralmente lamentavam o passado perdido, no qual tanto
monarcas quanto nobres cumpriam suas obrigações. Devemos ter em
mente que antes de ser uma sociedade de mando e obediência, eram uma
sociedade de contrato. Contrato do rei com os súditos, dos nobres com os
servos e assim por diante. Se os súditos tinham obrigações, o monarca

23
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

também: aplicar justiça, garantir paz e, quando necessário, providenciar


o sustento mínimo para que não se perecesse de fome.
O passado perdido, o presente corrompido e o futuro sombrio eram
os temas dos panfletos:

As obras pré-revolucionárias de homens como Marat, Brissot e Carra não


expressam nenhum sentimento vago e ‘anti-establishment’: transpiram ódio contra
os ‘aristocratas’ literários que haviam expugnado a igualitária ‘república das letras’,
dela fazendo um ‘despotismo’. Foi nas profundezas do submundo intelectual que
esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina
de exterminar a aristocracia do pensamento. (DARNTON, 1987, p. 31).

Da aristocracia literária para a aristocracia propriamente dita foi


um passo. Logo esses escritores pugnavam contra e qualquer privilégio
social. A nobreza era decadente e corrupta. Doente, ela se comprazia em
usurpar o poder real para se manter na ociosidade à custa do povo. Pelo
menos essa era a visão corrente meses antes da Revolução.
Os escritores, pelo menos até 1789, não eram revolucionários, ou
melhor, nunca aventaram essa possibilidade, pois “os libelles careciam
de programa. Não apenas sonegavam ao leitor qualquer ideia sobre
que tipo de sociedade deveria substituir o Ancien Régime, na verdade
mal continham ideias abstratas” (DARNTON, 1987, p. 44). Porém, esses
panfletos foram elementos eficazes para insuflar o imaginário popular
contra a realeza e os aristocratas.
Assim, podemos concluir com Robert Darnton sobre essa literatura
do submundo de Paris:

O ímpeto emocional da subliteratura foi revolucionário, mesmo não possuindo


programa político coerente nem idéias que os distinguisse. Tanto os philosophes
quanto os libellistes foram sediciosos a sua maneira: estabelecendo-se, o
Iluminismo fez concorrência desleal à fé da elite na legitimidade da ordem
social; atacando a elite, os libellistes disseminaram larga e profundamente o
descontentamento. (DARNTON, 1987, p. 47).

É aqui que devemos olhar quando pensamos na Revolução


Francesa. A sua origem não é a dos grandes escritos e das grandes
questões filosóficas. A monarquia e a nobreza soçobraram sob os duros
golpes da calúnia, da difamação e da decadência moral que panfletos
espalhavam por todo o lado. Podemos concluir com Darnton: “Foi nesse
ódio que subia das entranhas, e não nas refinadas abstrações de uma bem

24
UNIDADE 1
História Contemporânea I
tratada elite cultural, que o extremismo revolucionário jacobino articulou
seu verdadeiro timbre” (DARNTON, 1987, p. 49).

SEÇÃO 3
O NASCIMENTO DA POLÍTICA MODERNA

Você viu na seção anterior que o sentimento de ódio das injustiças


e dos privilégios não nasce nas grandes elucubrações filosóficas do
Iluminismo. Se este ajudou na Revolução foi expressar a ideia de
indivíduo e de liberalismo político, mas o elemento chave foi esse ódio
nascido da sarjeta, do submundo de Paris e que circulava sem ruído,
pelo menos para nós. Aliás, na realidade o barulho era imenso, mas os
historiadores pouco lhe prestaram atenção. Por isso não se dá muito
crédito ao sentimento generalizado de raiva no povo de Paris, pois ele não
tem origem “nobre”, quer dizer, não nasceu da pena de grandes filósofos.
Ao contrário: emergiu dos escritos sujos de escritores sujos. Porém, ainda
resta a seguinte questão: como esse ódio se transformou em Revolução?
Os acontecimentos se precipitaram a partir de 1787. A grave crise
econômica obrigou o rei a convocar a Assembleia dos Notáveis. Ela
era composta por membros do alto clero e da nobreza. A intenção do
rei, aconselhado por seu ministro das finanças, era acabar com alguns
privilégios fiscais da nobreza. Porém, a total recusa de qualquer reforma
obriga o rei a pensar em nova estratégia.
O que é sintomático, não foi a recusa das reformas por parte da
nobreza, mas a forma da recusa. Na ocasião, ficou patente a falta de
autoridade de Luís XVI. O povo de Paris assistia a tudo. Vendo que o
monarca não controlava os seus próprios parentes (parte da alta nobreza
era consanguínea devido aos casamentos endógenos), a população o via
enfraquecido e sem condições de comandar o reino. A sensação geral era
de que o rei reinava, mas não governava. Assim, havia um espaço a ser
preenchido, o espaço do poder.
Sem saída, Luís XVI convocou, em maio de 1789, os Estados Gerais.
Muitos historiadores dão importância ao fato de que eles não eram

25
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

convocados desde 1614. Porém ele deve ser minimizado, pois, dessa feita, os
representantes não foram escolhidos por aclamação de suas comunidades
de origens, mas pelo voto, especialmente no Terceiro Estado.

Os Estados Gerais eram compostos tradicionalmente por três ordens e tiveram sua ori-
gem na Idade Média. A teoria das três ordens foi formulada por volta do século XI. Segundo
essa teoria a sociedade era dividida em três ordens: clero, nobreza e trabalhadores, cada uma
devendo ter suas funções. O clero orava pela salvação da cristandade; a nobreza defendia essa
mesma cristandade; os trabalhadores sustentavam as duas anteriores. Com o passar do tempo,
a burguesia passou a fazer parte da terceira ordem. Esse conselho remonta à constituição dos
reinos bárbaros anteriores à queda do Império Romano, aos quais os reis, na realidade chefes
guerreiros, se reportavam e dos quais retiravam sua autoridade. Porém, os Estados Gerais, desde
a baixa Idade Média, tornaram-se uma espécie de conselho geral do monarca, passando a ser
uma figura secundária com a monarquia absoluta. Tanto que deixaram de ser convocados a par-
tir de 1614. A sua nova convocação, em 1789, reacendeu antigas ideias a respeito de a soberania
pertencer ao povo e não ao monarca.

Essa foi uma diferença fundamental, pois se abriu uma disputa entre
candidatos para obter a preferência de uma determinada comunidade. A
princípio isso parece não ter importância, afinal eleições são comuns. Mas
não naquela época, quando a eleição proposta constituiu uma novidade.
Os deputados do terceiro Estado, isto é, da burguesia e da população
em geral, disputavam votos. Isso significa que, quando eleito, alguém
“representaria” a vontade popular. Muitos deputados do terceiro Estado
se imbuíram dessa ideia e, de acordo com as discussões sobre o indivíduo
(como você viu na primeira seção desta unidade) e a soberania, viam-
se como legítimos representantes do povo, opondo-se ao primeiro e ao
segundo Estados.
Segundo Furet (1989), a convocação dos Estados Gerais e a eleição
de representantes foram inábeis, pois foram misturados dois tipos de
procedimentos. O antigo, no qual os representantes eram simplesmente
aclamados, como no primeiro e segundo Estados, e o moderno, segundo o
qual os representantes eram eleitos, como no terceiro Estado, podendo, por
sua vez, reivindicar para si a soberania popular em detrimento da real.
Assim, a primavera de 1789 se mostra tempestuosa. Novas forças
sociais apareceram na cena política. Em vez do velho teatro do poder, no
qual as ordens desfilavam sua obediência, o terceiro emergia diferente,
insubordinado, querelante, pouco disposto a aceitar a velha estrutura de

26
UNIDADE 1
História Contemporânea I
voto e mando. O ódio à aristocracia e à monarquia estava latente nas
atitudes dos deputados, que, a despeito da formalidade nas atitudes,
eram suficientemente audazes nas suas reivindicações.
Pedindo voto por cabeça, ao contrário do esquema tradicional do
voto por ordens, o terceiro Estado se insurgiu, pois no sistema antigo
normalmente o clero e a nobreza votavam juntos e o terceiro sempre
perdia. Com o voto por representante haveria uma grande mudança na
forma de votação, uma vez que o terceiro Estado era maioria absoluta.
Com as negativas dos dois outros Estados e a tentativa do rei de chamar
à velha ordem os Estados Gerais, tentando fechá-los, o terceiro se rebela
e, em 20 de junho, os seus deputados, em reunião na sala do jogo de
péla, prestam juramento de não se separarem enquanto o reino da França
não tivesse uma Constituição à qual o rei devesse prestar obediência.
Proclama-se, então, a Assembleia Nacional Constituinte.

Figura 02 - A sala de jogo de péla (jeu de paume em francês) era próxima ao local onde estavam reunidos os deputados. Esta
sala servia a uma espécie de tênis praticado com as mãos, mas também com algum tipo de raquete. Era um esporte bastante
praticado pelos nobres e membros do clero. Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Fichier:Jeu_de_paume.jpg, 8/09/2010.

27
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

Figura 03 - Jean-Jacques David. Le serment du Jeu de Paume (O juramento do jogo de pela). 1791.
Museé National du Château de Versailles.

A notícia correu rapidamente Paris, onde circulavam boatos de que


tropas reais atacariam a cidade. Havia um grande temor nas ruas. Vimos
que a autoridade do rei estava dramaticamente abalada, e com os deputados
reunidos, a população da cidade buscou meios de se defender da monar-
quia e dos nobres. Revoltas explodiram até que, em 14 de julho, a população
atacou a fortaleza da Bastilha
em busca de pólvora e arma-
mentos para se defenderem.
Com a resistência da pequena
guarnição da fortaleza, ela foi
tomada à força, marcando sim-
bolicamente o início da Revolu-
ção, pois para a população era o
fim da monarquia absoluta.
Como vimos, a aura de
sacralidade da monarquia há
muito havia acabado. Com uma
direção política - a Constituição
-, a população pôs em marcha
uma democracia radical que Figura 04 - Charge na qual se mostra o povo carregando o monarca,
o clero e a nobreza. O título é “O povo sob o Antigo Regime”. Fonte:
nascia, em parte, dos escritos http://chnm.gmu.edu/revolution/

28
UNIDADE 1
História Contemporânea I
da sarjeta, nos quais se apregoava o ódio aos graúdos e endinheirados.
Dessa forma, ideias sobre o indivíduo, soberania, nação encontram-se
com sentimentos de ódio e raiva, fermento necessário para a gênese da
democracia moderna.
Com a eclosão da Revolução, as forças reais foram acuadas e o rei
ficou na defensiva. Rapidamente se organizaram partidos e a Assembleia
logo se dividiu em facções. Os partidos mais famosos eram os Girondinos
e os Jacobinos.

A palavra girondino tem sua origem na região da Gironda, onde fica Bordeaux. Era uma
facção mais moderada e sentava-se geralmente à direita na Assembleia. Os girondinos foram
acusados de traidores da Revolução e muitos deles foram perseguidos, inclusive seu líder, Dan-
ton, condenado à guilhotina em abril de 1794.
Jacobino vem do nome em latim de São Tiago: Jacobus. Os jacobinos se reuniam no antigo
mosteiro de São Tiago, daí o nome. Eram considerados radicais e até hoje designam aqueles
republicanos radicais. Por se sentarem do lado esquerdo da Assembléia acabaram por nomear
como “esquerda” as posições mais extremas.

Esses dois partidos centralizavam a cena política e, pelo menos,


muitos jacobinos insuflavam frequentemente o povo para mais rebeliões
e para assim pressionar seus adversários. Temendo a perda total do poder
após a promulgação da Constituição em 1791, Luís XVI fugiu de Paris
em direção à fronteira belga-alemã, no entanto ele foi reconhecido e
capturado, com a família, na pequena cidade de Varennes.
Reconduzido a Paris, foi iniciado um processo de traição. Os
acontecimentos se precipitaram. O rei da Prússia invadiu a França em
1792, motivo para os mais exaltados radicalizarem a Revolução. O rei foi
preso junto com milhares de nobres. Foi julgado, condenado à morte na
guilhotina e executado em janeiro de 1793. Sua esposa seguiu o mesmo
destino, alguns meses mais tarde.
Em junho de 1793, uma revolta radical deu condições para os jacobinos
tomarem o poder. Iniciou-se a fase conhecida por Terror. Inimigos verdadeiros
ou imaginários foram enviados às prisões e milhares foram executados. Todos
os dias circulavam pelas ruas de Paris procissões de condenados em direção
à guilhotina, onde hoje fica a Praça da Concórdia. Tribunais revolucionários
trabalhavam sem parar. No entanto, o Terror se tornou extremamente
impopular e, em 27 de julho de 1794, os girondinos articularam um golpe
derrubando o líder jacobino, Robespierre, e condenando-o à guilhotina.

29
UNIDADE 1
Universidade Aberta do Brasil

A Revolução entrou numa fase tumultuosa, na qual a burguesia


tentou controlá-la. A França sofre internamente pela instabilidade dos
governos. Inflação, revoltas, crise econômica eram constantes. Parecia
que a Revolução somente havia trazido mais fome e crise. E sofre também
externamente. O país fora atacado por uma coligação de monarquias
europeias. O exército francês estava acuado. Porém, um jovem general
conseguiu vitórias seguidas, salvando o regime e tornando-se uma lenda:
Napoleão Bonaparte.
No final do século, o governo, chamado de Diretório, era instável
e escândalos se sucediam. Temendo pelo regime, a burguesia apoia
um Golpe de Estado em 10 de novembro de 1799 (no calendário
revolucionário 18 Brumário) e um Consulado formado por três dirigentes
assume temporariamente o poder. Entre esses dirigentes estava Napoleão
Bonaparte, que, aos poucos, vai assumindo plenamente o poder, coroando-
se imperador em 1804.
Muitos historiadores marcam a queda de Robespierre como o fim da
Revolução. Outros afirmam que ela acaba com o Golpe do 18 Brumário.
Outros, ainda, estabelecem a queda de Napoleão, em 1815, como o fim
definitivo da fase revolucionária. Qualquer que seja a data escolhida, devem
ser levadas em conta as dramáticas mudanças trazidas pela Revolução.
A democracia moderna nasceu dela. Como vimos, a Revolução não
a criou, mas a conjunção de muitos elementos permitiu a sua emergência.
Devemos imputar aos acontecimentos revolucionários o lugar do
vocabulário político moderno. Partidos, representação, democracia, e
assim por diante foram palavras que ganharam o sentido próximo daquele
que usamos ainda hoje. Portanto, a Revolução não foi um evento comum.
Pelo contrário: como historiadores, devemos ter sempre em mente a sua
excepcionalidade e importância.

30
UNIDADE 1
História Contemporânea I
Nesta Unidade vimos como a Revolução Francesa marcou o aparecimento da
moderna sociedade política. Entretanto, sempre devemos ter em mente que não é nela
que nasce a nossa sociedade. A Revolução somente permitiu que ela fosse possível,
porém, diferentemente do que pensam muitos historiadores, não foi um fruto “natural” do
descontentamento humano.
A Revolução foi um evento inédito na completa acepção da palavra. Ela não estava minimamente
prevista, ou nada a respeito de revoluções e tomadas de poder por parte do povo havia sido escrito.
Portanto, ela carrega esse caráter de uma ação humana completamente nova.
Mas como ela foi possível? Em primeiro lugar, do ódio cultivado pela população contra os privilégios
e o peso do Estado, ódio nascido no submundo de Paris. Ódio daqueles preteridos, ressentimento dos
excluídos do mundo das letras que transmitem a sua raiva para a população.
O ódio encontrou a ocasião de se expressar na convocação dos Estados Gerais. Os deputados
do terceiro Estado se rebelaram contra o primeiro e o segundo Estados. A rebelião dos deputados do
terceiro, que se consideravam legítimos representantes do povo, o ódio e o temor popular forneceram
combustível suficiente para a máquina revolucionária.
Entrando em funcionamento, ela não parou até o fim do século XVIII. Assim são conhecidas as
várias fases de exacerbação e retração, até o momento em que Napoleão Bonaparte, através de um
Golpe de Estado, toma o poder, encerrando praticamente o período revolucionário.

BOTO, Carlota. Na Revolução Francesa, os princípios democráticos da escola pública, laica e


gratuita: o relatório de Condorcet. Educ. Soc. [online]. 2003, vol.24, n.84 [cited  2010-10-08], pp. 735-
762. Disponível em: http://www.scielo.br/

LAVALLE, Adrián Gurza; HOUTZAGER, Peter P.   and  CASTELLO, Graziela. Democracia,


pluralização da representação e sociedade civil. Lua Nova [online]. 2006, n.67 [cited  2010-10-08],
pp. 49-103. Disponível em: http://www.scielo.br/

ANDERSON, Perry. Trajetos de uma forma literária. Novos estud. - CEBRAP [online]. 2007, n.77
[cited  2010-10-08], pp. 205-220. Disponível em: http://www.scielo.br/

MARTIN, Olivier. Da estatística política à sociologia estatística. Desenvolvimento e transformações


da análise estatística da sociedade (séculos XVII-XIX). Rev. bras. Hist.[online]. 2001, vol.21, n.41
[cited  2010-10-08], pp. 13-34 . Disponível em: http://www.scielo.br/

Procure um dos seguintes filmes sobre a Revolução Francesa e faça uma análise do valor atribuído
aos eventos revolucionários pela contemporaneidade.
Casanova e a Revolução (La Nuit de Varennes), Diretor: Ettore Scola, 1982.
Danton, o processo da revolução (Danton), Diretor: Andrzej Wajda , 1982.
Maria Antonieta (Marie-Antoinette), Diretora: Sofia Coppola, 2007.

