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Friedrich Nietzsche Oswaldo Giacoia Junior NIETZSCHE E A CRITICA DO HISTORICISMO Friedrich Nietzsche nasceu na Alemanha em 1844, na casa paroquial de Rocken, pequena comunidade proxima da cidade de Naumburg, nas redon- dezas de Leipzig, Seu pai era o pastor daquela comunidade, sendo Nietzsche neto de clérigos luteranos tanto*pelo lado da ascendéncia paterna quanto materna. Aquele que mais tarde se notabilizaria como o mais implacavel adversario da religiéo e da moral cristas tinha, na infancia, a apelido de ‘o pe- gueno pastor’ — em concordancia plena com uma educacéo domestica que © preparara para a continuagao do sacerdécio, auténtica vocacao familiar. Nietzsche foi aluno do austero internato de Schulpforta, célebre na Alemanha pelo esmero e rigor da formacéo humanista classica, pelo qual rambém passaram os irmaos Schlegel e os poetas Novalis e Holderlin, en- tre outras celebridades. O acesso a Schulpforta foi possibilitado a Niet- zsche gracas a antigas ligacdes de seu pai, na qualidade de preceptor em casa de poderosas familias da aristocracia prussiana. Tendo concluido os estudos nessa instituicao, Nietzsche escolheu as carreiras universitarias de Teologia e Filosofia, de inicio em Bonn, tendo depois se transferido para Leipzig, onde se formaria em Filologia classica, depois de ter abandonado a carreira teoldgica (o que néo ocorreu sem trauma familiar). Em 1869, antes de ter completado 25 anos, assume, por indicagdo de seu orientador e mentor, o fildlogo Friedrich Wilhelm Ritschl (1806- 1876), a catedra de filologia na Universidade da cidade suica da Basileia, Ao contrario do que pode parecer, Nietzsche nao teve nenhuma formacaio especializada em filosofia, nem jamais regeu uma catedra dessa disciplina. Em sua época, filologia classica era uma especializacao cientifica que com- preendia arqueologia, critica historica, historia da filosofia e da literatura e da arte antigas, além do estudo sisteméatico das Imguas classicas. Em Basileia, Nietzsche inicia uma carreira académica acidentada, que abandonara definitivamente cerca de dez anos depois, com 0 amargo sabor da decepeao e da frustracao, para viver dai em diante como nomade, vagan- do pelos Alpes suicos, norte da Italia e sul da Franca, para fugir dos rigores do clima, sob os quais padecia sua fragil savide. Nietzsche nao conheceu Sucesso em sua vida pessoal, afetiva ou profissional, nem como docente nem como escritor. Nao viveu grandes e tormentosos amores (a despeito de seu fracassado envolvimento afetivo-intelectual com Lou Andreas Salomé), nao s€ casou, nao deixou filhos. Teve uma existéncia errante, abrigada em pen- soes € alojamentos modestos, sustentado pela pequena Ppensao que lhe foi concedida, em reconhecimento de seus servicos, pela universidade de Basi- leia. Ainda assim, Nietzsche sempre conservou suas maneiras refinadas, gos- to e habitos aristocraticos, nele implantados como uma espécie de segunda natureza, por sua sofisticada e austera formacao. Durante toda vida foi im- placavelmente atormentado Por uma penosa enfermidade crénica, sofrendo dores atrozes, que nao contributram pouco para gestar alguns dos insights mais originais e espirituosos de sua filosofia, mas que também contribuiram para seu colapso mental, na Passagem de 1888 para 1889. A segunda metade do século XIX foi prodiga em grandes eventos e transformacoes de monta em praticamente todos os setores da socieda- de alem, tanto no que concerne a seu aspecto material como também a cultura do espirito nas ciéncias e nas artes. Desde a juventude, Nietzsche ‘acompanhou muito atentamente essas transformacées, interessando-se por praticamente todos os setores da vida social, sobre os quais, mais tar- de, sua obra passaria a exercer poderosa influéncia, da economia as artes (particularmente musica e literatura), passando pela educacao, politica, religido, moral e ciéncia. Privou da amizade de luminares da €poca, como, por exemplo, o historiador Jacob Burckhart e o misico Richard Wagner. Sua obra inicial é marcada Por um interesse pronunciado pela estética, assim como pela intervencao critica no debate cultural e politico alemao, ‘ZSCHE 75 Testemunham-no seu livro de estreia: O Nascimento da Tragédia (1872) e a série das Consideracées Extemporéneas (publicadas entre 1873 ¢ 1876). Nesses escritos, percebe-se ainda forte influéncia sobre Nietz he dos ro- manticos alemies, assim como de Arthur Schopenhauer e Richard Wagner. A partir de Humano Demasiado Humano (obra em dois volumes, pu- plicada entre 1878 e 1880, e que, em certo sentido, constitui uma espécie de emancipacao intelectual de seu autor) Nietzsche rompe com ‘Wagner ¢ Schopenhauer e da inicio Aquela que considerava a tarefa de sua vida: a investigacao historica sobre a proveniéncia dos supremos valores morais de nossa cultura. Inicia-se, dessa maneira, uma trajetoria reflexiva marca- da por uma inclinacao pronunciada na direcdo dos métodos cientificos, notadamente da ciéncia historica e do modelo mecanico das ciéncias da natureza. Alguns comentadores consideram-no um periodo positivista de Nietzsche, sua fase mais marcadamente proxima dos ideais libertarios e cientificistas do Esclarecimento. A dedicatéria de Humano Demasiado Humano é uma homenagem a memoria de Voltaire, e a epigrafe de sua primeira edicao reproduz uma passagem de Descartes. Esse fascinio pelo método cientifico é dominante também no livro Aurora (publicado em 