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B Perce de ita da unis lidades de interface entre histria da ciGncia © ensino © centre ciéncia, téenica ¢ teenologia na historia, procurando focalizar debates atuais na educagiio em ciéncias. Complementando a série tém-se os volumes teméticos, ‘Cada um desses volumes traz estudo sobre episddio, es- crito por especialista, com base em pesquisa no eampo da histéria da ciéncia, Assim, a Série Temas em Histéria da Cigncia procura responder aos professores interessados em levar a histéria dda cigneia para a sala de aula, com base em materiais de s6lida fundamentagao, Para este volume selecionamos alguns entre os vérios per- cursos relevantes na longa e densa Histéria da Quimica, Esperamos que, ao acompanha-lo,o letor forme uma nova vvisdo da quimica como cigneia histérica © socialmente construida a partir de operagies ¢ reflexes sobre a mate ria em diferentes épocas e culturas. ‘Maria Helena Roxo Beltran Coordenadora do Projeto O Tempo dos ‘Alqu imistas 41 INTRODUGKO ‘oje em dia, pode-se considerar a quimica como ‘uma cigncia que estuda a matéria e suas trans- formagbes. Essa ideia, no entanto, & bastante limpta e, além disso, ndo expressa de forma expliita um ‘aspecto da quimica no qual, talver, resida exatamente uma /pticularidade dessa cincia, Esse aspecto & o trabalho em Jiboratirio. Estudar e refletic sobre a matéria e suas trans- Voit vcorre juntamente com o operar com a materia. sentido, pode-se dizer que uma caructeristca parti- ‘Jn quimica é ssa forma de “pensar com as mos”! 10 recuse de histrin dn uica Entretanto, essa forma de pensamento jf se observa- ‘va hé muito tempo, entre os pensadores que se voltavam a cestudar e explicar a composigio da matéria e suas relagdes ‘com 0 universo. Porém, vivendo em outras épocas e, por- tanto, tendo por base visdes de mundo muito diferentes da nossa, esses pensadores niio podem ser considerados qui- rmicos, no sentido atual da palavra, Foram magos, alqui- mistas, médicos e filésofos naturais que também “pensa- vam com as mfos”, mas com propésitos bastante diversos daqueles dos quimicos de hoje. Operundo com os materiais ¢, a0 mesmo tempo, refletindo sobre essas operagbes, esses pensadores elabo- raram diferentes ideias sobre a composigfo ¢ as transfor mages da matéria, algumas das quais serio abordadas neste capitulo, Entretanto, nem sempre as novas ideias propostas foram simples complementagdes das anteriores. Houve ocasides em que se observaram contraposigdes de idcias envolvendo, inclusive, debates bastante acalorados. Algumas dessas discussdes também serio aqui apresenta- das. Inicialmente, serdo apresentados aspectos sobre a formagao do pensamento alquimico na Antiguidade, enfo- ccando particularmente alguns dos elementos filossticos, misticos e priticos, entre outros que contribuiram para a claboragao de ideias sobre a composigZo e as transforma Ges da matéria, Em seguida, sero apresentados alguns dos desenvolvimentos ¢ remontagens das ideias alquimi- ‘eas sobre a matéria que ocorreram até os séculos XVI XVI Nesse periodo observava-se um scirrado debate de © tempo dos Nauinisas 11 ideias sobre a composigdo da matéria em que se opunham “aristotélicos” e “espagirisas”. Como seed visto, em meio ‘a esse debate foram apresentadas ideias mecanicistas para explicar a composi¢do © as transformagées da matéria, [propostas como uma altemativa que resolveria a diseus- ‘slo, Entretanto, maior destaque seri dado, no capitulo seguinte, aos debates ligados a “quimica flogistica” do século XVIII, pois seria em meio a essa discussio que se originariam as ideias da quimica modema propostas por Lavoisier. Assim, este capitulo & um convite a se percorrer, com a orientagiio de alguns pensadores, um longo caminho fem que homens mulheres, “pensando com as miios”, claboraram ¢ discutiram diferentes idcias sobre a compo- sigdo € as transformagses da matéria, 1.2. AALQUIMIA NA ANTIGUIDADE E A TEORIA DOS QUATRO ELEMENTOS Sintese peculiar, em que se mesclavam e interagiam conheeimentos sobre praticas artesanais egipcias, hibridi- rages de ideias misticas © religiosas orientais e ociden- lais, além de concepedes filoséficas gregas, a alquimia sloresceu provavelmente nos primeiros séculos da era ct {i Embora suas origens possam ser muito mais remotas, 6 dessa época que datam os mais antigos textos, que so- breviveram até nossos dias, nos quais foram identificadas Ioias alquimicas. O Egito teria sido o bereo onde essas Ilias teriam se desenvolvido, a partir de conhecimentos 12. Peeasos de nia da quien provenientes de diversas origens. Especialmente a cidade de Alexandria, fundada em 332 a.C., teria reunido condi- ‘gdes para elaboragio dessa sintese. Esse efervescente Centro comercial e cultural da época atrala estudiosos e artesdos das mais variadas origens, o que possibilitava 0 cencontro de diferentes tradigdes cultura, (© mais antigo dos textos alquimicos que chegou aos nosso dias foi atribuido a Bolos de Mende, chamado as vezes também de (pseudo) Demécrito. Esse sibio, que teria vivido nos primeiros anos de nossa era, escreveu um tratado intitulado Physica et Mystica, no qual se apresen- fam tanto receitas artesanais como reflexdes de ordem religiosa ¢ filoséfica relacionadas as transformagdes da rmatéria, As receitas contidas nesse texto foram também ‘encontradas nos papiros de Leiden e de Estocolmo, hoje cconsiderados como fontes basicas dos virios receitudrios priticos ¢ “livros de segredos” que se sucederam. As re- ‘ceitas apresentadas nesses papiros referem-se a procedi- rentos de preparagio de pigmentos e corantes,tingimento de metais © produgo de imitagdes de pedras preciosas, Entretanto, enquanto 0s papiros tratam apenas dessas receitas, 0 texto de Bolos de Mende relaciona a elas algu- ‘mas especulagBes. Estudos sobre as c6pias desses textos {que chegaram aos nossos dias levam a admitir que 8 papi- 10s de Leiden de Fstocolmo sejam anteriores a0 Physica er Mystica de Bolas de Mende. Isso levou a consideragio de que as ideias dos primeiros alquimistas alexandrinos {rariam em sua base as préticas artesanais egipcias, De filo, Physica et Mystica inivia descrevendo © tempo dos Nevinisas 13 receitas de tingimento para logo entlo apresentar um twecho bastante especulativo, que trata de temas como a revelagio de conhecimentos secretos ¢ talvez, perdidos, saber como pedir permissio aos daemon (guardides das coisas da Natureza) para se operar sobre @ matéria, © pro- ‘curar harmonizar as naturezas, Assim, considera-se que os procedimentos priticos deseritos nesse texto seriam reali= zados nao s6 para produgiio de pegas de artesanato. Atra- ‘vés deles o alquimista operaria sobre a Natureza, com a ppermissio de seus guardies, sabendo como buscar a hharmonia, a partir da revelagio de conhecimentos secretos ce sagrados. © estudo sobre origens das diversas ideias que, associadas a operagdes priticas utiizadas nas transforma ‘odes de materiais, participariam da formulago do pens mento alquimico € muito complexo. As fontes origi sobre as quais se elaboram esses estudos so raras. Além disso, a maioria desses poueos textos alquimicos sobrevi- vveram a0 tempo em cpias ¢ tradugtes, nas quais inevita velmente 0s contetidos originals softeram alteragdes. Fntretanto, & possivel identificar algumas dessas idcins, ‘como sera visto nos t6picos seguintes, nos quais cada um Jos principais componentes do pensamento alquimico — priticas artesanais, ideias mégicas ¢ religiosas, e concep- [bes lilosSficas sobre composigdo e transformagdes da ‘hatéria ~serd considerado por sua vez. 14 Peres de nstvia da quince 41.24 As préticas artesanais 0 saber como transformar