31
UNIDADE 1
32
Universidade Aberta do Brasil

UNIDADE 1
UNIDADE II
O mundo em marcha
A Revolução Industrial

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender as mudanças no mundo do trabalho que caracterizam a

modernidade.

■■ Analisar a historiografia sobre o mundo do trabalho.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - Trabalho e sociedade

■■ SEÇÃO 2 - Trabalho na Idade Média

■■ SEÇÃO 3 - O nascimento das fábricas


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


A Revolução Industrial foi uma espécie de acontecimento de longo
prazo, apesar do nome. Ela não foi repentina, ao menos do ponto de vista da
curta duração. Podemos dizer que foi um processo que ainda está acontecendo
e tem quase quinhentos anos. Ou seja, o fenômeno envolve todo o período da
História Moderna e Contemporânea, por isso é melhor compreendê-lo como
um longo processo, quer dizer, trata-se de uma Revolução que transformou
o planeta que deixou de ser essencialmente agrário para, nos nossos dias,
ser predominantemente industrial. Porém, cabe aqui uma questão: como a
Revolução Industrial foi possível?
Grande parte da historiografia aborda esse processo do mesmo
modo que a Revolução Francesa, quer dizer, como se fosse um processo
natural de transformação da sociedade. A humanidade teria como pano
de fundo o progresso, determinando em última instância o próprio devir.
Os seres humanos progrediriam e, consequentemente, tudo que os cerca
também passaria pelo mesmo processo. Afinal, fatos não comprovariam o
progresso humano?
No entanto, se formos mais atentos com relação a essa ideia, como
aquela de ciência e de evolução, perceberemos que são noções recentes na
história humana e não estão gravadas no processo histórico. Alguém poderia
objetar que essas noções são recentes porque somente nos últimos séculos os
homens puderam percebê-las.
Poderíamos mudar a questão: não teria sido nos dois últimos séculos
que os homens “inventaram” essas noções? Para acreditar que os homens
eram inconscientes dessas noções, ou que não tinham capacidade para
apreendê-las, é preciso considerar que todas as civilizações anteriores
à nossa, inclusive aquela considerada o berço da nossa, a grega, foram
incapazes de descobrir que o nosso devir está fadado ao progresso, ou ainda,
vinculado a um Telos.
Se mudarmos o foco da questão, podemos perceber que a nossa
sociedade criou noções distintas das sociedades anteriores. A própria ciência
é completamente diferente daquela produzida no período medieval ou no
início do período moderno, como veremos.
Não havia uma incapacidade das sociedades anteriores a nossa, ou
outras civilizações, com relação a essas noções (outras também). A questão

34
UNIDADE 2
História Contemporânea I
é que isso não era um problema para elas. Se não era um problema, então
não haveria por que pensar nelas, ou melhor, isso não faria parte do universo
mental delas. A evolução, por exemplo, nunca foi uma questão para os
gregos, romanos, egípcios, etc.
No entanto, naturalizamos as ações humanas e, de modo comum,
levamos para o passado as nossas próprias crenças, imaginando-as perenes
ou transcendentes. Dessa forma, colocamos as sociedades anteriores a nossa
na mesma escala. Porém, se hoje é comum estabelecer a diferença entre as
sociedades existentes, por exemplo, a nossa e a dos Inuit (povos do norte
do Canadá e Ártico), por que não fazer o mesmo com relação ao passado?
Ele é a nossa diferença. Crenças, costumes, cultura, religião, enfim, todos os
aspectos da vida são pensados e vividos de outra maneira. Logo, dizer que os
gregos, romanos, homens do medievo europeu e as culturas ocidentais hoje
fazem parte da mesma história é desconsiderar a diferença.
Essas outras sociedades no tempo eram diferentes não por falta (faltar-
lhes-ia a ideia de progresso, de evolução, de ciência, etc.; ou, ainda, essas
noções estariam em estado latente, dependendo da descoberta feita por algum
homem de gênio), mas por não pertencerem à mesma lógica que a nossa,
isto é, simplesmente não tinham a mesma mentalidade. Portanto, colocá-
las na mesma ordem de acontecimentos que as ligaria a nós mesmos é um
equívoco, um anacronismo, pois não as consideramos apartadas de nós pelas
suas práticas e crenças sociais, mas somente distantes temporalmente.
Esse tipo de raciocínio de muitos historiadores acaba nos convencendo
de que a História não passa de uma única e mesma narrativa, pois os povos que
eram diferentes no passado, somente o eram por falta. A partir do momento
em que tomassem contato com as recentes descobertas as adotariam e se
integrariam novamente naquilo que podemos chamar de continuum. Todos
os povos que existiram, todas as civilizações, todos os seres humanos teriam,
no fim das contas, o mesmo destino. Assim:

A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a


garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo
nada dispersará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de
que o sujeito poderá, um dia – sob a forma da consciência histórica – se apropriar,
novamente, de todas essas coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu
domínio sobre elas e encontrar o que se pode chamar sua morada. Fazer da análise
histórica o discurso do contínuo e fazer a consciência humana o sujeito originário de
todo o devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento.
O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam
de tomadas de consciência. (FOUCAULT, 1987, pp. 14 e 15).

35
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

É justamente a ideia de sujeito depositário da narrativa universal que


alimenta a historiografia sobre a Revolução Industrial. Esse processo é tomado,
em primeiro lugar, como “natural”, quer dizer, aconteceria fatalmente; e, em
segundo lugar, como uma etapa em direção a um Telos. Isso quer dizer que
ele é natural porque atende à necessidade de uma finalidade última no devir
histórico, de que não poderemos nos furtar. Além disso, teríamos, finalmente,
a reconstituição da consciência do sujeito histórico pelo retorno, na forma de
narrativa, de tudo o que a humanidade viveu.
Tal proposição, além de não factível, é apenas uma ideia de história
que surge em finais do século XVIII e se torna vitoriosa durante o século
XIX. Quer dizer, a história como devir é recente, mas funciona muito bem,
tanto que nos acostumamos a pensar dessa forma. É por isso que a Revolução
Industrial, antes de ser algo inédito, é outra prática em relação ao trabalho:
seria a continuidade do que se anuncia desde a pré-história – a evolução do
mundo do trabalho.
Nessa forma de pensar, considera-se o labor humano como algo
totalmente natural. Afinal, os animais não têm de providenciar sua alimentação,
abrigo das intempéries, proteção etc.? Assim seria o ser humano. Ora, o que
não se leva em consideração é que não vivemos há muito tempo na natureza,
ou melhor, vivemos à parte da natureza, portanto o universo do trabalho não
se funda mais sobre a vida natural. Este é o ponto de partida desta unidade: a
organização fabril não é uma evolução do trabalho manual, que, por sua vez,
seria uma evolução do trabalho natural. Ela é uma “invenção”, ou melhor,
uma “fabricação”. É uma invenção humana e nada tem a ver com a evolução
da espécie.

SEÇÃO 1
TRABALHO E SOCIEDADE*

A partir da discussão acima, a primeira questão que se coloca é sobre a


própria noção de trabalho. Como a adquirimos? Ou melhor, como a fabricamos? A

____________________________________________________________________________________________
* Este texto foi publicado inicialmente no livro História e prática: a pesquisa em sala de aula, de
André Luiz Joanilho (Campinas: Mercado de Letras, 1996).

36
UNIDADE 2
História Contemporânea I
nossa sociedade desenvolveu uma relação bem particular com esse universo, muito
diferente daquelas que nos precederam ou até mesmo de sociedades no presente.
Sem essa relação, a Revolução Industrial não teria sido possível.
Comecemos pela etimologia da palavra. Labor origina-se do latim laboris,
e significa dor ou fadiga na realização de um trabalho (Dicionário Etimológico
Nova Fronteira, 1986). Consultando o Dicionário Escolar Latino Português (1991),
podemos ver que no latim clássico essa palavra tem o significado de fadiga, esforço
e, no sentido figurado, de doença, desventura, infelicidade. Já o verbo trabalhar vem
da palavra tripaliare – torturar – que, por sua vez, vem de tripalium, significando
um instrumento de tortura (Dicionário Etimológico Nova Fronteira, 1986); portanto,
originalmente a palavra trabalho estava associada à tortura.
Uma simples consulta em dicionários disponíveis nos mostra a origem das
palavras e o seu emprego no latim de Cícero. Entretanto, hoje, temos os dois termos
em alta conta. Definimos o próprio ser a partir deles. O homem é um animal que
labora. Situamo-nos de acordo com a nossa profissão, e sempre procuramos dignificar
a condição do trabalhador. Ditos, hoje populares, atestam essa condição: “Deus ajuda
quem cedo madruga”, “o trabalho enobrece”, e assim por diante.
Percebemos hoje que as palavras labor e trabalho se tornaram sinônimas,
expressando uma condição do ser humano, e praticamente podemos estipular a
condição de alguém somente através da sua atividade (médico, engenheiro, professor,
operário) e não pela sua condição social, sexual ou moral. Mesmo se alguém é idoso,
o localizamos socialmente pela sua condição de aposentado.
De modo algum os termos abordados significam para nós dor ou sofrimento,
muito pelo contrário. Aparecem como finalidade da vida e realização pessoal. Hoje
têm valor superior na nossa sociedade, condição para que o ser se integre socialmente,
isto é, não importa o que ele faça, desde que faça algo e que seja lícito, pelo menos
nos nossos padrões morais.
Entretanto, cabe fazer uma distinção entre esses termos. Hannah Arendt, na
sua obra A condição humana (1983), nos dá uma definição mais precisa:

O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,


cujo crescimento espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as
necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A
condição humana do labor é a própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana,
existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja
mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo ‘artificial’
de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural (...) A condição humana
do trabalho é a mundanidade. (ARENDT, 1983, p. 15).

37
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

Através das definições fornecidas pela autora, podemos compreender que a


ideia de labor liga-se diretamente às necessidades vitais, ou seja, laborar significa
suprir a nossa necessidade de sobrevivência. Já o trabalho ultrapassa essa condição,
estabelecendo um mundo à parte da própria natureza para a existência humana.
Enquanto a palavra labor designa o próprio ato, a palavra trabalho pode ser aplicada
para o resultado do labor (ARENDT, 1983, p. 91). Daí a autora ligar a ideia de labor
ao conceito clássico de animal laborans (animal que labora), enquanto o trabalho
liga-se ao de homo faber (homem que fabrica).
Essa distinção é fundamental para compreender a ideia contemporânea
de trabalho em comparação com a Antiguidade Clássica. Dessa forma, todas as
atividades ligadas à ideia de labor eram vistas como necessárias para a manutenção
da vida (ARENDT, 1983, p. 94), o que implicava a escravização do ser, pois para a
manutenção da vida era necessário laborar, isto é, ter de se fatigar para se alimentar, se
proteger, se vestir etc. O ser submetido às necessidades vitais era um ser escravizado,
mesmo porque estava indissoluvelmente preso às paixões que governam a vida, ou
ainda, aos instintos. Logo:

Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às


condições da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos às necessidades da vida,
os homens só podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, à força,
submetiam à necessidade. A degradação do escravo era um rude golpe do destino,
um fato pior que a morte, por implicar a transformação do homem em algo semelhante
a um animal doméstico. (ARENDT, 1983, p. 94).

Desse ponto de vista, podemos concluir que “a instituição da


escravidão na Antiguidade não foi uma forma de obter mão de obra barata
nem instrumento de exploração para fins de lucro, mas sim a tentativa de
excluir o labor das condições da vida humana” (ARENDT, 1983, p. 95).
A ideia de a palavra labor estar ligada ao reino da necessidade
aparece em Hesíodo (Os trabalhos e os dias). Além de ser a punição
imposta aos homens pelo fato de terem recebido o fogo roubado por
Prometeu, essa ideia origina-se da Caixa de Pandora, de onde, aliás,
provêm todos os males.

38
UNIDADE 2
História Contemporânea I
Figura 05 - Criança operária. 1918. Corbis, The New York Times photo archive.

Essa mesma ideia aparece na tradição judaica. No Gênese, quando


Adão experimenta do fruto proibido e confessa isso a Deus, é punido:

porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu havia proibido
de comer, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu
sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás
a erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de
que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar. (Gênesis, 3, 17-19).

A condenação de Adão ultrapassa a perda da condição paradisíaca,


ela se estende ao tempo que o homem viveria na terra. Isso torna todo e
qualquer esforço para suprir necessidade a rememoração desse ato ab
origine, isto é, do início dos tempos.
Através desses exemplos podemos perceber que, na Antiguidade,
aquilo que chamamos de trabalho era uma atividade ligada à ideia de
punição recebida pelo homem por alguma falta na sua relação com o
mundo sobrenatural. Daí que o único modo de escapar a essa condição
era a escravização de outros homens, a qual geralmente se dava fora
do grupo dominante, isto é, os escravos eram obtidos graças a guerras
ou dívidas não resgatadas. A lei mosaica, por exemplo, estabelece que
“quando comprares um escravo hebreu, ele servirá seis anos; no sétimo
sairá livre sem pagar nada” (Êxodo, 21, 1-2). Podemos ver que, no caso

39
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

dos israelenses, a escravidão podia ocorrer entre eles, mas o escravo


israelita tinha privilégios em relação a escravos estrangeiros.
As leis mosaicas retratam bem as noções de punição recebida pelo
homem. Para escapar a essa condição restava a escravização, o que
livrava, pelo menos os dominantes, da situação de pecadores, ou do
processo biológico de manutenção da vida.
Dessa forma, podemos notar que o trabalho escravo na Antiguidade
está longe de se constituir como uma necessidade econômica dos
dominantes. Muito pelo contrário, era uma imposição para se escapar
do ciclo vital, da reposição das energias despendidas no dia-a-dia ou,
como diríamos hoje, trabalhar para o funcionamento metabólico do
organismo:

o desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a


necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que
não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de
ser lembrada, generalizou-se à medida que as exigências da vida na polis consumiam
cada vez mais tempo dos cidadãos e com a ênfase em sua abstenção de qualquer
atividade que não fosse política, até estender-se a tudo quanto exigisse esforço.
(ARENDT, 1983, p. 91).

Como foi visto, para os gregos, pelo menos, tudo o que o homem
produz não deixa rastro e, se não deixa rastro, é desprezado. Assim,
tudo o que se refere ao processo vital fica reservado para o espaço
privado, já que não merece ascender ao espaço público. Tal prática
se desenvolve junto com a pólis. Logo, se desenvolve no pensamento
“político” grego a ideia de o mundo privado ser o mundo das paixões,
ou o mundo do reino da necessidade. Afinal, os animais não lutam com
todas as suas forças para manter a vida? O escravo, portanto, equivale
ao animal doméstico por pertencer a esse mundo, pois preferiu a vida
a continuar “humano”. Ele renegou sua humanidade ao aceitar a
escravidão.
O cidadão que no espaço público se relaciona igualmente com
os outros, no espaço privado deve se tornar senhor, pois no mundo
natural, ou no reino das necessidades, o mais forte domina. O espaço
público aparece como contraponto ao espaço privado, pois o primeiro
é o lugar da realização do ser enquanto humano, já o segundo é o
lugar da sobrevivência do homem enquanto “animal”. Dessa forma:

40
UNIDADE 2
História Contemporânea I
a vida ‘boa’, como Aristóteles qualificava a vida do cidadão, era, portanto, não apenas
melhor, mais livre de cuidados ou mais nobre que a vida ordinária, mas possuía
qualidade inteiramente diferente. Era ‘boa’ exatamente porque, tendo dominado
as necessidades do mero viver, tendo-se libertado do labor e do trabalho, e tendo
superado o anseio inato de sobrevivência comum a todas as criaturas vivas, deixava
de ser limitada ao processo biológico da vida. (ARENDT, 1983, p. 46).

Porém, enquanto o labor repõe as energias despendidas, o trabalho


tem o caráter de permanência. O produto do trabalho não visa ao processo
biológico, e sim à constituição do mundo humano, pois esse produto não
será consumido no processo metabólico: “No processo de fabricação (...)
o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo com suficiente
durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente
é acrescentado ao artifício humano” (ARENDT, 1983, p. 156). Advém
daí o motivo de, na Antiguidade Clássica, o artesão gozar de um status
superior ao do escravo. Isso não quer dizer que o artífice pudesse ser
alçado à condição de cidadão, mas mostra que o fato de o produto de seu
trabalho ter durabilidade lhe dava melhores condições. Mesmo assim, a
valorização do trabalho se dava conforme a sua distância do labor: ele
podia ser mais, ou menos valorizado (ARENDT, 1983, p. 92).
Essa distinção entre labor e trabalho é importante quando nos
reportamos à nossa sociedade, onde ela desapareceu, dando lugar a uma
única noção: o trabalho dignifica. A condição atual ultrapassa a ideia
de que trabalhar seria uma punição recebida pelo homem; muito pelo
contrário, o não-trabalho é que marginaliza, coloca o ser como pária social,
justamente o oposto do que os gregos achavam a respeito da atividade.
Como foi possível o trabalho, ou melhor, o labor deixar a intimidade do
espaço privado e adentrar no espaço público com tanta força? Como pôde
se tornar uma das principais preocupações políticas dos governos e uma
das principais preocupações cotidianas do ser humano?