1881), mas comega a perder forca a partir de A Gaia Ciencia (1883), no qual Nietzsche empreende um distan- ciamento em relaciio a suas posicées anteriores. Sem abjurar das ciéncias, Nietzsche se volta para a dentincia dos pressupostos inconfessados, dos compromissos ideologicos nao refletidos do cientificismo de seu tempo, que nao raro descamba em dogmatismo. Seu ideal de conhecimento passa a ser o de uma ciéncia jovial, um saber alegre, capaz de voltar-se critica- mente contra si, dissolvendo todo resquicio de dogmatismo insito em suas proprias pressuposicées, num programa que culmina na Genealogia da Mo- ral e no projeto de transvaloracao de todos os valores. Lugar de destaque na biografia intelectual de Nietzsche cabe a Assim Falou Zaratustra — obra monumental dividida em quatro livros, publicados entre 1883 e 1885, considerada por alguns como o quinto Evangelho, e que se notabilizou como a mais radical ¢ intransigente critica do platonismo e do Cristianismo, na qual Nietzsche combina diversos estilos literarios, inclusive a poesia e a narrativa dramatica. Embora a vida intelectualmente lticida de Nietzsche tenha sido rela- tivamente curta, pois no inicio de 1889 é acometido em Turim por uma sincope mental que o priva da razio por ulteriores onze anos de enfermi- dade, a producao filos6fica de Nietzsche é consideravel Depois de Assim Falou Zaratustra, publica Para Além de Bem e Mal (1886), Para a Genealogia da Moral (1887), e em 1888 escreve, em ritmo de vertigem, uma sequéncia de obras primas como Crepuisculo dos Idolos, O Caso Wagner, Nietzsche contra Wagner, Ditirambos de Dioniso, Ecce Homo e O Anticrisio. Um dos aspectos mais marcantes da obra de Nietzsche consiste em sua critica devastadora dos ideais e valores cultuados pela modernidade cultural. Pode-se considerar que 0 alvo privilegiado de sua filosofia dis- ruptiva sao as ‘ideias modernas’ e sua influéncia no campo da ciéncia, das artes, da moral e da politica. Ao denunciar a cumplicidade entre os valores supremos de nossa izagao € uma tiranica vontade coletiva de poder e dominacao, cujo proposito oculto € levar a cabo um rebaixamento de valor do homem, sua padronizacao, uniformizacio, mediocrizacdo como animal de rebanho — desprovido de toda grandeza e auténtica personalidade, rendido ao ba- rateamento de um ideal de felicidade sinénimo de conforto, bem-estar, seguranca, auséncia de sofrimento, hedonismo —, a vertente positiva da fi- losofia de Nietzsche propugna por uma transvaloracao de todos os valores vigentes, pela instituicao de novas tabuas de valor, que consagrem ideais antitéticos aos da modernidade politica, subvertendo os valores esgotados e carcomidos do homem moderno, cada vez mais levado a reboque de uma crise de legitimidade em todas as esferas da cultura, Depois da sincope mental que o fulminou em Turim, nos primei- tos dias de 1889, Nietzsche viveu sob tutela da mae e da irma até 1900, sem nenhuma producao intelectual, vindo a falecer sem conhecimento do imenso impacto que sua obra causaria. Pois, durante sua vida lucida, com excecdo de uma ou outra efémera Tepercussdo positiva, a recepcdo de sua obra por parte da critica e do puiblico repete o fracasso de sua experiéncia docente. No entanto, a poténcia vulcanica da obra mantém viva a presen- ca espiritual de seu autor. Como Nietzsche profeticamente considerava, © significado de sua mensagem estava destinado a decifragao apenas dois séculos depois de sua morte. Com efeito, para Nietzsche como para 0 nos- so Machado de Assis, alguns pensadores nascem postumos; a forca de seu legado é privilégio dos que ainda estao por vir. 77 A influéncia de Nietzsche sobre sua posteridade cultural mal pode ser exagerada. Ele talvez seja o mais polémico e provocativo dos filosofos contemporaneos. Sua obra foi considerada tanto como uma justificacao filosofica antecipada do nazifascismo (George Lucaks, por exemplo) como um libelo emancipatorio anarquista. Se é verdade que foi cultuado por Benito Mussolini, também 0 é que serviu de fonte de inspiracdo para os modernists brasileiros da semana de 1922 e para os principais represen- tantes do movimento pés-modemo, na Franca de maio de 1968. Desse balanco pode-se extrair, como conclusio, que a filosofia de Nietzsche é um. fino e delicado sismégrafo que capta e registra com antecipacao convul- soes € movimentos que se preparavam nos extratos mais subterraneos da sociedade moderna, aflorados depois como desafios, impasses e dilemas com que ainda hoje nos defrontamos. Se é impossivel entender o século XX sem Nietzsche, a chama de seu pensamento continua acesa, a verve de sua critica ainda impacta o século XXI. Em seguida, apresentaremos a critica de Nietzsche ao historicismo, tendo como principal base a Segunda Consideracao Extempordnea: Vantagens e Desvantagens da Historia para a Vida, texto publicado em 1874, como parte do programa de intervencao no debate politico e cultural alemao da segunda metade do século XIX. Trata-se de um panfleto, no qual Nietzsche aprofunda e desenvolve alguns de seus pontos de vista sobre a cultura, ca- racteristicos de sua obra de juventude, mas que contém in nuce os insights capitais que formarao o nucleo de sua concepcao a respeito da epopeia de , tal como esta é concebida e apresentada no ambito de obras como Para Além de Bem e Mal e Para a Genealogia da Moral. O texto a seguir tematiza essa passagem da obra de juventude para o periodo genealogico da filosofia de Nietzsche, e, ao