materiais, como realizar _adequadamente os procedimentos envolvidos nessas trans- formagies, fiz parte do corpo de conhecimentos que jé ha muito tempo se costuma chamar de “artes”. Entre as artes relacionadas a transformagbes qualitativas da matétia, a ‘cerfica e a metalurgia so das mais antigas. Saber como ‘cozer © barro, oblendo-se um material mais resistente, permitiu fazer utensilios para armazenar ¢ transportar égua e alimentos, Mas esse conhecimento também possibilitou confeccionar méscaras, estatuetas e outros objetos envol- ‘vidos em rituais sagrados ‘As artes da metalurgia ¢ da mineragao tinkam elas préprias caracterstices ritualsticas, pois fundamentavam- se na concepglo de que a terra fosse viva ¢ fonte de vida, ‘Ao ser fecundada, de acordo com ritual adequado, da terra viriam as colheitas que sustentariam a comunidade. Além disso, em seu ventre seriam gerados ¢ aprimorados os ‘metais, de maneira semelhante ao que ocorre com as plan- tas na superficie, Provavelmente seria essa conceppao que daria origem a uma das ideias que, posteriormente, viriam 1 fundamentar a alquimia: ou seja, a convicgio na possibi- lidade de se transformar um metal em outro ¢, especial- ‘mente, um metal comum em ouro, Assim, 0 ato de retirar (05 metais do ventre da Mae-Terra ~ 0 trabalho do mineiro era considerado sagrado. Em seguida, com o tratamento ‘do minério e sua transformagdo em metal reluzente, atrax ‘vés de téenicas metaligicas, realizava-se uma operagio (© tempo dos Aginisas 15 ‘maravithosa que, de outra forma, s6 seria possivel pela gestapio daquele material de partida no seio da terra, Ao rmetalurgista — como ao alquimista, mais tarde ~ eaberia a tarefa de substituie o tempo, ou Seja, realizar rapidamente ‘6 que na Natureza demoraria décadas ou séculos para Assim, além de serem muito importantes para a pro- prin preservagio da comunidade, as artes que permitiam iransformar os materiais eram conhecimentos altamente vvalorizados e relacionados a rituais sagrados. Esses eonhe- cimentos eram, portanto, preservados pelas comunidades através das geragées, Entretanto, com o erescimento das comunidades, esses valiosos saberes passaram a sev guar- dados apenas por alguns membros. Feiticeiros ¢ artesios tomnaram-se depositirios dos saberes ¢ das tradigies da ccomunidade, encarregando-se de sua preservagio. Como ‘num processo de iniciagdo, os segredos envolvidos nas farfes eram transmitidos apenas a aprendizes escolhjdos ‘que realizavam as pritieas repetidas vezes, © recebiam oralmente as instrugdes sobre os procedimentos. ‘A metalurgia do cobre parece ter sido praticada jé por volta de 4200 a.C., na regido que hoje corresponde 20 Ira, A malaquita (carbonato de cobre) teria sido o principal Iningrio de partida para a obtengdo desse metal. Ja a side- Turgia ~ a metalurgia do ferro ~ requerendo fomos e pro- ‘codimentos especiais para reduetio da hematita [6xido de {ro (IL), 88 se desenvolveu por volta de 1400 a.C., entre fs hititas. Entretanto, esse metal logo passou a ser ampla~ Wile lilizado, Entre esses dois marcos de tempo, desen- 16 Perciros 6 sta da quiica volveram-se, porém, tenicas para obtengiio de outros mmeiais ¢ de ligas metilicas, tais como o bronze, largamen- te tilizado entre os eaipci Desde esses tempos remotos ¢ pelo menos até o ini cio da Idade Modema, foram conhecidos e estudados de diferentes modos sete metais: ouro, prata, cobre, mereitio, chumbo, estanho e ferro, Esses metais vieram a ser associ- fados aos sete corpos celestes mais préximos da Terra: 0 Sol, a Lua ¢ os cinco planetas observiveis a olho nv. Essa associago dos metais aos planetas teve sua origem muito provavelmente na Babilénia, onde o outo ere relacionado 0 Sol ea prata d Lua. Tais eonsideragées astrolégicas assumiram importincia crescente por volta dos séeulos VI © V a.C. Mas, mesmo em