41
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

SEÇÃO 2
TRABALHO NA IDADE MÉDIA

Para fazermos o contraponto com a nossa própria sociedade, você


vai conhecer, nesta seção, as linhas gerais sobre o universo do trabalho no
período medieval. A reflexão que se propõe, como foi dito no começo da
unidade, é repensar a noção de trabalho como fundamento do ser. Dessa
forma, poderemos verificar que essa noção não e natural. É um produto
de forças sociais e em determinados períodos.
Durante o período medieval a noção de trabalho não gozou de
melhores considerações do que na Antiguidade Clássica. Podemos
imaginar o que os mais pobres achavam dele, enquanto a classe
dominante o desprezava categoricamente. Tanto a nobreza quanto o clero
consideravam vil exercer atividades que lembrassem a condição inferior
do homem, e isso não vinha de nenhum exercício filosófico.
A tripartição da sociedade (clero – oratores; nobreza – bellatores;
povo – laboratores) funcionou como uma ideologia da classe dominante
– clero e nobreza – que relegava todo aspecto produtivo ao “povo”. Isso é
evidente, pois “como Adão, após a falta, eles (o povo) estão condenados ao
trabalho forçado, à ‘condição servil’” (DUBY, 1982, p. 182). Dessa forma,
“o trabalho é o comum destino de todos os homens que não são guerreiros
nem padres” (DUBY, 1982, p. 183).
Esse esquema tripartido da sociedade é formulado por volta dos
séculos XI e XII, quando se fizeram sentir progressos agrícolas. Logo, era
necessário estabelecer quem deveria trabalhar, quem deveria zelar pela
paz interna e defender a cristandade dos inimigos externos (nobres) e,
finalmente, quem deveria salvar as almas (clero). Assim:

é pois uma elite econômica, a que está à frente do progresso agrícola da Cristandade,
entre o século IX e o século XII, e constitui a terceira ordem do esquema tripartido.
Este esquema, que exprime uma imagem consagrada, sublimada da sociedade,
não agrupa a totalidade das categorias sociais, mas apenas as que são dignas
de exprimir os valores sociais fundamentais: valor religioso, valor militar e, o que
é novidade na Cristandade medieval, valor econômico. Até no campo de trabalho
a sociedade medieval, a nível cultural e ideológico, permanece uma sociedade
aristocrática. (LE GOFF, 1980, p. 82).

42
UNIDADE 2
História Contemporânea I
Isso não significou que trabalhar tenha ascendido a uma posição
superior em relação à Antiguidade Clássica. Muito pelo contrário, os
laboratores (não vamos esquecer da etimologia da palavra) aparecem
no vocabulário associados a palavras como agricolae e rustici, isto é,
completamente ligados ao trabalho com a terra. O lento avanço dos
comerciantes e a introdução da moeda numa economia essencialmente
de troca fazem com que se possa pensar essa nova categoria, entretanto
o desprezo pelas atividades ligadas ao dinheiro se acentuou. A
condenação da usura e da cupidez por parte da Igreja aumentou a
desconfiança voltada para quem trabalhasse e ganhasse dinheiro com
isso, um velho tabu,

tabu do dinheiro, que representou papel importante na luta das sociedades que
viviam num quadro de economia natural contra a invasão da economia monetária.
Este terror perante a moeda de metal precioso anima as maldições contra o dinheiro
dos teólogos medievais (...) e estimula a hostilidade para com os mercadores,
sobretudo atacados como usurários ou cambistas e, mais geralmente, para com
todos os que lidam com dinheiro e para com todos assalariados agrupados sob a
designação de mercenários. (LE GOFF, 1980, p. 88).

Essas condenações se fazem num quadro contrário ao da


valorização do trabalho. A ascensão de determinadas categorias sociais
numa sociedade que se vê imóvel instiga uma ideologia de desprezo
do trabalho, colocando essas novas categorias de volta no lugar comum
dos laboratores. Assim, devemos ter em conta que “a mentalidade das
classes dominantes é antitécnica. Durante a maior parte da Idade
Média, até o século XIII, e mesmo, em menor medida, depois deste,
a ferramenta, o instrumento e o trabalho, nos seus aspectos técnicos,
não aparecem na literatura e na arte senão como símbolos” (LE GOFF,
1983, p. 246).
Essa mentalidade nos aponta que a noção de trabalho está presa,
em primeiro lugar, à noção de punição; trabalhar, nas regras beneditinas,
por exemplo, significa fazer penitência. Dessa forma, para o “povo existe
um peso sobre seus ombros: peso da carne – procriação, e o homem
não procria sem pecado. O pecado é a fonte da desigualdade, e são
os mecanismos carnais da geração que criam os ‘gêneros’, distribuem
os laicos, hereditariamente, pelas diversas condições sociais” (DUBY,
1982, p. 189). Podemos, então, compreender que:

43
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

a divisão classista e a opressão senhorial acham-se assim justificadas pela


desigualdade proveniente do impuro. Todavia, a impureza profunda dos trabalhadores
que suam, que cheiram mal e se acasalam como o gado pode ser redimida pelo
sofrimento físico, tal como o guerreiro, que faz o amor de maneira menos grosseira
e que mata não porcos, mas homens, pode redimir as suas máculas menos graves
oferecendo a sua vida pela boa causa (Igreja). Uma coisa é certa: o nosso universo,
terrestre, não pode passar sem homens de armas nem homens de sofrimento.
(DUBY, 1982, p. 189)

Figura 06 - Xilografia representando uma cervejaria medieval.

Essa ideologia comentada por Duby (1982) traduz o sentimento que


se tinha em relação ao trabalho, sendo formulada principalmente na Igreja.
Porém, em segundo lugar, a nobreza devota um grande desprezo pelo
trabalho, de qualquer natureza, pela sua própria posição: são guerreiros
antes de tudo, e isso quer dizer que a forma de se adquirir riquezas é
através de conquistas, pilhagens ou doações. As exações que retiravam
dos servos serviam para a manutenção das pequenas cortes feudais, ou
seja, o senhor e seu séquito, e não tinham nenhum caráter de troca ou
enriquecimento. Usando uma palavra mais contemporânea, diríamos que
a exploração da terra tinha objetivo logístico, isto é, fornecer elementos
necessários para que o senhor pudesse fazer a guerra.

44
UNIDADE 2
História Contemporânea I
Dessa forma, em terceiro lugar, os que laboravam não constituíram
nenhuma ideologia ou representações contrárias às da classe dominante.
Aliás,

na categoria das transações, que supõem um contradom economicamente


equivalente ao dom, encontramos um outro fato desconcertante. Trata-se da
categoria que, de acordo com nossas concepções, deveria praticamente confundir-
se com o comércio. Não é nada disso. Ocasionalmente, a troca se traduz pelo
vaivém de um objeto rigorosamente idêntico entre os parceiros, o que tira assim
da transação toda finalidade ou toda significação econômica imaginável! O simples
fato de um porco voltar a seu doador, mesmo por via indireta, troca de equivalentes,
em vez de orientar-se na direção da racionalidade econômica, demonstra ser uma
garantia contra a intrusão de considerações utilitárias. A única finalidade da troca é
estreitar a rede de relações reforçando os laços de reciprocidade. (MALINOWSKI
apud LE GOFF, 1989, p. 19).

Assim, o sentido dado tradicionalmente à economia de troca perde


seu caráter utilitarista, apontando-nos justamente o contrário a uma
ideologia popular face à ideologia da classe dominante. Quer dizer, as
pessoas comuns não apenas comungam da ideia de que o trabalho é vil,
como praticam meios para se furtar à condição de assalariado.
Entretanto, como foi possível, dentro desse universo contrário
ao trabalho, ocorrer uma modificação tão violenta que tornou possível
o capitalismo? O papel que o comerciante começa a desempenhar,
principalmente a partir do século XII, é revelador, tanto que:

na França do Norte, se intensificam então todas as formas de troca, que as feiras


champanhesas conhecem impetuoso êxito (...). O dinheiro torna-se qual fantasma
no espírito dos senhores que receiam não possuir o bastante para manter sua
categoria, e no espírito dos camponeses que não sabem onde esconder seu magro
pé-de-meia. Invasão, infecção da sociedade pelo dinheiro. (DUBY, 1982, p. 349).

A ascensão dos mercadores liga-se diretamente às novas necessidades


das classes dominantes e, citando novamente Duby, vemos que

o príncipe não pode passar sem ele (dinheiro). Primeiramente, o Diálogo do Juiz di-lo
de maneira clara: para dar. Porque toda a prodigalidade requer agora que se tire
dinheiro do cofre. Depois para conduzir a guerra: ninguém a faz já sem amuralhar as
fortalezas, sem adquirir as armas modernas, ao pé das quais as antigas são ridículas,
e que custam cada vez mais caro, sem falar na contratação de mercenários que
exigem cada vez mais ganhos; há que abastecer os vassalos com novas montadas.
(DUBY, 1982, p. 350).

45
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

Enfim “a menor decisão política gera lancinantes preocupações


financeiras”. Portanto,

a importância do terceiro ‘pilar’ do Estado não deixa de crescer ‘vilões’ que não
deviam orar nem combater (...). Ao lado do príncipe, a terceira função mudou. Deixou
de ser função de labor, é principalmente de negotium (negar o ócio). O negócio: um
trabalho, negação certamente da ociosidade e do desinteresse que convêm aos
nobres, mas contudo liberto dessa maldição que pesa sobre o esforço físico, sobre
o esforço dos braços e das mãos. A função negociadora torna-se a mais útil das
três que, pelo incremento econômico, estão mais estreitamente ligadas ao serviço
do Estado e que vemos no palácio, domesticadas pelo salário, pelo interesse, pelo
dinheiro. (DUBY, 1982, p. 350).

Nesse sentido, os comerciantes devem, em grande parte, à nobreza


e ao alto clero a sua ascensão social. À nobreza, pelo comércio de luxo, e
ao outro, pelas construções de catedrais. Com efeito, “no início do século
XIV, o mercador era sempre, essencialmente, um vendedor de produtos
excepcionais, raros, luxuosos, exóticos; na realidade, a maior procura
destes produtos pelas categorias superiores provocava o aumento do
número e da importância dos comerciantes” (LE GOFF, 1983, p. 306).
Assim, lentamente, os comerciantes ascendem à cena social se
destacando do terceiro estado, do povo, criando junto com as suas
atividades toda uma nova tecnologia para os negócios. Novas formas de
contabilidade, bancos, letras de câmbio etc. favoreceram o desenvolvimento
dessa nova classe.
Devemos lembrar também que foram necessárias modificações na
estrutura mental. Novos tempos. A Igreja descobre a intenção, tanto que
“do final do século XI ao início do século XIII, a concepção de pecado
e de penitência muda profundamente, se espiritualiza, se interioriza.
De agora em diante, a gravidade do pecado é medida pela intenção do
pecador” (LE GOFF, 1989, p. 11). A descoberta da intenção permite aos
mercadores, principalmente aos que emprestavam dinheiro a juros, certa
tranquilidade nos seus negócios, pois pela intenção pode-se medir a
extensão do pecado, ou seja, de um ato exterior à vontade do indivíduo.
Quando se pensava que o pecador era tentado, passa-se a um ato de
intenção, “assim, a má intenção implica a condenação apenas dos
mercadores que agem por cupidez – ex cupiditate –, por amor do lucro
– lucri causa. Isto é deixar campo livre às ‘boas intenções’, quer dizer, a
todas as camuflagens. Os processos de intenção são um primeiro passo

46
UNIDADE 2
História Contemporânea I
na via da tolerância” (LE GOFF, 1980, p. 91). Com essa lenta modificação,
libera-se das amarras o desenvolvimento de uma economia monetária,
permitindo o surgimento de uma nova classe: a burguesia.
Com o crescimento dos mercadores há também o crescimento
urbano e das profissões ligadas essencialmente às cidades. Cria-se, então,
um círculo de crescimento econômico fora das atividades dos senhorios
e que aos poucos se torna independente destes. As oficinas urbanas
recebem cada vez mais um número maior de jornaleiros (trabalhadores
por jornada) vindos do campo à procura de melhores condições, ou até
mesmo expulsos por um processo de concentração de terras, inaugurando
um novo ciclo econômico. De fato,

quem parece lucrar mais com esta evolução da economia monetária são os
mercadores. É um fato que o desenvolvimento urbano, cujos principais beneficiários
são eles, está ligado aos progressos da economia monetária e que a ‘ascensão da
burguesia’ representa o aparecimento de uma classe social cujo poderio econômico
assenta mais no dinheiro que na terra. (LE GOFF, 1983, p. 305-306).

Figura 07 - O líder dos Luditas. Publicado em maio de 1812 por Mess, Walker and Knight.

47
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

SEÇÃO 3
O NASCIMENTO DAS FÁBRICAS*

O desenvolvimento urbano e a ascensão social da burguesia


favoreceram o incremento da produção artesanal. No campo, por sua
vez, modificações profundas acontecem, motivadas principalmente pela
aquisição de terras por parte da burguesia junto à nobreza endividada, o
que permite o aparecimento de novas relações no campo. De fato,

a organização do trabalho, pelo menos nos grandes centros têxteis, assinala


nitidamente este império do mercador de panos ou de sedas sobre o conjunto das
operações industriais. Ele comprava as matérias-primas e ficava proprietário delas
ao longo e em todos os estádios da fabricação, até o momento em que o produto
tecido, ornado e tingido era finalmente vendido na sua própria loja ou, a seu cargo, nas
feiras e nas cidades estrangeiras. Durante todo este tempo, o mercador-fabricante
de panos decidia sozinho a marcha do trabalho: confiava a lã às escolhedoras,
depois às penteadoras, às fiandeiras... Selecionava e recrutava a sua própria mão
de obra para cada trabalho e, concluído este, voltava a apoderar-se da lã, do fio, do
urdume ou do tecido, continuando assim senhor da marcha da empresa, do ritmo do
trabalho, dos custos e dos homens. (HEERS, 1988, p. 87).

Esse controle do mercador permite dissociar o produtor do produto


e também dos meios de produção (CONTE, 1979, p. 74), estabelecendo o
controle do ritmo da produção. Isso é fundamental, pois o ritmo significa
tempo de trabalho, e esta é a grande revolução operada nos séculos XIV
e XV. Sem ela não teríamos a ampliação da produção e muito menos o
capitalismo. Portanto, “quando pensamos o desenvolvimento da ordem
burguesa no seio da sociedade feudal, logo imaginamos a instituição do
mercado como esfera universalisante e universalizadora de uma nova
ordem que se impõe” e, com efeito,

essa imposição de normas e valores por um determinado setor da sociedade pode


ser percebida decisivamente quando tomamos a noção de tempo útil, produzida pela
ampliação da esfera do mercado e que não só disciplina a classe burguesa como
também procura se introjetar no âmbito da gente trabalhadora (...). ‘Utilize cada
um dos minutos como a coisa mais preciosa. E empregue-os todos no seu dever’.
Pregações desse tipo ou aquelas em que o tempo se relaciona com o dinheiro nos
mostram todo o artefato moral de uma classe de mercadores que se impõe a si
mesma os critérios de sua identificação. (DE DECCA, 1982, p. 15).

____________________________________________________________________________________________
* Repito o título do livro de Edgar De Decca, O Nascimento das fábricas (São Paulo: Brasiliense), no qual
é descrito o processo que leva à constituição das fábricas modernas, iniciado por volta do século XVI.

48
UNIDADE 2
História Contemporânea I
Aos poucos os “dadores” de trabalho se impõem criando o sistema
de trabalho a domicílio (putting-out system). Entretanto, esse sistema não
impedia que o trabalhador continuasse a manter o controle sobre a produção,
além de muitos também manterem os instrumentos de trabalho, por isso o
sistema de fábrica surge como solução para esse problema, já que a lógica
temporal do capitalismo é diferente de quem trabalha:

a reunião dos trabalhadores na fábrica não se deveu a nenhum avanço das técnicas
de produção. Pelo contrário, o que estava em jogo era justamente um alargamento
do controle e do poder por parte do capitalista sobre o conjunto de trabalhadores
que ainda detinham os conhecimentos técnicos e impunham a dinâmica do processo
produtivo. (DE DECCA, 1982, p. 22).

Essa dinâmica estava fortemente ligada aos tabus que pesavam


sobre o labor, sobre o dinheiro e sobre o tempo. Logo,

o sistema de fábrica representou, justamente, a perda desse controle pelos


trabalhadores domésticos. Na fábrica, a hierarquia, a disciplina, a vigilância e outras
formas de controle tornaram-se tangíveis a tal ponto que os trabalhadores acabaram
por se submeter a um regime de trabalho ditado pelas normas dos mestres e
contramestres, o que representou, em última instância, o domínio do capitalista
sobre o processo de trabalho. (DE DECCA, 1982, p. 24).

Figura 08 - Fábrica de máquinas, Cowlairs Works. Glasgow Digital Library, http://gdl.cdlr.strath.ac.uk

49
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

Assistimos aqui ao nascimento do capitalismo comercial. A associação


dos grandes burgueses com as realezas permite o surgimento dos monopólios
comerciais e das empresas coloniais. É nesse momento que o Brasil é
introduzido no quadro econômico e político europeu.
Porém esse controle sobre o trabalho não é tranquilo. A resistência dos
trabalhadores em ceder o seu tempo para os “dadores” de trabalho é muito
grande, mesmo porque trabalhar ainda não tinha sido alçado a uma condição
superior. Somente os burgueses viam nessa condição uma forma de alcançar
algum status social. Então, suas promoções e exortações em torno do labor
faziam-no parecer uma atividade natural do ser humano.
Entretanto, a resistência acirrada dos trabalhadores em relação ao
ritmo de produção exigido pelo capitalismo impedia, em parte, a empreitada
colonial, pois as companhias de comércio não conseguiam recrutar mão de
obra suficiente para a exploração das colônias, como é o caso do plantio e da
extração da cana-de-açúcar no Brasil. Dessa forma, a solução encontrada foi
a escravidão.
De início, vamos encontrá-la muito difundida no mundo islâmico e, em
seguida, na própria África, onde tribos vencedoras de guerras locais vendiam
os prisioneiros para mercadores mulçumanos. A chegada dos portugueses
trouxe mais um concorrente para esses mercadores e logo é estabelecido
monopólio português sobre o tráfico de escravos.
A Coroa portuguesa, a partir desse monopólio, proibiu o tráfico interno
de escravos nas suas colônias, especialmente no Brasil. Os colonos estavam
proibidos de escravizar indígenas porque concorreriam com o monopólio
real. De qualquer maneira, a escravidão permitiu “nas áreas coloniais a
concentração de trabalhadores destituídos de meios de produção e expropriados
de qualquer saber técnico” (DE DECCA, 1982, p. 43), sendo que essa forma

apareceu como a organização de trabalho mais eficiente para se levar a cabo


os interesses do lucro capitalista, e ali também a figura do empresário se tornou
imprescindível para o processo de produção. Disciplina, ordem, hierarquia, foram
elementos sempre presentes durante todo o período em que se desenolveu a
produção colonial, e o capitalista, na busca de maiores lucros, se transformou em
elemento central para a organização do trabalho. (DE DECCA, 1982, p. 43).

