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As armadilhas do quadripartismo histérico ‘Uma sistematizagio bem francesa eurocént istalizagio da burocracia histrica e e A fungio ideolégica especiica da historia “antiga”, “medieval”, modem" e “contemporanea” —O quadrpactsmo derrotado intelectual e pli camente —O marsismo académico néo pode regeneri-lo ; Na Franca, 0 estudo eo ensino da historia como disciplina integrada 4 maquina universitaria es- #0 orgenizados em quatro grandes conjuntos, entres os quais st de-se repartido o tempo histérico: © Historia antiga, de fato, histéria da Antigttidade greco-ro- mana, com uma timida abertura para o Egito faradnico e os impé rios assirio-babilénicos. Esse periodo se estende tradicionalmente até a queda do Império Romano (conquista de Roma pelos barba- 10s, em 410, ou queda do Império Romano do Ocidente, em 484); * Histérin da Idede Média, de fato, da Idade Média ocidental, com um esforco para estendé-la a Bizancio, ao Leste da Europa 0s paises arabes do Mediterraneo. Esse periodo se estende até a Conquista de Bizancio pelos turcos (1453) ou até 0 descobrimento da América por Crist6vao Colombo (1492); [AS ARMADILHAS DO QUADRIPARTISMO HISTORICO 93 © Histéria moderna, sempre da Europa, af compreendida sua colonial de ultramar, periodo que se estende até a Revo- incesa (17892, 17992, 18152); * Histéria contempordnea, a tinica que ultrapassa, bem ou mal, o marco europen e deixa um lugar efetivo para os paises de Asia, Africa e América. £ preciso advertir desde jé que esse sistema quadripartite de organizagao da historia universal 6 um fato francés, Em outros pai ses, 0 passado esta organizado de modo diferente, em fungao de pontos de referéncia diferentes (cf. capftulo 12, a interioridade na- ional em hist6ria). Na Grécia, a Antigitidade chega até o século XV, e a ocupacdo turca corresponde a uma espécie de Idade Mé- dia. Na China, a histéria “moderna” (jinda’) vai das guerras do 6pio a0 movimento patridtico de maio de 1919. Comega com este Liltimo a hist6ria “contempordnea" (jandai). Nos Estados Unidos, a historia nacional se organiza em trés blocos, em fungo dos eixos fundamentais que sao a Guerra de Independéncia, em fins do sé culo XVII, e a Guerra de Secesstio, em 1860-1864. Mas versal numa estrutura rigida, quadripartite, é mais extremada, mais acabada. Esse quadripartismo cumpre certo mimero de fun- ‘es precisas, a0 mesmo tempo no nivel das instituigdes universi- tarias e no nivel da ideologia. Desempenha o papel de um verda- deiro aparelho ideolégico de Estado. 6 talvez na Franca que a sistematizagio da historia uni- Fungdo pedagégica Essas quatro grandes segbes formam a armacéo dos progra- mas de ensino secundario, dos cursos ¢ programas universitarios de histéria, dos concursos de admisséo nas escolas normais supe- riores, dos concursos “de recrutamento” (Capes, efetivacéo).O que implica de imediato, a mesma organizacio para os manuais escola- res ou as colegées de obras histéricas. oa DEVENS FAZER TABULA RASA DO PASSADO? Fungao institucional £ com base no quadripartismo que se efetua a denominagio das cétedras de ensino nas universidades. O CNRS funciona nos ‘mesmos moldes: cada uma de suas quatro comissbes de hist6ria é todo-poderosa em matéria de créditos, de nomeagies, de equipa- ‘mento cientifico, num dos quatro dominios cléssicos da historia. © mesmo se dé nas sedes do Comité Consultivo das Universidades (CCU), organismo mandarinista (capitulo 7), senhor absoluto nas decistes sobre as carreiras, as nomeacoes, as promocées. Cada his- toriador profissional deve ser registrado numa dessas quatro co- missdes ou secdes, por exemplo, por ocasiio das “eleigdes”, que io sua fachada democratica. A obrigagao policial de domicilio se ‘manifesta aqui com uma nitidez toda particular. E também ao re- dor dessas grandes divisées que se cristalizam as camarilhas uni- versitérias. Assim, os mestres de hist6ria antiga e de historia da Idade Média sao suficientemente influentes no ministério para conseguirem que seus respectivos setores representem, cada um, tum tero dos programas dos exames escritos de efetivacio, 0 que Ihes garante estudantes, assistentes, ctéditos... No entanto, toda a historia do mundo até o século XVI nao representa, com 14780, mais que uma diminuta parte do ensino que o futuro professor de- ver proporcionar aos alunos, através do conjunto dos programas de histéria das turmas no secundézio. Funciio intelectual © quadripartismo forma a base da divisdo do trabalho de in- vestigacao entre os historiadores, e suas quatro zonas sto outros tantos subconjuntos fechados sobre si mesmos, Sem diivida, exis- tem outras chaves, outros modos de divisao do campo histérico € de distribuigao das especialidades; & posstvel afirmar-se como