textos publicados no século XVIII, encontram-se termos tais como, por exemplo, “agicar de Saturno” — utilizado para denominar a substin- cia hoje conhecidas como acetato de chumbo (I) A obtengio de materiais que hoje chamariamos de pigmentos e corantes, bem como sua wlilizagdo no ting ‘mento de tecidos, de cerimica, e também como cosméti- 0s, é outra arte muito antiga, datando pelo menos de 3000 .C. Durante o giltimo milénio antes da era erist, lizagao de corantes foi associada & metalurgia, desenvol- vendo-se dai a arte de tingimento de metais. Reeobrindo- se metais comuns com cores ¢ brilhos do ouro ou da prata, era possivel produzir boas imitagdes desses metais valio- 808, Imitagées de pedras preciosas também eram frequen- femente conteceionadas. Essas fasificagSes exam to bem fits que chegavam a “enganar os entendidos”, como © tempo sos lainisas 17 ‘expresso nos papitos de Leiden e de Estocolme, Entretan- to, mesmo as mais perfeitas falsificagSes podiam ser desmasearadas pelo método da copelagio, desenvolvido no Egito por volta de 500 a.C.? ‘Assim, por volta dos itimos séeulos anteriores & era cristt, havia-se acumulado vasto conhecimento sobre as artes que envolvem transformagdes de mateiais, tais como as j@ mencionadas cermica, mineragio © metalurgia, tingimento de tecidos e de metais,fabricagdo de imitagées de ouro, prata e pedras preciosas, bem como a arte da per- 1maria € valiosos conhecimentos sobre_propriedades curativas'e venenosas de vegetais. Guardados ¢ trans los ciosamente entre arteslos, feiticeiros © sacerdotes, ‘esses conhecimentos tiveram suas origens e permaneciam ligados a uma visio vitalista do universo, de acordo com a {qual todas as coisas tinham vida e se relacionavam, Seria Wentto dessa visto de mundo e tendo como um de seus Pilares os conhecimentos acumulados sobte as_piticas Ty sopioic 6 um mttdo viedo pare separa oto © pte de on mss, Parn fas oy amon ara com chunbo ‘ie ek de mater poo, al orn nea de oi = Fund ox metas mops sob serene de a re i xd mos qu se miata a io de cham. Ess finde vids abort op ean mo exo pea Wis gus nan ae sidan prove, i ot 08 pat ip desaes dels met dependendo de compo incl de se clreto de pata, que & absorvido pela cope fo permanece sem rags 18 recursos de hein ds euimica ‘artesanais que, durante 0 periodo alexandrino, viria a ser elaborado o pensamento alquimico. 1.22 Cosmologia e composigéo da matéria Varias foram as vertentes que contribuiram para a claboragao do pensamento alguimico. Uma delas, como ja mencionado, foi a astrologia ~ baseada muito provavel- ‘mente nume religito astral caldeia que supunha 0 envio de boas ou mas emanagdes dos corpos celestes terra, de acordo com sua posigio no zénite, Outra foi a magia, forma de controle das Forgas naturais, ou seja, das entida- des benignas e malignas que habitavam o universo vitals la, Esse controle era possibilitado através de rituais © ‘encantamentos, técnicas que eram praticadas com desen- voltura pela tribo meda dos mégoi, dai o nome “magia” atribuido a essa arte, O Zoroastrismo foi outras das formas dda mistica oriental a contribuir para a elaboragao do pen= samento alquimico. Essa religifo, que tem sua denomina- fo derivada do nome de seu fundador, o legendio persa Zoroastro, admitia que o eaminho para o bem no universo © no préprio homem estaria no equilibrio entre forgas ‘opostas, tais como luz/escuridio, — macho/fémea, amor/6dio, ete. Deve-se notar que todas essas vertentes relacionadas ‘acima trazem em sia ideia do universo como uma rede em que todas as coisas estariam relacionadas ~ como, por exemplo, 08 corpos celestes © a terra, no caso da astrolo- ga. Na magia, admitia-se que forgas naturais agissem a0 © tempo dos aquimitas 19 ‘mesmo tempo em diferentes corpos, entidades e locals, de ‘modo que, no ritual, 20 se operar sabre umm objeto, agia-se