final, apresenta a traducao integral de um pequeno texto de juventude de Nietzsche Fatum und Geschichte (Fado e Historia), datado do inicio do ano de 1862, tendo por objeto consideracoes filoséficas a respeito das relagoes entre historia e destino, liberdade e necessidade. Considera 0 rebanho que passa ao teu lado pastando: ele nao sabe © que € ontem € 0 que € hoje; ele saltita de la para ca, come, descansa, digere, saltita de novo, ¢ assim de manha até a noite; dia apés dia; li- gado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer a propria estaca do 78 instante, ¢, por isto, nem melancélico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade — pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia nem dor; e 0 quer entretanto em vo, porque nao quer como o animal (NIETZSCHE, 2003, p. 7) Nesse texto publicado em 1874, 0 jovem Nietzsche ja enunciava uma clara visao a respeito da conditio humana, que sera retomada sob outra otica em sua andlise genealdgica do processo de hominizacao descrito em Para Além de Bem e Mal e Para a Genealogia da Moral, alguns anos depois. A passagem acima indica que Nietzsche desde cedo compreendeu a huma- nidade do homo humanus como temporalidade e finitude, como duracéo temporal finita. Essa é a raiz da historicidade: 0 que significa ser historico? O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que no me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também res- ponder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esquece o que queria dizer, mas também ja esqueaeu esta resposta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso (NIETZSCHE, 2003, Bf). A existéncia animal é a historica, e isso porque o animal esquece, ndo € capaz de se lembrar. Fssa impoténcia da recordacao, de reter o fluxo do tempo, escandir suas dimensoes ¢, alias, a mesma razao pela qual o animal ndo fala, porque falar ¢ fixar, e, portanto, subtrair algo a voragem do es- quecimento. O homem s6 é humano por meio dessa condicéio ontolégica originaria: a combinacdo entre a corrente do tempo, 0 esquecimento e a memoria. O animal sempre esquece o que queria dizer, esquece mesmo que esqueceu a resposta — por isso silencia. Em sua condigéo de humano, o homem se admira desse esquecido silenciar. Todavia 0 homem também se admira de si mesmo por nao poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que pa sou: por mais longe e rapido que ele corra, a corrente corre junto. E um milagre: o instante em um atimo esté ai, em um atimo ja passou, antes um nada, depois um nada, retorna entretanto ainda como um fantasma € perturba a tranquilidade de um instante posterior. Incessantemente BRicoRICH Nietzs 79 uma folha se destaca da roldana do tempo, cai e carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Entéo o homem diz: ‘eu me lembro’ ~ e inveja o animal que imediatamente esquece e vé todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite e extinguirse para sempre (NIETZSCHE, 2003, p. 7 ss.). Tempo, a corrente do vir a ser e passar, memoria, sobre o fundo de uma poténcia animal de esquecimento, raiz ultima da felicidade; a vida humana é um modo de existir inteiramente determinado pela dialética en- ‘me esquecimento e lembranca, que se move nas aberturas temporais do ssado, presente e futuro. E nesse horizonte ontolégico-existencial que a istoria humana é possivel como a dimensao do acontecer, dos fatos dota- ios de sentido, do destino. A palavra ‘historia’ traduz em portugués tanto eschichte (do verbo geschehen, acontecer; ao qual remetem os aparentados hicht: camada, estrato e Schickung: envio, destinamento) quanto a deri- cdo latina germanizada: Historie. Essa palavra da titulo a Segunda Con- ideracao Extemporanea de Nietzsche e designa a historia como disciplina cientifica, como historiografia — registro cronoldgico objetivo de séries de acontecimentos, causalmente ordenados, com suas circunstancias, condi- ‘coes determinantes, causas e consequéncias de ordens variadas (economi- cas, politicas, sociais, culturais, por exemplo). Geschchite, por sua vez, designa o acontecer adventicio, os aconteci- mentos singulares que impregnam a configuracdo e determinam o sentido de uma era do mundo. Com apoio no termo Geschick (o que € enviado, destinado, concluido com éxito ¢ propriedade). O substantivo Geschick e © verbo schicken significam, pois, enviar, remeter, dispor numa ordem, ins- talar, as duas ultimas acepcoes derivadas da ligacdo de schicken respectiva- mente com os verbos anordnen e einrichten; da mesma raiz deriva o subs- tantivo Schicksal (destino). Nesse circuito, Geschichte remete a Geschehnis {acontecer, acontecido), e Historie € 0 registro teorico e conceitual, a reflexao metodica sobre esse acontecer, um saber que esta fundado na constituicio ontoldgica do existir humano, como sua determinacao ontologica essencial. Sobre o pano de fundo dessas ressonancias, Nietzsche visa o destina- tario da critica formulada na Segunda Extempordnea: 0 historicismo, a con- cepcao da historia como ciéncia, que considera os acontecimentos como séries de fatos empiricamente constataveis, cuja ordem é determinada por 80 Ligoes De HisTdRIA leis positivas, que o historiador descreve objetivamente, a partir de uma perspectiva axiologicamente neutra, como convém ao cientista natural. Em sua versio como positivismo, o historicismo considera a historia como celeiro de fatos e processos a ser ordenados em relacGes de causa e efeito, cabendo ao