Nesse sentido, enquanto na Europa dos séculos XVI e XVII se tenta


quebrar a resistência dos trabalhadores em relação à produção, assistimos
numa área periférica do capitalismo ao nascimento do sistema de produção

50
UNIDADE 2
História Contemporânea I
fabril. Devemos, pois, considerar que a escravidão não se deu por acidente no
percurso da expansão europeia, muito menos aconteceu porque os homens
daquele tempo eram menos esclarecidos ou desconheciam o sistema de
assalariamento. A escravidão na Era Moderna, diferentemente da escravidão
na Antiguidade Clássica, surge como solução para o problema da empresa
colonial que não encontrava braços para o seu estabelecimento.

Figura 09 - Gravura da fábrica de Klassen & Co., 1880 (Ucrânia).

O ingresso da colônia portuguesa num sistema econômico mundial


não se fez pela porta dos fundos. Os engenhos de açúcar eram, no sentido
moderno, fábricas já que possuíam os elementos necessários para que
formas de trabalho se impusessem como necessárias e fundamentais.
A contradição entre a necessidade do trabalho no sentido capitalista e
as formas de produção ainda presas a mitos como o pecado original era
exposta pelo escravismo, que foi a solução nas franjas do capitalismo.
Enquanto isso, na Europa, o processo capitalista avançava
lentamente. A introjeção da utilidade do trabalho ganhava adeptos e ele
era colocado como a grande solução para a vadiagem, a criminalidade,

51
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

a prostituição, isto é, começa a aparecer toda uma moral em torno do


trabalho como de utilidade social e individual, ou melhor, a sua promoção
dentro da sociedade. A figura do capitalista torna-se indispensável para
a produção e com ele surge uma casta de técnicos que, aos poucos,
aprimoram o processo produtivo. Daí é um passo para a Revolução
Industrial.
Entretanto, era necessário acabar com antigos tabus. Cada vez
mais apareciam exortações morais que buscavam apagar as antigas e
introduzir novas imagens sobre o trabalho. Trabalhar é cada vez mais
associado ao processo natural, ou melhor, trabalhar faz parte da natureza
humana: assim como os animais se alimentam, o homem deve fazê-lo
pelo esforço laboral.

O que preside o processo de labor e todos os processos de trabalho executados


à maneira do labor não é o esforço intencional do homem nem o produto que ele
possa desejar, mas o próprio movimento do processo e o ritmo que este impõe aos
operários. Os utensílios do labor aderem a este ritmo até que o corpo e o instrumento
passam a agitar-se no mesmo movimento repetitivo, isto é, até que, no uso das
máquinas – que, entre todos os utensílios, melhor se adaptam à performance do
animal laborans – já não é o movimento do corpo que determina o movimento do
utensílio, mas sim o movimento da máquina que impõe os movimentos do corpo. O
fato é que nada pode ser mais facilmente e menos artificialmente mecanizado que
o ritmo do processo do labor que, por sua vez, corresponde ao ritmo repetitivo do
processo vital, igualmente automático, e do metabolismo da vida com a natureza.
(ARENDT, 1983, p. 159).

Logo, não é à toa que o processo produtivo e a sua aceleração ocorrem


concomitantemente com o avanço das ciências naturais até chegar ao
ponto de a origem do homem ser absolutamente ligada à natureza, o que
também “naturaliza” as ações humanas. Ou melhor, o homem se torna
completamente natural, como se os fatos culturais fossem construídos
pelas diferenças geográficas e étnicas, assim como a própria sociedade.
Não haveria deliberação por parte do homem em construir a vida social,
ele apenas estaria cumprindo a sua natureza.
Nessa escala os objetos fabricados se tornam também efêmeros, não
são mais feitos para durar, mas para desaparecerem após algum tempo.
A própria cidade, que na Antiguidade Clássica era feita para durar,
modifica-se tão rapidamente que ao cabo de alguns anos mal podemos
reconhecê-la como a mesma.
Assim posto, o universo do labor é imposto como natural, portanto

52
UNIDADE 2
História Contemporânea I
necessário, isto é, inescapável, e a sua recusa é a recusa da própria natureza
humana. Se antes o homem era ligado a forças extramundo, portanto não
naturais, podendo fugir da sua condição terrena, agora, naturalizado, ele
não pode escapar à condição do labor, não pode escapar da sua própria
natureza ou, ainda, de sua animalidade e do labor. Trabalhar, então,
transforma-se em um fator determinante de humanização e a sua recusa
é antinatural.
Dessa forma, concordamos com Edgar De Decca (1982, p. 8),
quando ele afirma que “a dimensão crucial dessa glorificação do trabalho
encontrou suporte definitivo no surgimento da fábrica mecanizada, que
se tornou a expressão suprema dessa utopia realizada, alimentando,
inclusive, as novas ilusões de que a partir dela não há limites para a
produtividade humana”.
Na nossa sociedade todas as questões em torno do trabalho
desapareceram para naturalizá-lo. Podemos chamar essa nova configuração
de dessacralização da vida, já que a origem dos seres humanos faz parte
do processo vital do próprio planeta. Se do ponto de vista da religião o
homem é um ser à parte da natureza, com a sua inclusão no processo vital
ele passa a ter como objetivo a manutenção da vida, e isso ultrapassa a
condição individual. Segundo Arendt,

o último estágio de uma sociedade de operários, que é a sociedade de detentores


de empregos, requer de seus membros um funcionamento puramente automático,
como se a vida individual realmente houvesse sido afogada no processo vital da
espécie, e a única decisão ativa exigida do indivíduo fosse deixar-se levar, por
assim dizer, abandonar sua individualidade, as dores e as penas de viver ainda
sentidas individualmente, e aquiescer num tipo funcional de conduta entorpecida
e ‘tranquilizada’ (...). É perfeitamente concebível que a era moderna (...) venha
a terminar na passividade mais mortal e estéril que a história jamais conheceu.
(ARENDT, 1983, p. 335-336).

Para nos livrar do desconforto do processo vital, que é o nosso labor,


são desenvolvidas em nossa sociedade tecnologias de um hedonismo
mitigado. A indústria do lazer, os aparelhos de conforto que formam as
nossas residências, técnicas psicológicas aplicadas no trabalho servem
mais como anteparo dos conflitos individuais do que formas de elevar
a vida a uma condição superior. E, com efeito, são tecnologias que
dessacralizadas representam toda a mundanidade da vida, isto é, viver
está indissociavelmente ligado a um processo natural.

53
UNIDADE 2
Universidade Aberta do Brasil

Outro aspecto hedonista são as formas de conforto que se instalam


no processo produtivo. A ergonomia surge como uma tecnologia que visa
a atender a relação entre o homem e a máquina. Ela cria uma ciência
biomecânica, ou seja, uma forma de saber que estabelece uma correlação
imediata e otimizada entre organismos e máquinas.
A ergonomia, de início, visa a eliminar a distância temporal entre
pensamento e ação, aprimorando a relação homem-máquina até o ponto
de supressão dessa distância. Isso modifica, na nossa sociedade, as
relações tradicionais entre tempo e espaço, pois a tendência é a constante
diminuição do tempo em relação ao espaço percorrido. Cada vez mais
rápido; mais veloz. Hoje cronometramos movimentos em milésimos de
segundo. A ciência biomecânica (consideramos que várias disciplinas
compõem esta ciência, tais como a biologia, a psicologia, a sociologia,
a física, a medicina, a antropologia, enfim, todas aquelas que têm como
tema principal o corpo e seu funcionamento) estipula o lugar do ser
humano no mundo a partir de uma concepção de natureza que vem se
estabelecendo desde finais do século XVIII.
O processo fabril só pôde acontecer pelas graves modificações que
a própria concepção de ser sofreu nestes últimos séculos. Porém não
devemos dizer que esse foi um ato de vontade deste ou daquele grupo
ou classe. Antes de ser uma intencionalidade, a configuração do processo
vital é resultado de forças que se enfrentaram ao longo dos últimos cinco
séculos.
A Revolução Industrial foi, num sentido, um processo de
“naturalização” do ser humano e a sua inclusão em procedimentos
de produção que se assemelha ao metabolismo. Produzimos para a
manutenção da vida e vivemos para produzir. Esse é o impacto da
industrialização na nossa vida.

54
UNIDADE 2
História Contemporânea I
Vimos nesta unidade como o mundo do trabalho se constituiu. Procuramos uma abordagem
que não apenas trouxesse novos elementos, mas que apresentasse as consequências da
ordem industrial no mundo contemporâneo. Tal abordagem ultrapassa as visões tradicionais
da historiografia que colocam a Revolução Industrial como uma simples etapa na história
humana, como se o evento fosse natural.
Se encararmos o evento da forma tradicional, perderemos a perspectiva das modificações na forma
de compreender a própria vida humana. E, com efeito, o sistema fabril é vencedor não porque impôs a
sua ideologia e convenceu seres humanos incautos de que esta era a única forma de produzir. Ele se
torna vencedor porque faz parte de uma nova configuração social.
Assim, ao compararmos a nossa forma de organização fabril e a nossa noção de trabalho com a
Antiguidade Clássica e a Idade Média, percebemos a distância entre as nossas civilizações. Enquanto o
trabalho esteve ligado ao mundo da necessidade, na Antiguidade, era desprezado. No período medieval
ele passou a ser visto como uma forma de punição, sendo também desprezado.
A sua ascensão no período moderno está ligada a novas formas de compreender o ser humano,
especialmente com o crescimento da burguesia em finais do medievo. Essa classe, antes de ser a
mentora das mudanças, é a receptora de novas compreensões sobre o ser. Adota rapidamente novas
moralidades e as pratica. O poder monetário foi o grande veículo dessas novas modalidades de
compreensão da vida que terminam por moralizar o mundo do trabalho, tornando-o parte do processo
vital ao ponto de termos uma disciplina para cuidar do conforto no trabalho, a ergonomia.
Portanto, devemos ter em conta esse processo quando queremos compreender a industrialização
e a vida moderna.

Leia o artigo de Ricardo Antunes e Giovanni Alves, As mutações no mundo do


trabalho na era da mundialização do capital, para perceber como os processos iniciados
nos primórdios do capitalismo ainda são fundamentais na sociedade. {Educação e Sociedade
– www.scielo.br} [online]. 2004, vol.25, n.87, pp. 335-351. ISSN 0101-7330. doi: 10.1590/S0101-
73302004000200003.}

Leia o livro Costumes em comum, de Edward P. Thompson (Companhia das Letras, 1998)
e faça uma resenha, associando o conteúdo deste material de História Contenporânea I com as
ideias e conclusões apresentadas no livro.

55
UNIDADE 2
56
Universidade Aberta do Brasil

UNIDADE 2
UNIDADE III
A invenção das nações

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender o nascimento e desenvolvimento das ideias de nação e
nacionalismo.

■■ Entender o processo de construção do conhecimento histórico vinculado


à construção da ideia de nação.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - Nação e nacionalismo – conceitos e ideias centrais

■■ SEÇÃO 2 - Os historiadores e a construção das histórias nacionais


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Nesta terceira unidade você estudará como o fim do antigo regime
permitiu o surgimento de uma nova força de coesão sociopolítica – o
nacionalismo – e como as modernas nações surgiram e tiveram sua
construção justificada pela historiografia moderna, que nasce com
esta função explícita: escrever a história nacional, buscando mitos de
origem, fatos fundadores, e ideias identificadoras que permitiram que
o “sentimento nacional” surgisse e transformasse populações inteiras,
fundamentalmente diferentes entre si, em “franceses”, “americanos”
ou “brasileiros”.
Verá também que, em nome do nacionalismo, políticas de
unificação e/ou dominação foram implantadas, quase nunca de modo
pacífico, passando de um nacionalismo liberal que herdara seus ideais
da Revolução Francesa – buscando, ao fim e ao cabo, a redenção de
todos os indivíduos em suas respectivas nações – a um nacionalismo
encampado por indivíduos e partidos à direita do espectro político,
fundamentalmente antirracional, antiliberal e marcado pela adesão à
xenofobia e racismo do final do século XIX.

SEÇÃO 1
NAÇÃO E NACIONALISMO -
CONCEITOS E IDEIAS CENTRAIS

Surgido das convulsões revolucionárias do século XVIII, em


especial a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa,
o nacionalismo tornou-se um poderoso elemento ideológico dos séculos
XIX e XX. Seu pressuposto fundamental era o de que a nação tinha
o direito de expandir-se territorialmente, ou de conquistar seu próprio
território, devido à superioridade – inicialmente cultural, mas mais
tarde, racial – de uma determinada nação.
A base inicial para a ideia de nação foi criada durante o iluminismo,

58
UNIDADE 3
História Contemporânea I
mas seu florescimento se deu no início do século XIX, através do
estabelecimento de uma parcela educada da sociedade burguesa,
que mesmo não sendo muito numerosa, foi eficaz em afirmar ideias
nacionalistas através de movimentos organizados (como os movimentos
“jovens”, fundados ou inspirados pelas ideias de Giuzeppe Mazzini após
1830) que são “o marco da desintegração do movimento revolucionário
europeu em segmentos nacionais” (HOBSBAWM, 1986, p. 151).

Giuseppe Mazzini (1805-1872) foi o


principal mentor do nacionalismo italiano
do século XIX, pregando a unificação dos
estados em uma república sem invasores
estrangeiros. Exilado em 1830, organizou
o movimento da “Jovem Itália”, que ad-
vogava os ideais nacionalistas, e de unifi-
cação italiana. Um de seus seguidores de
1830 – também exilado para a França, que
acabou imigrando para o Brasil, foi Giu-
seppe Garibaldi – mais tarde responsável
pela unificação da península italiana em
Figura 10 - Foto de Giuseppe Mazzini, ca. 1870 torno da monarquia do Piemonte.

Para Benedict ANDERSON (2008, p. 69) as origens específicas


do nacionalismo residem na capacidade de se “imaginar ” a nação,
que surge historicamente quando um conjunto de “concepções
culturais fundamentais” muito antigas perderam sua influência sobre
a mentalidade dos homens:

A primeira delas é a ideia de que uma determinada língua escrita oferecia


um acesso privilegiado à verdade ontológica, justamente por ser uma parte
indissociável dessa verdade. Foi essa ideia que gerou as grandes irmandades
transcontinentais da cristandade, do Ummah islâmico e de outros. A segunda é
a crença de que a sociedade se organizava naturalmente em torno e abaixo de
centros elevados – monarcas à parte dos outros seres humanos, que governavam
por uma espécie de graça cosmológica (divina). Os deveres de lealdade eram
necessariamente hierárquicos e centrípetos porque o governante, tal como a escrita
sagrada, constituía um elo de acesso ao ser e era intrínseco a ele. A terceira é uma
concepção da temporalidade em que a cosmologia e a história se confundem, e
as origens do mundo e do homem são essencialmente as mesmas. Juntas essas
ideias enraizavam profundamente a vida humana na própria natureza das coisas,
conferindo um certo sentido às fatalidades diárias da existência (sobretudo a morte,
a perda e a servidão) e oferecendo a redenção de maneiras variadas. (ANDERSON,
2008, p. 69, sem grifos no original).

59
UNIDADE 3
Universidade Aberta do Brasil

Superadas essas concepções – em grande parte pelos processos de


descrédito na autoridade divina do monarca e do clero ocorridos ao longo do
século XVIII pela ampla circulação de ideias iluministas em obras científicas e
de sedição proporcionada pela explosão editorial do Iluminismo (DARNTON,
1987) – o(s) nacionalismo(s) se manifestou em torno da ideia de nação como
uma “comunidade política imaginada”.
Comunidade imaginada, porque “mesmo os membros da mais minúscula
das nações jamais conhecerão, encontrarão ou sequer ouvirão falar da maioria
de seus companheiros”, ainda que exista entre todos eles uma viva imagem de
comunhão. Essa comunidade é limitada, porque mesmo a maior das nações
não se imagina englobando toda a humanidade – como frequentemente quis
o pensamento iluminista e seus herdeiros liberais e socialistas. A comunidade
também é soberana, pois surgiu para substituir a legitimidade monárquica.
Também a própria ideia de comunidade porque anula diferenças sociais para
criar uma igualdade horizontal, baseada em camaradagem fraternal que “tornou
possível [que], nesses dois últimos séculos, tantos milhões de pessoas tenham-
se [disposto] não tanto a matar, mas sobretudo a morrer por essas criações
imaginárias limitadas (ANDERSON, 2008, p. 34).
O historiador inglês Eric Hobsbawm, que se dedicou ao estudo
contemporâneo do nacionalismo, identifica uma composição social bem
definida na construção inicial do nacionalismo nas primeiras décadas do século
XIX: além dos membros de “fraternidades revolucionárias nacionais”, como os
carbonários e os fenianos, havia um forte apoio por parte dos proprietários rurais
menores ou “uma pequena nobreza inferior”, descontentes com a implantação
das políticas de economia liberais resultantes das revoluções do século anterior.
Havia também o envolvimento de uma nascente “classe média inferior” e de
intelectuais profissionais que, como você verá na terceira seção, se tornaram os
porta-vozes oficiais do nacionalismo (HOBSBAWM, 1986, p. 152-4).