tamisém sobre o alvo pretendido. O Zoroastrsmo também mite a relagdo entre o universo e 0 homem, pois em ambos o hem seria conseguid pelo equiltbrio dos opostos. Na alguimia, essa rede de relagdes teria sua sintese mator na analogia macrocosmo (universe) / microeosmo (ho- nem): no homem estaia conti tudo 0 que hé no univer- 50, OU seja, © Ser humano seria como um universo em miniatura Mas, na claboragao do pensamento alquimico, ‘ossas vertentes misticas foram hibridizadas com o raciona- Jismo grego, expresso em algumas das ideias de Plato € principalmente nas concepgées de Aristoteles sobre os flomentos, 3 0s elementos aristotélicos Para Aristoteles, a matéria seria um substrato amorfo i infiundido de quatidades imateriais, daria origem sos jontos. Essas qualidades primérias seriam: quente, | limido © seco; associadas duas a duss no substrato fia, originariam os elementos fogo, ar, gua e terra , 0 fogo estaria associado as qualidades “quente” © 10 ar (eria como atributos ser “quente” o “imido”; a mid” e “io”; ea tera, “trio” e “seco”. Entretan- ‘oul um dos elementos predominaria uma das qua J no fogo 0 “quente", no ar o “imido”, na égua 0 na terra 0 “seco”, Essas ideias podem ser expres- 20 parcurss de ita de inca sas conforme o diagrama que se segue. co 00 an eae nid as Analisando-se esse diagrama percebe-se a ideia de ‘que cada par de elementos estaria relacionado por uma qualidade comum, Por meio dessa qualidade comum, os elementos poderiam se transformar uns nos outros. Assim, por exemplo, seria possivel transformar terra em sigua, pois ambas apresentam a qualidade do “fio”; através da “wmidade”, a gua seria transformada em ar, © assim por dante, Além disso, nesse diagrama, pode-se notar pares ‘opostos de qualidades localizados nos vértices também ‘opostos do quadrado que as contém. Quente € fro, timido € sec0, so pares de opostos que no poderiam conviver determinando um elemento, De acordo com essas ideias, todos os materiais en- ccontrados na Natureza seriam constituidos pelos quatro elementos, mas em diferentes proporgtes. Isso explicaria a dliversidade dos materisis, bem como as suas transforma- © tempo dos Auinstas 21 .96es Assim, por exemplo, um material Iiquido teria em sua composigo grande proporgdo do elemento gua; j4 um material s6lido seria constituido principalmente pelo elemento terra. Por se considerar a matéria como um substeato amorfo no qual estavam infundidas as qualidades prim- rias, as transformagdes dos materiais poderiam ser expli- ceadas como modilicagdes nas proporgdes dessas qualida- dles presentes no substrato material. Assim, a fusdo de lum s6lido poderia ser interpretada em termos de uma (ransformagao do elemento tera (frio e seco), que compo- ria 0 s6lido, no elemento igua (fri e ‘imido), que partici paria do liguido. Assim, um aumento na “umidade” e, portanto, uma diminuigao na “secura” do s6lido de partda, ‘xplicaria sua transformagZo em Liquido. De modo seme- Ihante seria possivel explicar a evaporagiio de um liquido, fssoviando esse processo a transformagdo do elemento "Yigua” em “ar”, ou seja, pela diminuigdo do “fio” e eovit ‘oquente aumento do “calor” presente naquela matéria. Seria particularmente nessa concepgo sobre a com igo da matéria que viria a se fundamentr filosofica- ca ideia alquimica da transmutagao de metas. J4 que Jos os’ metsis eram consttuides do mesmo substrato eral amorfo, supunha-se que modifieando-se as quali os moles infundidas seria possivel transformar, por nplo, chumbo em ouro. Para isso, submetia-se o mate- ie partida a tatamentos nos quais frequentemente ‘nlicionados outros materiis. Por exemplo, entre 0s nis uilizados nos primeiros tempos da alquimia 22 Pereursos de hist ds quien estaria um liquide, a “égua divina”, Menges a essa “gua” encontram-se em eseritos atribuides a Zézimo, alquimista