historiador imiscuit-se em todas as coisas do passado intei- To, para construir longas cadeias de derivagées genéticas, apontar circuns- | tancias, condicionamentos e determinacées, relativizando historicamente, com isso, também o seu proprio ponto de vista, a condicdo especial do sujeito de conhecimento. O elemento aglutinador das diferentes modalidades de historicismo €a cisdo entre subjetividade e contetdo da historia, perda das dimensdes de identidade e valor. Do ponto de vista de Nietzsche, o historicismo é a historiografia esquecida de seu fundamento ontoldgico na historicidade adventicia (événementiel) do existir humano, a que pertence o estar aberto para as possibilidades futuras de ser, ancoradas na tradicao das possibilida- des historicamente sedimentadas, naquilo que ja foi, assim como na potén- cia critica do presente historico. Nessas trés dimensées, a historia mantém um interesse especial para vida, que ajuda a tonservar e reproduzir em | todo seu vigor. O interesse advindo das vantagens e servicos que a historia | presta 4 vida depende, portanto, de um enraizamento do sentido historico na dialética supramencionada entre esquecimento ¢ lembranga, na qual se enraizam a historia monumental, antiquaria ¢ critica que a Segunda Extem-_ pordnea considera. A historia monumental vive da possibilidade de repetir — em abertura para o futuro ~ as possibilidades ja acontecidas de monumentalidade hu- mana. Nessa repeti¢éo apropriadora do possivel reside a possibilidade da experiéncia da historia sob o ponto de vista do possivel: Através de que se mostra util para o homem do presente a conside- tacao monumental do passado, a ocupacdo com o que ha de classico e raro nos tempos mais antigos? Ele deduz dai que a grandeza, que }4 existiu, foi, em todo caso, possivel uma vez, ¢, por isto mesmo, com cer teza, sera algum dia possivel novamente; ele segue, com mais coragem, seu caminho, pois agora suprimiu-se de seu horizonte a dtivida que 0 acometia em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo 0 impossivel (NIETZSCHE, 2003, p. 20) Frieprich Nierz 81 A historia monumental nao é tanto um repositorio de feitos e epopeias, modelos de acdo a serem repetidos, mas o manancial no qual se nutre a con- viccao dos fortes homens de acao, que acreditam que ‘a grandeza deve ser eterna’; ela forma o contexto unindo o presente e o passado histérico: Pois o seu lema é: aquilo que uma vez conseguiu expandir e preen- cher mais belamente o conceito ‘homem’, também precisa estar sempre presente para possibilitar isso. Que os grandes momentos na luta dos individuos formem uma corrente, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através dos milénios, que, para mim, o fato de o apice de um momento ja ha muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso — esse é o pensamento fundamental da crenca em uma hu- manidade (NIETZSCHE, 2003, p. 19). Paradoxalmente, essa retomada do possivel voltada para o futuro =poia-se na preservagado do passado, das condigdes de origem e proveni- ncia, a forca da tradicéo que impregna o carater, as condicées facticas do paco vital, o acervo simbélico e institucional sobre o qual se levantam as ssibilidades de futuro: nessa chave, nao é a monumentalidade o elemen- determinante, mas a piedade do antiquario no trato com as raizes, com. coisas proximas: a esse sentimento ou atitude existencial em relacdo a0 ssado, Nietzsche denomina historia antiquarial. O interesse nuclear da historia antiquaria esta ligada ao ambiente pr6- (0, 4 regido, as condigGes espago-temporais que emolduram um mundo ivido, no interior da qual germina e floresce a vida dos individuos e das ‘iedades: a tradigdo do que foi conservado na memoria, as coisas preser- das, herdadas e assumidas. A historia pertence também a quem conserva venera, com amor e fidelidade, 0 legado dos ancestrais, a quem contem- la com respeito o lugar de onde veio e onde se criou; por intermédio desta piedade, ele como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existéncia. A histé- tia de sua cidade transforma-se, para ele, na histéria de si mesmo; ele compreende os muros, seu portdo elevado, suas regras e regulamentos, as festas populares como um didrio ilustrado de sua juventude e reen- contra a si mesmo em tude isto, sua forca, sua aplicacdo, seu prazer, seu juizo, sua tolice ¢ seus vicios (NIETZSCHE, 2003, p. 26). 82 HISTORIA Acompreensao da vida pela historia antiquaria mantém-se no registro da piedade e da preservacao: o costume herdado, o habito inveterado, as formas devocionais do culto, fixadas nos individuos ao longo de geracées: nelas nutre-se um sentimento de reveréncia que conserva, mas nao gera se- ndo a exigéncia de que 0 conservado seja imortal; portanto, ele se torna um perigo, na medida em que paralisa a aco e bloqueia o espaco para a cria- cao do novo, que sempre precisa ferir e destruir uma piedade consolidada. Essa necessidade constitui o ambito de legitimacao da historia critica. Aqui fica claro 0 quao necessariamente o homem, ao lado do modo monumental e antiquario de considerar o pasado, também precisa muito frequentemente de um tercciro modo, o modo critico: e, em ver- dade, esse também uma vez mais a servigo da vida. Ele precisa ter a forca e aplica-la de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a fim de poder viver; ele alcanca um tal efeito conforme traz © passado diante do tribunal, inquirindo-o penosamente e finalmente condenando-o; no entanto, todo