es- pecialista de determinado pats ou de certo aspecto da atividade social (hist6ria religiosa, historia econdmica, hist6ria das mentali- dades). Todavia, com a excegao de casos marginais, s6 se consice- 88 + AS ARMADILHAS DO QUADRIPARTISMO HISTORIC 95 ram logitimas e respeitaveis essas subespecializagdes, compati- veis com as exigéncias da ciéncia histérica, se se efetuam no inte- rior de um dos quatro grandes setores de base: historia econdmica sgrega, hist6ria do comércio na Idade Média, historia demografica moderna, Fungao ideolégica e politica © quadripartismo tem como resultado privilegiar papel do Ocidente na hist6ria do mundo e reduzir quantitativa e qualitati- vamente o lugar dos povos nio-europeus na evolugio universal. Por essa razAo, faz. parte do aparelho intelectual do imperialism. (Os marcos escolhidos néo tém significado algum para a imensa maioria da humanidade: fim do Império Romano, queda de Bizén- cio, Esses mesmos marcos destacam a histéria das superestruturas politicas, dos Estados, o que também nao inocente. ‘As categorias bésicas do quadripartismo tém uma fungao ideol6gica especifica, enraizam no passado certo ntimero de valo- res culturais essenciais para a burguesia dirigente. ff 0 caso da An- tigiiidade greco-romana, que, desde o Renascimento e, ainda mais, com a Revolucio Francesa, por razbes politicas, 6 uma das bases da cultura burguesa na Franga. Nao ha muito tempo era preciso compor versos em latim no bacharelado e defeniler em latim a tese de doutorado (o que Jaurés fez!). Saber grego e latim era um indi- cio seguro de que se pertencia & classe dirigente; as coisas nao mu- daram até bem pouco tempo, com a ascenséo das mateméticas. ‘A Idade Média é igualmente ideol6gica. £, quanto ao essen- cial, uma Idade Média crista; dé oportunidade, portanto, para se exaltarem os valores da “civilizagdo crista: familia, monarquia, eruzadas, cavalatia: todo um vocabulério tenaz. Essa Idade Média 6 ideol6gica na propria origem do termo: uma “longa espera”, “rama idade intermedidria entre a Encarnagio que encerrou a An- tiga Lei e 0 dia bendito do Reino de Deus que se espera” (M Bloch), Fazer da [dade Média uma das categorias bésicas da hist6- ria universal 6 perpetuar 0 prestigio e a ascendéncia dos meios do catolicismo conservador e da Igreja: a civilizagao crista, de que se 96 DBVEMOS FAZER TABULA RASA DO PASSADO? Pretendem herdeiros, ¢ erigida como um dos pilares do proprio Tempo. Pompidou, filho de um professor laico, transferido para o campo da grande burguesia, cumpriu de maneira muito coerente sua fungao ideolégica ce defender a ordem estabelecida ao resta- belecer 0 latim no quinto ano e organizar grandes festividades pa- 1a o sétimo centendrio de Sao Luis Rei de Franca. O termo “Tempos Modernos”, ao menos desde Voltaire, con- sagrou a pretensdo da burguesia ascendente de completar a hist ‘a, de controlar para sempre, em nome de sua “modernidade”, 0 futuro da humanidade inteira. Desde algumas dezenas de anos, a historia “moderna” se dissociou da historia “contemporanea” no interior do aparelho universitério, mas conserva uma fun¢ao ideo- logica especifica. O periodo cos séculos XV-XVIIII se apresenta co- mo a idade de ouro dos Antigos Regimes, aqueles cujos mecanis- mos politicos mais servis parecem evitar as revolucdes ou reduzi-las a simples acidentes de percurso. Esse periodo foi con- vertido, portanto, na zona de predilecao dos adeptos da “longa Guracao”, da historia chamada massiva e, de fato, despolitizada (Cf. capitulo 15, tempo curto ¢ tempo longo). Isto porque o estudo da demografia, das mentalidades, das técnicas, da cultura erudita ou popular e das formas sociais de desvio pode se desdobrar a vontade sem que intervenham esses importunos que so as lutas Politicas de massa, as crises e as rupturas. Dessa predilegio dao testemunho os indices da revista Armales... No estudo desse perio- do “modero", historiadores de direita ou de extrema direita, nos- talgicos em relacéo a sociedace pré-capitalista, ¢ historiadores “de esquerda”, propagandistas da nova Histéria, vive em boa har- monia, apoiados num compromisso politico cujo objetivo & preci- samente extirpar da hist6ria sua dimensao politica A idade contemporanea, quarto pilar do edificio hist6rico, envolve uma afirmagio e uma pretensio igualmente claras: a apti- io do Ocidente para dominar, politica e economicamente, todo o mundo. A hist6ria no-européia, marginal ou excéntrica no caso das outras trés zonas, torna-se, aqui, componente essencial dessa demonstracdo ideolégica; tem direito de cidadania na instituigao historica. © dominio do Ocidente sobre o mundo se refletiria, se gundo esse ponto de vista, na aptidao dos historiadores ocidentais 8 © AS ARMADILHAS DO QUADRIFARTISMO HISTORICO 7 para apresentar