grego que viveu no terceiro séeulo da Era Cris- 1. Pesquisadores atuais supdem que essa “gua diving” seria uma solugo de polissulfetos, que agiria sobre os ‘metais de modo a mudar sua cor. 41.24 A alquimia alexandrina Seria também a partir dos textos deixados por Zézimo que chegariam a nds informagées sobre outros alquimistas anteriores a ele. Além do jé citado (pseudo) Demécrito, Zézimo reverencia Maria a Judia, a quem atti- bbui a invengao de diversos aparatos de laboratsrio, entre (6s quais 0 “banho-maria” (banho de aquecimento com ‘agua quente) — que teria recebido essa denominagio numa teferéncia a sua criadora. Também teriam sido desenvol- Vidos por ela 0 alambique de trés bicos, uliizado na obtengio de aguas sulfurosas, e também 0 kerotakis, um tipo bastante sofisticado de sublimador, ‘Ainda de acordo com Zézimo, tanto Maria como (pseudo) Deméerto teriam sido diseipulos do mago persa Ostanes. Entretanto, & muito difieil que esse dado seja veridico, pois hii uma grande diferenga de tempo entre 0s Periodos em que cada um desses pensadores viveu. Porém, 4 influéneia da magia oriental, percoptivel em ideias como 4 scxualizagio da matéria ou a busca de controle dos pro- ‘eessos naturais, € observada nos poucos fragmentos que restaram da obra de Maria. 1é na obra de (pseudo) Demé= © tempo dos Aiqinstas 23 crit transparece um outro tipo de preocupagifo, com énfa- se nas priticas artesanais dos ourives e buscando rel niclas & astroogia. ‘esse perfodo remoto, em que os primeiros alqui rmistas elaboravam seu modo peculiar e complexo de ope- ror ¢ refletir Sobre a matéria e suas transformagies, teve origem a ideia do que viria a ser conhecido como “pedra filosofal”, De acordo com Z6zimo, Agatodaemon, diseipt- lo de Maria, teria se referido a uma “pedra que nto € pe- rw", eapaz de provocar a transformago dos metais co- uns em ouro ou prata. Seria um material de composigio ¥ origem desconhecidas que, mesmo apresentando a apa Fincia de uma pedra, podia, entretanto, ser dissolvido. Depois de Zézimo, a alquimia iré se cristalizar como 11 tworia mistica, afastando-se da investigagao sobre a intra, Dessa forma, as pritices de lnboratério passaraim sr consideradas secundérias e os conhecimentos alqui- vos tormaram-se estanques. Os alquimistas alexandrings sara a ser considerados autoridades méximas e irref- sno assunto, ¢ os comentadores que se seguiram, (0 Olimpiodoro e Sinésio, ja nfo apresentariam interes io desenvolvimento das priticas alquimicas, Somente alguns séculos mais tarde & que as ideias © flquimicas. seriam retomadas © reelaboradas i florescente cultura arabe. 24 Parcs de itira ds nica 1.3. AALQUIMIA ARABE E SUA TRANSMISSAO PARA O OCIDENTE - A TEORIA ENXOFRE - MERCURIO Na sociedade drabe, mercantilista © em fase de cexpansflo, seriam encontradas condigies para novas sinte- ses, reelaborapdes e formulagdes de conhecimentos. Nessa sociedade, a busca pelo novo era extremamente valoriza- dda, enquanto que tanto em BizAncio, quanto no ocidente europeu, com a difusdo das ideias dos patrarcas da Tereja, 1 busca de novas ideias no era vista com bons olhos. ‘Ali predominava a opinido de que as verdades méximas estariam presentes apenas nas Escrituras e nos textos de lumas poueas “autoridades” elissicas, 0 que desencorajava ‘qualquer estudo inovador. A partir da unido das tribos drabes promovida pela difusio da f& pregada pelo profeta Maomé, 0s exércitos islamicos partem pata outras regides. Por volta de 732 d. C. 0 dominio frabe se estendia desde as fronteiras da india ‘© da China, até o norte da Aftica e os Pirineus, eompreen= endo também todo Oriente Médio. Assim, agrogavans se ao mundo érabe diferentes eulturas, tais como a persa, a cegipcia e tragos remanescentes da dominagio greco- romana que permaneciam em regides agora ,anexadas Polos