passado ¢ digno de ser condenado — pois é assim que se passa com as coisas humanas: nelas sempre foram poderosas a violencia ¢ a fraquez’ humanes.! Todo agir consequente carece de referenciais, termos de comparacao a partir dos quais pode compreender a si proprio, necessita tanto de um solo estavel sobre o qual apoiar-se quanto de um horizonte aberto, sobre o qual projetar-se. Essa é a caréncia que articula a conexo entre 0 passado sobre o qual se atua, o presente da acao e o futuro possivel: 0 espaco da liberdade e da criacgdo. O presente de um contexto de vida €, pois, o sentido da historia. Todavia, 0 relacionamento de ambos pode também ser inversamente considerado, e s6 entao vem 4 luz o status caracteristico desse presente. Pois ele nao € simplesmente dado como presente, mas resulta de uma presentificacdo. A vida ndo tem nenhuma conexio sendo que tem de ga- nhar uma, e a hist6ria € a possibilidade e o caminho para isso. Por causa disso também o contexto de vida nao € inequivocamente determinado, mas determina-se a cada vez de acordo com a perspectiva historic: © NIETZSCHE, 2003, p. 30. Traduedo ligeiramente modificada, 83 propria vida que decide o que é contexto e horizonte de vida (FIGAL, 2009, p. 141) No cenério cultural do fim do século XIX e transicao para o XX, Nietzsche distingue a presenca de uma quarta poténcia do sentido histé- nico, que crescentemente torna-se hegemonica, langando sombras e ame- acando esterilizar 0 solo experiencial sobre o qual desabrocham a histé- na monumental, antiquaria e critica. A quarta forca 6 a ciéncia historica, ou a concepcao da histéria como um saber andlogo as ciéncias fisicas matematicas, baseado em métodos de observacdo e experiéncia, leis ob- Jetivas, universais e imutaveis, que regulam o curso dos fatos, eventos e Processos de que a ciéncia histrica extrai e sistematiza seu saber. Essa concep¢ao da origem também ao historicismo, cujas raizes estao planta- das tanto no positivismo classico de Augusto Comte quanto no sistema filosofico de Hegel Radicalizado em suas consequéncias, o historicismo leva & morte da acdo e a ruptura do vinculo entre a historia e a vida, pois um acontecimen- to dissecado em todos,os seus componentes, objetivamente analisado em todas as suas circunstancias ¢ determinacées é também um fato inerme como elemento de motivacéo, na medida em que a anilise histérica revela © quanto de limitacao, de imprevidencia, de ignorancia e mesmo estupidez se colocavam na raiz de seu vir-a-ser; em que medida — para agir — 0 agente histrico tem necessariamente de estar mergulhado nas contingéncias atuais da acao, ignorar os elementos essenciais que a determinam, tornando-a um acontecimento necessario numa cadeia causal de fatos. Desde que cientifi- camente explicados, esmiucados sem deixar qualquer residuo, esses fatos perdem a seiva vital, a significacéo propriamente existencial que desperta © interesse que neles pode tomar uma cultura, uma sociedade. Um fendmeno historico, conhecido pura e completamente e dissol- vido em um fenémeno de conhecimento, esta morto para aquele que o Conheceu: pois ele reconheceu nele a ilusdo, a injustica, a paixto cega ¢ em geral todo 0 horizonte profano envolto em obscuridade daquele fe- némeno, ¢, ao mesmo tempo, justamente ai o seu poder histérico. Para © que detém o saber, esse poder tornou-se agora impotente ~ mas talvez ente (NIETZSCHE, 2003, p- 17). De acordo com a penetrante observacao de Merleau-Ponty a respeito da crise das ciéncias europeias: “Se os pensamentos e os principios orien- tadores do espirito nada mais séo do que o resultado momentaneo da atuaciio de causas exteriores, as razdes pelas quais afirmo qualquer coisa nao constituem, na realidade, as verdadeiras razoes de minha afirmacao” (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 16). Poderiamos afirmar que a frase de Merleau-Ponty, referida a constata- cdo por Husserl da relagao entre a crise das ciéncias e a crise da filosofia no inicio do século XX, aplica-se com perfeicao a uma das teses conclusivas do capitulo inaugural da Segunda Consideracao Extempordnea: unicamente a partir de um ponto de vista supra-historico pode-se reconhecer o delirio, a cegueira passional e a injustica elementar de todo acontecimento histo- tico e mundano; esta é a condigéo de possibilidade de todo acontecer his- toricamente relevante e prenhe de futuro: a cegueira e a injustica reinantes na alma do homem de acdo (idem, p. 14). 5 Se, do ponto de vista de Husserl, a dissolucao da Filosofia em Psi- cologia e Antropologia conduz a um irracionalismo, pois o reducionismo historicista af vigente acaba por destruir os proprios fundamentos de cien- tificidade — pois as teses conscientes do cientista nao enunciam propria- mente razées, mas efeitos ideoldgicos de causas determinaveis do exterior -, para Nietzsche todo acontecimento dissecado historicamente em seus componentes, condicionamentos e determinagGes, apresenta-se sempre como resultado necessario de um processo mecanico, que obedece a leis inflexiveis. Portanto, a ascendéncia da ciéncia historica desertifica o solo espiritual que fecundava a relacao — proveitosa para a vida dos individuos e dos povos — entre histéria monumental, antiquaria e critica: Pensada como cia pura ¢ tornada soberana, a historia seria uma espécie de concluso da vida e de balanco final para a humanidade. A cultura historica sé é efetivamente algo salutar e frutifero para o futuro em consequéncia