Os Carbonários eram sociedades secretas revolucionárias fundadas na Itália, França e em


Portugal no início do século XIX. Mesmo sem uma agenda política clara, eles buscavam ob-
jetivos patrióticos, com um foco liberal. Membros dos Carbonários, como Garibaldi, foram
instrumentais no processo da unificação italiana na década de 1860 e nos desenvolvimentos
posteriores do nacionalismo italiano.
Os Fenianos eram também uma sociedade secreta devotada ao estabelecimento de uma
república irlandesa independente (que aconteceu em 1919 para a Irlanda do Sul). O braço ar-
mado dos Fenianos – o Exército Revolucionário Irlandês (IRA, na sigla em inglês) manteve
ações terroristas ao longo do século XX com relação à parte norte da Irlanda, ainda hoje parte
do território inglês.

60
UNIDADE 3
História Contemporânea I
Após as revoluções de 1848 – muitas das quais tiveram
características eminentemente “nacionais”, ou de “nacionalidades
rivais” (húngaros contra austríacos, por exemplo) – o nacionalismo
tornou-se um fenômeno de massa, descolando-se dos movimentos
intelectuais do período imediatamente anterior. Simultaneamente,
passou-se a associar a nação com a necessidade de um território
nacional. Assim, o processo de unificação da Alemanha, comandado
por Bismarck, mas realizado em torno da família reinante prussiana,
e a unificação italiana, em torno da casa de Savóia, foram fenômenos
que encontraram grande respaldo popular.

Otto Von Bismarck (1815-1898) foi primeiro ministro do reino da Prússia entre 1862 e
1890, e unificou a Alemanha através de uma série de guerras (em especial contra a Dinamarca,
em 1864, e contra a França, em 1870, guerra essa que precipitou a formação da Comuna de
Paris, que você estudará nesta disciplina).

Da mesma forma, diversos outros movimentos nacionais tentaram


criar estados independentes em territórios imperiais – Irlanda, Sérvia
e Romênia são alguns exemplos. Muitos desses nacionalismos foram
sufocados pela dominação imperial. É necessário, portanto, em termos
analíticos, separarmos bem claramente “a formação de nações e
‘nacionalismos’ de um lado […] e a criação de estados-nações, por
outro” (HOBSBAWM, 1982, p. 103).

O problema não era apenas analítico, mas também prático. Pois a Europa, dexando de
lado o resto do mundo, estava dividida evidentemente em “nações” cujas aspirações
em fundar estados não deixava, pelo certo ou pelo errado, nenhuma dúvida, e em
“nações a cerca [sic] das quais havia uma boa dose de incerteza quanto a aspirações
semelhantes. O melhor guia para o primeiro tipo era o fato político, a história institucional
ou a história cultural das tradições. A França, Inglaterra, Espanha e Rússia eram
inegavelmente “nações” porque possuíam estados identificados com os franceses,
ingleses, etc. Hungria e Polônia eram nações porque havia existido um reino húngaro
como entidade separada, mesmo quando dentro do Império dos Habsburgos, e um
estado polonês que também havia existido de há muito até sua destruição no final do
século XVIII. A Alemanha era uma nação por força de que seus numerosos principados
(apesar de nunca unidos em um único estado territorial) terem constituído outrora o
então chamado “Sagrado Império Romano da Nação Germânica” e formado por outro
lado a federação germânica, mas também porque todos os alemães de educação
elevada partilhavam a mesma língua escrita e literatura. A Itália, apesar de nunca ter
sido uma entidade política enquanto tal, possuía talvez a mais antiga das literaturas
comuns à sua própria elite. (HOBSBAWM, 1982, p. 103-4).

61
UNIDADE 3
Universidade Aberta do Brasil

Em muitos casos, o nacionalismo só correspondia à formação do


Estado-Nação tardiamente (como na Itália), mas, em geral, ele embasou
os movimentos fundadores das Nações. Embasou também o apoio popular
a esses movimentos, transformando-os em movimentos de massa, ao
contrário dos movimentos iniciais, fortemente ligados a elites culturais e
intelectuais. O fato de que a ampliação da educação fornecia elementos
das camadas médias da sociedade para atuarem na burocracia dos estados
nacionais, antigos ou recém-criados, fortaleceu os vínculos das elites com
o nacionalismo. Mas esse nacionalismo, fortemente vinculado (pelo menos
nesse período) ao liberalismo, forneceu a contradição fundamental dos
movimentos revolucionários europeus de 1848 a 1870: “O nacionalismo […]
parecia manejável na estrutura do liberalismo burguês e compatível com
ele. Um mundo de nações viria a ser, acreditava-se, um mundo liberal, e um
mundo liberal seria feito de nações. O futuro viria a mostrar que a relação
entre os dois não era tão simples assim” (HOBSBAWM, 1982, p. 116).
À medida que o século XIX chegava ao fim, essa relação passou a
ser testada constantemente, pois a política de massas que acompanhou a
democratização das nações ocidentais a partir de 1870 colocou a “questão
nacional” em destaque. Baseando-se na capacidade fundamental de
mobilização que essa democratização permite, os próprios estados se
esforçam para arregimentar a identificação emocional das massas com
a “sua” nação, chamando a isso de “patriotismo”. Este, por sua vez,
se tornou um monopólio da extrema direita política, estabelecida na
administração dos estados-nações, estigmatizando todas as outras opções
políticas como “traidoras”. Essa inovação desconsiderava (ou mesmo
negava) a ligação entre nacionalismo e liberalismo e o fato de que todas
as vertentes políticas do século XIX renderam-se à questão nacional como
sendo essencial para o debate político.
Segundo Hobsbawm, as mutações operadas no nacionalismo político
nesse período tinham quatro aspectos fundamentais, cujas consequências
repercutiriam pelo século XX adentro:

O primeiro […] é o surgimento do nacionalismo e do patriotismo como ideologia


encampada pela direita política. Isto encontraria sua expressão extrema entre as duas
guerras, no fascismo, cujos ancestrais ideológicos aí são encontrados. O segundo é
a pressuposição, absolutamente alheia à fase liberal dos movimentos nacionais, de
que a autodeterminação nacional, até e inclusive a formação de Estados soberanos
independentes, aplicava-se não apenas a algumas nações que pudessem demonstrar
sua viabilidade econômica, política e cultural, mas a todo e qualquer grupo que

62
UNIDADE 3
História Contemporânea I
reivindicasse o título de “nação”. […] O terceiro era a tendência progressiva para
admitir que a “autodeterminação nacional” não podia ser satisfeita por qualquer forma
de autonomia inferior à plena independência do Estado. […] Finalmente, havia a nova
tendência para definir uma nação em termos étnicos e especialmente em termos de
linguagem. (HOBSBAWM, 1988, p. 206).

Esse nacionalismo, encampado pela direita política, expressava-se


agora como uma rejeição profunda do liberalismo e do socialismo, que
estabeleciam relações internacionais – de comércio ou de ação revolucionária
– para afirmar uma forte reação contra os governos parlamentares
implantados a partir da tradição revolucionária do século XVIII.
Um último elemento fundamental para a compreensão do
nacionalismo é a influência do romantismo filosófico. O pensamento
romântico surgiu, ainda no século XVIII, como uma crítica ao excessivo
racionalismo que acompanhou as ideias iluministas. Como tal, o
romantismo enfatizava a capacidade humana de agir de forma instintiva
e emotiva em situações cotidianas. Como parte desta ênfase e movidas
pela constatação da “realidade e da possibilidade de uma mudança
radical na história” apresentadas pelas revoluções, as elites intelectuais
enveredaram “por uma busca das autênticas tradições nacionais, imersas
num passado remoto e obscuro” (SALIBA, 2003, p. 15).

Daí o interesse maior pela época medieval, pois nela, supostamente, encontrar-se-
iam os traços definidores de um obscuro “passado nacional”; daí também uma visão
bastante mistificadora e ingênua do mundo feudal. Esse mergulho no passado era
uma espécie de compensação ao espetáculo da quebra de continuidade oferecido
pelo tempo presente: uma nostalgia das sociedades pré-capitalistas que ansiava
por retomar o fio de uma continuidade orgânica do passado. Se, no campo político,
tal atitude se desdobrou, não raro, em posições conservadoras, no campo estético
forneceu vias de expressão peculiares, centradas no subjetivismo, no misticismo
interiorizante e na busca da liberdade de criação artística. (SALIBA, 2003, p. 15-16)

63
UNIDADE 3
Universidade Aberta do Brasil

SEÇÃO 2
OS HISTORIADORES E A
CONSTRUÇÃO DAS HISTÓRIAS NACIONAIS

Desde a formulação inicial do conceito moderno de nação,


durante as revoluções Americana e Francesa do fim do século XVIII,
a escrita da história esteve conectada com o processo de construção
da nação, criando uma “longa tradição de vínculos íntimos entre a
escrita da história e o processo de “se tornar nacional” (BERGER,
DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 3).
Em cada uma das principais “nações” europeias, a construção
da ideia nacional passou por formulações mitopoéticas dedicadas a
fornecer os elementos de unidade adequados ao nacionalismo. Na
França, onde a ideia do cidadão político (citoyen) “formava a base da
coesão nacional”, os historiadores debruçaram-se sobre a Revolução de
1789 como principal mito fundador da nacionalidade. Na Inglaterra,
porém, a base dessa coesão era “a identificação da nação com o
desenvolvimento de uma tradição parlamentar que foi amplamente
vista como epicentro da identidade nacional” (BERGER, DONOVAN
e PASSMORE, 1999, p. 6). Na Alemanha, foi o conceito “altamente
ambivalente, mas mesmo assim orientador ” de volk que norteou tanto
as interpretações democráticas quanto as raciais, da história alemã.
“Como tal [o conceito] pode ser usado como mito fundador em escritas
da história que legitimavam regimes democratas, fascistas e comunistas
na Alemanha” (BERGER, DONOVAN e PASSMORE, 1999, p. 5).
Assim, a escrita da história esteve intimamente vinculada aos
contextos políticos do século XIX que construíram a ideia nacional e seus
discursos legitimadores, na história, na literatura ou na filosofia. No caso
dos historiadores:

Com a ascensão do nacionalismo em toda a Europa do século XIX, houve uma


crescente essencialização de auto proclamadas “características nacionais” […]. Muita
da historiografia britânica estava preocupada em demonstrar o processo civilizatório
obtido pela Inglaterra através de sua defesa de valores constitucionais e de liberdade,
e através da sua longa e contínua tradição parlamentar. Os historiadores franceses
também perceberam sua nação como a campeã da ‘liberté, egualité, fraternité’. O
slogan da Revolução Francesa de 1789 simbolizava o fato de que foi na Franca
que o Terceiro Estado tinha, pela primeira vez, realmente se tornado uma nação.

64
UNIDADE 3
História Contemporânea I
Na Alemanha, foi a noção da superioridade da cultura alemã, e da erudição alemã
em especial, que estava no cerne do discurso nacionalista do século XIX. Na Itália
este discurso estava frequentemente ligado à celebração da antiga cultura do país
e à tradição de suas cidades-estado medievais. A construção de “características
nacionais” do discurso historiográfico da Europa ocidental do século XIX tendia a
atribuir “características eternas” às nações. (BERGER, DONOVAN e PASSMORE,
1999, p. 9-10).

Assim, as escolhas historiográficas e políticas sobre o que, no passado,


deve ser lembrado ou esquecido, são fundamentais para a compreensão de
como uma nação concebe a si própria. No caso alemão, mesmo advogando
uma profunda imparcialidade na abordagem do historiador, Ranke (e
outros historiadores alemães, como Mommsen) estava “politicamente
envolvido e conhecia a função política de sua erudição”. Esse aparente
paradoxo é resolvido por Ranke quando ele afirma que “uma abordagem
histórica [da política] torna possível compreender as forças objetivas que
operam no mundo”.

Assim, a nova escola científica era, desde o início, politicamente orientada e


propagandista. Os estudantes de Ranke, que ainda era um bom Europeu, formaram
o cerne da assim chamada Escola Prussiana que misturava obediência à dinastia
Hohenzollern com uma noção de participação popular e nacionalismo alemão. A
Prússia que transcendera as fronteiras nacionais era estava agora germanizada.
[…] o historiador deveria ir aos arquivos, que era em si uma coisa de valor. Mas
historiadores como Droysen, Sybel e Treitschke e uma hoste de seus colegas menos
conhecidos iam aos arquivos com respostas pré-concebidas que eles buscavam
documentar. Eles viam a si próprios como estando a serviço da dinastia Hohenzollern
[…] criando mitos históricos como a História da Prússia de Droysen, que já atribuía à
Prússia da Idade Média uma missão germânica. (IGGERS, 1999, p. 20).

Figura 11 - Estátua de Christian Mommsen na


entrada da Von Humboldt-Universität, Berlin

Christian Matthias Theodor


Mommsen (1817-1903). Historiador
alemão especialista em antiguidade
clássica. Recebeu o prêmio Nobel de
Literatura de 1902 por sua “História
de Roma”.

65
UNIDADE 3
Universidade Aberta do Brasil

Na Inglaterra do século XIX, o tema da “nação” foi um padrão que


se repetiu, principalmente em termos de um programa político “Whig”
que se refletia diretamente na interpretação da história. O principal
expoente desta vertente foi Thomas Babington Macaulay (1800-1859),
mas essa interpretação teve seguidores até o início do século XX, com
George Trevelyan (1876-1962).

O Partido Whig resumia as tendências liberais inglesas durante os séculos XVIII e


XIX. Mantinha um programa que incluía a abolição da escravidão, a emancipação dos
católicos ingleses, a educação popular, entre outros itens.

Segundo a interpretação de Macau-


lay, o elemento nacional mais importante
na Inglaterra era o “desenvolvimento de
uma tradição parlamentar libertária que
remontava à Magna Carta e culminava na
Revolução Gloriosa de 1688” (STUCHTEY,
1999, p. 30). Para Macaulay e os liberais
ingleses do período, a glorificação do pas-
sado nacional (mitificado como um passado
“pacífico”) era uma resposta ao medo pro-
Figura 12 - Thomas Babington Macaulay. vocado pelo Cartismo (que você vai conhe-
Desenho de George Richmond. (1809–1896)
cer em História Contemporânea 2) e pelas
revoluções europeias de 1848. A história deveria proporcionar narrativas
que descrevessem como os extremos políticos poderiam ser equilibrados.
Nessa perspectiva, a história do povo inglês “tinha um aspecto universal
[…] e era não somente causa para inveja e admiração pelos países vizi-
nhos, mas também um benefício para o mundo civilizado, o fato de que
a Inglaterra gozara de liberdade parlamentar tanto tempo antes de qual-
quer outra nação” (STUCHTEY, 1999, p 32):

Esta interpretação Whig era essencialmente um relato complacente de sucesso; uma


história contemplativa de um povo que aprovava seu passado e presente. Quando
Macaulay afirmou que “a história da inglaterra é enfaticamente a história do progresso”
(MACAULAY, 1866, p. 298), ele pensava em uma linha contínua da civilização inglesa
desde o [censo de Guilherme I em 1086] até as leis de reforma do século XIX. Por trás
desta idéia estava […] uma convicção nacional e cultural da superioridade civilizacional
inglesa. (STUCHTEY, 1999, p. 33).

66
UNIDADE 3
História Contemporânea I
No caso da historiografia francesa do século XIX, após 1815 o
pensamento liberal dominante buscou uma política de compromisso,
procurando apaziguar os conflitos gerados pela Revolução e garantir
estabilidade e unidade. A história forneceu os meios para que eles criassem
uma ideologia que acolhesse tanto os direitos individuais, herdados do
tumulto revolucionário, quanto uma sensação de pertencimento mútuo
à nação francesa. Assim, “nos escritos de François Guizot e Augustin
Thierry, o passado foi reinterpretado como uma grande narrativa do
propósito nacional e a Revolução foi defendida como o ápice legítimo de
um longo processo de luta” (CROSSLEY, 1999, p. 50).
Do outro lado do espectro políti-
co, historiadores contrarrevolucionários,
como Joseph de Maistre, não distinguiam
entre o espírito de 1789 e aquele do jaco-
binismo militante. Para eles, o individu-
alismo era consequência do liberalismo
iluminista. Esses críticos não se sentiam
obrigados a equilibrar as tradições na-
cionais em torno da Revolução, nem a
reconciliar o indivíduo com a sociedade
através da reescrita da história nacional, Figura 13 - François Pierre Guillaume Guizot,
1787-1874.
como procuraram fazer os liberais. Coube Fonte: http://www.lib.utexas.edu/photodraw/
portraits/guizot.jpg. Fonte Original
aos liberais realizar o esforço nacional por DuycFontekinick, Evert A. Portrait Gallery of
Eminent Men and Women in Europe and America.
excelência: New York: Johnson, Wilson & Company, 1873.

Historiadores liberais como Guizot e Thierry fizeram mais do que reforjar elos com o
passado nacional. A História foi chamada para preencher uma função integradora,
demonstrando aos indivíduos que eles a pertenciam a uma comunidade que, de algum
modo, permanecia a mesma apesar de ter sido envolvida com o processo dinâmico de
mudanças históricas ao longo dos séculos. A História validava a sociedade, ou, mais
exatamente, a história confirmava a nação burguesa como o locus da reconciliação
prometida entre o indivíduo e o propósito coletivo. (CROSSLEY, 1999, p. 53).

Partindo dos modelos europeus, os historiadores brasileiros também


buscaram formas de legitimar a construção nacional no passado. O
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro assume a função de conciliar
a tradição europeia com a novidade da independência, instaurando uma
longa tradição de fuga das rupturas repentinas.