firabes. Assim, retomando, adaptando ¢ transfor ‘mando ideias provenientes dessas diversas origens, os da- bes Viriam a elaborar sua propria cultura, herdeira indineta «das mais antigas civilizagdes. Dentro desse contexto & que seria desenvolvida a alquimia drabe, © tempo dos Aiaiisas 25 434 A alquimia érabo A alquimia drabe no se constituiu somente como uma continuagio das ideias alexandrinas, As operagies € rellexdes sobre a matéria © suas transformagdes foram claboradas entre os drabes também com base em ideias tomadas diretamente de fontes orientais. Um possivel cexemplo disso seria a idein do “elixie” ~ um poderoso me~ dlicamento capaz de curar todas as doengas dos homens & ios metais. Uma concepeao assim abrangente nfo aparece hos textos alexandrinos, mas fazia parte das ideias desen- volvidas independentemente por alquimistas chineses. Foram priticas amplamente desenvolvidas pelos fates as artes envolvidas no trabalho com metais, a ‘iengao de “éguas agudas” (poderosos reagentes cust © ficidos), a preparagio de medieamentos, a preparagio perfumes, €otingimento de teidos e de metas. Mas as flexes sobre a composigo da matéria também if fiea- intctas. Uma das teorias desenvolvidas polos érabes cexplicar a origem, a composigto e as tansformagses Matéria foi a hoje chamada reoria enxofe-merctrio. tla em ideias de possivel origem persa, tendendo a lizar todos os componentes da Natueza, esa teoria In que 08 metas seriam originados pela fecundastio trio por meio do enxofre. Da, através de um pro- Ay fermentagao, seriam gerados os outros metas © no corpus jabiriano — conjunto de textos elabo- javelmente durante o século X, mas atribuidos a 26 Porcusos de hts dt ini Jabir ibn Hayyan, pensador persa que teria vivido no séeu- lo VIII — que essas ideias sobre a composi fencontrariam sua formulag#o no contexto alquimico. De acordo com essas ideias, 0 diversos metais seriam const ‘uidos por proporgdes diferentes de enxapre e merciirio, sendo a proporsio mais perfeita a encontrada no ouro, Sabendo, enlretanto, que ao se combinar enxofre © merci rio comuns se obtém cinabrio (sulfeto de mercério (IN), Jabir admitia que o enxofre e 0 mercirio que paticipariam da formagio dos metais seriam espécies de outra natureza, {das quais os materiais comuns conlecidos pot esses nomes ‘eam apenas aproximagies, As associagies entre metais planetas também se encontram nas ideias atribuidas a esse alquimista ‘No tratamento dos metais, a busca de equilibrio en- tre suas “naturezas” internas e externas permitiria trans- formé-los uns nos outros. Essas “naturezas” seriam os pares de qualidades associados aos quatro elementos. No cenxofre estaciam reunidas as qualidades quente e seco, € no merctirio o ftio © Gmido, Para ajustar as naturezas interna e externa poderiam ser uilizados “elixires” espect- ficos que adicionariam ou retirariam as “naturezas”, de ‘modo adequado. Admitia-se também que se pudesse fazer esse ajuste de “naturezas” de uma 86 vez, através da utili zagto de um “grande elixir” que se prestaria a transmmutar ‘© metal comum em ouro, Outro importante alquimista foi o persa Abu Bakr ‘Muhammad iba Zakariyya (854-925), chamado também de Al-Razi ~ ou Razes, nome latinizado pelo qual esse (© tempo dos Algunisas 27 médica vira ser eonhecido no Ocients. Razesenfatiza- va uma sequéncia de procediments pritces como fun damento da alquimia, pois para ele a experiéncia seria mais importante que a teors, De ncordo com Rass, du rante a realizaglo dessa sequéncia de operagdes alquimi- as que conduvria transmutagao dos metas, mudangas tle cor, textra, forma e cheiro deveriam ser cuidadosa- mente observadas, jd que essus propriedades servriam como gvias que indicavam 0 andamento do procesto de transformagao dos materia. A punfcapdo do material de parida era a primeira operago a ser ralizada, Segua-se a