de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura, por exemplo; portanto, 86 se e conduzida por uma forga mais elevada e nao quando ela mesma domina e conduz (NIETZSCHE, 2003, p. 17). é dominada e BPRIEDRICH NIETZSCHE 85 Do ponto de vista de Nietzsche, o perigo do historicismo esta vincu- cdo 4 marcha triunfal do positivismo na transigdo para o século XX, a con- gracdo, por Augusto Comte e seus discipulos, dos métodos exatos das iéncias formais e empiricas como paradigmas de racionalidade e, sobre- do, entronizacao da ideia de progresso. Vale lembrar, nesse contexto, lema comteano: a formula [ou o lema] “ordem e progresso” significa, em tradeira instancia, que no mundo da natureza como no do espirito, todo senvolvimento € desenvolvimento de uma ordem, sem a qual nao pode ver transformacao para o melhor. if Ligada ao nome de Hegel, wma variante do historicismo desenvolveu- , sobretudo, inspirada no sistema de idealismo transcendental, ao qual ja opunha com virulenta énfase Arthur Schopenhauer. Mas, no curso de seu dobramento, esse idealismo converteu-se em seu proprio contrario, por emplo, na versao vulgar do materialismo historico e dialético, derivada de arx e Engels. Trata-se, nesse caso, de uma vulgata, certamente, cujos efei- politicos, todavia, foram extremamente concretos e eficazes nos paises entao denominado ‘socialismo real’. Nessa versao do materialismo histo- ico e dialético, a génese e a dinamica das formacées sociais seriam explicd- is a partir de estagios de desenvolvimento determinados por relagdes de producao, estas determinadas, por sua vez, pelo estado de desenvolvimento de forcas produtivas, sobre cuja base se eleva uma correspondente superes- tura de relacdes politicas e juridicas, formas simbdlicas de consciéncia social. A investigacdo histérica das sociedades a partir da generalizacéo dessa selacdo entre base economica e superestrutura politico-juridica e outras for mas simbolicas de consciéncia social, como a arte, a moralidade e a religiao, tornaria possivel, para esse tipo de concepcao, a transformacao qualitativa da mera descricao dos fendmenos sociais em anilise cientifica. A aplicacao do materialismo ao conhecimento da sociedade permititt ‘apresentar o desenvolvimento das formagées sociais como um proces- so cientifico-natural. Sem uma tal maneira de ver também nao pode existir, evidentemente, nenhuma ciéncia da historia’. Finalmente, o em- prego do materialismo sobre o conhecimento da sociedade consiste em reportar o agir infinitamente multiplo dos individuos singulares — que parece inacessivel a qualquer sistematizacdo e nao estar submetido a nenhuma regularidade ~ ao agir de grandes grupos humanos, que se di- ferenciam de acordo com sua posigdo no sistema das relacdes de produgéo, 86 Ligdes DE HISTORIA suas condicées materiais de vida e, consequentemente, também segundo seus interesses. Em resumo: as acées dos individuos foram reconduzidas as acoes historicas de classes sociais.* O historicismo criticado pela Segunda Consideracdo Extempordnea formava entao 0 Zeitgeist (espirito do tempo) sob cuja aurora despontou o século XX, tanto em sua vertente idealista inglesa, francesa e alema (por exemplo, Berkley, Comte, Hegel, Eduard von Hartmann), quanto na materialista (por exemplo, Arthur Schopenhauer ¢ a esquerda hegeliana) O proprio Nietzsche, que se situa nesse mesmo contexto intelectual, vin- culava o historicismo a profunda e duradoura influéncia do sistema he- geliano de filosofia especulativa, que Nietzsche conhecia tanto ‘a direita’ quanto a esquerda (especialmente com David Friedrich Strauss, Ludwig Feuerbach, Max Stirner e Bruno Bauer, uma vez que nao ha registros que atestem um conhecimento por Nietzsche de obras de Karl Marx e Friedrich Engels). Comum a ambas é a concep¢ao de que os fendémenos historicos estao submetidos, em sua formacao e transformacao, a leis po- sitivas, com recut so as quais se torna inteligivel'tanto sua génese quanto seu desenvolvimento. Chamou-se, com escérnio, esta historia compreendida hegeliana- mente 0 caminhar de Deus sobre a terra; mas um Deus criado por sua vez por meio da historia. Todavia, este Deus se tornou transparente e compreensivel para si mesmo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente possiveis de seu vir a ser até a 2 AA. Dialektischer und Historischer Materialismus. Berlin; Dietz Verlag, 1977, p. 311. No mesmo livto, encontram-se passagens como as seguintes, a respeito de formalizacio e do emprego de metodologias matemiticas em ciéncias sociais: “A formalizacao espraia-se sobre diferentes tipos de relagées, independentemente do carater dos objetos que se telacionam um com o outro. Essas telagGes séo consideradas como objeto independente. Da-se & totalidade delas o nome de estrutura © 20 método de formalizago denomina-se método estrutural. Sua vantagem consiste, sobretudo, em que tais relacdes sao, em geral, mais facilmente acessiveis & investigacao do que por meio dos objetos mediados... A matematizagdo encontroa-se em estreita conexdo com a formalizacdo. Como meétodo de investigacao cientilica ela ndo encontra utilizacsio apenas nas ciéncias da natureza, mes de maneira crescente também nas cigncias sociais. A matematizacao pressupde que aos objetos do mundo externo que sdo investigados sejam contrapostos certos objetos idealizados, isto €, objetos *matematicos, que tornam possiveis operagdes matematicas. Regularidades que sao estabelecidas para objetos