um quadro coerente e global do mundo rd los XIX e XX, para ser os guias naturais da historia africana, asié ca ou americana, if eee guadripartisme, todavia, 6 ¢inadequade no plan int lectual, inclusive para a Europa e até no interior do alco ne rico cldssico, Ele recorta em partes arbitrriascertas zonas histér cas homogéneas e originais: é 0 caso da historia das regibes ‘aritimas do Batico e do Mar do Norte, do séeulo XIU 20 XVII, com o predominio dessas grandes cidades comercais, que ainds hoje tém todas um ar familiar ce Amsterd8 a Riga. O quadipartis: mo relega a segundo plano os fenémenos mais intressantes, a= sudangas profendas, 0 los histricos, Um espeilista do Baixo Império” © um especilista da “Alta Idade Média” sto colocados autoritariamente em diferentes segdes do aparelho histrico, slo forgados se domiclar de um ado ou do auto, com o ques es incapacta para um estudo profundo desse pertode-chave entre 2 Antighidade ea Idade Média, O quadripartismo ainda difculta.0 estud dos fendmenos espectficosno tempo longo: a comunidad sta, a utopia, a guerra ndo-convencional e os marginais. Bf nalmente,chega-sea uma verdad doutrinasHo, Um istoriador acaba por se convencer de que a6 é competente nas sacrossani categorias de base: seré probide toda relexio geal e comparada- Mas o quacripartismo fracassa sobretudo pelo préprio movie mento da histo. Ee se configura incompativel com a evolu ndo d tempo, com as exigéncias do presente. “Grane, de gu ele sada ver me i Ihéria, O mundo dos brancos, especialmente o mundo dos ee (cite anglosazon protestants), terminou. Nixon tee devija a C2- nossa e subir na Grande Mutalha Saigon ¢ Phnom Pen fran Ir berades por exéreits camponeses armados contra a maior poten: cia do mundo; 2 ONU 36 abrange uma pequena minoria das potincias ocidentais que desfrutavam o completo dominio sok SON ote lado, vvemes “nam mundo de nse cu Lad. Os problemas da confinuidade nacional (capitulo 12) vio ca da ver mais substituindo os vastos esquemas. O quadripartis * Sociedade das Nagoes. ———==—K—K—K—KX—F_—_e_ve_—_:.n nn nn ee ee 98 DEVEMOS FAZER TABULA RASA DO PASSADO? nada mais é que uma das versoes, e nio a melhor, do velho sonho de um “discurso sobre a historia universal” (capitulo, 9); encontra- Se tio deteriorado quanto esse proprio sonho. E, sobretudo, a histéria como conhecimento de um passado extemo a n6s se ve, hoje, obrigada a se definir como referéreia ot, do ano Passado. A pritica social derruba os enclausuramentos do quadripartismo e unifica o campo hist6rico em fungao de suas aed, Pp oridades. Colocar em discussio o atual regime pent. tenciério obriga a refletir sobre essa institwicao no tempo longo, ad des categorias de historia “medieval” ou “moderna” Aeroy antes do movimento das mutheres se interrogam, nto ‘menos Yeementemente e num processo coerente, sobre a intensa eserav’ Zasio da “mulher das cavemas” (por que nossas irmas se deine cam acorrentar?) e sobre 0 que a Revolucéo Industrial trouxe de especificamente novo para a exploragio social das mulheres E preciso salvar, in extremis, 0 quadtipattiseno, enn nome da teoria marxista?& preciso regeneré-lo, apoiado na sucessio don Brandes modos de produsée? A Antigiidade corresponderia an soca, @ Tdacle Média ao feudalismo, os Tempos Modernos 20 eapitalismo ascendente, o mundo contempordneo ao capitalis- Ine Gesenvolvido, jé confroniado com o socialismo desde voir e 1949, E-certo que cada modo de produgao 6 um poderoso operador hist6rico; cada um deles estruturou fortemente conjunto do teci- do social de determinada &poca através dla unidade dy base econd- nica ¢da superestrutura. A familia, os valores morais, Ptftica da Seoul histbrica, a diviséo do trabalho artesanal eo furcionaments Git diplomacia se conformam, na Idade Média, 3s leis gerais da Produsao feudal; todos esses aspectos da vida social se encontram Profundamente impregnados de feudalismo, Da mesmne forma, os Principios marxistas de andlise das sociedades permitem, indi qvclmente, uma analise mais coerente da Antigtidade romana og do capitalismo ascendente, sob todos os seus aspectos simultanea- mente (Mas os grandes motos de producto definides por Marx sto ina Epologia, uma contribuicko a leoria das formagces sociais (ca- Pitalo 4). Representam casos limites, significatives que 56 estio ox1co 99 DO QUADRIPARTISMO HISTORIC 8 © AS ARMADILHAS| Bes hist6 particulares: ados em condigdes histéricas muito particul eacnoie cauiaaelae todo o Império Romano; 0s esta icla e Roma, ainda assim, is ano; oat f a Europa ocidental nos séculos XI-XIV; . Genes sadenmal e da América do Norte desde meados do sé thod nai rtismo, um “discurso sobre a historia universal” reno- ho quadripartismo, vado pelo marxismo.

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