67
UNIDADE 3
Universidade Aberta do Brasil

E aqui tocamos em um ponto que nos parece central para a discussão da questão
nacional no Brasil e do papel que a escrita da história desempenha neste processo:
trata-se de precisar com clareza como esta historiografia definirá a Nação brasileira,
dando-lhe uma identidade própria capaz de atuar tanto externa quanto internamente.
No movimento de definir-se o Brasil, define-se também o “outro” em relação a esse
Brasil. Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da idéia de
Nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito
ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma
certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa. Nação, Estado e Coroa
aparecem enquanto uma unidade no interior da discussão historiográfica relativa ao
problema nacional. Quadro bastante diverso, portanto, do exemplo europeu, em que
Nação e Estado são pensados em esferas distintas. (GUIMARÃES, 1988, p.6).

A disciplina da historia ficou atrelada ao debate sobre as questões


nacionais, marcando a “institucionalização do debate e delineamento de
uma proposta de ‘Nação Brasileira’” (KARVAT, 2005, p. 52). O primeiro
Programma histórico do IHGB, elaborado em 1839 pelo presidente da
instituição, o visconde de São Leopoldo (José Feliciano de Fernandes
Pinheiro), inscreve-se nessa tentativa inicial de delimitar o tema nacional
sobre a história buscando definir, inclusive, os cânones de leitura do passado
a partir da visão que buscava estabelecer (KARVAT, 2005, p. 55).
Desta forma, também a História Geral do Brasil, de Francisco Adolpho
de Varnhagen (1854), inaugurou a ideia nacional para o país, recém tornado
independente, mas que devia sua unidade nacional à continuidade para com
o passado colonial. Para Varnhagen, a tradição portuguesa – monárquica
e católica - fornecera os principais elementos nacionais: língua, história e
território (MONTALVÃO, 2006, p.2).
Capistrano de Abreu também busca construir a “nação” na
historiografia, porém seu foco é a introdução
de uma dimensão popular, na medida em
que enfatiza a conquista e a colonização
do território brasileiro pelos brasileiros
mestiços, e não pelos portugueses (REIS,
1999, p. 113).
A busca pela “nação” ou pela história
nacional vai persistir na historiografia
até quase o final do século XX, quando
o conceito é questionado como uma
construção ideológica, ou quando a ideia Figura 14 - Francisco Adolfo de Varnhagen
Fonte: DEVERIA, Achille (1800-1857), Paris:
mesma de nação entra em desuso como Imp. Lemercier, ca. 1851, litografia, disponível
na Biblioteca Digital da Biblioteca Nacional
unidade de análise do passado. de Lisboa, em http://purl.pt/5639, acessado em
16/09/2010.

68
UNIDADE 3
História Contemporânea I
Nesta terceira unidade você estudou como o fim do antigo regime permitiu o surgimento
de uma nova força de coesão sociopolítica – o nacionalismo – e como as modernas
nações surgiram e tiveram sua construção justificada pela historiografia moderna que nasce
com esta função explícita – escrever a história nacional, buscando mitos de origem, fatos
fundadores e ideias identificadoras que permitiram que o “sentimento nacional” surgisse e
transformasse populações inteiras, fundamentalmente diferentes entre si, em “franceses”, “americanos”
ou “brasileiros”.
Viu também que, em nome do nacionalismo, políticas de unificação e/ou dominação foram
implantadas, quase nunca de modo pacífico, passando de um nacionalismo liberal que herdara seus
ideais da Revolução Francesa – buscando, ao fim e ao cabo, a redenção de todos os indivíduos em suas
respectivas nações – a um nacionalismo encampado por indivíduos e partidos à direita do espectro
político, fundamentalmente antirracional, antiliberal e marcado pela adesão à xenofobia e racismo do
final do século XIX.

Procure informações adicionais sobre os processos de unificação da Alemanha e da Itália na


segunda metade do século XIX, na historiografia especializada, ou em obras de referência.
Leia o livro “Nações e nacionalismo desde 1870, Programa, mito e realidade” de Eric Hobsbawm
(Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990).

Leia e resenhe o livro “Silvio Romero; hermeneuta do Brasil”, de Alberto Luis Schneider
(São Paulo: Annablume, 2005), buscando conhecer melhor como os processos de construção
nacional foram adaptados para o Brasil.

69
UNIDADE 3
70
Universidade Aberta do Brasil

UNIDADE 3
UNIDADE IV
Movimentos e
Teorias Sociais

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
■■ Compreender as forças em oposição durante o nascimento da
contemporaneidade.

■■ Analisar a historiografia sobre os temas debatidos.

ROTEIRO DE ESTUDOS
■■ SEÇÃO 1 - Genealogia da militância

■■ SEÇÃO 2 - Tempo e disciplina

■■ SEÇÃO 3 - Teorias e movimentos sociais


Universidade Aberta do Brasil

PARA INÍCIO DE CONVERSA


Quando pensamos em movimentos sociais, mais especificamente
no movimento operário, imediatamente os associamos ao capitalismo,
como se o a industrialização gerasse espontaneamente movimentos de
contestação. De fato, sem a fábrica não haveria movimento operário
no sentido moderno, porém a contestação social não é um movimento
reflexo.
De certa maneira, isso já foi compreendido. O problema é a
associação do movimento operário a uma “história” das lutas sociais
como se houvesse uma trajetória única estabelecida ab origine, quer
dizer, desde o início dos tempos; ou, ainda, como se fizesse parte
da essência humana. Cada movimento que sucedesse outro seria
uma retomada num nível superior, seguindo uma espécie de espiral
evolutiva. Trata-se, assim, a história dos movimentos sociais da mesma
forma que a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, como vimos
nas unidades anteriores, isto é, eles seriam uma manifestação natural
do espírito humano, colocando-se no mesmo tipo de genealogia que a
historiografia tradicional traça para o processo histórico.
Nessa compreensão do processo histórico, cada acontecimento
seria uma continuidade, num sentido superior ao acontecimento
anterior. A essa escala evolutiva pode-se dar o nome que se quiser
(marxismo, liberal, libertária), mas ela é dominante desde o século
XIX, especialmente quando se trata do movimento operário, pois
a sua história é ligada pela historiografia marxista às relações de
produção. Isso quer dizer que a cada etapa da história humana, que
pode ser contada através dos modos de produção, há um movimento de
contestação correspondente. Dessa forma, a história dos movimentos
sociais cabe inteiramente na história das relações de produção.
Já há algum tempo a história deixou de ser o relato do Mesmo,
apesar de não conseguir nos últimos anos se reunificar em conjuntos
teóricos globalizadores, algo que muitos historiadores ainda almejam.
Porém, a prática da disciplina permitiu abrir um leque de possibilidades
de análise e compreensão do passado que modificou completamente
o seu próprio estatuto. Deixou-se de buscar no passado uma unidade.
Ora, até os anos sessenta do século passado, o trabalho em história

72
UNIDADE 4
História Contemporânea I
consistia na possibilidade de condensar o que seria isolado, juntar
fios soltos, urdir o tecido social que se despedaçava pelo tempo que
passa. Enfim, estabelecer linhas temporais que restituíssem o contínuo
da sociedade. Não existiria degredo, perda, esquecimento que não
pudessem ser trazidos à luz, que a narrativa não pudesse tornar
visíveis. O projeto do discurso histórico era garantir a permanência
do passado para que nele nos reconhecêssemos.
Por outro lado, quando estabelecemos uma relação de estranheza
do passado, deixamos de transportar a nossa própria imagem, deixamos
de procurar o nosso reflexo. Surgem figuras diferentes, tão diferentes
que mal podemos chamá-las de “antepassadas”. São outras práticas,
culturas, línguas, histórias, mesmo se as palavras aparentemente
forem as mesmas. A questão é saber se falamos as mesmas palavras
ou se, mesmo sendo aparentemente iguais, elas não significam outra
coisa.
Logo, nessa relação de estranheza, deixamos de encontrar o
Mesmo para nos depararmos com a Diferença. Isto serve tanto para
sociedades agora longínquas como para sociedades mais próximas.
No caso desta Unidade, encontramo-nos com algo muito próximo
que nos faz esquecer a distância e a diferença. Achamos que é um
objeto natural, acreditamos que ele sempre esteve ali, mas em estado
latente, e somente num determinado momento pôde surgir. Mas se
investigarmos a sua outra genealogia, ou as suas possibilidades de
aparição em cena, dar-nos-emos conta de que ele não é natural e muito
menos já estava em estado latente, trata-se do movimento operário.
Quando se estuda este movimento, busca-se, em primeiro lugar,
a sua genealogia, para, em segundo lugar, situá-lo historicamente
junto com o aparecimento de teorias sociais que procuravam ordenar a
sociedade de um modo diferente do capitalismo. Assim, como dissemos,
o aparecimento do operariado não é uma simples decorrência da
sociedade capitalista, é o encontro de linhas heterogêneas na história,
como veremos adiante.

73
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

SEÇÃO 1
GENEALOGIA DA MILITÂNCIA

A primeira questão que surge é esta: como foi possível, em finais


do século XVIII, a organização de uma forma de militância política que
não estava inscrita nas práticas sociais anteriores, pelo menos na Europa?
Quer dizer, nada havia que descrevesse a militância dos trabalhadores
antes da própria Revolução Francesa.
Havia, evidentemente, movimentos que questionavam a ordem
social, porém nenhum deles objetivou a fábrica os as relações de
produção, pelo menos de forma organizada. O que temos são outras
práticas, geradas em lugares que, poderíamos dizer, nada teriam de
proximidade com o universo do trabalho. A ascensão deste universo trouxe
consigo novas práticas de contestação (conforme você viu na Unidade
2). No entanto, estas práticas reportam-se a diferentes séries históricas
e têm, aparentemente, laços tênues entre elas. Do possível inventário,
destacam-se três: utopia, militância e o pensamento nômade. São séries
heterogêneas que constituíram, em momentos diferentes, as bases da
moderna militância política.
A primeira dessas séries refere-se à literatura utópica que emerge em
meados do século XVI e ganha terreno durante os séculos XVII e XVIII,
a textos que tratam de sociedades perfeitas em alhures. Elas instigaram
a imaginação de muitas pessoas e podem ser ligadas às teorias sociais de
finais do século XVIII, quer dizer, do espaço da imaginação para o espaço
da possibilidade de realização da utopia na sociedade.
A segunda trata da militância religiosa inaugurada pela Companhia
de Jesus. Era uma prática diferente da pregação tradicional, pois o jesuíta
dedicava a sua vida à causa. Elemento fundamental para a militância
moderna, como veremos.
Com relação à última série, o chamado pensamento nômade,
cabe alguns esclarecimentos mais precisos. Trata-se de uma produção
intelectual que não teve suporte - e muitas vezes não o pretendeu - de
instituições oficiais tais como Universidades, Academias, Igreja e Estado,
tendo raízes que podem ser encontradas nas heresias medievais. Mas,
esse tipo de pensamento produzido fora dos quadros oficiais está associado

74
UNIDADE 4
História Contemporânea I
mais frequentemente ao aparecimento da imprensa e da possibilidade de
sua reprodução e permanência na forma de livros – certamente havia
uma produção manuscrita que, muitas vezes, alimentava ou retratava
as heresias medievais e teve uma existência relativamente longa
(CHARTIER, 2001, p. 802; MÉTAYER, 2001, p. 881 e ss).
É dentro dessa forma de pensamento que vamos encontrar
formulações científicas e filosóficas institucionalmente não aceitas,
textos de teor iniciáticos (religiosos, morais, políticos) e, até mesmo, a
literatura libertina. São escritos lembrados por Robert Darnton (Boemia
Literária e Revolução, 1987), por exemplo, nos momentos que antecedem
a Revolução Francesa, sendo reconhecidos como subliteratura, e que
amalgamavam todos os tipos de produções que não recebiam autorização
da chancelaria real para serem publicados (ABROMOVICI, 1996, p. 183
e ss.), ou estavam censurados. São textos que portam um grande leque de
temas, de grosseiras pornografias a libelos políticos, mas que não podiam
circular senão clandestinamente, ou pelo menos parecer produzidos à
margem da “boa” literatura.
É dentro de tal perspectiva que chamamos essa produção intelectual
de pensamento nômade ou, ainda, de pensamento vagabundo, pois ele
não participa de formas institucionais desde a Renascença, pelo menos
das aceitas pelos poderes vigentes, e conhece uma circulação quase
sempre clandestina, identificada pela distribuição de livros fora do espaço
legal ou, ainda, de textos não aceitos pelo mundo oficial.
Esse tipo de pensamento não se reporta a um lugar de produção.
Se, de um lado, podemos marcar claramente os lugares de diversos
saberes − medicina, filosofia, economia, etc. − por outro, o pensamento
nômade tem como principal característica a não vinculação a um espaço
específico para ser produzido. Muitas vezes, formulações filosóficas,
políticas e até libertinas foram feitas dentro de locais institucionalizados
(universidades, mosteiros), mas não tiveram sequência, devido, antes de
tudo, a sua rejeição pelo mundo oficial (FOUCAULT, 1966).
Nesse sentido, encontramos nesse tipo de produção elementos
intelectuais, filosóficos e políticos que auxiliaram na composição da
militância política já no século XIX, que posteriormente iremos verificar.
Porém, ao lado do pensamento nômade com suas intricadas redes
de sobrevivência e de burla dos padrões impostos temos uma literatura

75
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

aceita, na sua maior parte, que são os textos utópicos. Entre um e outro
não há uma distância muito grande, a não ser pela aceitação ou rejeição
oficial. Ambos, entre outras produções, vão alimentar profundamente as
formulações políticas geradas durante e após a Revolução Francesa. Daí a
escolha desses dois universos: um, bem estabelecido, aceito e reconhecido
como um gênero dentro da literatura; outro, fugidio, contradito, do qual
seguimos muitas vezes rastros em negativo, isto é, pelos anátemas
lançados pelo espaço institucional em direção a ele (censura, proibições
formais, obras escritas e assim por diante).
Além das séries do pensamento nômade e da utopia, a da
militância é, pelo menos de forma aparente, a mais clara. A historiografia
tradicionalmente localiza o seu nascimento durante os anos revolucionários
e os jacobinos aparecem na cena histórica como o modelo inaugural de
um novo ator social: o militante político (LEFORT, 1986, p. 121 e ss.). No
entanto, creio que cabe discutir o seu surgimento tendo por base alguns
outros elementos teóricos e de compreensão de processos históricos.
Em primeiro lugar, remetemos à discussão feita por François Furet
(1978, p. 49) na obra Penser la Révolution Française, quando nos lembra
que “os militantes revolucionários identificam sua vida privada à sua vida
pública e à defesa de suas ideias: lógica formidável que reconstitui, sob
uma forma laicizada, o investimento psicológico das crenças religiosas”*.
Este reparo posto por Furet nos remete a uma outra historicidade com
relação à gênese da militância.
Ao seguir essa pista, talvez devamos mergulhar num universo
diferente do tradicionalmente aceito, qual seja, o de que o aparecimento
em cena do militante político durante a Revolução Francesa se deve
a um natural desejo do homem em lutar contra a opressão. Ora, o
empenho, a dedicação, o desprendimento e a fé oferecidos por muitos
daqueles que participaram nos anos revolucionários não têm similar
no passado em termos políticos, isto é, como nos lembra Furet, somente
podemos comparar esse tipo ação com aquele do militante religioso,
mais especificamente, o jesuíta.
O total desprendimento de si mesmo, o envolvimento absoluto na
causa, a obediência absoluta que a Companhia exige de seus padres é o
____________________________________________________________________________________________
* * - « les militants révolutionnaires identifient donc leur vie privée à leur via publique et à la
défense de leurs idées : logique formidable qui reconstitue, sous une forme laïcisée, l’investissement
psychologique des croyances religieuses » (tradução livre de minha autoria).

76
UNIDADE 4
História Contemporânea I
que pode nos dar uma dimensão histórica para o surgimento do militante
político. Contrassensual num primeiro momento, esta comparação é a única
que torna possível explicar, em termos históricos, a fé e a dedicação de
alguns durante os anos revolucionários e a formação de quadros dos partidos
políticos, principalmente aqueles de esquerda, durante o século XIX. Ambos
seguem um imperativo de ordem superior que teria a posse da verdade
absoluta. Para uns, é a Igreja, ou melhor, o Papa; para outros, é o povo.
Para relatar o aparecimento da militância política, por exemplo,
a historiografia busca no passado referências de repetição, ou procura
encontrar um padrão explicativo que se utiliza da recorrência do fato,
senão do mesmo, ou pelo menos algo que indique uma curva evolutiva.
Então, dentro do nosso caso, cria-se uma série “militantes políticos” e
persegue-se tal objetivo obstinadamente através do passado. Para os
mais criativos e persistentes, pode-se fazer uma linha de ascendência
que remonta a Espártaco, passando pela revolta da Plebe em Roma,
das Jacqueries na Idade Média e assim por diante. Dessa forma, temos
um objeto completamente naturalizado, a militância, com motivações
completamente naturais, luta contra a opressão. Em outros termos, o
discurso tradicional da História é o discurso desse objeto.

Espártaco foi um gladiador romano que liderou a Terceira Revolta dos Escravos, na Repú-
blica Romana, de 73 a 71 A.C.
Jacquerie foi uma revolta popular no fim da Idade Média na França, em especial durante
a Guerra dos Cem Anos. A palavra se tornou sinônimo de revolta popular em diversas línguas
europeias desde então.