matematicos deixam-se transpor para objetos reais” (Id., p. 300 e ss.) cH NieTZSCHE 87 sua autorrevelacio: de modo que, para Hegel, o ponto culminante e 0 ponto final do processo do mundo se confundiriam com a sua propria existencia berlinense (NIETZSCHE, 2003, p. 72). Tanto na versio positivista de Comte como na hegeliana, 0 progres- coincide com a idolatria do presente como o verdadeiro sentido dos ‘acontecimentos passados, a meta e a culminacdo da historia do mundo. ‘a Segunda Extempordnea Nietzsche escarnece impiedosamente dessa cos- ‘movisdo no interior da qual a prépria época — edulcorada pelo progresso da razio — era vista como resultado necessrio do curso da historia, e esta ‘como 0 processo no qual o conceito se realiza a si mesmo, 0 espirito torna~ -se consciente de si, a dialética torna-se o espirito dos povos, e a Weltges- chichte (historia mundial) institui-se em Weligericht (tribunal do mundo e wuizo final). Para Nietzsche, porém, a todo... [...] agir liga-se um esquecer: assim como a vida de tudo o que € or- ganico diz respeito nao apenas A luz, mas também a obscuridade. Um homem que quisesse sentir apenas historicamente seria semelhante que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse de viver ape- nas de ruminacdo e ruminagdo sempre repetida (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 9). E possivel viver sem lembranga, manter-se na vida ¢ esquecer perma- nentemente, isto é ser feliz como 0 animal, que jamais se recorda; portanto, se ocorre uma desmesurada saturacao do sentido histérico, se este se desen- yolve sem medidas, entdo ele torna-se perigoso para a vida, tanto dos indivi- duos como dos povos. Essa € a principal desvantagem da historia para a vida. Porque a vida é essencial uma poténcia plastica de assimilagao ¢ transforma- cdo, que se nutre do esquecimento. Sua neutralizaciio € a desmesura do sen- tido historico, proprio do homem moderno, que pratica a ciéncia historica como repeticdo incansavel da exatidao dos fatos, que se abstém de dormir e rumina sempre o mesmo, para sentir tudo apenas de maneira historica. Nessas condicées, a histéria torna-se uma mumificacao do passado, um ‘carnaval cosmopolita de deuses, habitos e artes’ — nao o aguilhao do presente e a forca propulsora do futuro. Em contrapartida, o historiador tornou-se espectador neutro e errante, a fruir sem cessar uma exposicao 88 universal no museu dos fatos hist6ricos, enquanto sua metodologia trans- formou-se no contetido do proprio trabalho, Para a filosofia positiva, nao ha outra unidade indispensavel sendo a unidade do método, que pode e deve evidentemente existir e ja se encontra estabelecida em sua maior parte. Quanto 4 doutrina, nao é necessario que seja tinica; basta que seja homogenea. Portanto, ¢ sob 0 duplo ponto de vista da unidade do metodo e da homogeneidade das doutrinas que consideramos as diferentes classes de teorias. positivas (COMTE, 1974, p. 153). Desse modo, o historiador moderno transformou-se num flaneura passear pela historia como quem percorre uma galeria de arte ou senta- -se confortavelmente numa sala de concertos, A Segunda Extemporanea é a resposta indignada a esse tipo de postura erudita e improdutiva do critico, no sentido do intelectual estéril, a hipertrofia da erudicao historica 6, no limite, paralisante, um obstaculo para a vida, travestido em rigor e objeti- vidade, unicamente Possivel, em sua radicalidade, no plano da composigéo artistica das narrativas, nos quais a causalidade é absolutamente inflexivel, sem lacunas: para o Nietzsche da Segunda Extempordnea, tanto 0 sentido historico como 0 a-histérico e 0 supra-historico sao, em igual medida, ne- cessarios para a satide de um individuo, de uma cultura, de um povo. A historia, uma vez que se encontra a servico da vida, se encontra . a servico de um poder a-historico, e por isto jamais, nesta hierarquia, podera e devera se tornar ciéncia pura, Mais ou menos como o é a matematica. Mas a pergunta ‘até que grau a vida necessita em geral do auxitio da historia? € uma das perguntas e preocupagoes mais elevadas ho que concerne a satide de um homem, de um povo, de uma cultura (MERLEAU-PONTY, 1973, p. 17). Para determinar o grau e o limiar a partir do qual, para conserva- cao da satide e incremento da vida, 0 passado precisa necessariamente ser esquecido, individuos, culturas e Povos necessitam justamente da forca plastica, que se alimenta de si mesma, e assim torna-se suficientemente Potente para transformar e metabolizar o que estranho e passado, curan- do feridas, reconstituindo os elos perdidos, incorporando 0 estranho e 89 rurando o perdido. Mas a hipersaturacdéo de uma época pela historia, ressa na exigéncia de que a historia deve ser a ciéncia que permite tudo mpreender e explicar, € nociva para a vida, na medida em que produz a plura entre o conhecimento e a vida, entre a subjetividade e a historia, nome da valorizacao incondicional da objetividade histérica: As personalidades devem se tornar, antes de tudo, da maneira descri- ta, como sem subjetividade, ou, como se diz, objetividades: assim, nada mais consegue agir sobre elas; pode acontecer algo bom e justo, como ato, como poesia, como musica: imediatamente o oco homem da cultu- ra lancao seu olhar para além da obra, e pergunta pela historia do autor. Tenha este homem ja criado muitas obras, € imediatamente obrigado a ter esclarecido para si o curso prévio € o curso ulterior presumivel de seu desenvolvimento, € imediatamente