fusdo, através da qua 0 nateral era transformado numa espéce de amélgama e fo soltwva mais fimaga. Esse material era submetdo, lo, & operagio de dssoluedo, a qual podera envolver a 0 cle algumas “igus agudas” que promoveriam a sepa- Jo ou desintegragto do material em suas partes mais js. Por fim era realzada a operasfo de coaulaedo ou iiieaco,considerada como “remogto di gua". Se 0 0 Tosse bem sucedido 0 produto final seria 0 i" Ni maioria das vezes nfo se conseguia chegar a0 %, Mas como os matersis de parida submetidos a nein de operagdeseram muito variados,diversos W podiam ser obtidos. E posivel que Razes tenha itso em conte para clasifear alguns mat stnciasartificialmente preparadas unto, no mundo deabe, hava também pensudo- 28 Perursos de histra da quince Fes que questionavam a validade da alquimia, Entre cles cencontra-se, por exemplo, o filésofo Al-Kindi (séc. IX), Apesar de haver escrito varios trabalhos sobre técnicas cenvolvendo transformagdes da matéria, AF-Kindi parece nao ter se dedicado a busca da transmutagio de metas. ‘Sua obra mais coniecida refere-se & extragio de perfumes, ‘uma pritica em que os érabes se destucaram, ‘Um dos mais relevantes pensadores a levantar erti= cas i alquimia foi o médico Abu Ali Al-Husayn ibn Sina (980-1037), ou Avicena, nome pelo qual ficou conhecido ‘no Ocidente, Importante comentador de Aristételes, foi através de sua obra que as ideias desse filésofo grego fo- ram difundidas no medievo europeu, Além disso, sua obra médica serviu de base para o ensino da medicina na Euro- paaté pelo menos o século XVI. Avicena adotou a teoria emofte-merctirio, através, da qual explicava a formagao dos diferentes metas, adii tindo que cada um deles fosse formado por enxofres & ‘merciirios de vatiados tipos. Assim, por exemplo, parti do-se de enxofre puro com as virtudes do “enxofte branco ‘io inflamavel", este soliificaria 0 mercirio, formando rata; 0 cobre seria formado por merciirio putissimo e emvafre de ma qualidade. Dessa forma, controladas as qualidades do ensofre © do merctirio, a transmutagio de lum metal em outro apresentava-se como possibilidade conereta. Embora crticasse a alquimia, Avicena teria estudado ‘© mesmo praticado a “Arte”. Suas ideias sobre a composi- © tenpo dor Alginietas 29 ‘80 ¢ transformagio dos metais indicam ainda que ele ad- mitia @ possibilidade da transmutagio, Entretanto, ele no acreditava que a transmutagiio pudesse ser aleangada pela “Ante”, mas apenas pela Natureza. Assim como Al-Kindi, Avicena considerava que “o homem nfo pode fazer 0 que sa Natureza faz" — dai suas crticas & alquimia 1.32 A alquimia no mediovo europeu 0s estudos sobre alquimia também se desenvolviam nos dominios frabes da Peninsula Thética,e seria através dlesas fronteiras que esses conhecimentos penetrariam na Europa a partir do séeulo XIL. Nessa regio floresceram grandes eentros de traduglo, tais como Toledo, onde textos arabes foram vertidos para o lam. ‘Tal movimento representaria para grande parte-dos tstudiosos europeus um primeiro contato no s6 cam os teonhecimentos alguimicos, mas mesmo com ideigs elabo- rads na Antiguidade elissiea e que eram desconhecidas Int Europa Ocidental. De fato, durante grande parte da Wade Média, enquanto no mundo drabe se claborava € ilosenvolvia uma cultura riquissima, a Europa ocidental jnssava por um longo periodo de letargia cultural, Penetrando no mundo Europeu, @ alquimia teria no- Udesenvolvimentos e remontagens. A tradugo do pri- io texto alquimico para o fatim foi feita por Robert de er em 1144, Logo foram também traduzidos textos ‘obra jabiriana,¢ livros atribuidos a Razes ¢ a Avicena, 30 Porcusos de Natta da guinea Assim, ao final do século XIL, a maioria dos textos alqui- rmicos frabes, produzidos em diferentes épocas, estavamn

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