Todavia, dentro da disciplina histórica há muitos avanços. Em primeiro


lugar, o reconhecimento da alteridade, o que levou a interrogar com mais
acuidade os acontecimentos passados e repensar a historicidade destes. Se
vários objetos foram revistos, ainda há um longo caminho a ser percorrido
para pensar vários outros, e a questão da militância está entre estes.
Cabe ressaltar, ainda, que a escolha desses universos ou séries
deve-se também aos elementos que eles mobilizaram (e mobilizam)
dentro dos imaginários sociais. Essa questão é central para buscar as
possíveis correlações entre as séries e o surgimento do anarquismo de tais
correlações. Assim, a utilização deste instrumento para a compreensão

77
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

histórica se tornou comum nos últimos anos e várias obras vieram à luz
sob a sua égide. Não que seja o último apanágio para uma historiografia
que estaria em crise com suas próprias balizas teóricas. Pelo contrário,
cremos que ele vem enriquecer as análises históricas, permitindo um
olhar mais específico para vários objetos, acrescentando que:

De início, seria preciso inventariar os mitos políticos modernos utilizados face ao


trabalho efetuado, em relação aos outros mitos, pelos antropólogos, historiadores da
Idade Média ou da Antiguidade em relação aos outros mitos (...). Ora é precisamente
a historicidade dos nossos mitos políticos que constitui o problema-chave para
o historiador dos imaginários sociais. Nossas sociedades modernas, sejam elas
“desencantadas” também, não cessam de produzir sua própria mitologia e a
política não é, sem nenhuma dúvida, o terreno menos investido pelos fantasmas e
representações imaginárias” (BACZKO, 1984, p. 116)*.

Nesse sentido, é preciso su-


perar a visão tradicional na histo-
riografia que relaciona a militância
moderna diretamente aos escritos e
práticas políticos que surgiram em
torno da Revolução Francesa, re-
duzindo a sua história a um epife-
nômeno da política. Não que exista
um erro nessa forma de entendê-lo,
pois é evidente que as formulações
que redundaram no movimento em
meados do século XIX partiram em
grande parte do quadro revolucio-
nário. Porém, devemos considerar
Figura 15 - Gravura representando os militantes anarquistas elementos do imaginário social que
em Chicago, em 1886
não se reduzem ao quadro político
originário da Revolução Francesa e da pretensa naturalização dos fatos
históricos.
A história do pensamento nômade, das utopias e da militância política
já foi feita em vários momentos e por vários autores, porém essas séries
____________________________________________________________________________________________
* Il faudrait d’abord inventorier les mythes politiques modernes en bonne et due forme, a l’instar
du travail effectué pour d’autres mythes par les anthropologues, les historiens du Moyen Age ou de
l’Antiquité (…). Or, précisément c’est l’historicité de nos mythes politiques qui constitue le problème-
clé pour l’historien des imaginaires sociaux. Nos sociétés modernes, aussi « désenchantées » soient-
elles, ne cessent de produire leur propre mythologie et le politique n’est pas, sans doute, le terrain le
moins investi par les phantasmes et représentations imaginaires (tradução livre de minha autoria).

78
UNIDADE 4
História Contemporânea I
não foram ainda consideradas nas suas possíveis correlações. A militância
operária seria o resultado dessas correlações pelo menos em parte, pois
há que se considerar outras ainda, mas que já foram devidamente feitas
(economia e política, por exemplo).

SEÇÃO 2
TEMPO E DISCIPLINA

Para que a militância política passasse a ter uma efetiva atuação,


era preciso encontrar o ponto de encontro, quer dizer, o local (ou locais)
onde práticas diversas acabaram compondo uma nova prática social.
Dois foram os locais. Um, como já vimos, foi a Revolução Francesa, locus
privilegiado para a ação política de novo tipo. Outro foi o espaço da fábrica
e da produção industrial. Aqui a militância política ganha os seus traços
mais específicos, o de associar uma teoria a uma prática.
Você viu na Unidade 2 como o trabalho passou a ser valorizado
no ocidente europeu no fim do período medieval. A ascensão do
mundo do trabalho implicou a imposição de um modo de produzir e,
consequentemente, a possibilidade de se atingir a produção ilimitada de
artefatos que compõem uma espécie de processo metabólico social. Ou
seja, produz para produzir.
Porém, todo esse processo de valorização do trabalho, de
incorporação das horas contínuas nas manufaturas não foi sem percalços.
Houve muita resistência por parte dos trabalhadores, afinal, eles eram
submetidos a condições degradantes de trabalho e de existência. Salários
baixos, oficinas insalubres, periculosidade, trabalho infantil, extensas
jornadas, tudo contribuía para que o trabalhador fosse tratado como
último na escala social.
Em contrapartida, desde o início desse processo, os trabalhadores
procuram resistir:

... de resto, este tempo novo cedo se torna motivo de renhido conflitos sociais.
Agitação social e emoções dos trabalhadores têm, daqui em diante, a finalidade de
fazer calar os Werkglocke [...]

79
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

Perante tais revoltas, a burguesia têxtil protege o sino do trabalho, tomando medidas
mais ou menos drásticas [...] Mas, aqui, a questão do sino é bem evidente. Se os
operários se apoderassem deste sino para com ele dar o sinal de revolta, as mais
pesadas penas os atingiriam. (LE GOFF, 1980, pp. 65-66 )

As lutas em torno das horas de trabalho indicam não apenas


uma forma de controle social sobre o tempo, mas também sobre o
próprio trabalhar. Os empregadores buscam cada vez mais transferir
conhecimento dos artesãos para si e, dessa forma, controlar os
trabalhadores que, por sua vez, são inseridos no universo do trabalho
manufatureiro sem nenhuma formação.
A princípio o trabalho era fornecido aos trabalhadores num sistema
que ficou conhecido como putting-out system, ou seja, sistema de
produção doméstica. Nele o empregador é muito mais um intermediário
entre os produtores. Ele contrata a lã com o criador. Em seguida, leva-a
para a fiandeira. Depois pega os fios e os leva ao tecelão para, enfim,
entregar o tecido ao tingidor e, posteriormente, vendê-lo. Entrementes,
os trabalhadores também cuidavam de outras tarefas como plantar, cozer,
consertar ferramentas, etc. Isto é, um dia de trabalho para uma pessoa
comum é cheio de tarefas variadas e que dependem das condições
climáticas e sazonais como, por exemplo, plantar.
No entanto, a produção manufatureira não pode depender dessa
falta de sistematicidade, afinal tempo é dinheiro. Aos poucos o trabalho
doméstico vai cedendo espaço para o trabalho dentro de oficinas
montadas pelos empregadores, nas quais os trabalhadores se dedicam
a uma única tarefa.
Há mais resistências, pois o trabalho é estafante e feito em péssimas
condições. Mas os empregadores precisam de mão-de-obra. Na Inglaterra,
por exemplo, o crescimento das manufaturas durante os séculos XVI e
XVII foi concomitante com os “cercamentos”. Esse acontecimento foi
assim chamado devido à tomada dos campos comunais, na Inglaterra,
por parte de grandes proprietários. Isso privou os camponeses das terras
comuns onde podiam levar seus pequenos rebanhos para pastar ou as
utilizar para plantio. Sem meios de subsistência, muitos camponeses se
viram forçados a migrar para as cidades em busca de trabalho.
Os empregadores principalmente da indústria de tecidos,
encontraram nesses migrantes a mão de obra necessária para implementar

80
UNIDADE 4
História Contemporânea I
mudanças drásticas no processo de produção: a concentração dos
trabalhadores num mesmo local, isto é, a constituição de um sistema de
fábrica. Vejamos:

...seria possível enumerar pelo menos quatro razões importantes para o


estabelecimento do regime de fábrica. Em primeiro lugar, os comerciantes precisavam
controlar e comercializar toda a produção dos artesãos, com o intuito de reduzir ai
mínimo as práticas de desvio dessa produção. Além disso, era do interesse desses
comerciantes a maximização da produção através do aumento do número de horas
de trabalho e do aumento da velocidade e do ritmo de trabalho. Um terceiro ponto
muito importante era o controle da inovação tecnológica para que ela só pudesse
ser aplicada no sentido de acumulação capitalista; e, por último, a fábrica criava
uma organização da produção que tornava imprescindível a figura do empresário
capitalista. (DE DECCA, 1982, p. 24).

Dessa forma, aos poucos o putting-out system cede lugar ao sistema


de fábrica, ou seja, oficinas nas quais se concentram trabalhadores,
mesmo porque:

O sistema de trabalho em domicílio (putting-out system) exigia muita busca,


transporte e espera de materiais. O mau tempo podia prejudicar não só a agricultura,
a construção e o transporte, mas também a tecelagem, pois as peças prontas tinham
de ser estendidas sobre a rama para secar. (THOMPSON, 1998, p. 280).

Já nas oficinas era bem diferente. Nelas é possível parcelar as


tarefas no processo de produção. É clássica a descrição de Adam Smith
sobre o fabrico de alfinetes. Ele diz que dez operários não qualificados
podem produzir 48 mil alfinetes por dia se dividirem as tarefas, enquanto
dez operários qualificados não alcançariam a marca de 300 por dia se as
tarefas não fossem divididas.
Esta é a importância da divisão do trabalho. Ela aparece num
momento crucial em que os trabalhadores, forçados a procurarem
trabalho nas manufaturas, veem-se compelidos a aceitarem as
imposições dos empregadores em troco de baixíssimas remunerações.
Mesmo os recalcitrantes eram obrigados a se empregarem, pois o
governo inglês, no início do século XVII, instituiu leis que impunham
penas pesadíssimas às pessoas que fossem pegas sem trabalho. Pobres
podiam ser marcados a ferro em brasa e serem obrigados a trabalharem
em galés. Caso fossem reincidentes podiam pegar penas duríssimas ou
serem deportados para as remotas colônias. Também foram criadas as

81
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

Workhouses, locais de trabalhos forçados para as pessoas que fossem


pegas sem trabalho.

Figura 16 - Clifden Workhouse Illustrated London News, 5 de janeiro de 1850

Assim, um exército de mão-de-obra se tornou disponível para os


primeiros proprietários de manufaturas, nas quais se puderam desenvolver
técnicas próprias para o incremento da produção. Associando-se a divisão
do trabalho, trabalhadores em grande quantidade e domínio do saber
produtivo, no final do século XVIII, assiste-se à introdução de máquinas,
coroando um processo que ficou conhecido como Revolução Industrial.
A rigidez nas oficinas denota a própria rigidez com que o governo
inglês tratou a questão dos pobres. Leis anti-vadiagem foram promulgadas
sob o eufemismo de Lei dos Pobres. Mas, para além das ações do governo
inglês, havia um tipo de ação mais eficaz para impor a disciplina fabril: a
moralização dos trabalhadores.
Vimos que até finais da Idade Média e parte do período moderno, o
trabalho era desprezado. Porém, as mudanças nas mentalidades acabaram
alterando o quadro. A burguesia foi a primeira e, em seguida, pregadores
também viram no trabalho uma forma de moralizar uma população a ele
arredia, e que não se dispunha a praticá-lo com disciplina e regularidade.
Reclamações eram constantes, principalmente contra costumes seculares
e o ritmo irregular.

82
UNIDADE 4
História Contemporânea I
Este ritmo irregular é comumente associado com bebedeiras no fim de semana: a
Santa Segunda-Feira é alvo em muitos folhetos vitorianos sobre a temperança [...]
Na década de 1790, Sir Mordaunt Martin desaprovou o recurso ao trabalho por
empreitada que as pessoas aprovam, para não ter o trabalho de vigiar os seus
empregados: o resultado é que o trabalho é malfeito, os trabalhadores se vangloriam
na cervejaria do que eles podem gastar numa ‘mijada contra a parede’, criando
descontentamento entre os homens com remunerações moderadas. (THOMPSON,
1998, p. 284).

A Santa Segunda-feira (Saint Monday, Saint Lundi, San Lunes) era uma tradição euro-
peia. Os trabalhadores folgavam na segunda e muitos moralistas diziam que era por causa das
bebedeiras de domingo. No entanto, era um costume. Aproveitava-se a segunda-feira para rea-
lizar tarefas que não eram possíveis outros dias, ou conforme o ditado francês reproduzido por
THOMPSON (1998, p. 283): “Le dimanche est le jour de La famille, Le lundi celui de l’amitié
(o domingo é o dia da família, a segunda-feira, o da amizade)”.

Assim, durante os séculos XVII e XVIII investe-se contra esses


costumes, procurando incutir a disciplina do trabalho sistemático entre
os trabalhadores. Entretanto, os principais patrocinadores dela não são
os patrões, mas os puritanos, isto é, pregadores de seitas protestantes que
viam na ociosidade dos indivíduos uma atitude que favorecia o pecado O
caso da Igreja Metodista é exemplar. John Wesley, fundador dessa igreja,
observou numa brochura que publicou em 1786 os benefícios de levantar
cedo, pois [...] “tanto tempo entre os lençóis quentes, a carne é como que
escaldada, e torna-se macia e flácida. Os nervos, nesse meio tempo, ficam
bem debilitados” (apud THOMPSON, 1998, p. 296).
Da moralização do tempo útil e do trabalho sistemático como
benéfico, passamos a outro momento, que se dá no interior da fábrica.
Na organização do trabalho, os empregadores passam a exigir, cada vez
mais, uma rígida disciplina nas tarefas. Vejamos as regras impostas por
um empresário, Josiah Wedgwood, por volta de 1780, reproduzidas por
Thompson (1998, p. 291):

Aqueles que chegam mais tarde do que a hora determinada devem ser notificados,
e se depois de repetidos sinais de desaprovação eles não chegam na hora devida,
deve-se fazer um registro do tempo que deixaram de trabalhar, e cortar a quantia
correspondente de seus salários na hora do pagamento, se forem assalariados, e, se
forem pagos pelo número de peças feitas, devem ser mandados de volta, depois de
freqüentes avisos, na hora da primeira refeição.

83
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

No entanto, todo esse processo não ficou sem resposta das pessoas
que eram forçadas ao trabalho nas oficinas, as quais logo passaram a se
organizar e lutar para modificar as condições de trabalho.

Figura 17 - Adolf Von Menzel. O ciclope moderno. 1875, Alte Nationalgalerie. Eram impostas aos operários duras condições
de trabalho. (http://fr.wikipedia.org/wiki/Revolution_industrielle).

SEÇÃO 3
TEORIAS E MOVIMENTOS SOCIAIS

De início, os trabalhadores se voltaram contra a lógica do capital


instaurada no processo produtivo:

A investida, vinda de tantas direções, contra os antigos hábitos de trabalho do povo


não ficou certamente sem contestações. Na primeira etapa, encontramos a simples
resistência. Mas, na etapa seguinte, quando é imposta a nova disciplina de trabalho,
os trabalhadores começam a lutar, não contra o tempo, mas sobre ele.” (THOMPSON,
1998, p. 293).

As fábricas rapidamente passaram a ser associadas a prisões, devido


principalmente às Workhouses, lugares de opressão onde os trabalhadores
eram obrigados a aceitar as longas jornadas e as péssimas condições.

84
UNIDADE 4
História Contemporânea I
Mas, se foram compelidos a aceitar a noção de tempo útil, logo retornam
à utilidade do tempo, ficando contra os empregadores:

A primeira geração de trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a


importância do tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de menos
tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; a terceira geração fez greves
pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5%) pelas horas
trabalhadas fora do expediente. Eles tinham aceitado as categorias de seus empregadores
e aprendido a revidar os golpes dentro desses preceitos. Haviam aprendido muito bem a
sua lição, a de que tempo é dinheiro.” (THOMPSON, 1998, p. 294).

Logo, os empregadores não tinham mais diante de si trabalhadores


desorganizados, indisciplinados e não qualificados, mas sim uma massa
de operários prontos para reivindicarem melhores salários, condições de
trabalho e tratamento humano nas fábricas.
O primeiro passo na organização dos trabalhadores foram os
sindicatos, herdeiros diretos das guildas medievais. Assim, no fim do
século XVIII e início do século XIX, as primeiras formações sindicais já
estavam atuantes na Inglaterra. Na França, os governos revolucionários
após 1789 proibiram qualquer associação parecida com as guildas,
dizendo que eram formas de monopólios da produção e não deviam ser
aceitas. Somente muitos anos mais tarde os sindicatos foram aceitos.

As guildas constituíam uma espécie de organização dos artesãos que teve uma longa his-
tória. Elas serviam para evitar a concorrência predatória entre os artesãos e também como uma
caixa de socorro mútuo em caso de doença ou falecimento. Os sindicatos derivam desse tipo
de prática, mas logo se especializam em setores e passam a ser mais reivindicativos do que
socorristas.)”.

Um dos eventos mais famosos no início da organização sindical foi o


ludismo, mais conhecido como movimento dos quebradores de máquinas.
Trabalhadores de várias regiões da Inglaterra se organizaram para atacar
máquinas, acreditando que elas lhes tiravam os empregos, pois uma delas
podia fazer o trabalho de vários homens. No entanto, estudos puderam
comprovar que na realidade era um movimento mais punitivo do que
uma revolta contra o trabalho e contra o progresso.
Geralmente, grupos de trabalhadores atacavam uma fábrica
específica destruindo ou inutilizando as máquinas principais, justamente
aquelas que eram imprescindíveis para a produção. Ao agirem assim,

85
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

impediam o processo produtivo. Faziam isso para servir de exemplo


contra maus patrões e invocavam um personagem, General Ludd, como o
líder da revolta. A repressão não se fez demorar, e o movimento ludista foi
cedendo espaço para um movimento sindical melhor organizado.
Durante o século XIX, com o avanço das lutas dos trabalhadores,
teorias sociais se sucederam, procurando não só explicar o capitalismo
e a sociedade, mas também fornecendo instrumentos para modificar a
situação social, mesmo porque ela era dramática. Vejamos um pouco um
bairro da cidade de Londres por volta de 1840:

Nas ruas a animação é intensa, um mercado de legumes e frutas de má qualidade se


espalha, reduzindo o espaço para os passantes. O cheiro é nauseante. A cena torna-se
mais espantosa no interior das moradias, nos pátios e nas ruelas transversais: ‘não há
um único vidro de janela intacto, os muros são leprosos, os batentes das portas e janelas
estão quebrados, e as portas, quando existem, são feitas de pranchas pregadas’. Nas
casas até os porões são usados como lugar de morar e em toda parte acumulam-se
detritos e água suja. ‘Aí moram os mais pobres dentre os pobres, os trabalhadores mal
pagos misturados aos ladrões, escroques e às vítimas da prostituição. (BRESCIANI,
1982, p. 25).