colocado ao lado de outros artistas e comparado com eles, ¢ dissecado, esfacelado em funcao da es colha de seu material, do seu modo especifico de trata-lo. A coisa mais espantosa possivel pode acontecer, a horda dos homens historicamente neutros ja esta sempre a postos para visualizar o autor a uma distancia consideravel (NIETZSCHE, 2003, p. 46). O homem moderno é um animal estropiado, intoxicado pelo sentido istorico, pela indigestéo de fatos e processos aos quais uma curiosidade dita e mérbida nao é capaz de resistir; sua forca mais celebrada é jus- ente a da ‘objetividade historica’, ‘conhecimento puro, sem interesses, consequéncias’, proprio de eruditos ‘servidores incondicionais da ver- ade’, maquinas de pensar, de escrever e falar... [...] uma geracao de eunucos; para o eunuco, uma mulher é como qual- quer outra, justamente apenas mulher, a mulher em si, 0 eternamente inatingivel — e, com isto, é indiferente 0 que vos impulsiona, contanto que a propria historia permanece bela e ‘objetivamente’ conservada, es- pecialmente por aqueles que nunca podem fazer historia por si mesmos (idem, p. 45 e ss.) Esse € 0 ponto capital: o homem moderno nao pode fazer historia por si mesmo porque se rendeu ao imperativo do trabalho conjunto mais titil possivel, da divisdo técnica do trabalho e da intensificacdo das taxas de produti- vidade; a historia submeteu-se ao comando da aceleracao da producao. Na 90 Ligdes DE HISTORIA velocidade da cadeia produtiva residem a sabedoria e a virtude dos erudi- tos modernos: na conjurac%o dos mediocres operarios cientificos, dos tra- balhadores especializados, contra o génio auténtico, considerado um luxo extravagante e supérfluo numa sociedade disciplinada como a moderna: O incansavel e modemo grito de batalha e sacrificio ‘Divisao do Tra- balho! Em fila!’, deve ser dito, algum dia, de maneira clara e distinta; se vos quereis fomentar o mais rapido possivel a ciéncia, entao também ireis aniquilé-la o mais rapido possivel, exatamente como as galinhas perecem se as impelimos artificialmente a colocar ovos rapido demais (NIETZSCHE, 2003, p. 64). Os eruditos modernos superafetados pelo sentido historico sao gali- nhas extenuadas, que cacarejam sem cessar, porque desovam sem cessar — “é certo que os ovos também foram se tornando cada vez menores (por mais que os livros tenham se tornado cada vez mais* ‘grossos)” (idem, p. 64). O culto religioso da objetividade cientifica fomenta a postura neutra diante do passado, a admiracao pelo poder da histéria, 0 ofuscamento pela positividade, que conduz a idolatria do factual, a historiografia contempo- ranea tem seu imperativo categérico: ‘levar em conta os fatos’ objetivamen- te; em sua natureza de mandamento incondicional, esse preceito revela a natureza religiosa de seu contetido. O historicismo € a mitologia da obje- tividade, 0 conformismo que se quebranta resignado diante de tudo o que foi, a preparacao para a submissio a todo poder reconhecido. Mas quem aprendeu inicialmente a se curvar ea inclinar a cabeca diante do ‘poder da historia’ acaba, por ultimo, dizendo der, balancando mecanicamente a cabega como os chineses, quer se trate sim’ a todo po- de um governo ou de uma opiniao publica ou de uma maioria numérica, movimentando seus membros no exato compasso em que qualquer ‘po- der’ puxa os fios. Se todo evento contém em si uma necessidade racional, todo acontecimento é a vitoria do logico ou da ‘ideia’ — entao se ajoelhem depressa ¢ louvem agora toda a escala dos ‘eventos’ (idem, p. 73). E com base em argumentos como esses que 4 Segunda Extempordnea se aproxima de modo surpreendente de uma ‘dialética do Esclarecimen- to’ de corte nietzschiano, pois a hegemonia ideologica do historicismo € rich NieTZSCHE 91 -pressio velada de colonizacao da poténcia critica, o disfarce da escra- 0 mental’ que é o signo da moderna barbarie civilizada: Os homens devem ser ajustados aos propositos da época, para ajuda- rem o mais cedo possivel; eles devem trabalhar na fabrica das utilidades genéricas antes de estarem maduros, sim, e com isso, nao amadurecerio ~ pois isso seria um luxo que retiraria do ‘mercado de trabalho’ uma quantidade enorme de forcas. Cegam-se alguns passaros para que eles cantem melhor: nao acredito que os homens de hoje cantem melhor do que seus avs, mas sei que eles s4o cegados muito cedo (NIETZSCHE, 2003, p. 62) FS Também do ponto de vista da Segunda Extempordnea, o historicismo traz ‘igo uma conversao do Esclarecimento em mitologia, depois que a racio- lade lgica tinha relegado 0 mito as regides obscuras do recalcado social. O prinetpio da necessidade fatalistica a qual sucumbem os herois do mito, e que se extrai da sentenga oracular como consequéncia légica, depurada como adstringéncia da légica formal, domina nao apenas em todo sistema racionalista da filosofia ocidental, mas impera até sobre a consequénciatdos sistemas, que principia com a hierarquia dos deuses e,em permanente crepusculo dos idolos, transmite, como idéntico con- tetido, a ira contra a retidao insuficiente.* Como ja os mitos realizam © Esclarecimento, do mesmo modo 0 Esclarecimento enreda-se mais profundamente a cada passo na Mitologia. Todo contetido ele 0 recebe dos mitos, para destrui-los, ¢ como julgador ela sucumbe a maldicao mitica (HORKHEIMER, M. ADORNO, 1987, p. 33). x exemplo, Segunda Extempordnea, p. 64: “Grosso modo, lamento que ja tenhamos a

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