Essa descrição, que se aproxima daquelas que se fazem das favelas


brasileiras, dá uma dimensão da situação na Inglaterra durante o século
XIX e da degradação que a massa trabalhadora atingiu nas cidades
industriais. As lutas por melhores condições de trabalho e de vida duraram
mais de dois séculos no capitalismo, e provavelmente é por isso que as
descrições sobre a situação do trabalhador ao longo desse período não
dão a verdadeira dimensão do que várias gerações enfrentaram nos seus
cotidianos.
Pensadores e militantes operários buscaram soluções para o
problema. Podemos dividi-los em três grandes correntes, que já foram
vistas em outros capítulos: o socialismo utópico, o socialismo científico e
o anarquismo.
A primeira corrente, a do socialismo utópico, foi assim chamada por
Marx porque ele a entendia como fruto de quimeras e sonhos utópicos
por parte de socialistas. Os principais pensadores desta corrente foram:
• Robert Owen (1771-1858), industrial inglês que queria dar
melhores condições de trabalho aos operários, educando-os e pagando
melhores salários. Instiga-os a fundarem cooperativas e tenta a criação
de uma vila segundo a sua utopia nos Estados Unidos, mas fracassa.

86
UNIDADE 4
História Contemporânea I
• O Conde Saint-Simon (1760-1825), que era um filósofo e pensador
das causas sociais. Adepto de um rigoroso planejamento das atividades
industriais por parte do Estado, ele vê na industrialização a possibilidade
de melhorar a vida do proletariado, dando-lhe também educação e
elevação moral.
• Outro socialista utópico foi Charles Fourier (1772-1837). Ele
projetou os “falanstérios”, que eram uma mistura das palavras “falange”,
grupo, e “stérios”, que viria de monastério. A sua proposta era a criação
de pequenas comunidades de 400 famílias, vivendo num único edifício
e de forma autônoma. Os falanstérios poderiam se especializar e assim
ocorrer o comércio entre eles. A vida ali seria comunitária, como, por
exemplo, o refeitório comum. Várias experiências foram feitas, mas todas
fracassaram.
Já o socialismo científico foi o epíteto dado por Marx (1818-1883)
e Engels (1820-1895) para as suas próprias teorias. Nelas caberia o
estudo crítico do capitalismo, compreendendo-se que essa formação é
possível graças à extração da mais-valia, que é o salário não pago aos
trabalhadores. Assim, o capitalismo transfere a riqueza criada pelo
trabalho para o patrão.
Marx entendia que essa forma de exploração terminaria, pois a
concorrência exigiria sempre a extração de mais-valia e esta chegaria a um
termo, tendo em vista que nada poderia mais extrair dos trabalhadores, já
que eles estariam no limite da sobrevivência física. Dessa forma o capital
entraria numa espécie de entropia, isto é, de esgotamento, e a classe
operária acabaria chegando ao poder através de seu partido operário.
Tanto que, no final de sua vida, Marx ajudou a fundar o Partido Social-
Democrata alemão. A teoria marxista influenciou movimentos em todo
mundo e foi a base de todos os governos socialistas no século XX.
A terceira corrente que teve forte influência no operariado foi o
anarquismo. O termo anarquismo vem de duas palavras gregas: aná,
negação, e arché, governo, ou seja, a recusa do governo. Foi Pierre-Joseph
Proudhon (1809-1865) o primeiro a utilizar a palavra num sentido político,
pois ela era associada à ideia de bagunça, confusão. Os anarquistas
acreditavam que os homens poderiam criar uma sociedade na qual não
haveria Estado ou autoridades. Todos poderiam se conscientizar de seus
papéis sociais e as propriedades seriam comuns. Assim, não haveria

87
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

motivo para desejar os bens alheios, pois tudo pertenceria a todos.


Foram feitas algumas experiências com a criação de comunidades
anarquistas, mas falharam. No entanto, essa corrente esteve presente no
meio sindical de vários países, inclusive o Brasil, durante as primeiras
décadas do século XX. A Revolução Russa de 1917, com base no socialismo
marxista, e outros movimentos acabaram suplantando o anarquismo.
Essas correntes das teorias sociais animaram eventos na história
do movimento operário, principalmente no século XIX, com reflexos no
século XX. Assim, desde a Revolução Francesa, trabalhadores buscaram
elementos nas teorias para dar uma base para as suas organizações.
O socialismo utópico animou formas de organização, como vimos,
mas também inspirou o movimento operário. Um dos grandes exemplos
foi o Cartismo, que se iniciou nos anos 30 do século XIX e marcou
profundamente o imaginário das lutas sociais daquele século.

O Cartismo ou o Carta do Povo foi um dos primeiros movimentos modernos do opera-


riado inglês. Ele se baseava numa carta de princípios escrita por William Lovett e Feargus
O’Connor, que nela pediam a inclusão dos trabalhadores na vida política inglesa, já que o
voto era baseado na renda dos indivíduos, o que deixava de fora a maior parte dos trabalhado-
res. A primeira carta enviada ao Parlamento foi rejeitada em 1839. Uma segunda carta foi en-
viada e continha mais de três milhões de assinaturas, o que forçou o Parlamento a reconhecer
algumas leis que amenizavam as péssimas condições de trabalho dos operários ingleses.

Mostrando amadurecimento nas questões sociais, o movimento


operário europeu encetou uma série de revoltas em vários países e deu
a impressão, num primeiro momento, de que uma vaga revolucionária
popular derrubaria os governos estabelecidos. Ela foi especialmente
forte na França, mas ocorreu também na Alemanha, Polônia, entre outros
países. Demonstrou a força dos trabalhadores e que as forças econômicas
deveriam fazer grandes concessões para conter o ímpeto revolucionário,
e foi o que aconteceu. Aos poucos, governos e capitalistas cedem espaço
ao movimento operário. É o início do estado de bem estar social ainda
dominante na Europa.

A Revolução de 1848, na França é resultado de várias linhas de acontecimentos, mas o


peso da economia se fazia sentir especialmente num reino que sofria os efeitos da rápida in-
dustrialização do século XIX. O país era governado por uma monarquia que estava deslocada
em relação ao seu tempo. Ela ainda sonhava com os dias de glória de Luís XIV, porém em

88
UNIDADE 4
História Contemporânea I
pleno século XIX. A cidade de Paris era quase inabitável, dadas as suas condições de exis-
tência, e uma grave crise econômica assolava a população. Em fevereiro de 1848, violentas
manifestações ocorrem em Paris. A reação do governo também foi violenta, precipitando os
acontecimentos. A Guarda Nacional também se tornou insurrecta, apoiando os revolucioná-
rios. O rei, Luís-Felipe, vendo a situação sair completamente do controle, abdicou em 24 de
fevereiro e, no dia seguinte, a República foi proclamada.

Em 1871, ocorreu a primeira experiência abertamente anarquista


em Paris. O evento ganhou o nome de Comuna de Paris, e mostrou como
o anarquismo era influente no meio operário na Europa, pelo menos até
início do século XX. A organização e as lutas dos chamados communards
(os revoltosos da Comuna) colocaram em prática a experiência ácrata,
alimentando fortemente o imaginário dos trabalhadores na concepção de
um possível governo comunista.

A Comuna de Paris foi um movimento popular que tomou conta da cidade durante
quarenta dias. Teve início em 18 de março, com o esforço popular de enfrentar o exército
alemão que marchava em direção à cidade. O exército do imperador Luís Napoleão estava
sendo derrotado. Com a insurreição popular, caiu o governo de Bonaparte. O governo
francês, mesmo derrotado, atacou os communards. Sem condições de retomar a cidade por
si próprio, apelou ao inimigo, selando rapidamente uma paz prejudicial à França, mas der-
rotando finalmente os revoltosos. Execuções sumárias foram feitas e uma dura repressão se
abateu sobre a população parisiense.

As referidas teorias deram envergadura para o movimento dos


trabalhadores durante os séculos XIX e XX, modificando totalmente a
paisagem da economia capitalista e das fábricas. Hoje, podemos dizer que,
sem essas lutas, não teríamos a sociedade que conhecemos e estaríamos
mais próximos das condições de existência das primeiras gerações de
trabalhadores.

89
UNIDADE 4
Universidade Aberta do Brasil

Você estudou, nesta unidade, a genealogia das lutas sociais empreendidas em torno
do binômio capital/trabalho, responsáveis por moldar uma parte importante da experiência
sociopolítica da contemporaneidade. Viu também como essas lutas se pautaram por
discussões teóricas, às vezes excludentes, e por ações práticas ao longo do século XIX.

• Leia os artigos indicados abaixo, para uma melhor compreensão comparativa da experiência dos
movimentos sociais.

1. ADDOR, Carlos Augusto. A greve de 1903: primórdios do movimento operário no Rio de


Janeiro. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2007, vol.14, n.2 [cited 2010-10-14], pp. 635-639.
Disponível em: http://www.scielo.br/

2. FERRERAS, Norberto O.. A formação da sociedade Argentina contemporânea: sociedade


e trabalho entre 1880 e 1920. História [online]. 2006, vol.25, n.1 [cited 2010-10-14], pp. 170-181.
Disponível em: http://www.scielo.br/

3. SCHMIDT, Benito Bisso. O Deus do progresso: a difusão do cientificismo no movimento


operário gaúcho da I República. Rev. bras. Hist. [online]. 2001, vol.21, n.41 [cited 2010-10-14], pp. 113-
126. Disponível em: http://www.scielo.br/

• Leia e resenhe o livro “As utopias românticas”, de Elias Thomé Saliba (São Paulo: Estação
Liberdade, 2003)

90
UNIDADE 4
História Contemporânea I

91
UNIDADE 4
92
Universidade Aberta do Brasil

UNIDADE 4
História Contemporânea I
PALAVRAS FINAIS
Neste livro você estudou alguns aspectos de História Contemporânea.
Como dissemos, eles foram fruto de escolhas teóricas e historiográficas.
Revolução Francesa, Revolução Industrial, Nações e Nacionalismo e
Movimentos Sociais foram fontes para discussões sobre a nossa própria
disciplina e como devemos construir a narrativa em história.
Muitas vezes, tomamos o processo histórico como natural, como se
ele devesse ocorrer de qualquer maneira, a despeito das nossas vontades e
intenções, ou melhor, a despeito do que fazemos. Ao fazermos a crítica desta
noção, buscamos compreender que o termo “processo” é um equívoco, pois ele
denota um sistema em funcionamento, e não é essa a percepção que temos da
história. No lugar dessa palavra poderíamos usar outra, tomada emprestada
do sociólogo Norbert Elias: configuração. Ela implica uma maior mobilidade,
sem necessariamente indicar uma necessidade. Uma configuração social ou
histórica nos remete às possibilidades que os próprios homens têm diante de
si, portanto não nos impõe uma ideia de que o que fazemos está subordinado
a um eixo de acontecimentos que nos ultrapassa.
A Revolução Francesa, por exemplo, não era fatal; se ela aconteceu, não
foi porque a história humana é um processo que caminha fatalmente para
um fim, mas foi o resultado de várias séries acontecimentos fortuitos e que
desembocaram num determinado evento. Eles não estavam determinados de
antemão e muito menos foram imprescindíveis. A história, dessa forma, não
é causal, mas casual.
Essa foi, em grande parte, a nossa medida. Os acontecimentos que
acabamos de estudar marcam somente a convenção historiográfica e não a
ordem de importância, pois para os nossos destinos, muitas vezes, eventos
que nem merecem destaque nos grandes livros são mais importantes do que
Revoluções, pois passam e o que é mais comezinho perdura.

Até a próxima.

93
PALAVRAS FINAIS
História Contemporânea I
REFERÊNCIAS

ABRAMOVICI, Jean-Christophe. Le livre interdit. Paris : Éditions Payot


& Rivages, 1996.

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Reflexões sobre a


origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rui de Janeiro: Forense-


Universitária, 1983.

BACZKO, Bronislaw. « Utopia » in Enciclopédia Einaudi, vol. 5, Anthropos/


Homem..Ruggiero Romano (dir.). Lisboa: Casa da Moeda/Imprensa
Nacional, 1985.

BERGER, Stefan, DONOVAN, Mark & DONOVAN, Kevin, eds. Writing


national histories; Western Europe since 1800. New York, Routledge, 1999.

BRESCIANI, Maria Stela. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da


pobreza. São Paulo: Brasiliense, 1982.

CONTE, Giuliano. Da crise do feudalismo ao nascimento do capitalismo.


Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1979.

CHARTIER, Roger. Une histoire de la culture écrite » in Annales, Histoire,


Sciences Sociales. 56e année, nº 4-5. Paris : EHESC, 2001.

CROSSLEY, Ceri. History as a principle of legitimation in France (1820-


48). In: BERGER, Stefan, DONOVAN, Mark & DONOVAN, Kevin,
eds. Writing national histories; Western Europe since 1800. New York,
Routledge, 1999, p. 49-56.

DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução; o submundo das letras


no antigo regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

95
REFERÊNCIAS
Universidade Aberta do Brasil

DE DECCA, Edgar. O nascimento das fábricas. São Paulo: Brasiliense,


1982.

DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Lisboa:


Editorial Presença, 1982.

FOUCAULT, Michel. Les mots et le choses. Paris : Gallimard, 1966.


_____. A arqueologia do saber. RJ: Forense-Universitária, 1987.

FURET, François. Penser la Révolution Française. Paris : Gallimard, 1978.


______. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos. Estudos


Históricos, nº 1, jan/jul, pp. 527, 1988.

HEERS, Jacques. O trabalho na Idade Média. Publicações Europa-


América, 1988.

HOBSBAWM, Eric. A era do capital. 1848-1875. São Paulo: Paz e Terra,


1982.

HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções, 1789-1848. São Paulo: Paz e


Terra, 1986.

IGGERS, Georg G. Nationalism and historiography, 1789-1996; the


German example in perspective. In: BERGER, Stefan, DONOVAN, Mark
& DONOVAN, Kevin, eds. Writing national histories; Western Europe
since 1800. New York, Routledge, 1999, p. 15-29.

KARVAT, Erivan Cassiano. A historiografia como discurso fundador;


reflexões em torno de um Programma histórico. Revista de História
Regional 10(2); 47-70, inverno, 2005.

LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado Monárquico. São Paulo: Cia das


Letras, 1994.

96
REFERÊNCIAS
História Contemporânea I
LEFORT, Claude. Essais sur le politique, XIXe - XXe siècles. Paris : Éditions du
Seuil, 1986.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa: Editorial


Presença, 1980.

______. História do Ocidente Medieval. Lisboa: Editorial Presença, 1983.

______. A bolsa e a vida. São Paulo: Brasiliense. 1989.

MACAULAY, Thomas Babington. Critical and historical essays, vol ii. London,
1866.

MÉTAYER,  Cristine. «  Normes graphiques et pratiques de l’écriture. Maîtres


écrivains publics à Paris aux XVIIe et XVIIIe siècles.  » in Annales, Histoire,
Sciences Sociales. 56e année, nº 4-5. Paris: EHESC, 2001.

MONTALVÃO, Sérgio. O sentido da nação: parâmetros e intencionalidades


na escrita da história de Caio Prado Júnior. Revista eletrônica Cadernos de
História, Ano I, n.º 2, setembro de 2006. Disponível em www.ichs.ufop.br/
cadernosdehistoria, acessado em 16/09/2010.

SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Estação Liberdade,


2003.

STUCHTEY, Benedikt. Literature, liberty and life of the nation; British


historiography from Macaulay to Trevelyan. In: BERGER, Stefan, DONOVAN,
Mark & DONOVAN, Kevin, eds. Writing national histories; Western Europe since
1800. New York, Routledge, 1999, p. 30-48.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

97
REFERÊNCIAS
História Contemporânea I
NOTAS SOBRE OS AUTORES

André Luiz Joanilho


Sou Doutor em História Social pela UNESP/SP e professor
associado do Departamento de História da Universidade Estadual de
Londrina. Fiz pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences
Sociales. Sou autor, entre outros, de Revoltas e Rebeliões (São Paulo:
Contexto, 1989); História e Prática (Campinas: Mercado das Letras,
1997); O Nascimento de uma nação (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2004)
e também co-autor da coleção Hoje é dia de história (Curitiba: Positivo,
2007). Atualmente sou professor associado da Universidade Estadual
de Londrina.

Cláudio Denipoti
Sou Doutor em História pela UFPR, professor associado do
Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa
e fiz pós-doutorado na Universidade de São Paulo. Autor de Páginas de
prazer; a sexualidade através da leitura no início do século (Campinas:
Editora da Unicamp, 1999); co-organizador, com Geraldo Pieroni, de
Saberes brasileiros; ensaios sobre identidades - séculos XVI a XX (Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2004) e, com Clóvis Gruner, de Nas tramas da
ficção; História, Literatura e Leitura (São Paulo: Ateliê Editorial, 2009).

Joanilho e Denipoti publicaram O Jogo das possibilidades; ensaios


em história cultural (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 1997) e co-organizaram
Leituras em história (Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2003).

99
AUTOR

You might also like